Livro Decolonizar o museu – Programa de desordem absoluta
Livro Decolonizar o museu – Programa de desordem absoluta, da autora Françoise Vergès, publicado pela Ubu Editora em 2023

Com Decolonizar o Museu – programa de desordem absoluta (Ubu, 2023), a ativista e pensadora francesa Françoise Vergès faz uma precisa análise da atual situação dos museus que, se por um lado buscam novas práticas contrárias ao colonialismo que está no próprio gene de seu surgimento, seguem usando o mesmo sistema hierárquico e patriarcal de sempre. “É preciso ir além”, defende ela em entrevista exclusiva em São Paulo, no início de outubro passado, quando veio para o lançamento da publicação e diversas conversas em vários estados do país.

Sob o impacto de Coreografias do Impossível, a primeira Bienal de São Paulo com uma curadoria majoritariamente negra, além de diversas mostras na cidade que buscam o sentido da reparação, Vergès sentencia: “Não é suficiente.”

Como ela defende no próprio livro, “não basta expor obras ‘decoloniais’ (…), diversificar o que é pendurado nas paredes, falar de preservação e conservação em um estando de guerra permanente contra subalternos e indígenas”. Parece aqui que ela se refere às polêmicas do Masp em torno da mostra Histórias Brasileiras, no ano passado, mas ela diz que não conhecia o caso. De fato, contudo, não há muitas diferenças entre a arrogância dos museus franceses com os quais ela está acostumada e sobre os quais reflete na publicação e aquele da avenida Paulista.

O livro ainda adianta outro assuntos urgentes agora, como as más condições de trabalho denunciadas por funcionários da Bienal de São Paulo: “É preciso criar um lugar onde as condições de trabalho daqueles/as que limpam, vigiam, cozinham, pesquisam, administram ou produzem sejam plenamente respeitadas; onde as hierarquias de gênero, classe, raça e religião sejam questionadas.”

Foto: Anthony Francin

Leia, a seguir, algumas reflexões de Vergès após ter visitado a Bienal de São Paulo e a Ocupação 9 de Julho, que recebe a mostra Refundação:

ARTE! – Você escreveu que, em 2011, ainda acreditava que era possível fazer uma exposição que não disciplinasse fisicamente os quilombolas. Penso hoje na Bienal de São Paulo porque é um tema importante para eles e sei que você esteve lá. Você pode dizer algo sobre essa afirmação e Coreografias do Impossível? 

Françoise Vergès: Quando eu disse isso, pensei que era possível realmente fazer do jeito que queríamos, não apenas para mostrar algo sobre os quilombolas e a escravidão, mas fazer de forma diferente, muito densamente, para que realmente houvesse mudança. Não é necessário que se conte a história que não foi contada, porque isso está sendo feito, é realmente para mudar totalmente. E percebi que não era possível porque não somos livres. Então, o museu não é um espaço de liberdade, precisa ser fora dele, em um lugar que teríamos criado como um lugar de liberdade, pelo menos por um tempo, talvez por muito tempo. Ainda é o que penso hoje. 

Na Bienal há coisas que são absolutamente fantásticas e há um desejo real e um impulso para algo além. E o fato de você ter o Movimento dos Sem-teto é realmente algo próximo de uma proposta que vá além do campo da arte. Mas ainda é uma Bienal. Não estou dizendo que não deveríamos fazê-la ou que isso seria ruim. Não tenho um vírus para julgar, mas o que quero dizer é que sabemos o suficiente hoje que deveríamos fazer outra coisa. Sabemos o suficiente, pois temos trabalhado em estratégias pós-coloniais e decoloniais, sobre representação, analisando imagens, produzindo textos. Mas estamos em um momento decisivo em que realmente é preciso dar um salto de imaginação, fugir da norma ocidental. 

Muita gente esperava, já que é a primeira vez que a curadoria da Bienal é majoritariamente negra, que haveria uma revolução. Mas quando ela abriu, as pessoas perceberam que ainda é uma bienal, afinal essa é a regra….

Isto é o que eu digo: a impossibilidade dentro do sistema em permitir que você vá além dos limites. Você pode transformar o espaço, não colocar a mesa e a cadeira no mesmo lugar da casa do senhor patriarcal. E isto já provoca desafios à perspectiva da forma como circulamos no espaço, mas a parede ainda está lá. Ainda não desafiamos o sistema. Permanecemos dentro do sistema. Fazemos as coisas de maneira diferente e elas são incríveis, mas como eu digo, é hora de ir além, porque senão o espaço impõe uma certa forma de ser.

Às vezes sim, mas, digamos que a documenta quinze, em 2022, foi muito surpreendente ao repensar o uso dos espaços, porque as pessoas dormiam e cozinhavam no museu, havia um lugar para crianças. A meu ver, eles mudaram completamente a estrutura.

Sim, eles ocuparam o espaço que foi dado de forma diferente, e com esta ocupação de uma maneira diferente, eles estavam efetivamente contestando, desafiando o sistema. Quando você não consegue alterar as paredes, você muda o conteúdo e a documenta no ano passado tentou fazer isso. Então, o que você pode fazer se estiver dentro de um espaço dado é transformar ele em um quilombo ou repensar aquele espaço a partir daquela cidade, mas dentro daquele ambiente que foi construído por forças sociais que são racistas, patriarcais, usando o espaço da forma possível.

Estive na Ocupação 9 de Julho, e existe lá um espaço de liberdade, onde a vida está sendo inventada, a vida no sentido de que o que temos fora de lá não é vida. Então para mim os espaços de liberdade não ocorrem necessariamente em um museu ou em uma bienal.

Mas ao menos a documenta apontou que há possibilidades…

Sim, há possibilidades. Mas, na verdade, o que eu quero dizer é que é preciso dar às pessoas o poder de efetivamente agarrar e fazer o que elas quiserem. Sugeri a um amigo em Paris que fizéssemos uma bienal do bairro com as pessoas daquele bairro. É preciso começarmos com as pessoas, os vizinhos serão a equipe de curadoria e trabalharemos com elas. Pode ser que saibamos também a melhor maneira de fazer isso ou aquilo, mas podemos trabalhar juntos. Esse seria o tipo de bienal, tudo a partir dos moradores de um bairro.

Ao mesmo tempo, há uma espécie de paradoxo no trabalho com arte, já que na Ocupação 9 de Julho o que eles colocam dentro da galeria Reocupa é, de alguma forma, uma arte convencional, com molduras…

Na verdade, é para esse debate que eu vou. Nunca fomos representados, nossas vozes não foram ouvidas, então vamos participar, mas aí o modelo é tão hegemônico que acabamos fazendo o que foi feito antes, apenas mostrando coisas diferentes na parede. No final não sabemos fazer nada diferente.

Então é aqui que quero que estejamos agora: o que faremos. Queremos mostrar algumas lembranças e como vamos fazer? Se estamos caindo novamente no modo ocidental, isso é compreensível, afinal temos feito este trabalho por um tempo, haverá alguma ideia da tradição ocidental que tomaremos emprestada. Mas precisamos libertar nossa mente disso. Tenho trabalhado muito com artistas e faço workshops coletivos. Sempre percebemos o quão rápido voltamos ao normal. Então, é esse movimento de imaginação radical que temos que encarar agora.

Temos que desaprender…

Sim! É tão difícil, sabe? A certa altura, fiz um exercício sobre o que seria um museu decolonial há quatro anos. A resposta foi: vamos mudar o texto. Eu disse não, porque é claro que podemos trazer mais diversidade e textos diferentes, mas ainda será a mesma arquitetura. A casa principal tem que ser demolida. Para mim a questão da arquitetura é muito importante porque vejo que todo espaço público está sendo projetado de forma que quando você entra você sabe onde está entrando e se comporta como se espera que se comporte naquele espaço. É a ditadura da arquitetura.

Em seu livro você cita a Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire, como uma ferramenta para se desaprender… 

Sim, acho que a pedagogia é importante porque temos que retreinar nossos sentidos sobre o que vemos, como ouvimos, como cheiramos, como mudamos nossos sentidos, porque todos nós temos uma educação estratégica para servir ao capital.  Precisamos dizer de forma diferente, olhar de forma diferente e ouvir de forma. Então é necessária uma pedagogia no sentido de que reaprender, desaprender e aprender novamente é necessário. Precisamos ouvir uns aos outros. No workshop eu digo que não há ideias estúpidas. Se uma ideia é muito simples, talvez possamos fazer de uma maneira diferente, ou depois de uma longa discussão concluímos que não funciona e abandonamos essa ideia, mas então se abandonarmos sabemos por quê. Significa que não é a ideia que será mais importante, mas a forma como decidimos é que precisa ser a chave do processo. ✱

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