Um dos primeiros trabalhos de Coreografias do impossível no térreo do Pavilhão da Bienal de São Paulo é o pedestal de um monumento. Essa base serviu para uma performance da artista de origem maya-caqchiguel, da Guatemala, Marilyn Boror Bor, na qual suas pernas foram cimentadas. Após alguns minutos, contudo, ela deixou o pedestal vazio.

Durante a 35ª Bienal de São Paulo, Monumento vivo será visto como um pedestal que não idolatra a ninguém e tem em sua base escrito: “Em memória dos defensores da terra; em memória dos guias espirituais, em agradecimento aos presos políticos; em agradecimento aos líderes comunitários; para os rios, os lagos, as colinas, as montanhas.”

O vazio do monumento é um gesto que me parece simbolizar a mostra, organizada por Diane Lima, Grada Kilomba, Hélio Menezes e Manuel Borja-Villel, na primeira vez em que uma equipe com maioria negra, em nada menos que 72 anos de história, é responsável pela Bienal de São Paulo.

Não é uma mostra de trabalhos com efeitos sensacionalistas, aqueles que se costumam chamar de obras de bienal, mas, como o Monumento vivo, apontam para gestos que buscam questionar o cânone universal, sem, contudo, colocar outro no lugar. E isso é muito bom.

É como o trilho de trem sem serventia, que está logo na entrada da exposição, parte da instalação Parliament of Ghosts (Parlamento de fantasmas) de Ibrahim Mahama, artista de Gana, que lembra das iniciativas dos colonizadores na África com toda sua violência estrutural. Ao lado, contudo, ele recria arquibancadas de tijolos vermelhos do salão de seu estúdio, um local para criação e diálogo.

Seria então essa uma bienal decolonial? Esse não é um conceito reivindicado pela equipe curatorial, mas não há dúvida que a opção foi elencar uma serie de iniciativas e narrativas que questionam a história oficial, por meio de trabalhos e gestos não necessariamente no campo da arte convencional.

Entre eles estão tanto coletivos atuais, como a paulistana Frente 3 de Fevereiro e o argentino Archivo de la Memoria Trans Argentina (AMT), a trabalhos de quase dois séculos atrás, como os do boliviano Melchor María Mercado (1816-1871).

Mercado é visto com o Álbum de paisagens, tipos humanos e costumes, realizado entre 1841 e 1869, que faz uma narrativa bastante surrealista sobre a nação boliviana em seus primórdios, ironizando o poder político e apontando para a corrupção da elite colonial. É genial.

Já a Frente 3 de Fevereiro é vista em uma instalação que conta e contextualiza sua história, marcada por denúncias em espaços públicos, como as icônicas faixas Onde estão os negros e Zumbi somos nós estendidas em estádios do campeonato brasileiro de futebol, em 2005. Na instalação, por meio de recursos tecnológicos, Dona Maurinete Lima (1942-2018), uma das criadoras do movimento, surge narrando o trabalho. É comovente.

Enquanto isso, o coletivo argentino AMT apresenta uma seleção de imagens de seu acervo de 12 mil peças, que tem por objetivo conectar pessoas, chegando a reunir mais de mil mulheres trans, em 2018. O arquivo também é acessível de forma online, e na mostra parece uma nuvem de imagens.

Essas três iniciativas apontam para como esta Bienal visa mais do que olhar para o campo da arte, expondo iniciativas que repercutem na cultura de forma mais ampla. É o caso também da série de fotos de Rosa Gauditano feitas por dois meses em 1978, das 23h às 6h, com as frequentadoras do Ferro’s Bar, tradicional bar lésbico no centro de São Paulo, uma série censurada pela revista Veja, e agora encenada com como fosse exibida em um ambiente boêmio. Nas imagens, há uma intimidade incomum com as mulheres, em uma época que o fotojornalismo ainda era marcado por frieza e distanciamento. São esses gestos inovadores, mesmo que invisíveis quando realizados, que essa Bienal expõe. O impossível se tornando possível por pequenos movimentos.

Sobre silenciamento, aliás, é particularmente tocante a seleção de trabalhos de Aurora Cursino dos Santos (1896-1959), que fez parte de sua produção no hospital psiquiátrico do Juquery, internada após uma vida que mesclou casamento, viagens pela Europa e prostituição. Momentos de sua vida são narradas em suas pinturas, que a curadoria expõe de forma a perceber como elas eram feitas sobre pacotes de chiclete. Outros internos em manicômios, como Stella do Patrocínio, Arthur Bispo do Rosario e Ubirajara Ferreira Braga também comparecem em Coreografias do impossível com amplas séries de trabalhos.

Agora, é inegável que esta Bienal também tem uma presença retumbante da produção de dentro do sistema da arte, especialmente em obras de mulheres como Citra Sasmita, Rosana Paulino e Carmézia Emiliano. A nova série de Rosana, pinturas de grandes dimensões de mulheres que criam raízes e se mesclam a árvores, é de tirar o fôlego, assim como também são impressionantes as pinturas de Citra. A artista de Bali apresenta o projeto Timur Merah (Leste Vermelho), no qual mulheres indonésias de longos cabelos negros interpretam nuas vários papeis, humanos e animais, retomando aqui a perspectiva que faz da natureza uma grande família, como em Rosana Paulino. Essa visão holística é vista também nos quadros de Carmézia, que expõe o dia a dia dos povos Macuxi, em Roraima. Aliás, há uma constelação de trabalhos indígenas, seja nos poéticos vídeos de Aida, Edmar e Roseana Yanomami, seja nas pinturas do Movimento dos Artistas Huni Kuin (Mahku), ou nas obras de Denilson Baniwa e Edgar Calel.

NÃO LINEAR

Como se percebe, a mostra é cheia de fricções, mas não é nada literal, o que é um alívio, já que não há um conceito que delimite como se olhar os trabalhos. A temporalidade também é algo relativizado na mostra, sem dispor as obras como se fizessem parte de uma linearidade cartesiana. Um dos destaques nesse sentido é a pintura de Juan van der Hamen y León, o Retrato de Dona Catalina de Erauso. A freira alferes, de cerca de 1625, que apresenta uma imagem masculinizada de uma monja, apontando para um sexualidade líquida já no século XVII, ao lado dos documentos do século XVI que apontam a escravizada Xica Manicongo como a primeira travesti do Brasil.

Aliás, o retrato é o tema do vídeo Uma voz para Erauso. Um epílogo para um tempo trans, da dupla espanhola Helena Cabello e Ana Carceller, que há dois anos trouxe a público a complexa figura do barraco espanhol, que se livrou do binarismo de gênero.

A questão LGBTQIAPN+ de fato é um eixo forte da mostra, e outro trabalho que merece atenção é o filme Línguas desatadas, de 1989, feito por Marlon Riggs (1957-1994), um documentário autoral sobre a vida de gays negros nos Estados Unidos.

Ao reunir obras e trabalhos de distintos períodos, como esses últimos três, esta Bienal opta por ser menos explícita em relação ao tempo presente, como muitas mostras deste gênero costumam fazer, mas falam de debates atuais sob uma perspectiva mais ampla, transformando a exposição em um contexto mais museográfico.

A morte é companheira
“A morte é companheira”, de Ubirajara Ferreira Braga. Foto: Patricia Rousseaux

Essa impressão é reforçada pela própria arquitetura da exposição. Não é fácil enfrentar o pavilhão modernista de Oscar Niemeyer, que com sua amplitude e linhas curvas, tendem a dominar os espaços. O grupo de arquitetos Vão, sabiamente, usou dessas curvas para questionar o próprio espaço, reorganizando o percurso do prédio – do primeiro andar pula-se para o terceiro para se encerrar a visita no segundo andar, fechando-se ainda o vão central, em uma gesto radical, mas eficaz.

Paredes brancas, poucas salas com intervenção mais radical, essa é uma Bienal de muito respiro e grandes espaços, mas que também conduz o visitante a ambientes mais íntimos quando necessário. É com muita elegância que se aborda as mazelas do mundo em (im)possíveis gestos de superação.

Elegância e crítica estão presentes nas obras selecionadas de Sidney Amaral (1973-2017) para a mostra. Em sua pintura O estrangeiro (2011), ele se autorretrata como um barqueiro que estaria nos subterrâneos obscuros do pavilhão da Bienal, sem ter a chance de pertencimento a este território – daí o título da obra. Agora em 2023, quem diria, ele não é mais um estrangeiro, mas parte de um grande coro de corpos negros, o maior que essa bienal já viu. Finalmente, o impossível ficou agora possível. ✱

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