Cena de "SOAP" (2020), de Tamar Guimarães, filme apresentado pela Fortes D’Aloia e Gabriel na Art Basel Miami Beach e na plataforma fdag. Cortesia da artista, Dan Gunn London e Fortes D’Aloia & Gabriel

A previsão era a pior possível. Com a chegada do novo coronavírus ao Brasil e com os decretos de quarentena a partir do mês de março, os agentes do mercado de arte não podiam vislumbrar nada além de uma grandiosa crise no setor. Ao relembrar este momento, as falas dos galeristas entrevistados pela arte!brasileiros caminham sempre no mesmo sentido. “O começo foi o mais duro de todos, acho que nada se compara a esse período”, diz Eliana Finkelstein, da Vermelho. “O impacto foi realmente muito grande nos meses de março e abril. Parecia que ia ser o caos”, afirma Alexandre Roesler, da galeria Nara Roesler. Segundo Marcos Amaro, sócio da Kogan Amaro, abril foi um mês “quase nulo”, e seria impossível imaginar que em um momento de grande preocupação e cautela as pessoas pudessem pensar em comprar arte. Thiago Gomide, da Bergamin & Gomide, segue o mesmo raciocínio: “Nós somos o primeiro tipo de gasto que se corta em um período de incerteza. Comprar arte é um luxo e algo que se faz em geral quando se está animado, com boas perspectivas”.

O fato é que não demorou muito para o quadro mudar, já a partir de maio ou junho, e mesmo em um ano em que feiras presenciais foram desmarcadas, uma a uma, o balanço anual de diversos galeristas em 2020 destoa – por vezes drasticamente – do que se podia esperar. “Apesar do contexto externo todo, para nós o saldo foi extremamente positivo. Foi o ano em que a galeria mais vendeu”, conta Bruna Bailune, da jovem galeria Aura, fundada em 2015. Amaro também fala em meses “excelentes” após o susto inicial. Se nem todos tiveram performance assim tão positiva, ao menos uma recuperação e reaquecimento do mercado são confirmados pelos dez entrevistados, incluindo leiloeiros e diretores de feiras. Tamara Perlman, consultora sobre mercado de arte e cofundadora da feira Parte, sintetiza: “Tenho conversado com galeristas e o que se vê é que não foi um ano ruim, pelo contrário, em geral 2020 foi um ano bom. O mercado está aquecido”.

Uma pesquisa divulgada recentemente pelo Projeto Latitude – realizada pela ABACT em parceria com a Apex-Brasil e que entrevistou mais de 50 casas do país – confirma esta percepção. Na média, em comparação com suas vendas de 2019, as galerias apresentaram resultado igual ou superior no primeiro e terceiro trimestres de 2020, tendo números piores apenas no segundo trimestre – que se refere aos primeiros meses da quarentena. A pesquisa não alcança os últimos meses do ano, mas os galeristas contatados pela arte!brasileiros confirmam que deve ser mais um período positivo.

A quebradeira que se viu em outros setores do comércio no país, portanto, passou longe do mercado de arte e, ao invés de assistir ao fechamento de casas, o Brasil viu a abertura de galerias como a HOA e o Projeto Vênus, em São Paulo, a Index, em Brasília, além da expansão de galerias como Celma Albuquerque (com a nova Casa Albuquerque) e Jaqueline Martins, com a abertura de escritório em Bruxelas. Em outro caso notável, o leiloeiro James Lisboa afirmou em entrevista recente que em um leilão realizado em agosto chegou a vendar 97% das obras disponíveis (a média antes da pandemia era de 65%), incluindo peças com valores muito acima dos preços iniciais.

O quadro geral é bastante mais positivo no Brasil do que em outras regiões, incluindo polos centrais do mercado de arte como EUA e Europa. Em uma pesquisa divulgada pela Art Basel e pela UBS em setembro, realizada com 795 galerias de todo o mundo, os dados mostram uma queda de 36% nas vendas das casas. Um terço delas também havia cortado o número de funcionários. Apesar de não incluir boa parte de um segundo semestre em que o quadro foi menos dramático, a pesquisa dá um termômetro da crise no setor. Uma tentativa de compreensão dos resultados positivos para parte significativa do mercado de arte no Brasil – mesmo sendo um dos países com maior número de mortes por conta da pandemia e que vive intensas crises política e econômica – passa por uma série de fatores, que vão de aspectos macroeconômicos à mudanças comportamentais, parcerias entre casas e o aprimoramento de suas atuações virtuais.

A ArtRio foi uma das poucas feiras realizadas tanto online quanto presencialmente em 2020. Foto: Bruno Ryfer/ Divulgação

Em casa, com excedente

Uma das percepções de muitos galeristas é a de que o aumento do tempo passado dentro de casa com o isolamento social fortaleceu um desejo e possibilidade de comprar peças de arte. “Este novo modo de vida criou uma outra relação com o próprio espaço da casa, uma convivência intensa que fez com que muitas pessoas começassem a pensar em mudar as coisas”, conta Alexandre Roesler. Ele afirma inclusive que alguns de seus clientes decidiram morar períodos em suas segundas casas (fora da cidade) e passaram a adquirir obras para estes locais. Em sentido semelhante, Bruna Bailune destaca ainda que a diminuição em outros tipos de gastos como restaurantes e viagens, impossibilitados por um longo período, podem ter influenciado no aumento das vendas de obras.

A elite é quem compra arte e é quem menos sofreu com a pandemia. Então em um país tão desigual como o nosso, e que manteve ou aprofundou essa desigualdade, essa explicação faz sentido. Em geral, a principal correlação que existe para o crescimento do mercado de arte é, mais do que com o crescimento de riqueza do país, com o crescimento no número de indivíduos ricos e milionários”, explica Tamara Perlman.

Para além de povoar suas paredes e jardins, em um momento de instabilidade econômica e política no Brasil, com taxa de juros baixa e grandes oscilações na bolsa, a arte surgiu também como uma possibilidade de investimento seguro, ao menos quando se fala de obras de nomes bem estabelecidos ou consagrados. “Arte é um ativo que preserva o valor do seu patrimônio. Claro que isso se aplica a artistas já consolidados ou a caminho dessa consolidação. E quem trabalha com artistas desse patamar saiu privilegiado. Ouvi de muitas galerias com esse perfil que foi possível manter ou mesmo superar o patamar de vendas do ano passado”, afirma Fernanda Feitosa, fundadora e diretora da SP-Arte. Alexandre Gabriel, sócio da Fortes D’Aloia e Gabriel, também percebe este movimento: “Estamos lidando com um público que tem um excedente de capital, e esse excedente vai para algum lugar. Quando você tem uma oscilação grande de mercado – em meio a esse pandemônio, com tamanha instabilidade de governo -, um colecionador com segurança e uma boa relação com a galeria sabe que vai poder fazer um bom negócio, e que talvez tenha acesso a obras que antes não teria”.

O sucesso de vendas visto em parte dos leilões, que trabalham com o mercado secundário e majoritariamente com artistas renomados, também reforça a hipótese de que o investimento em arte foi para alguns uma espécie de diversificação de investimentos. Para Aloísio Cravo, um dos mais importantes leiloeiros do país, num contexto de juros baixos, dólar alto e ainda com uma pandemia, os ativos passam a ter muito valor. “O que você vê de lançamentos de apartamentos é uma loucura, ou mesmo os números sobre recordes de vendas de carros importados.” Após dois leilões difíceis no meio do ano, Cravo cita uma forte retomada em seu último evento, realizado em novembro, no qual uma obra de Jorge Guinle, por exemplo, tinha preço inicial de R$ 180 mil e foi arrematada por R$ 260 mil.

Novos compradores

Mas o fato é que não apenas obras de grande valor e de artistas consagrados foram comercializadas durante 2020. Em uma outra ponta, trabalhos de nomes jovens, com valores mais baixos e vendidas muitas vezes por galerias menores, também ganharam fôlego comercial no período. Segundo a pesquisa do projeto Latitude, as galerias que movimentaram em 2019 menos de R$ 500 mil tiveram este ano, proporcionalmente, um desempenho melhor do que as que movimentaram até R$ 10 milhões. Segundo Bailune, a Aura, que sempre teve um público jovem e prática em fazer negócios com compradores de primeira viagem, concretizou uma série de transações que estavam travadas antes da pandemia. “Vários clientes que a gente prospectava passaram a comprar, viraram clientes da galeria.”

A entrada de um novo público no mercado é confirmada por outros galeristas e diretores de feira. Entre os motivos apontados, para além da já citada permanência em casa que afetou todas as gerações, está o fato de os mais jovens terem maior facilidade e costume de comprar no universo online – espaço de vendas que ganhou maior relevância na pandemia. Segundo Perlman, dados do meio do ano mostravam que na Artsoul, plataforma de venda de arte contemporânea, o número de acessos tinha triplicado e o de vendas duplicado. Fernanda Feitosa conta que tanto na SP-Arte quanto na SP-Foto cerca de 70% dos visitantes deste ano estavam ali pela primeira vez, ou seja, não eram frequentadores das edições presenciais realizadas pela marca.

Neste sentido, a transparência adotada tanto pelas plataformas de venda, os market places, quanto pelas feiras, que em grande parte passaram a fornecer dados detalhados e preços das obras, pode ter facilitado a vida de jovens colecionadores. “Acho que isso evita um constrangimento que existe, principalmente em feiras, de pessoas que não fazem ideia dos preços e não se sentem confortáveis em frequentar esse segmento”, diz ele. Alexandre Roesler, que participou de cerca de uma dezena de feiras virtuais no ano, segue a mesma linha: “O fato de ter pelo menos a faixa de valores facilitou muito a pesquisa para as pessoas. Numa feira física normalmente você não sabe o preço, às vezes tem vergonha de perguntar… O site dá mais informações, possibilidades de consulta e permite que as pessoas comecem a se familiarizar com a área.”

Feitosa acrescenta ainda que houve uma aproximação de um público “mais sensível às questões do momento”, o que pode ter beneficiado as vendas destas galerias de menor porte. “Houve um apoio a artistas jovens, negros, mulheres e de minorias. Ou seja, um publico comprador mais consciente do seu papel”, acrescenta ela, citando a participação na SP-Arte dos projetos Levante Nacional Trovoa e Plataforma 01.01, que focam em produções de artistas afro-diaspóricos, não binários, asiáticos e indígenas. Não menos importante para os bons resultados foram as parcerias entre galerias que marcaram principalmente os primeiros meses de pandemia. Segundo a pesquisa do Latitude, 66,1% dos agentes do mercado brasileiro informaram ter realizado novas parcerias com foco na coletivização das soluções e com práticas como a divisão de metas de venda com outras galerias. A p.art.ilha foi umas dessas iniciativas coletivas, a mais citada pelos entrevistados da pesquisa, que estimulou as vendas também com benefícios comerciais para os compradores.

Relacionado a este olhar mais atento à questões políticas atuais, um fenômeno ligado às instituições é outro aspecto que pode ter favorecido o mercado brasileiro em tempos recentes. Seja por consciência da necessidade de mudança ou por pressão de diversos movimentos sociais e artísticos, importantes museus do mundo estão revendo seus acervos para incluir obras de artistas mulheres, negros, indígenas, LGBTs, latinos e asiáticos. Thiago Gomide, mesmo constatando que a média de vendas de sua galeria em 2020 esteve abaixo da de outros anos, acabou de concretizar a transação de uma escultura de Lygia Clark para o Guggenheim de Abu Dhabi por cerca de R$ 10 milhões. Vele lembrar que o MoMA de São Francisco recentemente vendeu uma obra do americano Mark Rothko por U$D 50 milhões para adquirir um conjunto de trabalhos de artistas mulheres ou integrantes de minorias étnico-raciais, e de que o Everson Museum de Siracusa se desfez de um trabalho de Jackson Pollock para suprir o mesmo tipo de lacuna. “Então os museus não só querem como precisam rever suas coleções. E nisso o Brasil se posiciona bem”, conclui Gomide.

Obra de Sérgio Camargo vendida este ano pela galeria Bergamin & Gomide. Foto: Divulgação

Experimentando e correndo atrás do atraso

Os Viewing Rooms, espécies de salas expositivas virtuais, foram o caminho encontrado por grande parte das feiras ao redor do mundo para não cancelar totalmente suas edições. Desde as estrangeiras como Art Basel, Frieze, TEFAF e Untitled até as nacionais como SP-Arte ou as inéditas Not Cancelled Brazil e Latitude Art Fair, todas recorreram à criação de espaços virtuais que, de modo geral, foram se sofisticando ao longo do ano. Se nem sempre os resultados de vendas alcançaram os números de outros anos, os gastos para as galerias também foram infinitamente menores. “Nas feiras, o preço do estande, as viagens, hospedagens, o transporte de obras e os seguros, tudo é um orçamento muito alto. E mesmo as exposições virtuais da galeria foram mais baratas de fazer. O que aconteceu, no final do ano, é que a gente conseguiu manter o faturamento, mas a despesa caiu”, afirma Roesler.

De modo quase forçado, a chegada da pandemia obrigou uma revisão de modelos e métodos de trabalho que, segundo os próprios galeristas e organizadores de feiras, já começavam a dar sinais de esgotamento. O excesso de deslocamentos pelo mundo, em uma agenda incessante ao longo do ano, certamente será revisto, mesmo em um futuro pós-pandêmico. “Acho que as feiras vão ficar cada vez mais locais, e o que vai conectar o evento com o mundo é o online. Uma feira em Londres vai receber principalmente o pessoal de Londres, e o virtual servirá para as pessoas de fora”, supõe Finkelstein. Para feiras em países de fora do eixo central do mercado, como o Brasil, isso pode ser proveitoso, segundo Feitosa. “Estamos a pelo menos dez horas de distância dos EUA, da Europa e ainda mais do Japão, por exemplo. Então o fluxo de visitantes internacionais para uma feira aqui é menor do que em outros países. Com o online, este ano eu tive na SP-Arte 15% de visitação estrangeira, enquanto na feira presencial este número era em média de 2%.”

O formato híbrido, em que o evento acontece em escala reduzida no presencial e é complementado pela plataforma virtual, foi experimentado pela ArtRio, realizada em um período em que a primeira onda da pandemia parecia estar diminuindo e a segunda não havia chegado. O resultado foi elogiado pelos galeristas entrevistados, que confirmaram a realização de um alto número de transações. “Acredito que esse modelo híbrido é o que vai funcionar tanto para feiras quanto para galerias. Vão sobreviver as que conseguirem operar tanto online quanto no offline com a mesma força”, diz Bailune. Quanto aos leilões, Aloísio Cravo completa: “Daqui para a frente, para fazer um leilão presencial tem que ser com uma coleção excepcional, uma solenidade. Porque sinto que esse modelo online deu muito certo”.

É notável, neste sentido, a grande movimentação e o esforço das casas brasileiras para se manter ativas e presentes nas plataformas virtuais ao longo do ano. Exposições se tornaram Viewing Rooms; lives com galeristas, curadores e artistas pipocaram nas redes sociais; novas plataformas surgiram e a produção de conteúdos em vídeo, áudio e imagens foi intensificada. “A pessoa que fazia comunicação digital passou a ser a pessoa com mais importância na galeria”, brinca Thiago Gomide. Para Alexandre Gabriel, “qualquer projeto que a gente vá fazer a partir de agora, eu vou pensar em qual é a imagem dele online, como ele acontece também virtualmente. E isso não tem volta”.

É nesse sentido que Tamara Perlman percebe uma mudança importante, que já se fazia necessária há tempos. “Muito rapidamente as galerias se juntaram de uma forma ou outra, mudaram modelos de negócio, adotaram tecnologias e testaram coisas. E isso foi muito interessante porque elas se deram o direito de experimentar, o que era uma coisa muito difícil – até por uma razão compreensível, já que elas vivem de reputação. Então na construção de uma marca, as casas têm muito receio de errar. E a pandemia, principalmente o começo, foi um momento em que isso mudou: pode testar; pode experimentar; tudo bem uma galeria grande estar ao lado de uma pequena.” A Fortes D’Aloia e Gabriel, por exemplo, participou da Art Basel Miami Beach apenas com filmes de artista, o que seria impensável em outro contexto, e aproveitou para lançar a plataforma fdag, voltada apenas para obras audiovisuais.

O insubstituível 

Apesar do balanço positivo, do avanço virtual e da entrada de novos colecionadores no mercado, os galeristas admitem certo esgotamento com a situação. “Vou te dizer que estou começando a me sentir com o HD riscado”, comenta Gabriel. “Foi muito trabalho, uma coisa insana.” Murilo Castro, que promoveu 50 lives durante a pandemia, vai na mesma direção: “Eu diria que nunca trabalhei tanto quanto neste ano. E sinto falta das relações, porque a nossa área vive de contato pessoal, de confiabilidade. Então não acho que o online pode substituir isso, mas sim incrementar informações e possibilidade”.

Alexandre Roesler, mesmo vislumbrando menos viagens – “já vimos que é possível resolver muita coisa em uma videoconferência” – ressalta também que mesmo a experiência em uma feira, por vezes cansativa, tem vários benefícios insubstituíveis: “Você faz uma viagem e vai a museus, exposições, encontra pessoas que só vê nesse circuito, conhece novos artistas”. O que se espera, portanto, é que em um mundo pós-pandêmico os avanços digitais, somados à inserção de novos e jovens compradores, se somem a uma retomada de atividades presenciais. “Eu diria que em termos de mercado nós teremos um ganho no futuro”, conclui Castro. Mas não se pode negar: “Culturalmente, sim, este foi um ano muito ruim”.

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