Pessoas na entrada do Atelie397, na Pompeia, na abertura da exposição Que Barra!, em 2018.
Pessoas na entrada do Atelie397, na Pompeia, na abertura da exposição Que Barra!, em 2018. Foto: Divulgação/Ateliê397

Em um livro lançado em 2015 sobre o Ateliê397, um dos mais longevos espaços independentes de arte de São Paulo, chama atenção que a foto da capa seja de uma festa – com corpos dançando e mãos segurando cervejas – e não de uma exposição, de uma obra de arte ou de uma performance. E isso não significa que o Ateliê397 seja um espaço de festas, por mais que tenha abrigado muitas delas, especialmente antes de se mudar da boêmia Vila Madalena para uma rua residencial na Pompeia. O que a escolha da foto parece demonstrar, na verdade, é que nas mais variadas atividades que abriga e realiza – ateliês, cursos, debates, residências artísticas e exposições – o espaço preza especialmente pelo convívio, pelas trocas, diálogos e encontros, assim como acontece em uma boa festa.

“Espaço dedicado à circulação, produção e exibição de arte contemporânea”, como explica a placa na entrada do grandioso galpão na pacata rua Gonzaga Duque, o 397 completa 16 anos de atuação tendo passado não só pela mudança de endereço, em 2017, mas também por reformulações na equipe e nos modos de gestão. Nunca perdeu de vista, neste percurso, que certo grau de informalidade e irreverência são desejáveis para o tipo de experimentação e pensamento crítico que busca produzir e para o lugar – nem mercadológico nem excessivamente institucional – que pretende ocupar.

“Talvez não seja bem a festa, mas sim a cerveja”, comenta o artista Raphael Escobar, colaborador do 397. “A cerveja como esse espaço de comunhão da conversa, da troca, do discutir, do pensar ideias boas e ruins. No Ateliê as coisas fluem muito desse jeito, em um encontro de pessoas de diferentes gerações, em diferentes estágios da carreira. Acho que esse convívio dá força para todo mundo, tem uma potência incrível, possibilita a construção do pensamento.” Escobar, que frequenta o 397 há cerca de dez anos e hoje ministra cursos no local, é um dos muitos artistas que ali chegou no período final de sua graduação.

O Ateliê397 durante a exposição Abraço Coletivo. Foto: Divulgação

Como explica a museóloga e educadora Tania Rivitti, gestora do espaço ao lado de Ana Elisa Carramaschi, Bia Mantovani e Carollina Lauriano, “desde o início existe essa proposta de formar jovens artistas. Esse artista que sai da faculdade e percebe que ainda precisa discutir mais, apresentar mais seu trabalho, entender como apresentá-lo”. Esse caráter de formação, que permeia boa parte das atividades propostas pelo Ateliê, está presente tanto em cursos como o Clínica Geral, um acompanhamento semestral para projetos de artistas e pesquisadores, quanto na residência artística Temos Vagas!, que neste momento se encontra em sua segunda edição, com nove jovens artistas e um coletivo.

Na vasta área central do galpão, os artistas da residência têm seus espaços de trabalho separados apenas por uma faixa no chão, sem paredes ou divisórias, o que propicia um diálogo permanente entre os participantes. As salas restantes são alugadas para outros artistas mais experientes que têm seus ateliês no local, normalmente compartilhados por duas ou três pessoas cada um. Há ainda uma sala para gestão, reuniões ou pequenas mostras e um recinto, logo na entrada, que sedia a Escola da Floresta, projeto comandado pelo artista Fábio Tremonte. Apesar de algumas poucas paredes, nenhum dos ambientes têm portas fechadas.

Para o curador Gabriel Bogossian, outro dos colaboradores do Ateliê ao lado de Escobar e de Thais Rivitti, esse caráter de formação é dos traços da identidade do 397 mais relevantes de se destacar no atual contexto da cidade de São Paulo. “Acho que falta aqui, historicamente, uma escola livre nos moldes do Parque Lage no Rio de Janeiro. E nos últimos anos os espaços independentes ocuparam um pouco esse lugar”. Ao mesmo tempo, ele ressalta, com o encerramento das atividades de muitos deles, em decorrência de dificuldades financeiras, o 397 acabou se tornando ainda mais singular no cenário da cidade.

Performance realizada no galpão do Ateliê397 durante a exposição “Abraço Coletivo”, em 2019. Foto: Amalia Coccia

“Existem outros lugares que abrigam exposições, debates e performances, mas poucos têm essa ocupação constante, esse espaço de encontro regular que permite a pedagogia da convivência”, afirma Bogossian, que destaca ainda o valor acessível (quando não gratuito) dos cursos e atividades do 397. “E acho que ainda falta no meio artístico a consciência da importância desse espaço, que é um lugar de oxigenação do campo, da prática”, completa o curador.

Passado e futuro

Ao longo dos 16 anos de história do 397, o desejo constante de questionar as práticas institucionais e mercadológicas do universo da arte contemporânea resultou em variados tipos de atividades e experiências. No Surpraise, por exemplo, que já teve oito edições, um leilão de arte é realizado “às cegas”, sem que os participantes sejam informados da autoria das obras vendidas. Trabalhos de artistas iniciantes e consagrados se misturam e recebem o mesmo preço inicial, transformando a experiência em uma espécie de aposta que coloca em cheque a ideia de autoria e a especulação financeira no meio artístico.

A partir de um projeto proposto pelo Ateliê397 e contemplado pelo Prêmio Funarte de Arte Contemporânea de 2012, a exposição Espaços Independentes: A Alma é o Segredo do Negócio foi montada em parceria com o Ateliê Aberto (Campinas), o Atelier Subterrânea (Porto Alegre) e as paulistanas Casa Contemporânea, Casa Tomada e Casa da Xiclet. A ideia de unir e colocar em diálogo as práticas de diferentes espaços independentes buscava se contrapor às premissas individualistas do mercado e favorecer o compartilhamento de conhecimentos e práticas coletivas. 

“Existem outros lugares que abrigam exposições, debates e performances, mas poucos têm essa ocupação constante, esse espaço de encontro regular que permite
a pedagogia da convivência”

Gabriel Bogossian

   

Com o trabalho do grupo de estudos “Mulheres não precisam estar nuas para entrarem nos museus”, a exposição Vozes Agudas foi organizada em 2018 e emprestou seu nome para um novo grupo de estudos e intervenções que segue em atuação no 397. Com ênfase feminista e formado exclusivamente por mulheres atuantes no circuito artístico paulistano, o Vozes Agudas tem realizado encontros, leituras e uma série de podcasts disponíveis no site do Ateliê.

Em julho de 2019, uma grande mostra intitulada Abraço Coletivo reuniu obras de quase 300 artistas no galpão. A partir de uma chamada aberta (em que nenhum artista seria recusado), a mostra atraiu expositores de diferentes idades e com trabalhos em variadas plataformas, chamados à pensar o espaço junto à curadora Paula Borghi.

Se alguns destes projetos de anos anteriores – especialmente na primeira metade da última década – foram financiados a partir da aprovação em editais ou da captação nas leis de incentivo à cultura, o quadro se tornou mais crítico para o 397 nos tempos recentes. “É nítido um intenso desejo de desmonte da cultura”, comenta Bogossian. Assim, o espaço tem debatido novas estratégias de sobrevivência e tentado colocar em prática projetos que possam manter sua sustentabilidade.

Performance realizada durante a exposição Abraço Coletivo, em 2019. Foto: Divulgação

Um crowdfunding (financiamento coletivo) realizado em 2017 arrecadou R$ 65 mil e possibilitou a manutenção das atividades do 397 no primeiro semestre de 2018. A venda dos múltiplos, obras de diversos artistas ligados à casa, é outro caminho que tem ajudado. Cursos, residências e os aluguéis pagos pelos artistas que ali trabalham representam outra parte da arrecadação, mas não o suficiente para fechar as contas. Neste sentido, o 397 pensa em possibilidades como a retomada do Surpraise, a realização de um crowdfunding permanente e a criação de parcerias com outros coletivos e instituições da cidade – sejam museus, galerias ou universidades –, sem que isso signifique uma diminuição na autonomia do Ateliê.

Outro objetivo neste ano de 2020 é estabelecer um diálogo mais forte e horizontal com o bairro da Pompeia e seus moradores. Para isso, segundo Rivitti, é preciso tanto ir às ruas e praças quanto atrair as pessoas para dentro do galpão. “E um dos desafios é achar uma linguagem em que a gente se reconheça e que esses moradores também se reconheçam. Não adianta achar que vamos iluminar as pessoas com a ideia de arte contemporânea, com uma mentalidade de especialista que quer muito mais ensinar do que ouvir o outro”, diz ela. “Então temos que levar propostas, saber se colocar, e ao mesmo também ouvir, conseguindo se aproximar do dia a dia do bairro.”

Para as gestoras do Ateliê, uma maior ocupação do espaço público se insere também como prática política em tempos de ataque às artes e à educação. “Nesse momento difícil, que temos um governo inimigo da cultura, estamos pensando que tipo de questões queremos trabalhar, que discussões queremos fazer, com ousadia e sem ter amarras. Discussões sobre a cidade, questões de gênero e raciais, feminismo e meio ambiente, sempre olhando com atenção para as pessoas que estão na mira de um modo geral”, diz Rivitti.

Nestes 16 anos de estrada, tentar fazer uma lista dos artistas que passaram pelo Ateliê397 seria tarefa quase impossível. Entre nomes menos conhecidos e consagrados, centenas de pessoas tiveram parte de suas formações ou trajetórias marcadas por alguma prática ou experiência vivida neste espaço independente paulistano. “A arte demanda formação e bons profissionais”, conclui Rivitti. “E precisa de tempo, não é imediata. Então esse processo que o ateliê sempre propiciou, com os alunos, artistas, professores e frequentadores, resultou no amadurecimento de muita gente boa que está por aí. É um trabalho longo e que deve continuar.” 

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