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O mundo reinventado de Hudinilson Junior para conferir em mostra

Hudinilson em seu ateliê
Acima, retrato de Hudinilson em seu ateliê, década de 80.

O que pode a arte? Hudinilson Júnior sempre fez o que bem quis e a resposta a essa irreverência foi tornar-se um ponto fora da curva dentro do universo da arte brasileira. Sua trajetória é marcada pelo colapso do sujeito, explosão da relação com o objeto e radicalização de performances. Com vigor poético sofisticado, somado às experiências corporais e relacionais, Hudinilson deixa uma produção intimamente ligada a São Paulo, seja em performances, grafites ou arte em xerox.

Muitas de suas obras surgem na busca da simultaneidade entre pensamento e visualidade, como no dia em que surpreendeu a cidade com a imagem do seu pênis xerografada em um imenso outdoor, próximo ao parque do Ibirapuera. As reações provocadas pelo atrevimento apontavam para o desmonte das hierarquias do espaço expositivo, destruição do poder de localização da obra e ao mesmo tempo revelava a irreverência do sujeito.

obra "Sem Título" do artista,
Obra “Sem Título” do artista, produzida na década de 80.

Todo movimento de acionar a des – ordem perpassa pelas obras que tomam agora os 600 metros quadrados da galeria Jaqueline Martins, cuja proprietária é também a curadora da mostra. As novidades são as pinturas sobre tela, realizadas quando o artista ainda era estudante de arte na década de 1970. Uma tensão curiosa permeia a pluralidade do trabalho de Hudinilson, um dos pioneiros do movimento da arte xerox no Brasil. Melhor personagem de sua própria obra, ao criar Exercício de me ver (1981), desorganiza o pensamento crítico com a simulação do ato sexual com uma máquina de xerox. É instigante segui-lo nessa experimentação produzindo outros sentidos para o homem e a máquina. Como não lembrar de Hélio Oiticica quando sentenciou: “experimentar o experimental”? Hudinilson se expressa, sem pudor, por meio de várias linguagens que, em algumas circunstâncias, passa a ser instrumento de especulação. Para o crítico Jean-Claude Bernardet, “a fragmentação do corpo pela xerox, converte-o em paisagens abstratas, nas quais os fragmentos se esvaem”. Em sua performance com a máquina copiadora, ele utiliza seu corpo como matriz para a reprodução e investigação de possibilidades visuais.

Em 1979, Hudinilson cria o grupo 3Nós3, com os artistas Rafael França e Mário Ramiro. A união por afinidades eletivas era de amigos que pactuavam arte e forma de fazer arte. Até 1982 eles intervêm em vários pontos de São Paulo, praticando a reapropriação lúdica e crítica da cidade. O repertório de ações vai desde o ensacamento de monumentos públicos à intervenção no buraco de respiração de um túnel, à lacração de portas de galerias de arte. Todas entendidas como marco revolucionário contra as determinações racionalistas e controladoras da metrópole. Mesmo atuando com o grupo, ele jamais abandona sua produção individual que dura mais de três décadas.

Desde o início, Hudinilson mantém uma forte relação com a colagem, ponto de partida para uma fase comentarista. A isso se somam experimentos na xilogravura, suporte pelo qual a maior parte dos artistas brasileiros passou, utilizando decalques de imagens fotográficas. Hudinilson passava longas horas escolhendo fotos de corpos nus que retirava de revistas americanas. Em 1984, abandona esses modelos e centra toda a sua atenção em torno dele mesmo, quando se dedica a Narcise/Estudo para autorretrato (1984). Nesse “ensaio” dialoga com o mito de Narciso e cria sua própria identidade visual. O projeto envolve uma série de trabalhos, como uma espécie de “ópera”. Narciso passa a ser obsessão para ele que, nos últimos cadernos de colagens, revela seu interesse pelo estudo do nu masculino.

Hudinilson Jr, Amantes e Casos
Hudinilson Jr, Amantes e Casos

Na década de 1980, o lugar da arte de Hudinilson é a rua, onde inventa grafites com desenhos incorporados à escrita, numa reivindicação de espaço de liberdade total. Seu mentor e cúmplice, Alex Vallauri (1949-1987), foi o primeiro artista brasileiro a aderir ao grafite. Como ele, Hudinilson trabalha com máscaras ou estênceis na busca de um novo espaço formal para criar, uma resistência em vão, como se fosse possível alguma naturalidade na arte.

Em vida Hudinilson se salvou de experimentar a vertigem ilusória de pertencer ao mercado de arte e de participar da internacionalização por meio das maratonas repetitivas de feiras e bienais. Só depois de sua morte seus trabalhos chegam ao exterior e desembarca, em junho, na Art Basel, na Suíça, a mais antiga e reverenciada entre as feiras de arte do mundo.

Hudinilson Jr.
Até 06 de setembro de 2019
Na Galeria Jaqueline Martins
Rua Dr. Cesário Mota Junior, 433 – Vila Buarque, São Paulo

Em Inhotim, Paulo Nazareth fricciona história e território em uma ‘encruzilhada de muitos tempos’

Performance de Paulo Nazareth, durante a abertura de sua individual
Performance de Paulo Nazareth, durante a abertura de sua individual "Esconjuro", no Instituto Inhotim. Foto: Daniela Paoliello

Em cartaz no Inhotim, a individual Esconjuro, de Paulo Nazareth, não poderia ser mais consonante com a proposta de programação do instituto para 2024. Com trabalhos inéditos e releituras de obras anteriores, a exposição ocupa a Galeria Praça e se espraia por outros espaços do Inhotim, respondendo ao desejo da instituição de trabalhar os conceitos de arte e natureza de forma ampliada. Ou ainda, como indagou Júlia Rebouças, diretora artística do instituto, em entrevista à arte!brasileiros: “O que podemos fazer aqui, que não se pode fazer em outro contexto?”.

Com o argumento de que Inhotim se encontra em uma “encruzilhada de muitos tempos”, num território que já foi atravessado pela Estrada de Ferro Central do Brasil, Nazareth explica que “a exposição trata do passado e de uma possibilidade de futuro que ainda não alcançamos”. A individual, lembra o artista, integra-se a um processo de trabalho iniciado com Cadernos de África, projeto concebido em 2012, composto de imagens em preto e branco, registradas durante viagens que ele fez na África e também no Brasil, envolvendo questões como trânsitos e comida.

O ponto de partida de Esconjuro foi a obra Casa de Exu (2015-2024), instalada perto da Galeria Praça. Nela, Nazareth incorpora sua proposta de uma nova relação entre tempo e espaço por meio do cheiro de aguardente que atinge o olfato das pessoas antes dos demais sentidos. Em uma das fronteiras do instituto, o artista deu início a uma plantação de bananas, frutas sempre presentes ao longo das estações do ano. Com a obra-plantação Bananal (2024), que inclui uma bananeira de bronze ancorada no chão, Nazareth novamente joga com noções de tempo e território: antes mesmo do Inhotim, a fruta já estava presente ali, alimentando trabalhadores e suas famílias.

Com Sambaki II (2024), trabalho comissionado pelo instituto, as bananas voltam como simulacros feitos de concreto, amontoadas e ladeadas por dois alto-falantes que reproduzem uma conversa no idioma crioulo. O áudio traz um diálogo, captado em São Paulo, com trabalhadores imigrantes da Guiné-Bissau, que ajudaram Nazareth na confecção de bananas de concreto. Já em Sambaki I, o artista mescla bananas de madeira e simulacros de bananas de dinamite. Novamente numa chave histórica, refere-se à primeira riqueza extraída do território brasileiro e à prática da mineração com os explosivos.

Fazem ainda parte da individual séries de pinturas, obras externas, como Pato [Pago ou Pato feio], de 2024; peças e instalações Gameleira (2024); Alguidar (2024); Marco Temporal e Iemanjá (2023-2033); além de um conjunto de imagens de sua mãe, Ana Gonçalves da Silva.

Segundo Paulo Nazareth, o título Esconjuro é também um dos trabalhos, uma “obra imaterial” acionada, como numa performance, ao ser pronunciada por qualquer pessoa. Do mesmo jeito que seu sobrenome, que, ao ser proferido, evoca o nome da mãe de sua mãe, Nazareth Cassiano de Jesus, uma índigena da etnia borum enviada ao Manicômio de Barbacena, também em Minas Gerais, em meados dos anos 1940. Aqui, o artista se debruça sobre como a ancestralidade acompanha toda a sua produção.

A exposição solo de Nazareth tem curadoria de Beatriz Lemos, que destaca a retomada da visão curatorial original de Inhotim em 2024. Ela ressalta que esconjuro é uma palavra muito poderosa de nosso vocabulário, muito conhecida nos terreiros de religiões de matriz africana e ligada “ao dia a dia das benzedeiras, dos mateiros, pessoas que conversam com o sagrado das plantas”. E Nazareth, ela afirma, chega a Inhotim com esse vocábulo que se refere tanto à proteção quanto ao livramento de más energias, de coisas ruins.

“A exposição também traz outra possibilidade de se contar o tempo, um tempo alargado ao longo das estações. E essa nova contagem do tempo é feita por meio de reformas como aquelas que vemos nas periferias de cidades latino-americanas, em que a todo momento se faz um puxadinho aqui, constrói mais uma laje ali, em busca de qualidade vida e de aconchego”, explica a curadora. “Com essas duas ideias, das estações e das reformas, Paulo traz dois desafios institucionais, mexe com todo o instituto, numa exposição que depende e conversa com todas as equipes do museu”.

 

BACON E MÁRIO DE ANDRADE NO MASP: UM ENCONTRO ESQUISITO | Parte dois

Tarsila do Amaral (Capivari/SP, 1886 – São Paulo/SP, 1973) Retrato de Mário de Andrade, 1922 Óleo sobre tela [Oil on canvas], 53,5 x 46,5 cm Acervo Artístico-Cultural dos Palácios do Governo do Estado de São Paulo Foto: Eduardo Ortega

PARTE DOIS

Pelo fato da mostra Mário de Andrade. Duas Vidas ter sido concebida a partir das obras colecionadas pelo crítico, quando desci até o subsolo do MASP para visitá-la, estava ansioso por rever algumas das peças que haviam pertencido a Mário e mesmo conhecer outras que nunca haviam sido exibidas¹. Dentre as várias obras que a integram, a coleção congrega um dos mais importantes conjuntos de arte do modernismo brasileiro, com obras de praticamente todos os artistas do movimento: de Anita Malfatti e Di Cavalcanti a Candido Portinari e outros. Mas a mostra não fica confinada apenas aos modernistas brasileiros. Ela traz também alguns exemplares do conjunto de peças coloniais de Mário e uma série de fotografias produzida por ele durante suas viagens para o Norte e o Nordeste do Brasil, durante a segunda metade dos anos 1920. 

Obras de diversas origens, o que as une é o fato de terem sido colecionadas por um dos intelectuais brasileiros mais importantes do século passado. Mas o que faz a coleção de Mário na série de exposições deste ano no MASP, dedicadas à questão LGBTQIA+? 

Ora, Mário de Andrade era homossexual. 

Na verdade, fica difícil afirmar de maneira categórica a homossexualidade do intelectual porque, em primeiro lugar, não é público, que eu saiba, qualquer caso amoroso que Mário possa ter tido com outros sujeitos. De concreto, o que sempre existiu foram os comentários que seus opositores espalhavam em conversas e mesmo em jornais e outros tipos de publicações. De fato, seus inimigos e ex amigos (Oswald de Andrade, por exemplo), eram mestres em tentar desqualificá-lo, tanto por sua origem africana (ou seja, por ter índices fenotípicos de homem negro), quanto por suas supostas afetações e interesse por homens.

Todas essas insinuações, não passavam disso, insinuações. Mesmo em seus depoimentos mais reservados em cartas a amigos e amigas, como Manuel Bandeira e Oneyda Alvarenga – considerados reveladores de sua sexualidade – o autor é evasivo, anuncia sua homossexualidade (no caso da carta para Bandeira) para, em seguida, fugir da questão².

Embora conhecesse um ou outro de seus trabalhos literários em que o homoerotismo era discretamente aludido, o certo é que, quando, em meados dos anos 1990, pesquisei sua produção como crítico de arte para meu doutorado, a questão da sexualidade de Mário não estava na ordem do dia. Durante a pesquisa para a tese, o único índice que, de fato, me chamou a atenção em relação à sexualidade de Mário foi aquele trecho da crítica que ele escreveu sobre as figuras de Portinari, citado na primeira parte deste artigo. Ali me pareceu evidente a emersão de algo vindo à tona na descrição daqueles “machos rudes” em contraposição às mulheres “boas como minha mãe”. E só.

Voltando à exposição, é interessante que as obras que a integram, além de terem pertencido ao crítico, possuem em comum apenas outro aspecto: todas representam figuras masculinas. 

Seria esse aspecto a demonstrar a dimensão queer de Mário?

Flávio de Carvalho (Barra Mansa, Rio de Janeiro, Brasil, 1899—1973, Valinhos, São Paulo, Brasil). Homem [Man], 1933. Aquarela e tinta de caneta sobre papel [Watercolor and pen ink on paper], 37,5 × 29,7 cm
IEB-USP

Se as obras de Bacon, lá no primeiro andar do museu, assinalavam uma sexualidade homoerótica, dilacerada – e que, como afirmei, transcendia essa questão e se dirigia a uma reflexão sobre a própria condição humana –, na mostra da coleção de Mário não havia nada disso. De fato, o que está ali apresentado não é a coleção do crítico, mas um recorte da mesma, resgatando apenas obras em que estão representados homens. Ora, por si só, a mostra apenas desse segmento não evidencia a homossexualidade do colecionador, e, para chegar a uma conclusão mais efetiva sobre a questão, o certo teria sido cotejar quantitativamente quantas obras, na coleção, representam homens e quantas representam mulheres, seres andróginos e crianças.

Mas é claro que essa medição também não ajudaria a determinar a sexualidade de Mário. Assim, a exposição acaba valendo pelo interesse das obras exibidas e não pelo teor geral da mostra.

***

Alguns dias depois da visita às duas exposições, comecei a ler o interessantíssimo catálogo da Mário de Andrade. Duas Vidas, que contém textos importantes para ampliar nossa compreensão sobre a dimensão queer da personalidade de Mário. Assim, mais do que nunca o catálogo assumiu uma importância ímpar para assegurar o objetivo e, portanto, também o interesse da exposição. Por tais motivos comentarei dois artigos ali publicados. 

O primeiro deles leva o mesmo título da exposição, assinado por Regina T. Barros que, logo no início, atenta para o propósito principal da exibição: rever a coleção de arte de Mário de Andrade “pela perspectiva de uma sensibilidade gay”. Isto é, pelo fato de também integrar o grupo de mostras LGBTQIA+ do museu, a exposição possui propósitos próximos daquela dedicada a Bacon: adequar a pluralidade e alcance das obras ali apresentadas a um só direcionamento.

Na continuidade da leitura, me deparei com um trecho de uma carta que Mário endereçou a um amigo em que, rememorando a viagem que fez pela Amazônia – onde teve contato com a população mais pobre do lugar, inclusive fotografando-a. O trecho me lembrou a crítica de Mário sobre os homens figurados por Portinari:

Era uma verdadeira sensação de rendez-vous [encontro], o carinho meticuloso com que eu esperava todas as noitinhas o urro dos guaribas do mato. E aquelas conversas de terceira classe com seres duma rudimentaridade espantosa, seres por isso mesmo perfeitamente gratuitos, naquele cheiro veemente, contagioso, de lenha umedecida, bois e corpos seminus, você não imagina, Osório, eu era aquilo, meio vegetal meio água parada, não sei³

(A pulsão que emana desse parágrafo me parece ainda maior do que aquela presente no artigo sore Portinari, demonstrando que muitas vezes – e como o outro poeta –, Mário nunca soube direito onde colocar o desejo).

A curadora citou a carta para afirmar a presença, na subjetividade de Mário, da atração, do desejo sexual entre classes sociais (cross-class desire) – conceito que ajudaria a entender o interesse do intelectual em fotografar os homens desvalidos do Norte do País. E vai mais longe: Regina T. de Barros afirma, na sequência, que, concomitante a essa atração interclasse experimentada pelo crítico (onde, digo eu, estava inserida uma relação de poder, em que Mário era o mais forte), havia também uma identificação entre ele e seus modelos, pois o intelectual, em muitos autorretratos que produziu durante a viagem, repetiu as poses de seus retratados – mais um dado para ajudar a penetrar na dimensão complexa da subjetividade do crítico.

Mário de Andrade (São Paulo, Brasil, 1893—1945) Aposta de ridículo em Tefé [Bet of Ridiculous in Tefé], 12.6.1927 [June 12, 1927]
Impressão digital sobre papel [Digital print on paper], 6,1 × 3,7 cm
IEB-USP

Dentre uma série de outras questões, Regina atenta para algo que ajudaria a entender a razão da mostra: a relação privada que Mário estabelecia com sua coleção de desenhos⁴: “Os amadores do desenho guardam os seus em pastas. Desenhos são para a gente folhear, são para serem lidos que nem poesia”, disse o intelectual. E Regina acrescenta:

Nus masculinos, dorsos musculosos (…) negros, mulatos, indígenas, operários, intelectuais, marinheiros, garis, policiais, jogadores (…); homens no bar, homens repousando: uma seleção de desenhos colecionados por Mário tematizando figuras masculinas (…) e que, por si só pouco ou nada têm de eróticas (…)

E, em seguida, o pulo do gato:

Porém, quando entendidas como um conjunto de imagens consumidas de maneira privada, longe dos olhares da censura católica, moralista e heteronormativa, podem ser lidas sob uma perspectiva de recepção gay, mesmo que a posteriori (…)

E, então, a curadora cita o estudioso Rudi Bleys, para quem a intenção de uma determinada obra pode não ter sido homoerótica em sua concepção, mas “não é inteiramente errado reconhecer certo conteúdo ‘gay’ somente em virtude da contextualização”.⁵ Ou seja, individualmente as obras que formam a coleção de Mário de Andrade podem não ter sido concebidas com qualquer objetivo ligado à homossexualidade, mas o todo em que se inserem – a própria coleção.

Mas, a pergunta continua: o que vemos na exposição do MASP é a coleção de Mário? O crítico não teria colecionado figuras de mulher, de crianças, de seres andróginos, somente figuras de homens? 

A questão será respondida mais adiante, em O encanto que nasce das adorações serenas, de Ivo Mesquita, texto também publicado no catálogo:

A coleção de arte de Mário de Andrade não foi constituída apenas por trabalhos escolhidos por ele. Muitas peças foram presentes de amigos, artistas ou não, mas ele investiu um bom dinheiro na época, ajudou uns tantos profissionais, algo marcante em uma pessoa que sempre viveu do seu salário. Reúne artistas brasileiros e estrangeiros e não há nessa reunião nada predominante entre figuras, retratos, paisagens e naturezas-mortas (…) Tampouco pode-se dizer que contenha uma temática erótica, como estamos buscando. Há umas tantas cenas de casais (…), bordeis (…). Nada excitante. Mas há alguns nus femininos, cenas de intimidade entre mulheres, bastante sexy como os de Carlos Leão (…), Enrico Bianco (…) e Marie Laurencin (…). Coerente com a coleção de um cavalheiro elegante naqueles dias⁶.

O que o texto apresenta, é que, para seus objetivos, pouco importa quantas figuras de homens ou de mulheres Mário colecionou. O que o interessa é demonstrar como o crítico olhava para as imagens masculinas amealhadas durante anos. E, para tanto, Ivo como que incorpora o olhar de Mário com o objetivo de traduzir para o leitor a dimensão queer desse olhar. E assim, agindo como uma espécie de guia, ele nos transforma em turistas aprendizes de uma subjetividade complexa como a de Mário, não para “entendê-la”, mas apenas para frui-las.

(Desde o início Ivo está preocupado com a “experiência do olhar” e seu peso na aproximação com a arte).

O autor incorpora o olhar de Mário, é certo, mas não se submete a ele, pelo contrário. É notável como no texto existe, por assim dizer, um acolhimento crítico do que Mário percebia nos trabalhos de arte que escolheu ou que, por acaso, chegaram até ele.

Um encontro esquisito esse de Mário e Bacon no MASP. Duas exposições de natureza distintas convivendo no mesmo lugar, exibidas no mesmo período porque enfocam perspectivas diferentes do universo queer: aquela presente na obra de um dos pintores mais importantes da segunda metade do século 20, e a outra fechada na coleção de um dos intelectuais brasileiros mais profícuos da primeira metade do século passado.

Quando Mário faleceu, em 1945, Bacon, ainda novo, estava deslanchando sua carreira.

Será que o crítico teve tempo de contemplar pelo menos alguma reprodução fotográfica da produção do pintor? Será que sentiria tesão ao observar tais imagens? Impossível saber a resposta. Mas Mário, sem dúvida, entenderia que a produção daquele então jovem Bacon, embora totalmente comprometidas com as pulsões pessoais que lhe ensejaram, iam muito além delas.

P.S. Como os leitores e leitoras perceberam, além da visita às duas exposições, foi fundamental para esta resenha, a leitura dos catálogos correspondentes. Se o MASP merece todos os elogios pelas duas mostras, ele merece também pelo menos um reparo: como comentam nas redes sociais, impossível firmar-se como uma instituição diversa, inclusiva e plural, cobrando R$ 35,00 (meia entrada), R$ 179,00 pelo catálogo da mostra dedicada a Bacon e R$139,00 pelo catálogo da mostra dedicada à coleção de Mário de Andrade. Que tipo de inclusão é essa?

¹ A maior parte da exposição, com curadoria de Regina T. de Barros, apresenta obras pertencentes ao acervo do Instituto de Estudo Brasileiro da USP, instituição que guarda a coleção de arte de Mário, assim como seu arquivo e biblioteca. A mostra fica em cartaz até o próximo dia 9 de junho.

² No catálogo, atento para dois textos que tratam do assunto. O primeiro, “Mário de Andrade: duas vidas”, de Regina Teixeira de Barros, (p. 14 e segs.) trata, entre outros aspectos, desse caráter evasivo do autor frente à sua sexualidade. A autora também se refere aos preconceitos sofridos por Mário. O segundo, “Os mesmos insultos extraliterários se repetem incansavelmente: homofobia e preconceito na recepção de Mário de Andrade”, (p. 94 e segs.) de Jorge Vergara, faz um interessante estudo sobre os preconceitos sofridos por Mário de Andrade. BARROS, Regina T. de Mário de Andrade: duas vidas. São Paulo: MASP, 2024.

³ Carta a José Osório de Oliveira. São Paulo. 1 de agosto de 1934. Apud BARROS, Regina Teixeira de. Op. cit. p. 26.

⁴ Na verdade uma coleção de papeis: desenhos, mas também gravuras e fotos.

⁵ BARROS, Regina Teixeira de. Op. cit. p. 26. P. 29/30.

⁶ MESQUITA, Ivo. “O encanto que nasce das adorações serenas”. In BARROS, Regina Teixeira de. Op. cit, p. 54.

BACON E MÁRIO DE ANDRADE NO MASP: UM ENCONTRO ESQUISITO

Vista da exposição Francis Bacon: a beleza da carne
Vista da exposição [Installation view] Francis Bacon: a beleza da carne [Francis Bacon: The Beauty of Meat] Foto [Photo]: Eduardo Ortega © The Estate of Francis Bacon. All rights reserved. AUTVIS, Brasil /DACS/Artimage, London 2024

PARTE UM

Faz alguns dias visitei duas exposições no MASP: “Francis Bacon: a beleza da carne”, com curadoria de Laura Consedey, e “Mário de Andrade. Duas vidas”, que tem como curadora Regina Teixeira de Barros. 

Enquanto visitava a mostra de Bacon – a primeira e a mais completa exposição de pinturas do artista inglês em São Paulo¹,  de repente me deparei com o seguinte depoimento do pintor:

Eu gosto dos homens

Gosto de seus corpos,

Gosto de seus cérebros,

Gosto da qualidade de sua carne²

Não sei se pelo fato de estudá-lo há tempos, ou porque pretendia, na sequência, visitar a mostra dedicada a ele no subsolo do Museu³ – o fato é que a aquela declaração de Bacon me lembrou de um texto que Mário de Andrade publicou em 1940, a respeito da obra de Candido Portinari, comparando-a com a do mexicano Diego Rivera:

(…) Portinari se fez realista (…). Uma espécie de realismo moral, franco, forte, sadio, de um otimismo dominador. Nisto ele se separa radicalmente da obra amarga e rancorosa de um Rivera (…). Portinari, sob o signo dos Antigos em que se colocou, ao mesmo tempo que pode conservar uma calma, um equilíbrio, uma temática que nada têm de literários, e são exclusivamente plásticos, soube dar uma esperança ao mundo (…)⁴

A partir dessas considerações sobre o realismo de Portinari, Mário explicita o fundo de sua tremenda admiração por Portinari:

(…) o seu realismo, si é otimista, não é sonharento. É um realismo apenas muito sadio e dinâmico. Eu gosto dessas mulheres suaves e fortes, brasileiras, brasileiríssimas de tipo, boas como minha mãe. Não tenho o menor medo de gostar. Eu gosto desses machos rudes de trabalho, olhe-se a mão em afresco. Isso é mão dura mas nobre, mão beijável (…)⁵

O que me chamou a atenção nesse trecho foi que Mário, se referindo às figuras femininas como “suaves e fortes”, “boas como minha mãe”, não as tratava como “fêmeas”, aproximando-as das outras figuras: os “machos rudes”, cujas mãos tinha vontade de beijar.

Lembrar-me desse texto de Mário na exposição dedicada a Bacon, mostrou-me o que poderia estar por trás da interpretação de Mário de Andrade sobre as figuras de Portinari.

Exposição impecável, aquela dedicada a Bacon: escolha bem-sucedida das obras (grande parte proveniente de instituições internacionais de ponta); disposição correta das pinturas no espaço (sem firulas de uma certa expografia enervante que anda por aí); iluminação equilibrada. O único dado que me incomodou foi a insistência das etiquetas de identificação das obras em não deixar esquecer a orientação queer do artista.

Museu que se pretende “diverso, inclusivo e plural”, a exposição “Francis Bacon: a beleza da carne” integra a programação do MASP que, este ano, é dedicada às “História da diversidade LGBTQIA+”; assim, é compreensível que todos os artistas e as artistas que se apresentarem nas exposições no museu em 2024 serão vistos sob esse viés⁶. Mas Bacon sempre me pareceu maior do que qualquer rotulação, e as obras presentes na mostra, só comprovavam essa minha impressão.

Giulio Carlo Argan, historiador e crítico italiano, quando escreveu sobre o expressionismo abstrato norte-americano, em seu hoje clássico Arte Moderna, comentou que a diferença entre a produção norte-americana do imediato pós-guerra e a europeia do mesmo período, seria o fato de que a primeira possuía:

vitalidade intensa e tenaz do germe que se gera espontaneamente numa água pútrida, estagnada; e a água pútrida é o passado que, não se organizando racionalmente em perspectiva histórica, cai no caos do inconsciente. O passado que não se converte em história e pesa como um complexo de culpa é a contrapartida oculta do modernismo ativista da extrovertida sociedade americana, a nódoa sombria em seu otimismo.⁷

Alguém poderá estranhar trazer para esta reflexão um autor aparentemente tão datado como Argan que, morto em 1992⁸, teve o original italiano do seu livro – L´arte moderna Dall´Illuminismo ai movimenti contemporanei – publicado no longínquo 1970. Esse mesmo alguém poderia também argumentar que, hoje em dia, a figura do crítico parece a própria definição de um intelectual a se desconfiar: sujeito branco, europeu e, ao que parece, hétero. E, ainda por cima, um intelectual com forte apego humanista e universalista (e seu universo limitava-se, é claro, à Europa e aos Estados Unidos).

Mas, mesmo assim, as ideias de Argan – como as de Mário de Andrade –, também me vieram à mente enquanto visitava a exposição dedicada a Bacon. E isso por quê? Porque ali havia um descompasso entre as legendas e a realidade concreta das obras ao lado. Enquanto as primeiras faziam de tudo para direcionar a interpretação das pinturas, de forma unilateral, apenas a uma sensibilidade queer, as obras pareciam negar tal confinamento. Elas, em sua concretude e crueza refletiam plasticamente, sobre a miséria da condição humana. 

Bacon, que engendrou sua carreira na segunda metade dos anos 1940, parece ter constituído grande parte de sua obra no meio do trauma da Segunda Grande Guerra e seus desdobramentos. É certo, portanto, que sua produção não se constituía explicitando apenas sua sexualidade, mas também sua consciência – e desespero – de viver uma situação de implacável finitude, sem um devir transformador. A meu ver, grande parte das suas pinturas trata dessa miséria.

Francis Bacon (Dublin, Irlanda [Ireland], 1909-1992, Madrid, Espanha [Spain])
Two Figures with a Monkey [Duas figuras com um macaco], 1973
Óleo sobre tela [Oil on canvas], 198,5 × 148 cm,
Museo Tamayo Arte Contemporáneo, INBAL, Secretaría de Cultura
SIGROPAM: 14737
CR 73-09, Cidade do México [Mexico City]
© The Estate of Francis Bacon. All rights reserved. AUTVIS, Brasil / DACS/Artimage, London 2024

***

Lembrei-me de Argan porque, quando se referiu à obra de Jackson Pollock, ele falava de uma “poética da incomunicabilidade” para caracterizar a obra daquele artista e a de seus colegas. Para o crítico, essa produção deixava de dar sentido ao mundo (função que a arte teria sempre exercido), para deixar que o mundo lhe desse significado. Pollock e seus colegas faziam tábula rasa da história e da arte do passado, ignorando-as.

Foi visitando a mostra de Bacon que entendi que ele – artista britânico vivendo num continente que tentava se reconstruir – sentiu-se compelido, ou obrigado, a dar conta daquele mesmo passado que, segundo Argan, teria sido abandonado por seus colegas norte-americanos. Se Pollock e os artistas do seu entorno buscavam acabar ou não levar em consideração o passado e o passado da arte, Bacon lutou contra eles. Buscou exterminá-los enquanto possibilidades de ainda significarem algo naquele mundo pós-utópico, surgido depois da Segunda Grande Guerra. 

Parece ter sido pelo seguinte motivo que Bacon reviu a tradição da pintura europeia: para destruir o espaço pictórico renascentista e suas convenções, espaço esse também presente na fotografia, por ele tão utilizada. Foi por esta razão que o pintor desconstruiu a visualidade de artistas fundamentais para a arte da Europa, como Velásquez, Picasso, El Greco e outros. É o próprio Argan que, ao examinar a operação de Bacon sobre a história (a partir da história da arte) afirma:

Evidencia-se, a partir de toda a sua obra, que ele [Bacon] não acredita na eleição ou na salvação, mas na degradação e na queda da humanidade; portanto, mesmo a pintura não é um processo eletivo, e sim degradante. Como tal, é desmistificação, desvendamento brutal da verdade sob a simulação. Bacon se afasta deliberadamente das linhas de pesquisa da arte moderna, liga-se aos ápices da pintura do passado, Velázquez ou El Greco. Não os adota como modelos, mas como objetos de crítica; quer demonstrar que, tivessem esses artistas levado seus discursos pictóricos ao fundo, teriam chegado a conclusões muito diferentes.⁹

Mais adiante comenta:

O que (e não importa se conscientemente ou não) quer demonstrar Bacon? Que basta aplicar à realidade (a realidade de Velázquez) o misticismo da sublimação e do êxtase, e logo a realidade, em vez de se “espiritualizar”, corrompe-se, apodrece, torna-se asquerosa e repugnante […] Portanto, é absurdo falar em “nova figuração” para a deliberada desfiguração de Bacon, a qual invoca a figura apenas para depreciá-la, aviltá-la, desfazê-la sob os olhos espantados do espectador.¹⁰

É por essa compreensão da obra de Bacon que acabei por entendê-lo como aquele artista que, na Inglaterra, se contrapôs à obra de Pollock e seus colegas, nos Estados Unidos. Se esses últimos desprezaram e tentaram ignorar a história, a tradição e toda a racionalidade ocidental, Bacon as desconstruiu e as reapresentou ao mundo como ruínas.

A impressão de que a etiqueta “artista queer” parecia, talvez, estreita demais para Bacon, de alguma forma foi confirmada com a leitura do (excelente) catálogo da mostra. Ali, o texto da especialista Rina Arya, intitulado “Quando a obra se torna queer: ambiguidade em Bacon”¹¹ me pareceu seguir ao encontro das questões que levantei acima. Logo de início, ela propõe que, para refletir sobre a obra do pintor, seria importante uma reelaboração do termo queer:

Outra postura queer de sua obra, proposta neste ensaio, emprega um quadro conceitual mais amplo para o termo “queer”, afirmando que, em sua obra, esse elemento vai além de uma discussão sobre gênero e sexualidade. Assim, esta leitura marca um afastamento da compreensão de “queer” como uma postura diante das relações entre pessoas do mesmo sexo na vida e na obra de Bacon – incluindo as atitudes sociais pejorativas daquele momento – em direção a uma reapropriação do termo, como uma teoria que problematiza categorias heteronormativas e defende uma fluidez de pensamento quanto à maneira de ser.¹²

(Parabéns ao MASP por incluir no catálogo da mostra, um texto que questiona ou problematiza o conceito que a guia, ampliando seu escopo original).

A autora atenta para o seguinte: em 2016, com a publicação do segundo catálogo raisonné do artista, surgiu uma série de obras contendo figuras andróginas e femininas. Este dado permitiu a Arya escrever:

A descoberta dessas pinturas que incluem figuras de identidade de gênero mais ambígua, bem como o grande número de obras que incluem nus femininos (…) excedendo os acasalamentos masculinos, desvia o foco exclusivo em Bacon como um pintor de nus masculinos. Seu olhar homoerótico e sua abordagem sadomasoquista, tanto na técnica quanto no conteúdo, são certamente uma vertente central de suas obras. Dito isso, essa leitura do queer em seu trabalho não é suficientemente extensa. Em Bacon, o queer vai além da problematização da identidade de gênero e propõe o desmantelamento da certeza ontológica.

Francis Bacon (Dublin, Irlanda [Ireland], 1909-1992, Madrid, Espanha [Spain])
Man at a Washbasin [Homem em um lavatório], c.1954
Óleo sobre tela [Oil paint on canvas], 170.8 × 135 cm
Private Collection
CR 54-02
© The Estate of Francis Bacon. All rights reserved. AUTVIS, Brasil / DACS/Artimage, London 2024. Photo: Prudence Cuming Associates Ltd

O que podemos dizer com algum grau de certeza é que Bacon articula a condição humana na pintura, o que para ele significava a representação da força vital da carne, que não poderia ser preservada nem contida e que ameaçava desestabilizar qualquer tentativa de fazê-lo.¹³

Arya, mesmo reafirmando que o queer condiciona muito da produção de Bacon, atesta que suas figuras furtivas, solitárias e anônimas são como símbolos “do drama existencial humano”. E complementa:

Uma leitura contemporânea do queer baseia-se nessa leitura existencial, desmantelando categorias que antes demarcavam identidades socioculturais, inclusive o gênero, e, ainda mais fundamentalmente, aquilo que constitui a natureza humana. A questão ontológica do animal como parte do humano é mais fundamental para o significado do ser do que as concepções de gênero ou sexualidade. E isso permite a fluidez das posições identitárias e a complexa experiência do ser que é precisamente no zeitgeist atual. É por isso que Bacon perdura, ao contrário de tantos outros pintores do seu tempo: porque antecipa preocupações persistentes¹⁴

Como o leitor e a leitora podem imaginar, quando desci ao subsolo do museu para visitar a mostra “Mário de Andrade. Duas vidas”, com curadoria de Regina Teixeira de Barros, eu ainda não havia lido o texto de Rina Arya. Portanto, ainda estava na minha cabeça a sensação do quanto o conceito de queer me parecia estreito para definir toda a obra de Francis Bacon. Foi com essa ideia que desci para visitar a mostra da coleção que pertenceu a Mário de Andrade.

¹ Em 2014 o Paço das Artes, então no campus da USP, apresentou exposição de desenhos do artista.

² Entrevista concedida a Melvyn Bragg em The South Bank Show, transmitido pela emissora britânica ITV, em junho de 1985; Apud: COSENDEY, Laura. “Francis Bacon: a beleza da carne”, In PEDROSA, Adriano/COSENDEY, Laura (coord. Ed.) Francis Bacon: a beleza da carne. São Paulo: Museu de Arte de São Paulo, 2024, p. 20.

³ “Mário de Andrade. Duas vidas”, sobre a qual falarei na sequência.

ANDRADE, Mário de. “Portinari”. IN Revista Acadêmica. Rio de Janeiro, n. 48 Fev1940. Apud CHIARELLI, Tadeu. Pintura não é só beleza. A crítica de arte de Mário de Andrade. Florianópolis: Letras Contemporâneas – Oficina Editorial Ltda. 2007, p.132.

Idem.

A mostra fica em cartaz no museu até o dia 28 de julho deste ano.

ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.p.527. Em tempo, quando o crítico se refere à arte norte-americana do pós-Guerra parece ter como modelo maior daquele fenômeno, sobretudo a pintura de Jackson Pollock.

Ano da publicação de seu livro no Brasil.

⁹ Idem, p. 488/489.

¹⁰ Idem, p. 489.

¹¹ ARYA, Rina. “Quando a obra se torna queer: ambuiguidade em Bacon”, In PEDROSA, Adriano/COSENDEY, Laura (coord. Ed.) Francis Bacon: a beleza da carne. São Paulo op. cit. p. 40 e segs. O catálogo traz outros textos igualmente de interesse para a compreensão da obra de Francis Bacon. Aqui me deterei apenas ao ensaio de Rina Arya. 

¹² Idem, p. 41.

¹³ Idem, p.56.

¹⁴ Idem, p. 66.

A 60ª Bienal de Veneza e outras histórias

Adriano Pedrosa, curador da 60ª Bienal de Veneza. Foto: Mauricio Jorge
Adriano Pedrosa, curador da 60ª Bienal de Veneza. Foto: Mauricio Jorge
Adriano Pedrosa, atual curador do Masp
Adriano Pedrosa, atual curador do Masp. Foto: Mauricio Jorge

O curador geral da 60ª Bienal de Veneza (2024), Adriano Pedrosa, é o primeiro latino-americano a assumir tal posto, impulsionado por uma trajetória de mudanças radicais. Quando jovem cursa direito e economia, mas logo se vê interessado pela arte e, a partir daí, inicia sua história de artista, crítico, curador e diretor de museu. Tudo começa quando seu namorado faz mestrado em Londres e ele passa uns bons meses por lá. “Todos os dias eu ia a National Gallery onde acompanhava os tours de visitas guiadas de uma, ou duas horas cada”. A singular experiência foi o gatilho para ele conhecer obras primas, ouvir comentários críticos e pensar arte. Com o tempo essa intimidade com a arte transforma-se em paixão. Como não havia tempo a perder, ele compra livros e revistas de arte escolhidos por ele mesmo, e traça um rumo para sua carreira.  

De volta ao Brasil, no final da década de 80, faz cursos na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio, estuda pintura com Daniel Senise, Milton Machado, Beatriz Milhazes, Charles Watson e história da arte com Viviane Matesco. Em 1992 ele vai para os Estados Unidos, faz mestrado em arte no California Institute of the Arts, depois de cinco anos volta ao Brasil e expõe no projeto Macunaíma da Funarte e, no Centro Cultural São Paulo, também no início dos anos 1990, onde mostra um trabalho de perfil quase etnográfico que trazia a memória do corpo queer, feito com toalhas roubadas em saunas. “Aquelas toalhas brancas, dobradas sobre uma prateleira, e que o título da obra indicava de onde elas vinham, me lembro que uma delas era da For Friends, uma famosa sauna em São Paulo que existe até hoje.” 

São desse período desenhos experimentais, um deles integra o acervo do MAM/SP, e que traz o título Desenho feito com a mão esquerda por um destro, em que ele escrevia a palavra “viado” ou “bicha” repetidas vezes.  Adriano também expõe duas vezes na Galeria Luisa Strina, em 1996 e 1999, e dois anos antes, é convidado para a mostra Espelhos e Sombras, curada por Aracy Amaral no MAM/SP.

Com o mestrado, fica mais claro para ele que seu interesse era mesmo por textos e curadorias. Em 1997, quando ele ainda estava nos Estados Unidos é chamado por Paulo Herkenhoff, curador da 24ª Bienal de São Paulo, para ser o curador-adjunto. Então, ele deixa Los Angeles, muda-se para a capital paulista e mais tarde assume a cocuradoria da 27ª Bienal de São Paulo, 2006, com a crítica Lisette Lagnado. Cinco anos depois torna-se o curador da Bienal de Istambul, quando pesquisa o mundo árabe. Como ele comenta, passa a circular internacionalmente, escrevendo para revistas como Frieze e Artforum. Em meio a tantos convites, em 2005 assume a curadoria da mostra Insite, em San Diego (EUA) e no Centro Cultural de Tijuana (Cecut,  México). Em 2014 vem o convite que o animou de fato, ser o diretor artístico do Museu de Arte de São Paulo (Masp).

Pedrosa assimila o sistema de arte com um sentido criativo, às vezes usando o “enquadramento” de outras exposições, como ele diz.  Agora, na 60ª Bienal de Veneza ele escolhe o tema Stranieri Ovunque – Foreigners Everywhere (estrangeiros por toda parte), que faz alusão ao controvertido Panorama da Arte Brasileira (MAM/SP) de 2009. O evento, curado por ele, mostrava a influência da produção brasileira em trabalhos de artistas estrangeiros. O título quase impronunciável, Mamõyguara opá mamõ pupé, vem do tupi antigo e quer dizer, justamente, estrangeiros por toda a parte, e que agora reaparece na Bienal de Veneza. O tema foi tomado emprestado da obra do coletivo Claire Fontaine, que consiste em neons que exibem o mesmo texto, em diferentes línguas.

Estamos renomeando os dois edifícios que agora constituem o Masp. O novo se chamará Pietro Maria Bardi e tem inauguração prevista para o final de 2024 e está conectado ao edifício atual, o Lina Bo Bardi, eles estrarão ligados por um túnel subterrâneo”

Uma citação de Gramsci adverte: “O velho mundo está morrendo, um novo demora a nascer, e neste claro escuro surgem os monstros”. Pergunto a Pedrosa se as duas guerras midiáticas e genocidas atuais, que estarrecem o planeta, serão refletidas nessa edição. E, também o que se pode esperar dos artistas participantes para entendermos melhor o momento em que vivemos.  A resposta veio instantânea: “Ainda não estou autorizado a falar sobre o que há nesta Bienal”. No entanto, ele pode comentar o que estava circulando na internet sobre a presença de palestinos no evento. 

“A Bienal de Veneza é dividida em três grandes segmentos: o primeiro é o Pavilhão Central onde ocorre a International Exhibition, considerada a mostra mais importante, da qual sou o curador. O segundo diz respeito aos países que expõem nos pavilhões nacionais, cujas mostras são organizadas pelos próprios países. O terceiro são os eventos colaterais, que acontecem por toda Veneza, e eu os seleciono a partir de inscrições de todo o mundo.” 

Pedrosa comenta que os interessados se inscrevem neste segmento para obter o selo de participação dentro da Bienal. Das muitas propostas recebidas, ele escolheu 30. Um dos projetos inscritos era de um museu da Palestina nos Estados Unidos, e que não foi selecionado. Porém, havia uma outra obra proposta, também da Palestina, que foi aceita. “O projeto recusado veio à tona na internet falando que tinha havido um boicote aos artistas palestinos, mas eles não sabiam que o outro tinha sido selecionado. Em geral a lista dos eventos é divulgada um mês antes da Bienal abrir, seria em março, mas desta vez foi publicada em outubro. Há ali um projeto chamado Anchor in the Lanscape, organizado por Artists and Allies of Hebron. Hebron é uma cidade na Cisjordânia, na Palestina”. 

A edição deste ano está dividida em dois grandes núcleos, o Nucleo Storico, que evoca em seu título o Núcleo Histórico da 24ª Bienal de São Paulo, e o Nucleo Contemporaneo. No primeiro, Pedrosa trabalha com Sofia Gotti, curadora italiana que vive no Reino Unidos e na Itália. No segundo núcleo, ele conta com Amanda Carneiro, curadora assistente no Masp. “Trabalho também com uma designer brasileira, a Paula Tinoco, do estúdio Campo, e a arquiteta Juliana Ziebell, ambas fizeram muitos projetos no Masp”. De Nova York estão na equipe Karen Marta e o Todd Bradway, “que me ajudam no editorial e que também atuaram nos livros do MASP. Há ainda muitos escritores do Sul Global, escrevendo textos sobre cada um dos artistas da mostra.” 

Lina Bo Bardi
Edifício atual à esquerda Lina Bo Bardi, e à direita, fachada do edifício Pietro Maria Bardi concluído. Metro Arquitetos. Foto: Divulgação

Os dois núcleos, o histórico e o contemporâneo, têm como foco quatro sujeitos/temas. O primeiro é o do estrangeiro, exilado, refugiado, imigrante, diaspórico. “São artistas que migraram, viajaram, e que moraram aqui e lá. Sobretudo, artistas o Sul Global que viajaram pelo Norte e vice-versa. Nesse sentido, não são necessariamente artistas que lidam com questões da imigração e da diáspora como tema, pois às vezes têm até um trabalho mais formal.” 

O segundo sujeitos/temas desdobra a ideia do estranho e do estrangeiro para o queer. “Isso vem da minha própria vivência. Eu mesmo fui um estrangeiro em vários momentos da minha vida, morando fora e viajando, eu me identifico como queer. Assim, haverá uma presença grande de artistas queers, trans e não binários na exposição.” O terceiro sujeitos/temas é do artista outsider, aquele artista que opera em circuitos e contextos diferentes do moderno, do contemporâneo e da academia. Pedrosa entende que a presença do chamado artista popular é muito importante, tanto que que ele aparece na programação do Masp, apesar de ser, muitas vezes, marginalizado no circuito de arte. “É interessante ver como vários artistas, ditos populares já participaram da Bienal de Veneza nos anos 1960, como José Antônio da Silva, Maria Auxiliadora, Heitor dos Prazeres e a Madalena dos Santos Reinbolt, sempre no pavilhão brasileiro.”

O último temas/sujeiros é o indígena, que muitas vezes é tratado como estrangeiro no seu próprio território. “Os quatro segmentos do núcleo contemporâneo refletem nosso trabalho no Masp. Neste final de 2023, estamos expondo as Histórias Indígenas e, no ano que vem, vamos trabalhar as Histórias da Diversidade LGBTQIA+ ou, em inglês, histórias queers”. Além da Bienal de Veneza, o curador também está envolvido com as mudanças do Masp, onde ele é o diretor artístico desde 2014. “Estamos renomeando os dois edifícios que agora constituem o Masp. O novo se chamará Pietro Maria Bardi e tem inauguração prevista para o final de 2024 e está conectado ao edifício atual, o Lina Bo Bardi, eles estrarão ligados por um túnel subterrâneo”. A maratona de eventos, que envolve Adriano Pedrosa pelo mundo, atesta que ele não para. Quase às vésperas da inauguração da 60ª Bienal de Veneza, a revista inglesa Art Review  o coloca na lista das 100 pessoas mais influentes do mundo. ✱

Por que a guerra?

Renato Guttuso, “Deus conosco”
Renato Guttuso, “Deus conosco”: Vinte e quatro pranchas pb e coloridas de Renato Guttuso, 1945, offset em cores sobre papel, 24,8 cm x 34,2 cm x 0,8 cm, Doação Ana Gonçalves Magalhães,

Passados mais de 100 anos, a correspondência entre Einstein e Freud continua mais atual que nunca. E, na mesma dimensão universal e atemporal deles, nós nos questionamos hoje os limites entre Direito e violência, entre o terrorismo e o obscurantismo religioso, seja nos ataques de Israel a Gaza, no recrudescimento do neofascismo e da extrema direita na Europa, nos EUA e na América Latina.

Escreve Einstein:
Potsdam, 30 de julho de 1932
Prezado Professor Freud
A proposta da Liga das Nações e de seu Instituto Internacional para a Cooperação Intelectual, em Paris, de que eu convidasse uma pessoa, de minha própria escolha, para um franco intercâmbio de pontos de vista sobre algum problema que eu poderia escolher, oferece-me excelente oportunidade de conferenciar com o senhor a respeito de uma questão que, da maneira como as coisas estão, parece ser o mais urgente de todos os problemas que a civilização tem de enfrentar.

Este é o problema: existe alguma forma de livrar a humanidade da ameaça de guerra? É do conhecimento geral que, com o progresso da ciência de nossos dias, esse tema adquiriu significado de assunto de vida ou morte para a civilização, tal como a conhecemos; não obstante, apesar de todo o empenho demonstrado, todas as tentativas de solucioná-lo terminaram em lamentável fracasso.

… Quanto a mim, o objetivo habitual de meu pensamento não me permite uma compreensão interna das obscuras regiões da vontade e do sentimento humano. Assim, na indagação ora proposta, posso fazer pouco mais do que procurar esclarecer a questão em referência e, preparando o terreno das soluções mais óbvias, possibilitar que o senhor proporcione a elucidação do problema mediante o auxílio do seu profundo conhecimento da vida instintiva do homem.

… Como pessoa isenta de preconceitos nacionalistas, pessoalmente vejo uma forma simples de abordar o aspecto superficial (isto é, administrativo) do problema: a instituição, por meio de acordo internacional, de um organismo legislativo e judiciário para arbitrar todo conflito que surja entre nações. Cada nação submeter-se-ia à obediência às ordens emanadas desse organismo legislativo, a recorrer às suas decisões em todos os litígios, a aceitar irrestritamente suas decisões e a pôr em prática todas as medidas que o tribunal considerasse necessárias para a execução de seus decretos.

Já de início, todavia, defronto-me com uma dificuldade: um tribunal é uma instituição humana que, em relação ao poder de que dispõe, é inadequada para fazer cumprir seus veredictos, está muito sujeito a ver suas decisões anuladas por pressões extrajudiciais. Este é um fato com que temos de contar; a lei e o poder inevitavelmente andam de mãos dadas, e as decisões jurídicas se aproximam mais da justiça ideal exigida pela comunidade (em cujo nome e em cujos interesses esses veredictos são pronunciados), na medida em que a comunidade tem efetivamente o poder de impor o respeito ao seu ideal jurídico. “…
…” O insucesso, malgrado sua evidente sinceridade, de todos os esforços, durante a última década, no sentido de alcançar essa meta, não deixa lugar à dúvida de que estão em jogo fatores psicológicos de peso que paralisam tais esforços. Alguns desses fatores são mais fáceis de detectar. O intenso desejo de poder, que caracteriza a classe governante em cada nação, é hostil a qualquer limitação de sua soberania nacional. Essa fome de poder político está acostumada a medrar nas atividades, de um outro grupo, cujas aspirações são de caráter econômico, puramente mercenário. Refiro-me especialmente a esse grupo reduzido, porém decidido, existente em cada nação, composto de indivíduos que, indiferentes às condições e aos controles sociais, consideram a guerra, a fabricação e venda de armas simplesmente como uma oportunidade de expandir seus interesses pessoais e ampliar a sua autoridade pessoal.

O reconhecimento desse fato, no entanto, é simplesmente o primeiro passo para uma avaliação da situação atual. Logo surge uma outra questão: como é possível a essa pequena súcia dobrar a vontade da maioria, que se resigna a perder e a sofrer com uma situação de guerra, a serviço da ambição de poucos? (Ao falar em maioria, não excluo os soldados, de todas as graduações, que escolheram a guerra como profissão, na crença de que estejam servindo à defesa dos mais altos interesses de sua raça e de que o ataque seja, muitas vezes, o melhor meio de defesa).

Parece que uma resposta óbvia a essa pergunta seria que a minoria, a classe dominante atual, possui as escolas, a imprensa e, geralmente, também a Igreja, sob seu poderio. Isto possibilita organizar e dominar as emoções das massas e torná- las instrumento desta minoria.

Ainda assim, nem sequer essa resposta proporciona uma solução completa. Daí surge uma nova questão: como esses mecanismos conseguem tão bem despertar nos homens um entusiasmo extremado, a ponto de estes sacrificarem suas vidas? Pode haver apenas uma resposta. É porque o homem encerra dentro de si um desejo de ódio e destruição.
Em tempos normais, essa paixão existe em estado latente, emerge apenas em circunstâncias anormais: é, contudo, relativamente fácil despertá- la e elevá-la à potência de psicose coletiva. Talvez aí esteja o ponto crucial de todo o complexo de fatores que estamos considerando, um enigma que só um especialista na ciência dos instintos humanos pode resolver.

Renato Guttuso, “Deus conosco”
Renato Guttuso, “Deus conosco”: Vinte e quatro pranchas pb e coloridas de Renato Guttuso, 1945, offset em cores sobre papel, 24,8 cm x 34,2 cm x 0,8 cm, Doação Ana Gonçalves Magalhães,

Com isso, chegamos à nossa última questão. É possível controlar a evolução da mente do homem, de modo a torná-lo à prova das psicoses do ódio e da destrutividade? Aqui não me estou referindo tão-somente às chamadas massas incultas. A experiência prova que é, antes de todas, a chamada Intelligentzia a mais inclinada a ceder a essas desastrosas sugestões coletivas, de vez que o intelectual não tem contato direto com o lado rude da vida, mas a encontra em sua forma sintética mais fácil na página impressa.

Para concluir: até aqui somente falei das guerras entre nações, aquelas que se conhecem como conflitos internacionais. Estou, porém, bem consciente de que o instinto agressivo opera sob outras formas e em outras circunstâncias. (Penso nas guerras civis, por exemplo, devidas à intolerância religiosa, em tempos precedentes, hoje em dia, contudo, devidas a fatores sociais; ademais, também nas perseguições a minorias raciais.)

Foi deliberada a minha insistência naquilo que é a mais típica, mais cruel e extravagante forma de conflito entre os homens, pois aqui temos a melhor ocasião de descobrir maneiras e meios de tornar impossíveis qualquer conflito armado.

Sei que nos escritos do senhor podemos encontrar respostas, explícitas ou implícitas, a todos os aspectos desse problema urgente e obsessivo. Mas seria da maior utilidade para nós todos que o senhor apresentasse o problema da paz mundial sob o enfoque das suas mais recentes descobertas, pois uma tal apresentação bem poderia demarcar o caminho para novos e frutíferos métodos de ação.

Muito cordialmente,
Albert EINSTEIN

 

Em resposta, Freud escreve:
Viena, setembro de 1932
Prezado Professor Einstein,

Quando soube que o senhor pretendia convidar-me para um intercâmbio de pontos de vista sobre um assunto que lhe interessava e que parecia merecer o interesse de outros além do senhor, aceitei prontamente. Esperava que o senhor escolhesse um problema situado nas fronteiras daquilo que é atualmente cognoscível, um problema em relação ao qual cada um de nós, físico e psicólogo, pudesse ter o seu ângulo de abordagem especial, e no qual pudéssemos nos encontrar, sobre o mesmo terreno, embora partindo de direções diferentes.

O senhor apanhou-me de surpresa, no entanto, ao perguntar o que pode ser feito para proteger a humanidade da maldição da guerra. Inicialmente me assustei com o pensamento de minha – quase escrevi ‘nossa’ – incapacidade de lidar com o que parecia ser um problema prático, um assunto para Estadistas. Depois, no entanto, percebi que o senhor havia proposto a questão, não na condição de cientista da natureza e físico, mas como filantropo: o senhor estava seguindo a sugestão da Liga das Nações, assim como Fridtjof Nansen, o explorador polar, assumiu a tarefa de auxiliar as vítimas famintas e sem teto da guerra mundial.

Além do mais, considerei que não me pediam para propor medidas práticas, mas sim apenas que eu delimitasse o problema para evitar a guerra tal como ele se configura aos olhos de um cientista da psicologia. Também nesse ponto, o senhor disse quase tudo o que há a dizer sobre o assunto. Embora o senhor se tenha antecipado a mim, ficarei satisfeito em seguir no seu rastro e me contentarei com confirmar tudo o que o senhor disse, ampliando-o com o melhor do meu conhecimento ou das minhas conjeturas.

O senhor começou com a relação entre o direito e o poder. Não se pode duvidar de que seja este o ponto de partida correto de nossa investigação. Mas, permita-me substituir a palavra ‘poder’ pela palavra mais nua e crua de ‘violência’?

Atualmente, direito e violência se nos afiguram como antíteses. No entanto, é fácil mostrar que uma se desenvolveu da outra e, se nos reportarmos às origens primeiras e examinarmos como essas coisas se passaram, resolve-se o problema facilmente. Perdoe-me se, nessas considerações que se seguem, eu trilhar chão familiar e comumente aceito, como se isto fosse novidade. O fio de minhas argumentações o exige.

É, pois, um princípio geral que os conflitos de interesses entre os homens são resolvidos pelo uso da violência. É isto o que se passa em todo o reino animal, do qual o homem não tem motivo por que se excluir. No caso do homem, sem dúvida ocorrem também conflitos de opinião que podem chegar a atingir a mais raras nuanças da abstração e que parecem exigir alguma outra técnica para sua solução. Esta é, contudo, uma complicação a mais.
No início, numa pequena horda humana, era a superioridade da força muscular que decidia quem tinha a posse das coisas ou quem fazia prevalecer sua vontade. A força muscular logo foi suplementada e substituída pelo uso de instrumentos: o vencedor era aquele que tinha as melhores armas ou aquele que tinha a maior habilidade no seu manejo.
A partir do momento em que as armas foram introduzidas, a superioridade intelectual já começou a substituir a força muscular bruta; mas o objetivo final da luta permanecia o mesmo “uma ou outra facção tinha de ser compelida a abandonar suas pretensões ou suas objeções, por causa do dano que lhe havia sido infligido pelo desmantelamento de sua força.

Conseguia-se esse objetivo de modo mais completo se a violência do vencedor eliminasse para sempre o adversário, ou seja, se o matasse. Isto tinha duas vantagens: o vencido não podia restabelecer sua oposição e o seu destino dissuadiria outros de seguirem seu exemplo. Ademais disso, matar um inimigo satisfazia uma inclinação do instinto, que mencionarei posteriormente.

À intenção de matar opor-se-ia a reflexão de que o inimigo podia ser utilizado na realização de serviços úteis, se fosse deixado vivo e num estado de intimidação. Nesse caso, a violência do vencedor contentava-se com subjugar, em vez de matar, o vencido. Foi este o início da idéia de poupar a vida de um inimigo, mas a partir daí o vencedor teve de contar com a oculta sede de vingança do adversário vencido e sacrificou uma parte de sua própria segurança.

Esta foi, por conseguinte, a situação inicial dos fatos: a dominação por parte de qualquer um que tivesse poder maior que a dominação pela violência bruta ou pela violência apoiada no intelecto. Como sabemos, esse regime foi modificado no transcurso da evolução. Havia um caminho que se estendia da violência ao direito ou à lei.

Que caminho era este? Penso ter sido apenas um: o caminho que levava ao reconhecimento do fato de que à força superior de um único indivíduo, podia-se contrapor a união de diversos indivíduos fracos: a união faz a força. A violência podia ser derrotada pela união, e o poder daqueles que se uniam representa, agora, a lei, em contraposição à violência do indivíduo só. Vemos, assim, que a lei é a força de uma comunidade.
Todavia, ela é ainda violência, pronta a se voltar contra qualquer indivíduo que se lhe oponha. Ela funciona pelos mesmos métodos e persegue os mesmos objetivos. A única diferença real reside no fato de que aquilo que prevalece não é mais a violência de um indivíduo, mas a violência da comunidade.

A fim de que a transição da violência a esse novo direito ou justiça pudesse ser efetuada, contudo, uma condição psicológica teve de ser preenchida. A união da maioria devia ser estável e duradoura. Se apenas fosse posta em prática com o propósito de combater um indivíduo isolado e dominante, e fosse dissolvida depois da derrota deste, nada se teria realizado.

A pessoa, a seguir, que se julgasse superior em força, haveria de mais uma vez tentar estabelecer o domínio através da violência, e o jogo se repetiria ad infinitum. A comunidade deve manter-se permanentemente, deve organizar-se, deve estabelecer regulamentos para antecipar-se ao risco de rebelião e deve instituir autoridades para fazer com que esses regulamentos, que as leis sejam respeitadas, e para superintender a execução dos atos legais de violência.

O reconhecimento de uma entidade de interesses como estes levou ao surgimento de vínculos emocionais entre os membros de um grupo de pessoas unidas por sentimentos comuns, que são a verdadeira fonte de sua força. Acredito que, com isso, já tenhamos todos os elementos essenciais: a violência suplantada pela transferência do poder a uma unidade maior, que se mantém unida por laços emocionais entre os seus membros. O que resta dizer não é senão uma ampliação e uma repetição desse fato.

A situação é simples enquanto a comunidade consiste em apenas poucos indivíduos igualmente fortes. As leis de uma tal associação irão determinar o grau em que, se a segurança da vida comunal deve ser garantida, cada indivíduo deve abrir mão de sua liberdade pessoal de utilizar a sua força para fins violentos.

Um estado de equilíbrio dessa espécie, porém, só é concebível teoricamente. Na realidade, a situação complica-se pelo fato de que, desde os seus primórdios, a comunidade abrange elementos de força desigual homens e mulheres, pais e filhos, e logo, como conseqüência da guerra e da conquista, também passa a incluir vencedores e vencidos, que se transformam em senhores e escravos.

A justiça da comunidade então passa a exprimir graus desiguais de poder nela vigentes. As leis são feitas por e para os membros governantes e deixa pouco espaço para os direitos daqueles que se encontram em estado de sujeição.
Dessa época em diante, existem na comunidade dois fatores em atividade que são fonte de inquietação relativamente a assuntos da lei, mas que tendem, ao mesmo tempo, a um maior crescimento da lei.

Nazismo
Emiliano Di Cavalcanti, Nazismo, plutocracia, opressão , 1944, nanquim sobre papel,
34,4 cm x 24,8 cm, Doação Museu de Arte Moderna de São Paulo.

Primeiramente, são feitas, por certos detentores do poder, tentativas, no sentido de se colocarem acima das proibições que se aplicam a
Todos, isto é, procuram escapar do domínio pela lei para o domínio pela violência.
Em segundo lugar, os membros oprimidos do grupo fazem constantes esforços para obter mais poder e ver reconhecidas na lei algumas modificações efetuadas nesse sentido, isto é, fazem pressão para passar da justiça desigual para a justiça igual para todos. Essa segunda tendência torna-se especialmente importante se uma mudança real de poder ocorre dentro da comunidade, como pode ocorrer em conseqüência de diversos fatores históricos. Nesse caso, o direito pode gradualmente adaptar-se à nova distribuição do poder; ou, como sucede com maior freqüência, a classe dominante se recusa a admitir a mudança e a rebelião e a guerra civil se seguem, com uma suspensão temporária da lei e com novas tentativas de solução mediante a violência, terminando pelo estabelecimento de um novo sistema de leis.

Ainda há uma terceira fonte da qual podem surgir modificações da lei, e que invariavelmente se exprime por meios pacíficos: consiste na transformação cultural dos membros da comunidade. Isto, porém, faz parte propriamente de uma outra correlação e deve ser considerado posteriormente.

Vemos, pois, que a solução violenta de conflitos de interesses não é evitada sequer dentro de uma comunidade. As necessidades cotidianas e os interesses comuns, inevitáveis ali onde pessoas vivem juntas num lugar, tendem, contudo, a proporcionar a essas lutas uma conclusão rápida, e, sob tais condições, existe uma crescente probabilidade de se encontrar uma solução pacífica. Outrossim, um rápido olhar pela história da raça humana revela uma série infindável de conflitos entre uma comunidade e outra, ou diversas outras, entre unidades maiores e menores, entre cidades, províncias, raças, nações, impérios, que quase sempre se formaram pela força das armas. Guerras dessa espécie terminam ou pelo saque ou pelo completo aniquilamento e conquista de uma das partes.

É impossível estabelecer qualquer julgamento geral das guerras de conquista. Algumas, como as empreendidas pelos mongóis e pelos turcos, não trouxeram senão malefícios. Outras, pelo contrário, contribuíram para a transformação da violência em lei, ao estabelecerem unidades maiores, dentre as quais o uso da violência se tornou impossível e nas quais um novo sistema de leis solucionou os conflitos. Desse modo, as conquistas dos romanos deram aos países próximos ao Mediterrâneo a inestimável pax romana, e a ambição dos reis franceses de ampliar os seus domínios criou uma França pacificamente unida e florescente.

Por paradoxal que possa parecer, deve- se admitir que a guerra poderia ser um meio nada inadequado de estabelecer o reino ansiosamente desejado de paz perene, pois está em condições de criar as grandes unidades dentro das quais um poderoso governo central torna impossíveis outras guerras. Contudo, ela falha quanto a esse propósito, pois os resultados da conquista são geralmente de curta duração: as unidades recentemente criadas esfacelam-se novamente, no mais das vezes devido a uma falta de coesão entre as partes que foram unidas pela violência.

Ademais, até hoje as unificações criadas pela conquista, embora de extensão considerável, foram apenas parciais, e os conflitos entre elas ensejaram, mais do que nunca, soluções violentas. O resultado de todos esses esforços bélicos consistiu, assim, apenas em a raça humana haver trocado as numerosas e realmente infindáveis guerras menores por guerras em grande escala, que são raras, contudo muito mais destrutivas. Se nos voltamos para os nossos próprios tempos, chegamos a mesma conclusão a que o senhor chegou por um caminho mais curto. As guerras somente serão evitadas com certeza, se a humanidade se unir para estabelecer uma autoridade central a que será conferido o direito de arbitrar todos os conflitos de interesses. Nisto estão envolvidos claramente dois requisitos distintos: criar uma instância suprema e dotá-la do necessário poder. Uma sem a outra seria inútil. A Liga das Nações é destinada a ser uma instância dessa espécie, mas a segunda condição não foi preenchida: a Liga das Nações não possui poder próprio, e só pode adquiri-lo se os membros da nova união, os diferentes Estados, se dispuserem a cedê-lo. E, no momento, parecem escassas as perspectivas nesse sentido.

A instituição da Liga das Nações seria totalmente ininteligível se fosse ignorasse o fato de que houve uma tentativa corajosa, como raramente (talvez jamais em tal escala) se fez antes. Ela é uma tentativa de fundamentar a autoridade sobre um apelo a determinadas atitudes idealistas da mente (isto é, a influência coercitiva), que de outro modo se baseia na posse da força. Já vimos que uma comunidade se mantém unida por duas coisas: a força coercitiva da violência e os vínculos emocionais identificações é o nome técnico) entre seus membros. Se estiver ausente um dos fatores, é possível que a comunidade se mantenha ainda pelo outro fator.

As idéias a que se faz o apelo só podem, naturalmente, ter importância se exprimirem afinidades importantes entre os membros, e pode- se perguntar quanta força essas idéias podem exercer. A história nos ensina que, em certa medida, elas foram eficazes. Por exemplo, a idéia do pan- helenismo, o sentido de ser superior aos bárbaros de além-fronteiras, ideia que foi expressa com tanto vigor no conselho anfictiônico, nos oráculos e nos jogos, foi forte a ponto de mitigar os costumes guerreiros entre os gregos, embora, é claro, não suficientemente forte para evitar dissensões bélicas entre as diferentes partes da nação grega, ou mesmo para impedir uma cidade ou confederação de cidades de se aliar com o inimigo persa, a fim de obter vantagem contra algum rival.

A identidade de sentimentos entre os cristãos, embora fosse poderosa, não conseguiu, à época do Renascimento, impedir os Estados Cristãos, tanto os grandes como os pequenos, de buscar o auxílio do sultão em suas guerras de uns contra os outros. E atualmente não existe idéia alguma que, espera-se, venha a exercer uma autoridade unificadora dessa espécie. Na realidade, é por demais evidente que os ideais nacionais, pelos quais as nações se regem nos dias de hoje, atuam em sentido oposto.

Algumas pessoas tendem a profetizar que não será possível pôr um fim à guerra, enquanto a forma comunista de pensar não tenha encontrado aceitação universal. Mas esse objetivo, em todo caso, está muito remoto, atualmente, e talvez só pudesse ser alcançado após as mais terríveis guerras civis. Assim sendo, presentemente, parece estar condenada ao fracasso a tentativa de substituir a força real pela força das idéias. Estaremos fazendo um cálculo errado se desprezarmos o fato de que a lei, originalmente, era força bruta e que, mesmo hoje, não pode prescindir do apoio da violência.

Dança do Capital com a Morte
Emiliano Di Cavalcanti, Dança do Capital com a Morte (Charge) , 1950, nanquim sobre papel, 34 cm x 25,2 cm. Doação Museu de Arte Moderna de São Paulo.

Passo agora a acrescentar algumas observações aos seus comentários. O senhor expressa surpresa ante o fato de ser tão fácil inflamar nos homens o entusiasmo pela guerra, e insere a suspeita, de que neles exige em atividade alguma coisa, um instinto de ódio e de destruição, que coopera com os esforços dos mercadores da guerra. Também nisto apenas posso exprimir meu inteiro acordo. Acreditamos na existência de um instinto dessa natureza, e durante os últimos anos temo-nos ocupado realmente em estudar suas manifestações.

Permita-me que me sirva dessa oportunidade para apresentar-lhe uma parte da teoria dos instintos que, depois de muitas tentativas hesitantes e muitas vacilações de opinião, foi formulada pelos que trabalham na área da psicanálise?

De acordo com nossa hipótese, os instintos humanos são de apenas dois tipos: aqueles que tendem a preservar e a unir o que denominamos ‘eróticos’, exatamente no mesmo sentido em que Platão usa a palavra ‘Eros’ em seu Symposium, ou ‘sexuais’, com uma deliberada ampliação da concepção popular de ‘sexualidade’; e aqueles que tendem a destruir e matar, os quais agrupamos como instinto agressivo ou destrutivo.

Como o senhor vê, isto não é senão uma formulação teórica da universalmente conhecida oposição entre amor e ódio, que talvez possa ter alguma relação básica com a polaridade entre atração e repulsão, que desempenha um papel na sua área de conhecimentos. Entretanto, não devemos ser demasiado apressados em introduzir juízos éticos de bem e de mal.

Nenhum desses dois instintos é menos essencial do que o outro; os fenômenos da vida surgem da ação confluente ou mutuamente contrária de ambos. Ora, é como se um instinto de um tipo dificilmente pudesse operar isolado; está sempre acompanhado, ou, como dizemos, amalgamado por determinada quantidade do outro lado, que modifica o seu objetivo, ou, em determinados casos, possibilita a consecução desse objetivo. Assim, por exemplo, o instinto de auto-preservação certamente é de natureza erótica; não obstante, deve ter à sua disposição a agressividade, para atingir seu propósito.

Dessa forma, também o instinto de amor, quando dirigido a um objeto, necessita de alguma contribuição do instinto de domínio, para que obtenha a posse desse objeto. A dificuldade de isolar as duas espécies de instinto em suas manifestações reais, é, na verdade, o que até agora nos impedia de reconhecê-los.

Se o senhor quiser acompanhar-me um pouco mais, verá que as ações humanas estão sujeitas a uma outra complicação de natureza diferente. Muito raramente uma ação é obra de um impulso instintivo único (que deve estar composto de Eros e destrutividade). A fim de tornar possível uma ação, há de existir, via de regra, uma combinação desses motivos compostos. Isto, há muito tempo, foi percebido por um especialista na sua matéria, o professor G. C. Lichtenberg, que ensinava física em Göttingen, durante o nosso classicismo, embora, talvez, ele fosse ainda mais notável como psicólogo do que como físico. Ele inventou uma ‘bússola de motivos’, pois escreveu: ‘Os motivos que nos levam a fazer algo poderiam ser dispostos à maneira da rosa-dos-ventos e receber nomes de uma forma parecida: por exemplo, ‘pão-pão-fama’ ou ‘fama-fama-pão’. De forma que, quando os seres humanos são incitados à guerra, podem ter toda uma gama de motivos para se deixarem levar, uns nobres, outros vis, alguns francamente declarados, outros jamais mencionados. Não há por que enumerá-los todos. Entre eles está certamente o desejo da agressão e destruição: as incontáveis crueldades que encontramos na história e em nossa vida de todos os dias atestam a sua existência e a sua força.

A satisfação desses impulsos destrutivos naturalmente é facilitada por sua mistura com outros motivos de natureza erótica e idealista. Quando lemos sobre as atrocidades do passado, amiúde é como se os motivos idealistas servissem apenas de desculpa para os desejos destrutivos; e, às vezes, por exemplo, no caso das crueldades da Inquisição, é como se os motivos idealistas tivessem assomado a um primeiro plano na consciência, enquanto os destrutivos lhes emprestassem um reforço inconsciente. Ambos podem ser verdadeiros.

Receio que eu possa estar abusando do seu interesse, que, afinal, se volta para a prevenção da guerra e não para nossas teorias. Gostaria, não obstante, de deter-me um pouco mais em nosso instinto destrutivo, cuja popularidade não é de modo algum igual à sua importância. Como conseqüência de um pouco de especulação, pudemos supor que esse instinto está em atividade em toda criatura viva e procura levá-la ao aniquilamento, reduzir a vida à condição original de matéria inanimada.

Portanto, merece, com toda seriedade, ser denominado instinto de morte, ao passo que os instintos eróticos representam o esforço de viver. O instinto de morte torna-se instinto destrutivo quando, com o auxílio de órgãos especiais, é dirigido para fora, para objetos. O organismo preserva sua própria vida, por assim dizer, destruindo uma vida alheia. Uma parte do instinto de morte, contudo, continua atuante dentro do organismo, e temos procurado atribuir numerosos fenômenos normais e patológicos a essa internalização do instinto de destruição. Foi-nos até mesmo imputada a culpa pela heresia de atribuir a origem da consciência a esse desvio da agressividade para dentro.

O senhor perceberá que não é absolutamente irrelevante se esse processo vai longe demais: é positivamente insano. Por outro lado, se essas forças se voltam para a destruição no mundo externo, o organismo se aliviará e o efeito deve ser benéfico. Isto serviria de justificação biológica para todos os impulsos condenáveis e perigosos contra os quais lutamos. Deve-se admitir que eles se situam mais perto da Natureza do que a nossa resistência, para a qual também é necessário encontrar uma explicação.

Talvez ao senhor possa parecer serem nossas teorias uma espécie de mitologia e, no presente caso, mitologia nada agradável. Todas as ciências, porém, não chegam, afinal, a uma espécie de mitologia como esta? Não se pode dizer o mesmo, atualmente, a respeito da sua física? Para nosso propósito imediato, portanto, isto é tudo o que resulta daquilo que ficou dito: de nada vale tentar eliminar as inclinações agressivas dos homens.
Segundo se nos conta, em determinadas regiões privilegiadas da Terra, onde a natureza provê em abundância tudo o que é necessário ao homem, existem povos cuja vida transcorre em meio à tranqüilidade, povos que não conhecem nem a coerção nem a agressão. Dificilmente posso acreditar nisso, e me agradaria saber mais a respeito de coisas tão afortunadas. Também os bolchevistas esperam ser capazes de fazer a agressividade humana desaparecer mediante a garantia de satisfação de todas as necessidades materiais e o estabelecimento da igualdade, em outros aspectos, entre todos os membros da comunidade. Isto, na minha opinião, é uma ilusão. Eles próprios, hoje em dia, estão armados da maneira mais cautelosa, e o método não menos importante que empregam para manter juntos os seus adeptos é o ódio contra qualquer pessoa além das suas fronteiras.

Em todo caso, como o senhor mesmo observou, não há maneira de eliminar totalmente os impulsos agressivos do homem; pode-se tentar desviá-los num grau tal que não necessitem encontrar expressão na guerra.

Nossa teoria mitológica dos instintos facilita-nos encontrar a fórmula para métodos indiretos de combater a guerra. Se o desejo de aderir à guerra é um efeito do instinto destrutivo, a recomendação mais evidente será contrapor-lhe o seu antagonista, Eros. Tudo o que favorece o estreitamento dos vínculos emocionais entre os homens deve atuar contra a guerra. Esses vínculos podem ser de dois tipos.

Em primeiro lugar, podem ser relações semelhantes àquelas relativas a um objeto amado, embora não tenham uma finalidade sexual. A psicanálise não tem motivo porque se envergonhar se nesse ponto fala de amor, pois a própria religião emprega as mesmas palavras: ‘Ama a teu próximo como a ti mesmo.’ Isto, todavia, é mais facilmente dito do que praticado.

O segundo vínculo emocional é o que utiliza a identificação. Tudo o que leva os homens a compartilhar de interesses importantes produz essa comunhão de sentimento, essas identificações. E a estrutura da sociedade humana se baseia nelas, em grande escala.
Uma queixa que o senhor formulou acerca do abuso de autoridade leva-me a uma outra sugestão para o combate indireto à propensão à guerra. Um exemplo da desigualdade inata e irremovível dos homens é sua tendência a se classificarem em dois tipos, o dos líderes e o dos seguidores. Esses últimos constituem a vasta maioria; têm necessidade de uma autoridade que tome decisões por eles e à qual, na sua maioria devotam uma submissão ilimitada. Isto sugere que se deva dar mais atenção, do que até hoje se tem dado, à educação da camada superior dos homens dotados de mentalidade independente, não suscetível de intimidação e desejosa de manter-se fiel à verdade, cuja preocupação seja a de dirigir as massas dependentes.

É desnecessário dizer que as usurpações cometidas pelo poder executivo do Estado e a proibição estabelecida pela Igreja contra a liberdade de pensamento não são nada favoráveis à formação de uma classe desse tipo. A situação ideal, naturalmente, seria a comunidade humana que tivesse subordinado sua vida instintual ao domínio da razão. Nada mais poderia unir os homens de forma tão completa e firme, ainda que entre eles não houvesse vínculos emocionais. No entanto, com toda a probabilidade isto é uma expectativa utópica. Não há dúvida de que os outros métodos indiretos de evitar a guerra são mais exeqüíveis, embora não prometam êxito imediato. Vale lembrar aquela imagem inquietante do moinho que mói tão devagar, que as pessoas podem morrer de fome antes de ele poder fornecer sua farinha.

Fumaça do prisioneiro
Antonio Dias, Fumaça do prisioneiro , 1964,
óleo e látex sobre madeira, 120,6 cm x 93,3 cm x 6,8 cm,
Aquisição MAC USP.

O resultado, como o senhor vê, não é muito frutífero quando um teórico desinteressado é chamado a opinar sobre um problema prático urgente. É melhor a pessoa, em qualquer caso especial, dedicar-se a enfrentar o perigo com todos os meios à mão.

Eu gostaria, porém, de discutir mais uma questão que o senhor não menciona em sua carta, a qual me interessa em especial. Por que o senhor, eu e tantas outras pessoas nos revoltamos tão violentamente contra a guerra? Por que não a aceitamos como mais uma das muitas calamidades da vida? Afinal, parece ser coisa muito natural, parece ter uma base biológica e ser dificilmente evitável na prática.

Não há motivo para se surpreender com o fato de eu levantar essa questão. Para o propósito de uma investigação como esta, poder-se-ia, talvez, permitir-se usar uma máscara de suposto alheamento. A resposta à minha pergunta será a de que reagimos à guerra dessa maneira, porque toda pessoa tem o direito à sua própria vida, porque a guerra põe um término a vidas plenas de esperanças, porque conduz os homens individualmente a situações humilhantes, porque os compele, contra a sua vontade, a matar outros homens e porque destrói objetos materiais preciosos, produzidos pelo trabalho da humanidade.

Outras razões mais poderiam ser apresentadas, como a de que, na sua forma atual, a guerra já não é mais uma oportunidade de atingir os velhos ideais de heroísmo, e a de que, devido ao aperfeiçoamento dos instrumentos de destruição, uma guerra futura poderia envolver o extermínio de um dos antagonistas ou, quem sabe, de ambos. Tudo isso é verdadeiro, e tão incontestavelmente verdadeiro, que não se pode senão sentir perplexidade ante o fato de a guerra ainda não ter sido unanimemente repudiada.

Sem dúvida, é possível o debate em torno de alguns desses pontos. Pode-se indagar se uma comunidade não deveria ter o direito de dispor da vida dos indivíduos; nem toda guerra é passível de condenação em igual medida; de vez que existem países e nações que estão preparados para a destruição impiedosa de outros, esses outros devem ser armados para a guerra. Mas não me deterei em nenhum desses aspectos; não constituem aquilo que o senhor deseja examinar comigo, e tenho em mente algo diverso.
Penso que a principal razão por que nos rebelamos contra a guerra é que não podemos fazer outra coisa. Somos pacifistas porque somos obrigados a sê-lo, por motivos orgânicos, básicos. E sendo assim, temos dificuldade em encontrar argumentos que justifiquem nossa atitude.

Sem dúvida, isto exige alguma explicação. Creio que se trata do seguinte. Durante períodos de tempo incalculáveis, a humanidade tem passado por um processo de evolução cultural (sei que alguns preferem empregar o termo ‘civilização’). É a esse processo que devemos o melhor daquilo em que nos tornamos, bem como uma boa parte daquilo de que padecemos.

Embora suas causas e seus começos sejam obscuros e incerto o seu resultado, algumas de suas características são de fácil percepção. Talvez esse processo esteja levando à extinção a raça humana, pois em mais de um sentido ele prejudica a função sexual; povos incultos e camadas atrasadas da população já se multiplicam mais rapidamente do que as camadas superiormente instruídas.

Talvez se possa comparar o processo à domesticação de determinadas espécies animais, e ele se acompanha, indubitavelmente, de modificações físicas; mas ainda não nos familiarizamos com a idéia de que a evolução da civilização é um processo orgânico dessa ordem. As modificações psíquicas que acompanham o processo de civilização são notórias e inequívocas. Consistem num progressivo deslocamento dos fins instintivos e numa limitação imposta aos impulsos instintivos. Sensações que para os nossos ancestrais eram agradáveis, tornaram-se indiferentes ou até mesmo intoleráveis para nós; há motivos orgânicos para as modificações em nossos ideais éticos e estéticos.

Dentre as características psicológicas da civilização, duas aparecem como as mais importantes: o fortalecimento do intelecto, que está começando a governar a vida do instinto, e a internalização dos impulsos agressivos com todas as suas conseqüentes vantagens e perigos. Ora, a guerra se constitui na mais óbvia oposição à atitude psíquica que nos foi incutida pelo processo de civilização, e por esse motivo não podemos evitar de nos rebelar contra ela; simplesmente não podemos mais nos conformar com ela. Isto não é apenas um repúdio intelectual e emocional. Nós, os pacifistas, temos uma intolerância constitucional à guerra, digamos, uma idiossincrasia exacerbada no mais alto grau.
Realmente, parece que o rebaixamento dos padrões estéticos na guerra desempenha um papel dificilmente menor em nossa revolta do que as suas crueldades.

E quanto tempo teremos de esperar até que o restante da humanidade também se torne pacifista? Não há como dizê-lo. Mas pode não ser utópico esperar que esses dois fatores, a atitude cultural e o justificado medo das conseqüências de uma guerra futura, venham a resultar, dentro de um tempo previsível, em que se ponha um término à ameaça de guerra.

Por quais caminhos ou por que atalhos isto se realizará, não podemos adivinhar. Mas uma coisa podemos dizer: tudo o que estimula o crescimento da civilização trabalha simultaneamente contra a guerra.

Espero que o senhor me perdoe se o que eu disse o desapontou, e com a expressão de toda estima, subscrevo-me. ✱

Cordialmente,
Sigmund FREUD

 


 

Um diálogo entre Einstein e Freud: por que a guerra?/ apresentação de Deisy de Freitas Lima Ventura, Ricardo Antônio Silva Seitenfus – Santa Maria: FADISMA, 2005. FADISMA – Faculdade de Direito de Santa Maria

Sobre os direitos autorais referentes a esta publicação:

Os textos de Einstein e Freud são de domínio público.

Com base nas traduções brasileiras (Obras Completas de Sigmund Freud, edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1976. v. XXII) e francesa (DAVID, Christophe. Einstein e Freud. Pour quoi la guerre? Paris: Payot & Rivages, 2005).

* Imagens

Estas imagens são reproduções fotográficas das obras que, atualmente estão expostas na mostra Tempos Fraturados no Museu de Arte Contemporanea de São Paulo, MAC-USP

Guerras Culturais crescem nas redes sociais

Em janeiro passado, uma vereadora do PL de Fortaleza gravou um vídeo, que rapidamente viralizou, atacando a Pinacoteca do Ceará por exibir supostas obras contra a moral cristã e a adequada formação das crianças. Sem explicar que tais trabalhos estão em áreas com sinalização específica sobre a classificação etária indicativa, seguindo parâmetros de regras federais, a parlamentar do Partido Liberal, cujo presidente esteve recentemente preso envolvido nos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023, acusou o PT, responsável pelo governo do Ceará e, consequentemente pela gestão da Pinacoteca, usando uma típica retórica de ódio, para usar uma pauta de costumes de forma eleitoreira. Afinal, apesar da exposição com tais obras estar aberta há mais de um ano, a vereadora causa a controvérsia no início de 2024, quando há eleições municipais no país. Coincidência?

Essas ações são uma espécie de reflexo tardio do que o sociólogo norte-americano James Davison Hunter diagnosticou no livro Culture Wars: the Struggle to define America, publicado em 1991 e sem tradução no Brasil. Apropriando-se da expressão alemã Kulturkampf (guerra cultural), conceito usado pela campanha contra a influência da igreja católica realizada pelo chanceler Otto von Bismarck, entre 1871 e 1878, Hunter observou como seu país se polarizava em manifestações contra o aborto, contra a arte e contra o feminismo, para citar algumas. Mais recentemente, jornadas difamando processos eleitorais e contra vacinas podem ser observadas também no contexto de guerras culturais.
Mais do que uma simples oposição entre propostas conservadoras ou progressistas, os agentes dessa guerra se utilizam de lógicas que rechaçam a ciência e mesmo o bom senso, caracterizando-se por denunciar perigos inexistentes a partir de informações falsas. Em síntese, trata-se de uma cruzada que visa evitar toda forma de autonomia dos cidadãos e cidadãs para que se sujeitem ao sistema neoliberal sem questionamento e usando a sensação do pânico como método – uma estratégia de apelo emocional, portanto difícil de ser contraposta com argumentos racionais.

No Brasil, Olavo de Carvalho (1947-2022) foi um dos grandes porta-vozes dessas guerras, chegando a influenciar milhares de pessoas e até mesmo a indicar ministros de Estado no início do governo Bolsonaro. Trata-se, como afirma Hunter, da disputa pelo presente e o futuro: “Em última análise, a batalha por esse território simbólico revela um conflito sobre visões de mundo – sobre quais padrões nossas comunidades e nossa nação viverão; sobre o que consideramos ser ‘de valor duradouro’ em nossas comunidades; sobre o que consideramos uma representação justa de nossos tempos, e assim por diante”.

As guerras culturais, contudo, são uma explícita estratégia de movimentos conservadores que perderam o controle da narrativa no campo da cultura e da arte, no qual ideias libertárias e progressistas passaram a dominar os debates, especialmente a partir dos movimentos de contracultura dos anos 1960/70. Como tais valores estão intrinsicamente associados aos partidos de esquerda, foi necessário que conservadores buscassem estratégias para questionar esse campo e, então, junta-se em um mesmo pacote os avanços sobre questões identitárias, a pedagogia do oprimido de Paulo Freire, a arte contemporânea, vacinas e o aborto, para citar os principais focos dessas guerras.

Contudo, o objetivo efetivo, mesmo que baseado na pauta dos costumes, é simplesmente buscar desconstruir o charme das propostas libertárias da esquerda através do medo: “Eles vão destruir nossas famílias”. Esse mote, no entanto, é tão apelativo quanto fantasioso, afinal no Brasil atual 48% dos lares brasileiros têm mulheres como chefe de família, para citar um dado que aponta como a tradicional equação papai e mamãe está cada vez mais em questão.

Não há dúvida de que a eleição de Bolsonaro, em 2018, foi construída em boa parte sobre o pano de fundo das guerras culturais, como as “denúncias” do kit gay ou da “mamadeira de piroca”, fake news geradas exatamente para espalhar o pânico. Os recentes ataques à Pinacoteca do Ceará, nesse sentido, são muito semelhantes aos conjugados ataques às artes no Brasil em 2017.

Neste único ano, véspera das eleições presidenciais, foram vítimas de discursos de ódio ao menos três ações do Sesc – uma performance em Brasília, uma peça em Jundiaí e a fala em São Paulo da canadense Judith Butler, além de uma exposição no Museu de Arte Moderna de São Paulo e outra no Santander Cultural de Porto Alegre. Lideraram essas ações de disseminação de mentiras o Movimento Brasil Livre (MBL), um dos pilares de apoio ao bolsonarismo, naquela época. As acusações são exatamente no formato descrito por Hunter para os Estados Unidos: “Eles observam algum objeto artístico de forma isolada, descontextualizado do projeto estético mais amplo do artista, e consideram ele obsceno, pornográfico e lascivo.”

No caso, o sociólogo tomou por base as polêmicas que envolveram artistas como o fotógrafo Robert Mapplethorpe (1946-1989) com sua última retrospectiva organizada em vida, The Perfect Moment, que iria ser exibida em vários museus norte-americanos e teve sua itinerância em Washington cancelada, após ataques ferozes da American Family Association.

Voltando ao Brasil do século 21, teve papel essencial nos ataques às artes em 2017 o uso das redes sociais de forma sincronizada, algo muito semelhante ao que ocorreu com a tentativa de golpe no 8 de janeiro de 2023. A forma violenta como obras de arte foram destruídas nas sedes dos Três Poderes, em Brasília, atesta como a campanha iniciada anos antes foi essencial para a formação em massa de dissonantes cognitivos.

Ao mesmo tempo, os ataques à cultura servem como cortinas de fumaça, que buscam desviar a atenção pública de fatos relevantes, como o que ocorreu em 8 de março de 2023, quando o deputado federal mais votado no Brasil com 1.492.047 votos, Nikolas Ferreira, subiu à tribuna no Dia da Mulher com uma peruca feminina e fez um discurso transfóbico. Bolsonarista, o deputado acabava de voltar da conferência conservadora CPAC, nos Estados Unidos, onde também estava Eduardo Bolsonaro, que tirou como uma das estratégias a crítica à cultura trans. Sua ação foi capa de jornais e competiu com as histórias das joias recebidas por Bolsonaro irregularmente.

A retomada neoliberal, que teve início com o golpe de 2016 sob a liderança do capital financeiro especulativo, vem financiando grupos que se propagam como defensores de valores liberais, mas, na verdade, estão dispostos a defender todo tipo de censura e ataque a artistas, um dos segmentos que, quase de maneira unânime, denunciava os desmanches sociais. Não por acaso, um dos primeiros atos do presidente imposto Michel Temer foi extinguir o Ministério da Cultura, em 2016, ação que foi rapidamente revista, por pressão dos artistas e a repercussão negativa dela decorrente.

Em outubro de 2017, o repórter da revista Piauí Bruno Abbud publicou um artigo após ter acesso a dois meses de conversa em um grupo de WhatsApp do Movimento Brasil Livre (MBL), denominado MBL mercado, do qual tomavam parte pelo menos 158 funcionários de instituições como Banco Safra, XP Investimentos e Merrill Lynch, para arrecadar fundos para o grupo e “levar as pautas dos executivos às discussões públicas e aos encontros a portas fechadas que os membros do MBL teriam com políticos e lideranças nacionais”, de acordo com Abbud na reportagem.

Em duas semanas, o grupo arrecadou R$ 50 mil dos investidores, mas doações também são feitas em milhas, o que garante passagens aéreas gratuitas aos militantes neoliberais.

Nos conteúdos dessas conversas, revelam-se algumas estratégias das motivações desse grupo que ataca a “arte degenerada” do início do século 21.
As trocas de mensagens são da época em que o então prefeito de São Paulo João Doria (PSDB) lançava-se candidato a presidente do Brasil, o que os líderes do MBL comemoravam e defendiam: “Com ou sem psdb. A aliança q pode lhe eleger está no pmdb dem evangélicos agro e mbl. Nosso trabalho será o de unir essa turma num projeto comum”, postou Renan Santos, um de seus fundadores.

É justamente essa aliança de “neoliberais” com setores reacionários, como os evangélicos e os ruralistas, que visa difamar agentes culturais, nos termos daquilo que ocorreu ao longo de 2017. Se não houve confisco de obras ou exposições para ridicularizar as vanguardas da época, como quando os nazistas chegaram ao poder, a “propaganda” contra a arte contemporânea segue estridente, como agora no Ceará.

E o campo de batalha está nas redes sociais, o mais adequado local para agregar grupos moralistas baseados em fake news, gerando o que se chama “pós-verdade” (post-truth), a palavra do ano de 2016, segundo o dicionário inglês Oxford. De acordo com sua definição, trata-se de um substantivo “que se relaciona ou denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais”.

Claro que boatos existem, desde sempre, mas a força das falsas verdades, atualmente, decorre de dois fatores: o uso das redes sociais e a bolha que se forma em torno de grupos com a mesma opinião. Os algoritmos utilizados pelo Facebook, por exemplo, fazem com que seus usuários tendam a receber informações que estejam de acordo com seu próprio ponto de vista, reforçando a ideia de que as mostras defendem pedofilia e dando a impressão, a quem tem tal opinião, de que todos concordam com ele. Por outro lado, o WhatsApp acaba sendo outro irradiador de notícias falsas, já que as pessoas que recebem informações por esse aplicativo tendem a acreditar no que leem, uma vez que recebem as mensagens de amigos ou parentes, sem checar sua veracidade.

 

Esse é, de fato, um fenômeno global que ocorre mesmo em sociedades com bons níveis de acesso à informação por meio de jornais. O Brexit, por exemplo, teria sido aprovado por conta de boatos de que a permanência na União Europeia custava à Grã-Bretanha US$ 470 milhões por semana. Um dos responsáveis por essa campanha seria a empresa britânica Cambridge Analytica, parcialmente de propriedade do investidor norte-americano Robert Mercer, defensor de pautas conservadoras.

A empresa também teria sido encarregada da primeira campanha de Donald Trump à presidência dos EUA e, entre suas atividades, estaria a tentativa de vazamento de 33 mil e-mails da então candidata Hillary Clinton, como denunciou Julian Assange. Nas trocas de mensagens do grupo de WhatsApp do MBL com o mercado financeiro, chegou a ser sugerida a contratação da Cambridge Analytica por João Doria (PSDB) para sua campanha à presidência, que acabou desarticulada pelo próprio partido.
Nos Estados Unidos, os irmãos bilionários Charles e David Koch, filhos de um empresário de petróleo, são considerados outros possíveis financiadores de movimentos liberais que se utilizam de fake news. No Brasil, integrantes do MBL estariam relacionados aos institutos patrocinados pelos irmãos Koch.

Facebook, o incentivo à discórdia e o exibicionismo moral

Analistas diversos, como James Ball, no livro Post-Truth. How Bullshit conquered the world (pós-verdade como a bobagem conquistou o mundo), apontam como as fake news foram importantes tanto para a vitória de Donald Trump, nos EUA, em 2016, como para o Brexit, na Inglaterra, no mesmo ano, frutos de estratégias deliberadas de agências com expertise na área e que enganam a opinião pública com campanhas com conteúdos exagerados e até mesmo falsos. No Brasil, não há dúvida sobre o impacto das fake news na eleição de Jair Bolsonaro, divulgadas principalmente por WhatsApp, como revelou a jornalista Patrícia Campos Mello, ao contrário dos casos anteriores, onde o Facebook foi a mídia mais usada para compartilhamento de informações.

Com tudo isso, torna-se cada vez mais urgente o debate sobre o controle das redes sociais, tendo em vista que está já se tornando consensual que o Facebook se tornou uma rede baseada na exploração “da atração do cérebro humano pela discórdia”, como aponta o jornalista norte-americano Max Fisher, no livro A Máquina do Caos. Como as redes sociais reprogramaram nossa mente e nosso mundo. Segundo ele, “a tecnologia das redes sociais exerce uma atração tão poderosa na nossa psicologia e na nossa identidade, e é tão predominante em nossa vida, que transforma o jeito como pensamos, como nos comportamos e como nos relacionamos uns com os outros”.

As redes sociais, especialmente Facebook e Instagram, se tornaram viveiros de delinquentes, estimulados pelos algoritmos que potencializam discursos de ódio. Miguel Lago, em artigo na revista Piauí de fevereiro de 2023, “Prendam os perfis!”, apontou como essas redes foram essenciais para o 8J: “Nunca um evento histórico brasileiro foi registrado a partir de tantos ângulos e câmaras. (…) Antes mesmo que a imprensa e autoridades entendessem o que se passava, milhões de bolsonaristas assistiam à invasão por meio de celulares de agressores. É quase como se tudo estivesse sendo feito pelos perfis apenas com o intuito de criar conteúdo para as redes sociais”. Não por acaso, a tal vereadora que atacou a Pinacoteca do Ceará fala por meio do seu celular, de dentro da própria exposição, como fizeram os enlouquecidos do 8 de janeiro.

Pois é exatamente essa mistura da discórdia incentivada pelas redes sociais com as campanhas contra a cultura que se utilizam os “defensores” dos bons costumes. Se essa é uma guerra que veio para ficar, ela precisa e pode ser minimizada com algum tipo de controle nas redes, um debate mais que necessário, ainda mais agora com a sofisticação da Inteligência Artificial Generativa.

No entanto, mais que algum tipo de controle, o campo progressista precisa seguir com suas ações no campo da cultura de valorização das pautas libertárias. Contra o “gabinete do ódio” a melhor estratégia é o “gabinete do amor”. ✱

O que pode uma obra de cultura, de arte ou de crítica?

Uma questão para Tales Ab’Sáber*

João Cezar de Castro Rocha – Em seu documentário Intervenção, Amor não quer dizer grande coisa, antecipou-se muito dos horrores que hoje desejam dominar a cena brasileira. Como entender que o delírio de teorias conspiratórias tenha se tornado realidade política para dezenas de milhares de pessoas?

Tales Ab’Sáber – O que pode uma obra de cultura, de arte ou de crítica, se sua comunidade se recusa em vê-la, aceitá-la, recebê-la? De fato em 2016 fizemos este filme, eu, o cineasta e professor da ECA USP Rubens Rewald e o montador e jornalista livre Gustavo Aranda. Quando mostrei para eles, ainda em 2015, o que ocorria nas redes e chats de uma extrema direita que se organizava para um novo modo de guerra na internet, ficaram muito impressionados e começamos a trabalhar imediatamente. Acompanhamos todo o processo da queda de Dilma, até meados de 2016, observando a vida, a ação e o “pensamento” dessa “nova” direita delirante, violenta e virulenta, porque ela se expandia de modo contagiante e amplo nas redes. Suas intensidades, facilitações, lógica paranoica simplória de fundo e direito à qualquer mentira, até chegar a alcançar a força do delírio, no caso a mentira partilhada como desejo político – demonstrava o filme – facilitavam imensamente a adesão do ressentimento social e da ignorância autoritária brasileiras àquele mundo, mundo afetivo destrutivo, ficcional coletivo. Todo movimento político, e técnico, fascista busca operar no nível de uma conversão psíquica: do sujeito do sonho, da razão mediada e do contrato social, se passa ao grupo do delírio, da realização imediata no desejo e à passagem ao ato, o direito à violência política, que se expressa, incialmente, como ato de linguagem como choque. Aquela direita que se unia a cada dia pelo afeto da guerra total – o que os psicanalistas, desde os anos de 1930 e 1940, conheceram como a produção de uma posição psíquica esquizo-paranoide, e que Freud nomeou a dinâmica grupal em 1920 – teve papel fundamental no caso histórico, ao se auto organizar nas redes e dado o direito ao vale tudo de toda ordem, de fato criminoso em uma democracia. O seu principal método era a mentira hipérbole social, a calúnia sem limites, sem cobrança nem necessidade de checagem: a posse impune da palavra, tudo feito para convocar a identificação de uma “nova” gente pronta para qualquer coisa, ao menos no símbolo, ou no falso símbolo. No período das grandes manifestações nacionais lavajatistas convocadas e mobilizadas por grupos da nova direita dita liberal, de fato violentamente neoliberal e avessa aos parâmetros sociais da Constituição de 1988, com o apoio tácito e estratégico das grandes redes de comunicação e a identificação política de seus jornalistas ditos profissionais com o seu desejo de impeachment, aquela direita do vale tudo, do delírio e do sadismo da vitória na mentira – com a qual gozavam excitados – contava com cerca de 15% de manifestantes nas ruas, segundo pesquisa da época. Eram aqueles que saiam com faixas pedindo, clamando, exigindo, diziam eles no filme, uma intervenção militar constitucional. Ou seja, um golpe de tipo clássico brasileiro, em que as forças armadas tomam o poder, e arruínam democracia e vida no país. Ao final do processo de degradação dos parâmetros da política brasileira, em 2018, o candidato que enunciava as coisas naqueles termos de violência e vale tudo de toda ordem alcançou 58 milhões de votos no Brasil… Hoje os golpistas brasileiros, agora dirigidos e orientados por um líder fascista grotesco, com seu gabinete do ódio profissional multiplicado nas redes, que nos ameaça a cada semana e todos os dias com o pior do pior, chegaram a 30%: os que aceitam tudo e qualquer coisa por Bolsonaro, do remédio falso à inflação, do isolamento mundial à destruição liminar da frágil democracia, do golpe farsesco baseado em nada à corrupção e destruição do Estado por verdadeiros imbecis. O filme estava na raiz deste processo, pegando em pleno voo, ou ovo…, duas dimensões fundamentais da nova política da extrema direita, neofascista, no Brasil: o sistema da propaganda fascista de uma nova indústria cultural da mentira e violência nas redes, e a fusão de tal máquina de guerra material com a máquina de guerra do desejo, o sistema mentira/violência/delírio que o modulou. Atraindo a falsa moral dos autoritários, criando voz unificada para a ignorância política, imagens comuns de uma guerra particular, de gangue, milícia digital, encenada no tempo real do desejo, para eles viverem no Brasil dos seus sonhos, configurou o pesadelo que se tornou o bolsonarismo. Se este movimento aconteceu como aconteceu, e hoje temos estudos do neofascismo brasileiro e seu sistema de representações, afetos e signos em todas as Universidades brasileiras, Intervenção: Amor não quer dizer grande coisa deu forma e conceito àquele processo psicopolítico de outra ordem sobre a experiência do Brasil, como você e alguns poucos outros críticos e intelectuais apontaram – lembro Laymert Garcia dos Santos, Ismail Xavier, Leandro Saraiva e o grupo de linguistas sociais da UFSCAR, dos professores Luzmara Curcino e Carlos Piovezani… Estudando o movimento concreto daquelas massas das redes, o elemento da irracionalidade e do desejo de violência sempre saltou aos olhos de quem quisesse ver. No entanto, houve pouquíssimo interesse pelo filme, quando ele falava sozinho disso tudo, em 2016. Um filme político, feito para intervir, produzir, gerar saber sobre que horas são e onde estávamos, frente ao qual, metade da plateia caia no choro e em desespero, e a outra metade recusava como princípio a realidade do que via, de um país que desconhecia, mas queria governar… Assim, depois das evidências do filme e sua pesquisa, tivemos que suportar algumas das melhores mentes do pais, já em 2018, dizendo que Bolsonaro não ganharia a eleição… e, dentre elas, era este também o entendimento do Partido dos Trabalhadores sobre o processo político e social que vivíamos. Ou seja, entendimento nenhum. Um movimento político triste, de desatenção à própria cultura, alienação dos termos da vida popular e encastelamento em ideias particulares, desde o próprio eu, que não correspondiam à história. Uma certa falência conceitual, do nosso próprio campo, aquela mesma que Mano Brown denunciou na época em festa do baile fiscal dos democratas entre si. O delírio fascista, evidente, perigoso, fácil e expansivo se completava na alucinação negativa da própria esquerda, que se esmerava na recusa em reconhecer o que acontecia na sua cara. E, se via, quando via, caia no choro, e não no pensamento, na crítica e na estratégia real. Esse foi o destino social daquele filme, bastante revelador de algo mais de nossas fixações tolas e impotentes. No Brasil vivemos no período a guerra de dois delírios, um positivo e violento, outro negativo e aquém do tempo. A história política deste filme é a história de uma cultura cindida, em alguma medida toda ela esquizofrênica. ✱

Filme aborda a loucura da evangelização de indígenas no Javari

O Avesso do Céu
Imagens do Filme: O Avesso do Céu [The reverse of Heaven], da dupla Dias & Riedweg está em exibição na Galeria Vermelho em São Paulo

É muito difícil sair impassível depois de uma exibição do filme O Avesso do Céu, da dupla Dias & Riedweg, em cartaz na galeria Vermelho até 11 de maio. Nele é retratada a violência da manipulação religiosa no território indígena tikuna, na região do Alto Solimões e do Javari, na fronteira do Brasil com Peru e Colômbia, em cenas reais, que misturam rituais a imagens do desmatamento na Amazônia, tornando impossível não perceber a ligação intrínseca entre ambas.

A dupla, constituída há 30 anos pelo brasileiro Maurício Dias e o suíço Walter Riedweg, é conhecida por atuar com comunidades específicas sejam porteiros de prédios, policiais, crianças de rua ou internos de clínicas psiquiátricas, em um raro exemplo de envolvimento afetivo no panorama da arte brasileira. Essa nova obra, finalizada em 2023, contudo, se constrói novamente em uma imersão de três meses com dois grupos: indígenas e evangélicos, mas neste último sem a costumeira empatia.

Por isso, resolvi mandar duas perguntas para Maurício, que estava em São Paulo para a abertura, que foram respondidas em uma série de 13 áudios transcritos a seguir. As perguntas foram: o que os levou a produzir uma obra em Atalaia do Norte; e como se deu o envolvimento que em geral vocês costumam dedicar em seus trabalhos. Leia a seguir as respostas:

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Maurício Dias – O que levou a gente para Atalaia do Norte foi a ideia de fazer um trabalho sobre a síndrome de Jerusalém. Ela surgiu, na verdade, em 2013, da residência à convite de Benjamin Seroussi no Jerusalém Visual Arts Center, em Israel.
A gente ficou em Jerusalém um tempo. E o que mais impressionou a gente lá era a “maluquice da devoção”. Eu chamo de maluquice porque é na verdade essa veneração exacerbada, exposta por centenas de peregrinos cada vez que eles se encontram com as referências e monumentos quase mitológicos das religiões deles. Isso acontece tanto entre os judeus, como os cristãos e os islâmicos. Nessa região tem a mesquita de Al-Aqsa, de onde Maomé supostamente se transformou num cavalo alado e foi para os céus, tem o extinto e destruído Templo de Salomão, onde judeus rezam no Muro das Lamentações, e isso tudo ao lado do Santo Sepulcro, onde Jesus, supostamente, está enterrado e onde centenas de peregrinos católicos e evangélicos fazem a Via Dolorosa, aquele caminho da Cruz, repetindo as estações até o Calvário. E vários crentes entram assim em um transe, que tem o nome de Síndrome de Jerusalém. Isso é uma coisa tão recorrente que o Estado de Israel não sabia o que fazer, porque atrapalhava a vida local, já que esses transes psicóticos, às vezes, se tornam violentos. Por isso, eles acabaram criando [em 1951] uma clínica para tratar disso, chamada Kfar Shaul, construída em um antigo vilarejo palestino.

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Essa síndrome de Jerusalém é uma coisa que a gente está, desde 2013, tentando abordar no nosso trabalho. A gente vem fazendo uma série de trabalhos com pacientes psiquiátricos, e nesses trabalhos, nessas imersões que a gente faz com um grupo de pacientes do IPUB, o Instituto de Psiquiatria da UFRJ, a gente vê com frequência o problema da fé, da mitologia, da existência de Deus. Essa questão, ela é, entre os pacientes psiquiátricos, ainda mais forte do que na sociedade em geral. Então a síndrome de Jerusalém tornou-se uma questão forte nesses trabalhos e acabou gerando uma série de trabalhos no contexto da psiquiatria que a gente fez nos últimos anos: Casulo, que ganhou a bolsa Zum do IMS, em 2018, o trabalho que a gente fez para a Casa Daros, em 2015, Nada absolutamente nada e Nada quase nada, que apresentamos na Verbo, na Vermelho, em 2016, que é uma performance a partir de textos do Robert Walser.

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E O Avesso do Céu, esse filme novo, também surge nesse contexto. Ele não é um filme sobre os indígenas, nem sobre os evangélicos. Ele é um filme sobre a loucura, sobre o estado do avesso, o estado de ser da fé dominada pela religião. A gente entende a fé como uma expressão individual de qualquer indivíduo para se relacionar com a sua condição de existência. Se ele é indígena, a fé vai servir para caçar, para pescar. Se ele é alguém do mercado da Faria Lima, ele vai “levar uma fezinha” para transações arriscadas. A fé faz parte da vida, a fé faz parte da condição humana de se relacionar com o desafio de estar vivo sem saber muita coisa sobre a vida, né? A gente tem essa diferença em relação aos outros seres. A gente lida com a ideia da morte o tempo todo que está vivo. E eu acho que a fé surge aí. E a religião, ela vai colonizar essa fé. Todas as religiões fazem isso. Em algum momento elas vão colonizar essa fé para organizar a fé territorialmente, que é o que acontece lá em Israel o tempo inteiro e acontece agora no Javari.

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O trabalho nunca aconteceu em Israel porque foi impossível para a gente fazer isso lá. A gente não fala hebreu, nem árabe. A gente nunca conseguiu nenhuma resposta da clínica Kfar Shaul, nem nenhum apoio institucional de lá para poder começar esse trabalho. Então a gente meio que botou esse trabalho na geladeira. Eu li um artigo do Bruno Meyerfeld, que é o correspondente franco-brasileiro do Le Monde no Brasil, em uma série de artigos a história da construção da Transamazônica, que deveria ter chegado a Atalaia do Norte, extremo Oeste do Brasil, na tríplice Fronteira do Peru, Colômbia e Brasil. Mas a Transamazônica nunca chegou até lá, ficaram faltando uns 600 km e eles desistiram porque essa região é completamente selvagem.

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E o último texto dessa série era focado em Atalaia do Norte, descrevia esse paraíso prometido na Terra, uma cidadezinha de 20 mil habitantes, completamente desorganizada, completamente bolsonarista, na qual você tem mais de 60 igrejas evangélicas diferentes, todas movidas por missionários que tentam entrar no Vale do Javari, o último reduto com indígenas não contactados na contemporaneidade.

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E aí a gente sacou que tinha que deslocar esse trabalho para tratar da conversão da fé em território, da conversão da fé de um indivíduo para uma religião, para o contexto amazônico, que essa questão se materializaria lá e de uma forma mais contemporânea e sul-americana. A maioria dos nossos trabalhos se desenvolve dentro da realidade ou na ótica latino-americana, então esse trabalho nessa tríplice fronteira para a gente virou uma nova obsessão também, como para os missionários. Essa cidade é uma espécie de trampolim para os missionários entrarem no Vale do Javari, para tentarem conhecer, encontrar, catalogar e converter novas culturas. É um pouco como a consequência do mito que sempre existiu da colonização. Os brancos fizeram isso na costa brasileira, desde o século 16, e foram penetrando país adentro. Em cada estado isso teve um nome e uma atividade diferentes mas um método parecido. Mas, Por trás dessa entrada religiosa sempre teve a questão extrativista. Se em Minas foram os minerais, na Amazônia foi a borracha, e hoje em dia é sobretudo a madeira. Então, lá no Javari, esses missionários já entram completamente financiados por exploradores que vão pegar as coisas do Javari depois. Tem coca, tem madeira, tem o pescado, que é super apreciado na alta culinária, porque são esses peixes gigantes da Amazônia, a caça, enfim, tudo o que ainda continua a fascinar a dita civilização como exótico e isso é o motor que leva esses missionários para lá. Os missionários são realmente crentes religiosos, daí a identificação com os governos de extrema direita. Mas você tem missionários do mundo todo lá prontos para entrar em aviões para jogar coisas, jogar espelhos, jogar correntes e presentinhos para seduzir indígenas que nem contactados foram. A gente não esteve com esses indígenas, é óbvio que é nocivo esse contato, e nunca foi o que a gente quis. O quer a gente queria era uma documentação desse encontro, dessa obsessão dos missionários para desvelar um pouco do que tem por trás desse dessa obsessão, que tem um interesse comercial atrás dela.

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E aí a gente foi na cara e na coragem, sem contato nenhum, a não ser uma chamada telefônica com Anderson Rocha, o secretário de Cultura na cidade vizinha, Benjamin Constant, que era uma cidade petista, um antropólogo local superinteressante que reagiu às nossas demandas. Ele colocou a gente em contato com alguns indígenas tikunas, completamente evangelizados, mas que têm um trabalho de defesa territorial, de reorganização social na região, e, também com o Tikuna Santo Cruz, que criou e dirige o Museu Magüta em Benjamin Constant sobre a cultura tikuna. E ele nos colocou em contato com famílias tikunas, com as quais a gente conviveu bastante com uma delas. A gente foi lá três vezes, cada vez um mês, e ficou com essa família tikuna. O pai é o homem que aparece ao longo do vídeo e que vai possibilitar um roteiro. No filme, é ele que derruba uma árvore, é ele o pai da menina que vai ter o ritual da moça nova. Por isso que é ele que bota aquela árvore abaixo e que vai batucar na árvore para retirar dela a pele. E essa pele ele vai secar, cortar os pedaços, para receber as pinturas que vão decorar o ritual e fazer a indumentária desse ritual da moça nova.
Esse é um ritual essencial na cultura tikuna, ritual de garantia da reprodução deles, do clã. Ele é feito quando a menina tem a primeira menstruação e é considerada pronta para a vida da mulher, para ser mãe e antes dela ter a primeira relação sexual, ela vai passar por um ritual em que seus cabelos são arrancados da cabeça. Ela recebe uma bebida fermentada de mandioca para anestesiar a dor. Tanto os mais velhos como os mais novos da família vão se vestir com essa pele pintada. São os mascarados e eles vão dar para ela a bebida e arrancar os cabelos para que ela seja assim batizada na vida adulta. Esse ritual foi proibido pelas igrejas, já completamente perseguido pela igreja católica, posteriormente pela Igreja da Santa Cruz e atualmente pelos evangélicos. Essas igrejas vão coibir o ritual da moça nova, e através do dízimo, elas manipulam a renda das pessoas porque pegam de um para dar para os outros controlando e ameaçando assim as práticas culturais originais dos tikunas. Esses rituais são praticados nas cozinhas e nos quintais, escondidos.

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A gente filmou um dos rituais dessa família com a qual a gente esteve em contato. E aí a gente deu para eles seis celulares que viraram devices importantes de câmera nesse trabalho. Eles filmaram outros rituais de moça nova e algumas outras festas deles e depois eles davam para a gente os arquivos. Eles ficaram com os aparelhos e a gente recebeu os arquivos, já entrando na sua segunda questão, da mais valia ou de como é a nossa relação com eles.

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Esse material que a gente recebeu deles entra no filme em imagens que aparecem em preto e branco, ou em fotografias, com um tratamento pictórico diferente para diferenciar a fonte das imagens que não são imagens diretamente filmadas por nós. É como se fossem aspas num texto, e as citações dos participantes estão no final do filme.

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Esse foi um trabalho superdifícil de pesquisar, de financiar e de executar sobretudo. Entre a primeira e a terceira vez que a gente esteve lá aconteceu a emboscada e os assassinatos do Bruno Pereira e do Dom Phillips, e isso modificou bastante a nossa recepção nesse lugar. Quando a gente chegava, as pessoas fechavam as portas ou diziam “vocês têm que ter muito cuidado porque os outros dois foram mortos”. Eles associaram a gente, com toda razão, ao dessa imprensa mais ativista, ao indigenista e ao jornalista que foram assassinados. A gente estava tocando em um assunto muito difícil, muito bélico, perigoso mesmo, e o approach da gente era obviamente subversivo. E aí eu entro na sua segunda questão.

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Como é o relacionamento da gente com esse grupo? Não é um grupo, são dois grupos: os evangélicos e os indígenas. O nosso relacionamento com os indígenas foi de empatia, mesmo considerando todo o estranhamento. Empatia política, empatia pelo ponto de vista deles serem os grandes defensores da natureza, da floresta, os donos da terra, os verdadeiros primeiros donos dessa terra. Eles não se consideram brasileiros, eles se consideram tikunas. Parte dos depoimentos que a gente tem, mas não incluímos no vídeo porque não fazia parte do tema, é sobre essa questão do pertencimento. Eles não se consideram brasileiros, eles se consideram tikunas. É uma particularidade porque isso indica também que, como toda relação de pertencimento, o pertencimento precisa ser recíproco, e se eles não têm o Brasil, o Brasil também não tem eles. Essa é a questão central ali, a questão do território. E o outro grupo são os evangélicos, com os quais a gente não tem nenhuma empatia. Se a gente voltar lá, se eles virem esse filme, não vão se identificar com ele. É provável que um evangélico ou um bolsonarista que veja esse filme tenha um problema com ele. É um filme indigesto. Já é indigesto para nós, de esquerda, para nós que trabalhamos com cultura. Um filme difícil de ver. Não estou falando só da cena do sacrifício do animal, eu estou falando da dor que nós todos temos de ser cúmplices dessa situação de eterna colonização. A descolonização começou no dia seguinte da colonização porque ela vai aparecer como um ato direto de arrependimento da colonização, que é um ato de barbárie.

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Então, como a gente se relaciona com isso? Da mesma forma que todo mundo que está assistindo o vídeo: a gente tem empatia, tem dor e tem asco dessa relação dos missionários. Tem vários dos depoimentos que não entraram nesse filme por causa de tamanho e da funcionalidade do filme. Muita coisa ficou de fora, mas a gente tem depoimentos dos missionários nos quais eles falam sobre essa obsessão. E é mesmo uma obsessão acima de tudo, mais do que vontade de ajudar ou mais do que bondade entre aspas. Essa gente tem essa obsessão de colonizar, tem prazer de conhecer esse dito selvagem e de civilizar, de socializar, converter essa pessoa não só em cristã como em branca! E a gente fez um trabalho sobre isso, sobre essa conversão. Esse é o nosso lugar no trabalho, é um local de terceiros, de observação crítica. A gente não pode se solidarizar, nem com um lado nem com outro, com toda a empatia possível, porque senão a gente não teria distância crítica necessária para tratar essa questão, que é um problema. A gente está tratando ali da obsessão, e o que vem com a obsessão: a conversão… é uma barbárie. É uma colonização, um processo de perpetuação de dominação muito barra pesada. E isso ocorreu durante o governo Bolsonaro… No mesmo período em que a Damares distribuía fetos de plástico em campanha contra o aborto no gabinete dela em Brasília, do suposto Ministério de Direitos Humanos e Direitos da Mulher! Ela mesma tem uma filha de origem indígena Kamayurá adotada sem a permissão dos pais biológicos no Xingu. Essas questões são muito difíceis. A gente procurou não fazer do filme puramente uma denúncia, mas é muito barra pesada o que a gente viu lá. E o que a gente tenta manter no filme é o que possibilita essa barra pesada: a conversão.

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A igreja é a chave para o extrativismo. Ela abre a porta do paraíso para a entrada do inferno, ela promete o paraíso divino e ela traz o inferno para dentro do paraíso, que é aquilo lá, que está em estado puro, em estado de vida! O que a gente burramente chama de estado primitivo. É um total descontrole, um total equívoco. Uma situação de equívoco e que beira a loucura. E esse é o ponto do nosso trabalho: tentar apontar para esse equívoco e tratá-lo como tal. Enfim, esse trabalho trata de coisas que todo mundo vem tratando, mas a gente procurou ir ao que a gente acha que é ponto central ali, que é a transformação do pajé em pastor, a transformação de pessoas que vivem na floresta em vilarejo e o processo de evangelização dessas pessoas. Achamos que essa é realmente a porta de entrada para o extrativismo, que acontece de forma ilegal e galopante na região, a última da Amazônia, que ainda pode ser defendida. ✱

A recriação de uma cosmogonia

O Anticósmico
O Anticósmico - Maioral é Dragão Negro, 2024 da série: Chama Negra 85

Thiago Martins de Melo nasceu 1981, em São Luís do Maranhão, onde mora e trabalha. O artista já participou de várias residências em Guadalajara, México, onde atualmente está envolvido em um projeto junto a Rigo Campuzano, um jovem curador mexicano.
A produção de Thiago se caracteriza pela visceralidade de sua pintura e suas pesquisas na área de psicologia e acerca das religiões de resistência aos colonizadores, especialmente espanhóis e portugueses.

Publicamos a seguir dois textos referentes a obras expostas na Espanha e no estande da Lima Galeria, do Maranhão, durante a SP-Arte, em São Paulo.

Exu force power, 2012
Exu force power, 2012

“Quimbanda Brasileira dentro de tantas outras correntes e cultos de resistência no Brasil tem sua gênese no entrechoque da violência cristã sob o signo do deus crucificado sobre o povo da terra hoje chamada Brasil e os povos da África que cruzaram o Atlântico sob o ferro e o fogo do colonizador.

O culto aos ancestrais divinizados de guerreiros indígenas, de escravizados e exilados do Santo Ofício encontrou no Brasil terra fértil para a manutenção de seus poderes sob a via do sincretismo e dos Macaias, a cura, a maldição, a vingança pela via da espiritualidade alcançou a alcunha de diabólica. O culto sabático encontrou sua aliança com os espíritos da floresta e os voduns ancestrais.

A Quimbanda Brasileira, como verdadeiro culto de mão esquerda, assumiu conceitos cabalísticos, gnósticos anti-demiúrgicos que fazem jus às suas máscaras deíficas de associação ao Diabo e também ao grande senhor dos caminhos o orixá Exu, de quem os poderosos mortos tomam emprestado sua alcunha.
A Quimbanda é o culto do envenenamento do Coronel, da decapitação do nazareno, da liberdade individual, do empoderamento dos desgraçados, de honra àqueles que morreram nas fogueiras da inquisição, no machado do carrasco, nas forcas, no aço, na bala, na fome, na tortura e que tendo vivenciado a dor humana se divinizaram na senda adversária para guiar seus irmãos encarnados. Laroyê Exu, Exu é Mojubá. (TMM)

O mago, 2023
87

“O Mago é o início da ação na jornada espiritual do tarot. Todas as ferramentas que simbolizam os quatro elementos estão ao seu dispor, incluso a mesa que tem uma de suas pernas como apoio. Os 22 arcanos do tarot tem sua correlação com a árvore da vida, o mago seria o 11º caminho, o da inteligência luminosa, Keter-Hockmah.
O tarot tem sua origem desconhecida, o mito mais antigo relaciona sua origem à tradição egípcia, do chamado Livro de Thoth. Em que Deus Thoth escondeu a sabedoria do mundo em um objeto de vício, o jogo das cartas.
Mas o tarot nos chega através de suas versões medievais francesa e italiana. A sabedoria dos arcanos e dos caminhos da vida transforma esse jogo de cartas em uma catedral que foi guardada e transmitida pelos antigos como toda tradição hermética de ouvido em ouvido até chegar a nós na era da disseminação indiscriminada de informação e desinformação.
No Brasil, existem teorias de que o primeiro baralho tenha chegado escondido na vinda dos jesuítas. De certo, é que as tradições mágicas da península ibérica e do mediterrâneo encontraram durante os séculos terra fértil no sincretismo com tradições indígenas e africanas no Brasil.” ✱

A guerra, a guerra cultural, a arte

O que estamos fazendo aqui? Acompanhando uma infindável quantidade de guerras cotidianas, uma guerra de notícias, vindas de todos os cantos do planeta, fake news cada vez mais frequentes, informações que revelam uma polarização de ideias – políticas, religiosas, sociais – que operam e acreditam em civilizações diferentes.
Os lugares da batalha estão demarcados, há séculos, e foram retratados nas tragédias épicas da literatura e da arte. E nessa batalha sempre houve um setor da humanidade que pulsa pela vida e outro que pulsa pela morte.

Entendemos a vida como parte da defesa de nossa civilização, o respeito pelo outro, pela natureza, pela evolução do conhecimento, da ciência, pela valorização da cultura. Do outro lado se articulam a censura, os cancelamentos, as inverdades, a catequização, o viver no excesso, a despeito da falta de tudo para o outro.
Com a tecnologia, o que mudou é a forma como enxergamos tudo isso, a velocidade e sua dimensão universal.

Esta edição traz vários artigos, entrevistas e reportagens que retratam, a partir de diferentes ângulos, diferentes formas de violência que se repetem e, ao mesmo tempo, como a arte e a cultura, ao longo da história, driblam e jogam na defesa e no ataque, fazendo da repetição o lugar do possível.

Em Paradoxos da Repetição, a psicanalista e escritora Dominique Fingermann sustenta:
“Não existe assunto mais eminentemente clínico para um psicanalista do que o problema da repetição. Motivo de tantos lamentos, a repetição parece estruturar nossa própria capacidade de sofrer, ela pode conduzir alguém a se engajar na experiência de uma análise, ela pode se tornar o inferno mais íntimo de cada um. (…) Cada análise pode aceder a esse ponto de virada, ou seja, mais além de sua redundância patética ou tediosa, extrair o alcance ético da repetição. Pois, se na psicanálise o fenômeno apresenta-se como um estraga prazer, a filosofia extrai dessa temporalidade paradoxal algo que volta, sempre atual e único, nunca passado, a arte e a música usam seus recursos para produzir o mais novo e surpreendente, e a poesia joga com seu ritmo para lançar mão da sua rima e de sua pulsação própria.”

Apresentamos, nas páginas 10, uma histórica correspondência entre o pai da física, Albert Einstein, e o médico e pai da psicanálise, Sigmund Freud. Estas cartas foram publicadas em 1933, em Paris, em inglês, francês e alemão, sob o título de Por que a guerra?
As reflexões nelas contidas faziam parte, quase cem anos atrás, das discussões tidas no fórum do Instituto Internacional de Cooperação Intelectual (IICI), fundado em 1926, em Paris, que tinha como objetivo “fortalecer a colaboração entre intelectuais de cultura e nacionalidade distintas, a fim de criar condições propícias ao surgimento de um novo humanismo, com o escopo de respaldar os esforços em prol da paz.” A Alemanha, que se preparava para o futuro imediato da Segunda Guerra Mundial, proibiu sua publicação.
Esta nova edição se debruça sobre conflitos aos quais continuamos expostos: Fabio Cypriano aborda as Guerras Culturais; Maria Hirszman relembra o Golpe de 1964 e seus ecos, com a entrevista do historiador João Cézar de Castro Rocha, que se dedicou a examinar os discursos da extrema direita na tentativa de compreender as razões do movimento contemporâneo.

Jotabê Medeiros escreve sobre a violência religiosa e traz um contundente depoimento do cineasta Luiz Bolognesie. Em uma entrevista a Fabio Cypriano, o artista Mauricio Dias, da dupla Dias & Riedweg, denuncia também a violência catequizadora.

A edição traz ainda as obras viscerais do artista maranhense Thiago Martins de Melo, uma reportagem de Leonor Amarante em meio às manifestações das mulheres mexicanas defendendo seus direitos e os investimentos culturais no Ceará – não só em Fortaleza, mas também em Juazeiro do Norte e no Crato, com a construção do Centro Cultural do Cariri. Iniciativas que emprestam o fôlego necessário para continuar caminhando. Boa leitura! ✱