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Pode a arte dizer não?

Foto horizontal, colorida. Obra MIL OLHOS, de Lia Chaia. Ao fundo, uma parede branca. Uma mulher branca, com os olhos fechados e os cabelos castanhos presos. A fotografia a enquadra dos ombros para cima. Tem os ombros nus. Sete fios vermelhos envolvem sua cabeça horizontalmente e de forma espaçada. O primeiro na linha do cabelo, os demais paralelos, cruzando o restante do rosto, sendo o último na altura de seu queixo. Penduradas nos fios, diversas peças redondas remetem a olhos, são brancas com um círculo castanho dentro e um círculo preto dentro deste, como se fossem íris e pupila. A obra é parte da exposição DIZER NÃO
"Mil Olhos", de Lia Chaia. Foto: Divulgação

Como e por que continuar produzindo em tempos de morte e luto? O que pode a arte contra a barbárie? Essas provocações foram o ponto de partida para que 47 artistas se reunissem na exposição Dizer Não. Organizada por Adriana Rodrigues, Edu Marin, Érica Burini e Thaís Rivitti, com o apoio do Ateliê397, a mostra teve início no último dia 22 de julho e segue em cartaz até 19 de setembro.

Para Rivitti, a iniciativa é, sobretudo, um posicionamento político. “Dizer Não retoma a possibilidade de a arte dizer. Enunciar conflitos, dirigir-se ao presente, materializar aquilo que está posto socialmente mas que ainda não foi elaborado de forma consciente, coletiva e pública”. Durante os últimos meses, a tristeza e o inconformismo em relação aos rumos do país pareciam constantes nas conversas daqueles que hoje participam do projeto. As posturas do governo frente à pandemia de coronavírus, às atividades culturais e ao meio ambiente, bem como a legitimação de uma série de posturas racistas e LGBTfóbicas, eram alguns dos conflitos que precisavam ser enunciados. Dessa necessidade de enunciação, nasce o título da mostra, “‘dizer não’ nos parece uma expressão forte para marcar a profunda discordância e a indignação que as declarações e medidas políticas do atual governo vêm despertando em boa parte da população e, mais especificamente, nos artistas e demais profissionais do campo da cultura”, explica Rivitti.

Manifestações ao redor do Brasil têm se colocado frente a essas questões, e, inicialmente, os organizadores pensaram em construir a exposição baseada na lógica dos protestos: quanto mais gente melhor. Assim, reuniriam o maior número possível de participantes. “A força do protesto poderia ser medida pela quantidade de pessoas que nele se engajassem”, conta Rivitti. Porém, um questionamento emergiu dessa estratégia: a opção por uma mostra quantitativa não reforçaria a invisibilização dos artistas perpetrada pelo governo? “Percebemos que era preciso, mais do que nunca, dar a ver a experiência singular que cada trabalho de arte é capaz de propor. Assim, optamos por convidar o máximo de artistas que conseguíssemos abarcar desde que fosse possível apresentar seus trabalhos sem atropelo, com a força e a presença que cada um demanda”, conclui.

Hoje, Dizer Não reúne artistas e coletivos de diferentes gerações, entre nomes consagrados e jovens em início de carreira. A lista completa é formada por Adriano Machado, Ana Dias Batista, André Komatsu, Bertô, Bruna Kury e Gil Porto Pyrata, Cildo Meireles, Clara Ianni, Craca e Raphael Franco, Cuca Ferreira, Daniel Jablonski, Denise Alves-Rodrigues e Pablo Vieira, Edu Marin, Elizabeth Slamek, Fernando Burjato, Flora Leite, Frederico Filippi e C. L. Salvaro, Graziela Kunsch, Isael Maxakali, JAMAC, João Loureiro, Juçara Marçal, Kadija de Paula & Chico Togni, Kauê Garcia, Laura Andreato e MuitasKoisas, Leda Catunda, Lia Chaia, Lícida Vidal, Lucimélia Romão, Marcelo Amorim, MUSEUL*RA e Ateliê Um bom lugar, Paola Ribeiro, Rafael Amorim, Raphael Escobar, Regina José Galindo, Rochelle Costi, Shima, Sol Casal, Vânia Medeiros e Wagner Pinto.

Com intervenções no espaço expositivo, obras criadas a partir de materiais “de combate” – como canetões, lambes e cartazes -, e produções em grande escala – que buscam contrapor a invisibilidade das temáticas tratadas -, a exposição propõe uma resistência não apenas discursiva, mas também plástica, explica a organizadora Érica Burini. “Há obras aqui que podem nos ajudar a reformar questões e modos de ver o presente, a história e também o futuro”.

Sem patrocínio, verba ou apoios financeiros, Dizer Não se constrói de forma independente, através de participações voluntárias e de um financiamento coletivo. “Ter sido possível organizar essa movimentação toda de forma independente é o maior sinal de que os artistas estão mobilizados e pensando sobre a grave crise que o Brasil está enfrentando”, declara Rivitti. Ao que Érica Burini completa: “A realização dessa mostra é mais uma demonstração, dentre outras, de que ainda que com muitas limitações, a arte e os artistas não se calarão diante da barbárie”.

Dizer Não
ONDE: R. Cruzeiro, 802 – Barra Funda, São Paulo (SP). Acesse o site do projeto.
QUANDO: 22 de julho a 19 de setembro. Quintas e sextas, das 14h às 18h; sábados e domingos, das 11h às 19h.
Entrada gratuita

Prêmio PIPA anuncia vencedores da edição 2021 e abre mostra no Paço Imperial

PIPA
“Dollhouse Gallery”, 2020, de Ilê Sartuzi. Foto: Reprodução de www.dollhouse.gallery

Um dos mais importantes prêmios de artes visuais do país, organizado pelo Instituto PIPA desde 2010, o Prêmio PIPA anunciou os cinco vencedores da edição de 2021: Castiel Vitorino, Denilson Baniwa, Ilê Sartuzi, Marcela Bonfim e Ventura Profana. Segundo o texto de divulgação do resultado, “os artistas selecionados mostram o quanto a produção artística brasileira é plural, misturando linguagens e saberes heterogêneos e se desenvolvendo no país como um todo”.

Nesta edição, que teve mudanças em seu regulamento, os cinco artistas recebem a premiação de R$10 mil – sem precisar fazer a doação de uma obra para o instituto, como nos outros anos – e participam de uma exposição que acontece no ambiente online entre 13 de setembro e 16 de outubro. Os artistas realizarão uma ocupação virtual no site e nas redes sociais do PIPA e na plataforma Preview (da qual o crítico e curador Gabriel Pérez-Barreiro é um dos fundadores), com conteúdo exclusivo.

Presencialmente, o PIPA realiza também entre 9 de setembro e 20 de novembro uma mostra dos quatro vencedores da edição de 2020 – Gê Viana, Maxwell Alexandre, Randolpho Lamonier e Renata Felinto – no Paço Imperial (Rio de Janeiro). Em outra galeria do espaço, os cinco artistas selecionados de 2021 serão apresentados, além de obras comissionadas e adquiridas nos últimos anos pelo Instituto. Ainda esse ano, o PIPA Online, feito com votação popular, premiará dois artistas com o valor de R$ 5 mil para cada. 

Sobre os cinco vencedores deste ano, o PIPA destaca que: “Depois de 11 anos premiando artistas mais conhecidos no circuito de arte nacional, decidimos que em 2021 os artistas indicados deveriam ter no máximo 10 anos de trajetória”. Os vencedores, nascidos entre os anos 1980 e 1990, são de diferentes regiões e trabalham com variadas linguagens e suportes. Seus trabalhos podem ser melhor conhecidos no site do PIPA ou em matérias publicadas pela arte!brasileiros e linkadas nos nomes dos artistas no parágrafo inicial deste texto.

Os vencedores das edições anteriores do PIPA foram: 2020 – Gê Viana, Maxwell Alexandre, Randolpho Lamonier e Renata Felinto; 2019 – Guerreiro do Divino Amor; 2018 – Arjan Martins; 2017 – Bárbara Wagner; 2016 – Paulo Nazareth; 2015 – Virginia de Medeiros; 2014 – Alice Miceli; 2013 – Cadu; 2012 – Marcius Galan; 2011 – Tatiana Blass; 2010 – Renata Lucas.

Bienal de São Paulo comemora 70 anos com podcast, filme e nova edição de linha do tempo

Cartaz da segunda edição da Bienal, conhecida como “Bienal da Guernica”. Foto: Divulgação/ Fundação Bienal de São Paulo
Cartaz da segunda edição da Bienal, conhecida como “Bienal da Guernica”. Foto: Divulgação/ Fundação Bienal de São Paulo

Enquanto se prepara para a abertura, no dia 4 de setembro, da mostra principal de sua 34ª edição, intitulada Faz escuro mas eu canto, a Bienal de São Paulo comemora seus 70 anos de existência através de uma série de ações – que seguem deste mês de julho até 2022. Entre elas estão o podcast Bienal, 70 anos, com alguns episódios já disponíveis (ouça aqui), o lançamento do curta-metragem Arquivo Histórico Wanda Svevo: o passado em perpétua construção (no Canal Arte 1 em 31 de julho e, em seguida, no YouTube da Bienal) e a reedição da publicação Linha do tempo da Bienal de São Paulo, que será disponibilizada para compra na Livraria da Travessa.

Além disso, nas redes sociais da instituição, uma série de artistas, cantores e atores compartilham suas memórias sobre a mostra, que em 33 edições já reuniu aproximadamente 11.500 artistas ou coletivos de 140 países, mais de 70 mil obras e 8,5 milhões de visitantes. Por meio da campanha de mote “Bienal: há 70 anos, você não sai você”, já estão disponíveis os relatos de nomes como Lima Duarte, Mariana Ximenes, Enivo, Beatriz Milhazes, Nino Cais, Ana Lira e Siron Franco. Outros se juntarão a eles nas próximas semanas. O Instagram da Bienal também está apresentando, por meio de posts diários, a história de cada um dos cartazes das 34 edições da mostra.

Bienal de São Paulo
Vista geral da 1ª Bienal (1951). Foto: Reprodução site da Fundação Bienal de São Paulo.

Realizada pela primeira vez em 1951 a partir da iniciativa do empresário Ciccillo Matarazzo (1898-1977), à época presidente do Museu de Arte Moderna de São Paulo, a Bienal de São Paulo é considerada um marco para a inserção do Brasil e da América do Sul no circuito internacional das artes. A mostra recebeu já no primeiro ano obras de 729 artistas de 25 países, demonstrando a grandiosidade e ambição evento. Entre elas estavam a Unidade tripartida, do suíço Max Bill, uma das premiadas do evento e que abriu as portas para o concretismo na arte brasileira, e as salas especiais dedicadas aos modernistas brasileiros Cândido Portinari e Di Cavalcanti. Estavam também presentes, pela primeira vez no Brasil, trabalhos de Pablo Picasso e René Magritte, entre muitos outros.

A segunda edição da Bienal, em 1953, ficou conhecida como “Bienal de Guernica”, por trazer ao país uma das mais célebres obras de Picasso. A edição seguinte, em 1955, teve como destaque trabalhos de muralistas mexicanos como Diego Rivera. A 4ª Bienal, em 1957, foi a primeira organizada no espaço que viria a ser sua sede permanente, o Pavilhão das Indústrias do Parque Ibirapuera, projetado por Oscar Niemeyer – e hoje conhecido como Pavilhão Ciccillo Matarazzo. Ela apresentou uma sala dedicada ao pintor americano Jackson Pollock e acumulou polêmicas por, por exemplo, recusar trabalhos de Flávio de Carvalho.

Bienal de São Paulo
Foto da publicação “Linha do Tempo da Bienal de São Paulo”. Foto: Levi Fanan/ Fundação Bienal de São Paulo

Essas e outras muitas histórias são tratadas no podcast ou na linha do tempo reeditada. Surgem como temas, ainda, ao longo das décadas seguintes, os intensos conflitos vividos à época da ditadura civil-militar, a atuação marcante do critico Mário Pedrosa, o destaque dado ao surrealismo e à Pop Art internacionais, o trabalho dos concretistas e neoconcretistas brasileiros, o surgimento da videoarte e da performance, as curadorias de Walter Zanini, Paulo Herkenhoff, entre outros.     

Com lançamento previsto para o primeiro semestre de 2022, a Fundação Bienal está também produzindo um livro composto por crônicas e ensaios inéditos que se debruçam sobre momentos-chave da história do evento. A publicação contará com 30 textos comissionados de autores de diferentes perfis – como Tiago Gualberto, Lyz Parayzo, Claudio Bueno e João Simões, Veronica Stigger, Naine Terena, Fernanda Pitta, Michael Asbury e Clarissa Diniz – o livro tem organização de Paulo Miyada, curador adjunto da 34ª Bienal de São Paulo. Está em produção também uma série de quatro documentários em média-metragem sobre a história da Bienal de São Paulo, dirigida por Carlos Nader e realizada em parceria com o Itaú Cultural.

Um diálogo entre arte urbana e educação

Intervenção da Escola Criativa desenvolvida na EMEF Des. Amorim Lima em 2020. Foto: Reprodução

Um olhar sobre Paulo Freire nos permite conceber a educação para fora da sala de aula, para além da configuração – que muitos de nós conhecemos – das paredes acinzentadas, muros altos e grades de proteção. É nessa ideia que o projeto Escola Criativa do Instituto Choque Cultural se constrói. Encabeçado pela educadora Raquel Ribeiro e pelo casal Baixo Ribeiro e Mariana Martins, sócios da galeria Choque Cultural, a iniciativa teve início em 2011 e, ao longo desses dez anos, atuou em mais de 40 escolas, alcançando cerca de 275 professores e milhares de crianças e jovens paulistanos com ações que usam a arte urbana para repensar atividades pedagógicas. 

“Nossos modelos de escola pública em sua estrutura física ainda espelham muito uma visão de educação que Paulo Freire descreve como ‘educação bancária’, que se estrutura como uma ‘linha de produção’ tal qual as fábricas, com turmas divididas em faixas etárias, aulas em tempos de 50 minutos e sinais sonoros que marcam esses tempos”, explica Raquel Ribeiro, coordenadora do projeto. Porém, hoje já sabemos que essa não é a única opção, é possível transformar a escola em um ambiente acolhedor e convidativo, um lugar no qual estudantes e professores se sintam instigados a criar e inovar. Partindo dessa premissa, o Escola Criativa leva artistas consagrados da arte urbana para ressignificar, por meio de intervenções, áreas comuns de escolas públicas de São Paulo. 

“No Escola Criativa entendemos que o tempo, os espaços físicos e as relações de aprendizagem na escola são partes de uma mesma engrenagem. Mudando um, impactamos os demais”, afirma Raquel. Aliado às ações artísticas, o projeto também oferece à comunidade escolar uma formação conceitual, que contempla ações e ferramentas que possibilitem que as transformações nos espaços escolares continuem após a finalização das intervenções. “Acreditamos que intervindo no espaço físico da escola com a arte, oferecemos um apoio ao professor para que ele mude sua prática e com isso também contribuímos com a quebra desse modelo de organização escolar que muitos educadores e críticos da educação já avaliaram como ultrapassado.”

Na opinião dos organizadores, a arte urbana vem como um caminho muito pertinente para esse objetivo. “Ela é uma linguagem que serve a essa conversa e integração entre a estética e a arquitetura, ela conversa com os espaços.” Para Raquel, ao trazer a arte de forma viva e integrada ao cotidiano da comunidade escolar, torna-se possível compreender que a arte e a criatividade não estão circunscritas à uma disciplina apenas, mas fazem parte de outros processos de decisão, criação e resolução de problemas na nossa vida. “Desenvolver o pensamento criativo está entre uma das principais competências a serem desenvolvidas na educação contemporânea, pois hoje estamos formando alunos para profissões que ainda nem foram criadas e realidades sociais que não podemos ainda prever”, explica. 

Com a pandemia, uma nova pergunta reiterou a importância do projeto: após meses de isolamento, como reintroduzir as crianças ao espaço escolar? A necessidade de tornar o ambiente convidativo e repensar as práticas educacionais nesse momento pandêmico e pós-pandêmico tornou-se ainda mais perceptível. Neste mês de julho, o Escola Criativa está trabalhando na Escola Estadual (EE) Brigadeiro Faria Lima e, em seguida, começará sua ação nas Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI) Gabriel Prestes e EE Caetano de Campos, com intervenções do Coletivo Cicloartivo e dos artistas Gitahy, Jota, Presto e Tec. 

Nesses casos, porém, algumas dinâmicas propostas pelo Instituto Choque Cultural tiveram que ser alteradas. Os organizadores explicam que antes da pandemia as intervenções artísticas eram feitas em grandes mutirões, envolvendo alunos, educadores, pais e toda a comunidade escolar; atualmente, as pinturas são feitas só com os artistas e os registros desse processo são compartilhados com a comunidade escolar em um sarau cultural virtual. As reuniões com professores, para compreender as necessidades dos colégios, também passaram a acontecer de forma remota. 

A iniciativa é uma das frentes de atuação do Instituto Choque Cultural, junto aos projetos Ponte – iniciativa que promove intercâmbios e desenvolvimento de cenas artísticas locais – e Redes – que atua como uma interface entre a sociedade civil, a iniciativa privada e o poder público em nome de um urbanismo mais democrático ligado à cultura.

“Corações prensados”, singularidades nascidas entre o caos e a ordem

"Inversão térmica planeta", de Jeanete Musatti. Foto: Divulgação
Obras da exposição “Corações Prensados”, de Jeanete Musatti. Foto: Divulgação

Adentrar no mundo de Jeanete Musatti, artista emblemática das obras de pequenos formatos, é reforçar a ideia, aparentemente óbvia, de que colecionar é estar perto das coisas que nos dão prazer. O conjunto de 65 obras que compõem a exposição Corações Prensados, na galeria Bolsa de Arte, foi realizado com objetos guardados ao longo da sua vida em sete gavetas de tipografia de formato 60×20, uma espécie de reserva técnica de seus achados. Com esses objetos díspares ela constrói uma obra sólida, personalista, sob influências múltiplas. Delicados, os pequenos cenários realizados dentro de caixas transparentes estão perfilados nas paredes da galeria, conduzindo o visitante a admirar cada um deles como um take de um filme sem sequência lógica. Individualmente, cada um tem vida própria e se constitui numa obra em si. A ficção da artista informa sobre circuitos psicológicos, saberes marginais, sonhos escapistas que se podem chamar de contraculturais. Tudo em oposição ao óbvio e às zonas do sistema que autorizam a voz, como define Foucault.

Colecionar é como contar, contar, mas com a intenção de deixar tudo sem solução, estimulando novas narrativas. O fio condutor de sua produção é a singularidade que se move no contrapelo da sociedade contemporânea, onde tudo acontece rápido e simultaneamente, sem tempo para uma observação mais detalhada. O conjunto de caixas se movimenta entre o caos e a ordem, entre a dispersão e a junção. Há um equilíbrio de forças entre os objetos e as imagens fundantes que balizam a passagem do tempo. No conjunto, os trabalhos pulsam como organismo vivo não permitindo que o espectador permaneça indiferente. Ao contrário, ele atua como narrador porque é impossível permanecer calado diante de uma das caixas sem tecer comentários. A singularidade dessa coleção de achados consiste no caráter aparentemente anárquico do material armazenado. Esse museu particular, repleto de bugigangas ou de joias valiosas, adquire um sentido museológico ao transformar tudo em obra de arte. A persistência dessas relações artísticas alcança variações de grande dramaticidade em algumas das cenas.

Personalidade marcante, Jeanete Musatti adotou os pequenos formatos num momento em que o circuito de arte e as bienais privilegiavam obras de grandes dimensões. Opondo-se à ideia de divertissement ela adota uma pesquisa continua, quase como um frenesi diante de algo encontrado. Os achados transcendem o círculo familiar, ganham outros territórios, são lançados na arena e observados por corpos alheios, como voyeurs.

Uma das obras emblemáticas desse momento de pandemia e reclusão é Inversão térmica planeta, 2020, um pote transparente de guardar mantimentos, onde um mapa-múndi impresso em papel foi amassado, ressignificado e aprisionado como nós. Ao lado, um outro recipiente idêntico exibe um mapa celeste, igualmente amassado e colocado preso, contrariando a ideia de infinito e liberdade espacial. Jeanete Musatti transita nesse vazio e se apropria desses universos referenciais para representar o desmonte atual.

No conjunto, esses trabalhos funcionam como ativadores de memória que naturalmente inserem o observador na história de cada peça. A singularidade da contribuição dessa série é o caráter polimórfico de seu material. A insistência nessas relações artísticas se entrelaça nas peças já prontas, como o acordeão em miniatura, presente de seu genro, ou em outras que serão trabalhadas sutil ou exaustivamente para compor narrativas utópicas.

Cada achado pode se transformar numa matriz criando rizomas sem hierarquia de procedência ou valor de mercado. Em seu ateliê, repleto de objetos, pode-se encontrar muitos deles adquiridos na rua 25 de março em São Paulo, que ela considera um ótimo local para garimpar peças incomuns. O que se reconhece na obra de Jeanete Musatti é uma vontade enorme de contradizer os destinos sociais, exercida por decisões básicas de sua vida, como morar em uma fazenda no interior onde está agora durante a pandemia com seu marido, o empresário e colecionador Bruno Musatti. Ou a decisão de se mudar para Londres com toda a família em certo momento de sua vida, quando as filhas ainda eram crianças. Compor a vida pessoal com o seu mundo artístico, quase miniaturizado, faz parte de sua aventura poética. A reivindicação de sua história pessoal vivida numa família de artistas (pertence à dinastia Leirner: Felícia, Giselda, Nelson, Jac, Sheila, Bettina e outros) é um ganho especial dessa artista que funciona como inventora de improvisações de leituras enigmáticas. Desse universo disperso e contraditório, de discursos e cenários, ela vivenciou arte, ouviu, tocou instrumentos e fruiu várias formas de saberes a cada momento de sua vida.

ARCOmadrid: feiras de arte e recuperação do mercado frente à pandemia

ARCOmadrid
Vista geral, ARCOmadrid. Foto: Divulgação

Por Victor Valery*

“Objetivo cumprido”. Este é o título da matéria publicada no website da feira de arte contemporânea ARCOmadrid no dia do encerramento de sua 40ª edição. O objetivo? Reativar o mercado, promover a venda de arte e possibilitar o reencontro entre os profissionais do meio e grandes colecionadores mundo afora. Mas como garantir a qualidade de conteúdo e a presença internacional de galerias e colecionadores enquanto enfrentamos uma das maiores pandemias da história? Para tentar responder a esta questão, estive presente nas últimas duas edições, antes e já durante a pandemia.

A edição do ano passado da feira ARCOmadrid ocorreu entre 26 de fevereiro e 1º  de março de 2020, encerrando uma semana antes da Europa se fechar completamente devido à Covid-19. Já a edição de 2021, ano de seu aniversário de 40 anos, ocorreria também em fevereiro, porém foi remarcada para ocorrer entre os dias 7 e 11 de julho na IFEMA (Instituição de Feiras de Madrid).

Assim como as semanas de moda regem as tendências do setor, no mercado da arte não é diferente: o calendário das feiras de arte pelo mundo aponta os artistas em ascensão, consolida novas galerias e reafirma a presença dos grandes players do circuito. Feiras como a Art Basel (Suíça), Art Basel Miami Beach (EUA), FIAC (França), SP-Arte e ArtRio (Brasil) e as feiras de Nova York (EUA) passaram o ano de 2020 montando quebra-cabeças e oscilando entre formatos presenciais e virtuais para que pudessem ocorrer de maneira segura.

ARCOmadrid
Vista geral, ARCOmadrid. Foto: Divulgação

Com o avanço da vacinação na Europa esperava-se uma rápida recuperação do mercado, que sofreu sua maior crise dos últimos tempos, culminando no fechamento de inúmeras galerias. Sendo assim, a ARCOmadrid deu o pontapé inicial na tentativa de reativar este lugar de encontro de galerias, colecionadores e profissionais da arte dos cinco continentes. Nesta edição, o número de visitantes diário foi limitado, além dos três primeiros dias serem de acesso exclusivo aos colecionadores e profissionais da arte, liberando para o público geral apenas nos dois últimos dias.

Curiosamente, tanto em 2020 quanto em 2021 o número de galerias na feira foi o mesmo: no primeiro, 209 galerias de 30 países (sendo 36 latino-americanas); e neste ano 209 galerias (15 latinoamericanas) de 30 países. Isto se deve a uma possível redução dos requisitos para entrar na feira devido à pandemia. Outra curiosidade foi a dimensão da feira, pois os stands eram maiores para evitar aglomerações, tornando os espaços amplos e as distâncias percorridas mais longas.

A única representante na feira com filial no Brasil foi Baró Galeria, que trouxe trabalhos do também brasileiro Sidival Fila. A galerista e fundadora Maria Baró, além de possuir filiais em Lisboa, Madri e São Paulo, inaugura sua nova sede em Palma de Mallorca (Espanha) esta semana e comenta sobre o trabalho do artista: “Fila tem uma história de vida muito interessante, pois vive em Roma há 35 anos e aos 28 anos se tornou frei franciscano, deixando de lado a arte para estudar teologia, porém retornando às práticas artísticas há 15 anos com uma força incrível. Não vejo a hora de, no próximo ano, apresentá-lo no Brasil pela primeira vez”.

A galerista também vendeu, pela primeira vez na ARCOmadrid, uma obra em NFT (non-fungible token). O trabalho Tree Hash (2021) do artista Solimán López, que trabalha o conceito de NFT desde 2013, consiste na fotografia 3D de uma árvore bonsai em uma estrutura de plástico biodegradável; o arquivo original do 3D está armazenado em blockchain e o colecionador recebe um certificado com a localização geográfica (latitude e longitude) real que a árvore está plantada.

Conversando com o artista, ele se diz satisfeito com a venda da obra, que foi adquirida pela fundação El Secreto de la Filantropía, porém afirma que “ainda há um certo medo por parte dos colecionadores e galeristas em assimilar o NFT como arte, e não apenas especulação”. Soliman conclui dizendo que “todo mercado é especulação, o da arte inclusive”, e acredita que a arte, biologia e tecnologia ainda têm um caminho muito longo para trilhar.

Outra presença brasileira na feira foi na seção Remitente (remetente, em espanhol), projeto do curador Mariano Mayer para encurtar a distância entre a feira e a arte latino-americana. Trata-se de uma exposição com obras de 19 artistas da América Latina representados por 15 galerias da Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, México e Peru; suas obras compartilhavam o mesmo espaço expositivo. Destacam-se, entre as obras, a escultura Bichinha quadrada circular (2020), de Lyz Parayzo (Casa Triângulo), e com os vídeos Campo (1977), de Regina Silveira, e Photokinetic (2020), de Hector Zamora, ambos trazidos pela Luciana Brito Galeria.

A ARCOmadrid trouxe qualidade nos trabalhos expostos, porém baixas vendas em comparação às edições anteriores. Mesmo promovendo soluções como a comercialização de NFT, o mercado ainda reafirma o modelo tradicional de apresentar artistas já consolidados: no geral homens, brancos, acima dos 50 anos ou já falecidos, ignorando que os jovens artistas poderiam ser a chave no combate à crise do mercado que vivemos hoje. Se não aos colecionadores, instituições ou grandes galerias, a quem cabe encurtar o abismo e fazer a ponte entre jovens artistas e o mercado?

Próximos eventos da ARCO:

A ARCOlisboa, braço lusitano da feira de Madri, acontecerá entre os dias 16 e 19 de setembro deste ano. Serão 71 galerias de 17 países trazendo mais de 470 artistas na Doca de Pedrouços. A ARCOmadrid 2022 celebrará sua 41ª edição de 23 a 27 de fevereiro nos pavilhões 7 e 9 da IFEMA MADRID.

* Victor Valery tem formação em Produção Cultural e atua no mercado da arte, curadoria e representação de artistas. Em 2019 inaugurou um apartamento-galeria em São Paulo, que funciona, entre outros, como espaço conservação do acervo da VANDL ART, selo que promove seus artistas em parcerias de arte, música, moda e tecnologia (@victorvalery).

 

 

Mostra coletiva leva arte contemporânea ao Museu de Arte Sacra

Obra de Moisés Patrício. Foto: Silvia Balady/ Divulgação
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Obra de Moisés Patrício presente na exposição. Foto: Silvia Balady/ Divulgação

Mais acostumado a expor obras, objetos e publicações de séculos passados, o Museu de Arte Sacra de São Paulo (MAS/SP) tem se voltado também, em tempos mais recentes, à produção de arte contemporânea que dialoga com as temáticas tratadas pela instituição. É nessa linha de atuação que ganhou corpo no museu o projeto LUZ Contemporânea, com curadoria do canadense Simon Watson, que montará ao todo 12 exposições individuais ou coletivas no espaço paulistano. Após a exibição de Corpo e Alma, de João Trevisan, que ficou em cartaz até o fim de junho, o museu apresenta agora o segunda mostra da série, Esperança, aberta até 22 de agosto.  

Com trabalhos de 12 artistas – Ana Júlia Vilela, Andrey Rossi, Desali, Enivo, João Trevisan, Leandro Júnior, Lidia Lisbôa, Mag Magrela, Moisés Patrício, Paulo Nazareth, Thiago Rocha Pitta e Yasmin Guimarães -, a exposição dialoga diretamente com os tempos atuais de crise por conta da pandemia de Covid-19, como explica Watson no texto de divulgacão: “Vista pelas lentes de diversas práticas artísticas contemporâneas, Esperança é uma observação curatorial caleidoscópica buscando resposta aos 18 meses de pandemia. Para muitos de nós, o ano passado pareceu se arrastar, de forma lenta e dolorosa. Foi um tempo de espera e esperança, um tempo de autorreflexão. Um período que despertou consciências, tanto pessoais como coletivas, em resposta a uma crise global de saúde; como cada um de nós se relaciona com o outro e como compartilhamos nossa saúde coletiva”.

Deste modo, Esperança procura criar uma sensação de acolhimento, do olhar para frente, do ser bem-vindo. Como mote para exposição, um dos conceitos que interligam os trabalhos são as múltiplas formas pelas quais as mãos e corpos dos artistas se fazem presentes na criação dessas obras de arte. “Ao reafirmar sua presença, esses artistas confirmam nossa existência como humanos e, com a presença de sua mão somos lembrados de nossa impermanência, da fragilidade de nossas vidas. E por serem obras de arte, possuem uma permanência no registro de nosso tempo. Na presença da mão do artista, encontramos sinais pessoais de propósito, determinação e esperança”, conclui o curador.

Os 54 trabalhos – bidimensionais, tridimensionais, tecnológicos – de Esperança, que abrangem técnicas diversas como aquarelas, pinturas, grafitti, esculturas, fotografias e vídeo performances, estão dispostos na sala de exposições temporárias do MAS/SP bem como em seu jardim interno – Jardim do Claustro. Cada obra é acompanhada de um texto crítico assinado pelos curadores convidados Thierry Freitas, Márcio Harum, Fernando Mota, Carlo McCormick, André Vechi, Jackson Gleize, Mirella Maria, Gabriela Longman, Guilherme Teixeira, Janaina Barros, Ulisses Carrilho e Carollina Lauriano.  

O Museu de Arte Sacra de São Paulo (MAS/SP) está localizado no centro da cidade, na Avenida Tiradentes, 676 – Luz (ao lado da estação Tiradentes do Metrô). A visitação acontece de terça-feira a domingo, das 11h às 17h. O ingresso (acesse aqui) custa R$ 6,00 (Inteira), R$ 3,00 (meia entrada nacional para estudantes, professores da rede privada e I.D. Jovem – mediante comprovação) e a entrada é gratuita aos sábados.

Galeria Camões, em Brasília, apresenta mostra de Gabriela Albergaria e Marcelo Moscheta

Vista geral da exposição. Foto: Jean Peixoto/ Divulgação

A relação entre o homem, o espaço e a natureza, mais especificamente no contexto da cidade de Brasília, é o tema que percorre a mostra Orédeas, em cartaz até 19 de agosto na Galeria Camões, em Brasília. Inspirada na Capital Federal, na paisagem característica do cerrado em contraposição com o ideal moderno e utópico da arquitetura da cidade, a exposição coloca em diálogo trabalhos da portuguesa Gabriela Albergaria e do brasileiro Marcelo Moscheta.

Já habituados a trabalhar com temáticas relacionadas ao território e à paisagem, os dois artistas – ambos representados no Brasil pela galeria Vermelho – se encontram agora em trabalhos com temática comum, apesar das especificidades de cada produção: “Eu e Gabriela somos amigos e expomos na mesma galeria. A ideia inicial era comemorar os 60 anos de Brasília, e quisemos celebrar também a relação entre o espaço, a cidade e o natural”, diz Moscheta em texto de apresentação da mostra.

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Detalhe da série “Antes”, de Marcelo Moscheta. Foto: Joana França/ Divulgação

Para Albergaria, na mostra na Galeria Camões a busca por encontrar pontos de comunicação entre o homem, a natureza e a cultura ganharam destaque através do Jardim Botânico. Ao conhecer o local, contrapôs a naturalidade do cerrado com o paisagismo de Burle Marx e percebeu que o artista e paisagista brasileiro “de fato fez uma paisagem política, no sentido em se encontram juntas no mesmo local espécies de todo Brasil”. A principal peça apresentada por ela é intitulada 1/20 de terra cultivável necessária para preencher o espaço da galeria, feita com terras provenientes de diferentes regiões do Brasil.

O trabalho de Moscheta volta-se para a memória do lugar e questiona as fronteiras do território, a geografia e a física. “Minha relação com a paisagem repousa numa tentativa primeira de construir um lugar ideal, uma imitação da natureza como retrato fiel das relações de perfeição e equilíbrio”, explica no texto de divulgação. Na instalação Hiato, obra de maior dimensão da mostra, o artista convida o visitante a caminhar entre os galhos, por um corredor criado no interior da peça.

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Detalhe de “1/20 de terra cultivável necessária para preencher o espaço da galeria”, de Gabriela Albergaria. Foto: Joana França/ Divulgação

As visitas à mostra na Galeria Camões, que fica na Embaixada de Portugal no Brasil (Av. das Nações, Quadra 801, Lote 2) estão limitadas a dez pessoas, seguindo todos os protocolos de segurança.

Yona Friedman e o direito de compreender

Yona Friedman (1923-2020) no "Museu sem Edifício", realizado no CNEAI (Centre National Édition Art Image, Pantin, França), em 2018. Foto: Cortesia Fonds de Dotation Denise et Yona Friedman, com a colaboração do CNEAI e de Sylvie Boulanger.


“Tão importante quanto o direito à vida, o direito ao trabalho, o direito à justiça, além de muitos outros”, escreveu Yona Friedman, é o “direito de compreender”. Este seria – para o artista, arquiteto, urbanista, sociólogo e antropólogo – um dos direitos humanos essenciais, já que “compreender as coisas permite saber se comportar diante daquilo que nos cerca”. “Pois compreender as coisas é ser capaz de dominá-las”, seguia ele. Estas afirmações, grafadas ao lado de ilustrações de traços simples e em formato de quadrinhos, fazem parte de um dos vários manuais produzidos por Friedman ao longo de sua vida (1923-2020), que agora são apresentados na mostra Democracia, no Memorial da Resistência de São Paulo.

Nesta mesma peça, o artista prossegue com críticas a um intelectualismo ou cientificismo que despreza os leigos e iletrados: “Um conhecimento que é considerado verdadeiro pode ser explicado tão facilmente na linguagem do leigo quanto naquela do intelectual. É mais vantajoso, no entanto, expressar uma verdade na linguagem mais simples”, afirma o texto, acompanhado de imagens em que matemática, ciência ou engenharia são explicados através de situações do dia a dia.

Apesar das variadas facetas e da vasta produção de Friedman – judeu húngaro que vivenciou a Segunda Guerra, passou anos na Romênia e em Israel antes de se radicar definitivamente na França -, a exposição destaca especialmente este aspecto da comunicação e dos direitos humanos na obra do autor, com sua busca pela criação de uma linguagem acessível e democrática. “Quem quiser compreender deve primeiro fazer perguntas. Nenhuma questão é tonta (enquanto muitas respostas o são)”, segue o manual do autor. Este e outros manuais, dedicados a temas sociais como moradia, democracia e meio-ambiente, feitos para instituições como Unesco e Universidade das Nações Unidas, dão a linha principal da exposição.

Com curadoria de Ana Pato, coordenadora do Memorial desde maio de 2020, e assistência de Carolina Faustini Junqueira, a mostra reúne produções de diferentes momentos da trajetória de Friedman, incluindo ainda filmes, desenhos, colagens, instalações e propostas para espaços culturais. A curadora, que já desenvolvia anteriormente pesquisa sobre Friedman – incluindo uma residência no CNEAI, na França, em 2019 – propõe um paralelo entre o trabalho do franco-húngaro e os ideias do memorial paulistano, dedicado principalmente à memória dos períodos de ditadura no Brasil: “Em tempos de negacionismo sobre temas que são postulados inegociáveis para o Memorial da Resistência, a defesa de Yona Friedman por formas de transmissão de conhecimento abertas e participativas é essencial para pensarmos o papel da comunicação na luta pela valorização de princípios democráticos, pelo exercício da cidadania e pela educação em direitos humanos”, escreve ela no texto de apresentação.

A multidisciplinaridade e o hibridismo na produção de Friedman são notáveis na exposição, ainda que nem todas as facetas de seu trabalho sejam aprofundadas. Na construção do espaço expositivo – concebido por Anna Ferrari, Isabella Rosa e Pedro Lins -, um slide show é projetado, os desenhos e manuais são grafados diretamente nas paredes, cartazes “descem” pendurados do teto, lambes são colados ao chão e uma instalação realizada em fios de alumínio surge suspensa, evocando técnicas construtivas intuitivas. Em tudo isso, destaca Ana Pato, a imagem se mostra central: “Ele coloca esse ponto de vista de que o direito a compreender e o direito a interpretar vêm sempre de acordo com a experiência de cada pessoa e, neste sentido, a imagem se torna central para comunicar. Pois para ele a imagem é uma linguagem que exige atenção, mas não necessariamente conhecimento”.

Uma arquitetura pouco usual

A produção mais propriamente arquitetônica de Friedman – pela qual ficou conhecido em universidades e influenciou meios da contracultura no século 20 – surge mais discretamente na exposição em uma das duas vitrines expositivas. Estão ali apresentados o que o autor chamou de espaços culturais, sendo eles o Museu de Rua, o Museu dos Grafites, o Museu ao Ar Livre, o Museu do Passeio e o Museu sem Edifício. De modo geral, eram mais proposições do que projetos a serem construídos, por mais que alguns tenham saído do papel – como o Museu de Tecnologia Simples, construído em 1987 na cidade indiana de Chennai. Estruturas efêmeras e adaptáveis e materiais reutilizados a serem moldados coletivamente surgem nestes projetos que certas vezes são apenas desenhos e escritos: “Ele dizia que não se trata mais de construir, objetos ou prédios, mas de expressar funções. Então ele vai discutir muito essa possibilidade de imaginar configurações sociais que fossem realizáveis. Sem dúvida, o Yona não se importava muito com o resultado. Ele trazia a proposição e por isso sua obra é tão livre”, explica a curadora. A Cidade Espacial pensada pelo autor surge também em desenhos na exposição.

Voltando ao texto do manual citado ao início desta matéria, as palavras do próprio Friedman aprofundam o porquê de suas propostas inovadoras, e como as ideias de comunicação democrática e arquitetura se entrelaçam: “Um museu não é um museu sem seu público: um museu sem público é apenas um depósito de objetos inúteis. Mas aqueles que visitam um museu nem sempre fazem parte de seu ‘público’ de iniciados. Muitos visitantes são passantes que não observam atentamente aquilo que é oferecido à atenção de todos, iniciados ou não, e que não fazem perguntas porque eles não ousam fazê-lo envergonhados de sua ignorância. Esses desistem de saída de compreender.”

Neste ponto da mostra, não passa desapercebido ao visitante algum contraste entre a proposta de Friedman – que “elegeu a rua como lugar público e democrático para criar espaços colaborativos de intervenção na cidade” – e a própria configuração da exposição no Memorial da Resistência, que ocupa um dos andares do edifício compartilhado com a Pina Estação, com pouca abertura para a rua. Incrustada numa das áreas mais vivas e carentes do centro de São Paulo, a instituição está ao lado da movimentada Estação da Luz, da cracolândia e de espaços urbanos que abrigam uma série de coletivos e movimentos sociais.

Ana Pato explica, no entanto, que diálogos com a população e os coletivos da região foram estabelecidos ao longo do processo de concepção da mostra, e assim seguirá sendo feito até o seu encerramento em março de 2022. A ideia de criar alguma espécie de museu de rua na região acabou sendo impedida pela pandemia de Covid-19, com a impossibilidade de gerar aglomerações. “Eu tinha sempre muita preocupação em não criar qualquer situação artificial dentro do espaço, como por exemplo construir um museu de rua dentro do memorial. Eu achava isso totalmente incoerente com a proposta do Yona, porque tudo que ele fala dessas estruturas móveis, do aproveitamento de material, das soluções dadas pelo próprio habitante e morador, são coisas que estão ali no centro de São Paulo”, diz Pato.

Entre o que foi possível fazer, os coletivos artísticos casadalapa e Paulestinos foram chamados para colaborar com a produção dos lambes da mostra e de uma bandeira que será fixada à frente da exposição – eles devem participar ainda de outras ações urbanas. “Eles se aproximam do pensamento do Yona neste diálogo entre comunicação e política, falando de reciprocidade nas trocas humanas”. Em parceria com o Sesc Bom Retiro será realizado na primeira semana de agosto o ciclo de encontros “A democracia é possível: experiências de resistência no território”. E, para ir além apenas do espaço expositivo, boa parte dos materiais apresentados, como os manuais e slideshows, estão disponíveis no site do Memorial, partindo de uma liberdade dada pelo autor, ainda em vida, para que seus trabalhos fossem divulgados, traduzidos e apropriados.   

A busca, portanto, é de que a exposição Democracia siga os passos propostos pelo próprio Friedman, mais uma vez naquele mesmo manual citado anteriormente: “Um museu não satisfaz o direito de compreender se se limita a apresentar uma única resposta às perguntas que foram feitas, nem se as respostas são dadas de forma hermética, nem, sobretudo, se as respostas dadas não tiverem relação com a vida cotidiana do público. (…) Ele deve provocar no público o desejo de compreender”.

MAC USP e MAM-SP apresentam exposição conjunta “Zona da Mata”

Foto horizintal, colorida. Vista da exposição ZONA DA MATA no MAM São Paulo. Em primeiro plano, uma obra em um aquário de vidro suspenso e um pequeno canteiro no chão, em formato de pentágono. Ao fundo, as paredes de vidro do espaço expositivo trazem o ambiente do Ibirapuera para imagem, é possível ver vegetação e a Oca ao fundo.
Vista da exposição “Zona da Mata” no MAM São Paulo. Foto: Karina Bacci

A faixa litorânea da região nordeste do Brasil, que se estende do Rio Grande do Norte até a Bahia, recebe o nome de Zona da Mata. Porta de entrada para a colonização, é historicamente um território de conflito, teve seu solo fértil explorado de modo predatório e foi palco da destituição dos povos originários e da diáspora africana no país. Com curadoria de Ana Magalhães, Marta Bogéa e Cauê Alves, a nova exposição adota o termo Zona da Mata como metáfora simbólica para tratar das relações entre cultura e natureza e lança luz às problemáticas latentes do Brasil atual. Em cartaz até março de 2022, ela acontece simultaneamente no Museu de Arte Contemporânea (MAC USP) e no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP).

Apesar de partir de uma questão geográfica, a exposição se debruça sobre as mudanças da paisagem que esses encontros entre colonizadores e povos originários trouxeram ao país e reflete como elas se desdobram e nos afetam até os dias de hoje. “Diante do Brasil em febril convulsão, violentamente retrógrado, Zona da Mata é hoje todo o país. Alinhados ao desafio mundial, precisamos mais do que nunca nos reposicionarmos frente ao nosso pacto de país e sociedade, a começar por reconhecer saberes ancestrais que não soubemos acalentar, sem aprisioná-los em um passado histórico, mas como parte fundamental de nosso desejável presente”, afirma o trio no texto curatorial da mostra.

Organizada em quatro partes, em diferentes espaços e com diferentes temporalidades, a exposição nunca nos é apresentada em sua totalidade, mas de forma fragmentada. No quinto andar e no térreo do MAC USP nos deparamos com duas de suas faces. Já a Sala de Vidro do MAM-SP abriga as outras duas, não de forma simultânea, mas em dois tempos distintos. De 19 de junho a 17 de outubro, o espaço recebe obras de Marcius Galan, Guto Lacaz e Gustavo Utrabo; e de 23 de outubro a 6 de março de 2022, será apresentado o trabalho do artista Rodrigo Bueno feito especialmente para o local. A mostra no MAC USP, exibida em uma única montagem, traz trabalhos de Brasil Arquitetura (Marcelo Ferraz e Francisco Fanucci), Claudia Andujar, Fernando Limberger, Gabriela Albergaria, Gustavo Utrabo, Guto Lacaz, Jaime Lauriano, Julio Plaza, Leandro Lima, Gisela Motta em uma das áreas expositivas e Claudia Andujar, Marcius Galan, Paulo Nazareth e Rodrigo Bueno na outra.

É por essa fragmentação que Zona da Mata propõe uma condição de atravessamento, articulando os dois museus vizinhos. “Intenta um ir-e-vir aderente ao chão da cidade, endereçada ao presente e ao porvir, no pacto indissociável de uma paisagem compartilhada e simultaneamente desviada, a partir da singularidade vibrante de cada obra convidada e do acervo de ambas as instituições que integram essa mostra-paisagem”, sugerem os curadores.

Para eles, essa conexão entre MAM e MAC é crucial. “Há uma ligação histórica entre essas duas instituições que integram o eixo cultural do Ibirapuera. É essencial somarmos esforços, nos reposicionarmos a partir de parcerias e refletirmos sobre o modo como arte e arquitetura abordam a transformação da paisagem e seus vínculos com questões socioambientais”, diz Cauê Alves, curador-chefe do MAM-SP.

ZONA DA MATA
ONDE: MAM São Paulo – Parque Ibirapuera (av. Pedro Álvares Cabral, s/nº – Portões 1 e 3 – Vila Mariana – São Paulo, SP)
QUANDO: terça à domingo, das 12h às 18h
Agende sua visita através do site da instituição

ONDE: MAC USP (Av. Pedro Álvares Cabral, 1301 – Vila Mariana – São Paulo, SP).
QUANDO: terça à quinta, das 11h às 19h, sexta a domingo das 11 às 21 horas.
Agende sua visita através do site da instituição