Deputada federal Celia Xakriaba comemora a decisão com a anciã Isabela Xokleng. Foto: Scarlett Rocha
Deputada federal Celia Xakriaba comemora a decisão com a anciã Isabela Xokleng. Foto: Scarlett Rocha

O Supremo Tribunal Federal (STF), na tarde desta quinta-feira, 21, decidiu refutar, por maioria, a tese do Marco Temporal como critério para a demarcação de terras indígenas. Nove ministros – Edson Fachin (relator), Alexandre de Moraes, Cristiano Zanin, Gilmar Mendes, Luís Roberto Barroso, Dias Toffoli, Luiz Fux, Rosa Weber e Carmen Lúcia – entenderam que o direito à terra pelas comunidades indígenas independe do fato de estarem ocupando o local em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição Federal. Dois ministros, Nunes Marques e André Mendonça, divergiram. O julgamento começou em agosto de 2021 e é um dos maiores da história do STF. Ele se estendeu por 11 sessões, as seis primeiras por videoconferência, e duas foram dedicadas exclusivamente a 38 manifestações das partes do processo, de terceiros interessados, do advogado-geral da União e do procurador-geral da República.

É uma vitória histórica para os povos indígenas brasileiros, que lutam há 30 anos para que o Estado brasileiro cumpra o compromisso firmado em 1988, quando da adoção da nova Constituição Federal: concluir a demarcação de terras em cinco anos. O resultado do julgamento do recurso servirá de parâmetro para a resolução de, pelo menos, 266 casos semelhantes que estão suspensos, segundo a assessoria de imprensa do STF.

A HIPÓTESE

O Marco Temporal que estava em julgamento no STF era uma tese jurídica perigosíssima, que ameaçava não apenas a integridade dos povos indígenas brasileiros, mas também o meio ambiente (entorno natural dos territórios indígenas, e por eles protegido), e mobilizou os povos indígenas do país todo. Muitos compareceram em peso a Brasília para acompanhar o julgamento do recurso. Vieram lideranças do Nordeste, do Sudeste, do Sul e do Norte do país. O chamado Marco Temporal foi o nome dado ao Recurso Extraordinário (RE) 1017365, no qual o plenário do STF discutiu a definição do estatuto jurídico-constitucional das relações de posse das áreas de tradicional ocupação indígena (e desde quando deveria prevalecer essa ocupação).

A hipótese do Marco Temporal, agora rechaçada pela maioria do STF, pregava que os povos indígenas teriam direito de ocupar atualmente apenas as terras que ocupavam ou já disputavam na data de promulgação da Constituição de 1988. Ela se contrapunha à teoria do indigenato, segundo a qual o direito dos povos indígenas sobre as terras é anterior à criação do Estado brasileiro, cabendo a este apenas demarcar e declarar os limites territoriais. Os deputados ligados ao agronegócio agora falam em “insegurança jurídica” com a decisão e prometem estendê-la no Congresso.

POSSE TRADICIONAL

Os ministros que confirmaram a teoria do indigenato concordam com o direito dos povos originários. O relator do caso, Edson Fachin, lembrou em seu voto que a legislação brasileira sobre a tutela da posse indígena estabeleceu, desde 1934, uma sequência da proteção nas Cartas Constitucionais. Segundo Fachin, os direitos territoriais indígenas, previstos no artigo 231 da Constituição, visam à garantia da manutenção de suas condições de existência e vida digna, o que os torna direitos fundamentais. Segundo o mesmo dispositivo da Constituição, a posse tradicional indígena é distinta da posse civil e abrange, além das terras habitadas por eles em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. “No caso das terras indígenas, a função econômica da terra se liga, visceralmente, à conservação das condições de sobrevivência e do modo de vida indígena, mas não funciona como mercadoria para essas comunidades”, ressaltou.

Já os ministros Nunes Marques e André Mendonça, que votaram a favor do Marco Temporal, defendiam uma reconfiguração dos direitos indígenas no país. Para Nunes Marques, a posse tradicional não deve ser confundida com posse imemorial, sendo necessária a comprovação de que a área estava ocupada na data da promulgação da Constituição ou que teria sido objeto de esbulho, ou seja, que os indígenas tenham sido expulsos em decorrência de confliito pela posse.

O ministro Dias Toffoli considerou que a Constituição Federal de 1988, ao assegurar aos indígenas o direito às terras tradicionais, partiu da concepção dos próprios povos sobre seu território, para permitir que a ocupação se estabeleça conforme seus usos, seus costumes e suas tradições. Cristiano Zanin afirmou que a Constituição de 1988 é clara ao dispor que a garantia de permanência nas terras tradicionalmente ocupadas é indispensável para a concretização dos direitos fundamentais básicos desses povos. Alexandre de Moraes defendeu que, prevalecendo a hipótese do Marco Temporal, a demarcação de terras de uma comunidade retirada à força do local antes da promulgação da Constituição seria impossível. A ministra Rosa Weber explicou que os direitos desses povos sobre as terras por eles ocupadas são direitos fundamentais que não podem ser mitigados e acrescentou que a noção da posse tradicional não se esgota na posse atual ou na posse sica das terras.

O caso concreto que originou o julgamento surgiu em uma reintegração de posse requerida pelo Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA), que pleiteava uma área localizada em parte da Reserva Biológica do Sassafrás (SC), declarada pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) como de tradicional ocupação indígena. No recurso, a Funai contestou decisão do Tribunal Regional da 4ª Região (TRF-4), para quem não foi demonstrado que as terras seriam tradicionalmente ocupadas pelos indígenas e confirmou a sentença em que fora determinada a reintegração de posse.

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