Em janeiro passado, uma vereadora do PL de Fortaleza gravou um vídeo, que rapidamente viralizou, atacando a Pinacoteca do Ceará por exibir supostas obras contra a moral cristã e a adequada formação das crianças. Sem explicar que tais trabalhos estão em áreas com sinalização específica sobre a classificação etária indicativa, seguindo parâmetros de regras federais, a parlamentar do Partido Liberal, cujo presidente esteve recentemente preso envolvido nos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023, acusou o PT, responsável pelo governo do Ceará e, consequentemente pela gestão da Pinacoteca, usando uma típica retórica de ódio, para usar uma pauta de costumes de forma eleitoreira. Afinal, apesar da exposição com tais obras estar aberta há mais de um ano, a vereadora causa a controvérsia no início de 2024, quando há eleições municipais no país. Coincidência?

Essas ações são uma espécie de reflexo tardio do que o sociólogo norte-americano James Davison Hunter diagnosticou no livro Culture Wars: the Struggle to define America, publicado em 1991 e sem tradução no Brasil. Apropriando-se da expressão alemã Kulturkampf (guerra cultural), conceito usado pela campanha contra a influência da igreja católica realizada pelo chanceler Otto von Bismarck, entre 1871 e 1878, Hunter observou como seu país se polarizava em manifestações contra o aborto, contra a arte e contra o feminismo, para citar algumas. Mais recentemente, jornadas difamando processos eleitorais e contra vacinas podem ser observadas também no contexto de guerras culturais.
Mais do que uma simples oposição entre propostas conservadoras ou progressistas, os agentes dessa guerra se utilizam de lógicas que rechaçam a ciência e mesmo o bom senso, caracterizando-se por denunciar perigos inexistentes a partir de informações falsas. Em síntese, trata-se de uma cruzada que visa evitar toda forma de autonomia dos cidadãos e cidadãs para que se sujeitem ao sistema neoliberal sem questionamento e usando a sensação do pânico como método – uma estratégia de apelo emocional, portanto difícil de ser contraposta com argumentos racionais.

No Brasil, Olavo de Carvalho (1947-2022) foi um dos grandes porta-vozes dessas guerras, chegando a influenciar milhares de pessoas e até mesmo a indicar ministros de Estado no início do governo Bolsonaro. Trata-se, como afirma Hunter, da disputa pelo presente e o futuro: “Em última análise, a batalha por esse território simbólico revela um conflito sobre visões de mundo – sobre quais padrões nossas comunidades e nossa nação viverão; sobre o que consideramos ser ‘de valor duradouro’ em nossas comunidades; sobre o que consideramos uma representação justa de nossos tempos, e assim por diante”.

As guerras culturais, contudo, são uma explícita estratégia de movimentos conservadores que perderam o controle da narrativa no campo da cultura e da arte, no qual ideias libertárias e progressistas passaram a dominar os debates, especialmente a partir dos movimentos de contracultura dos anos 1960/70. Como tais valores estão intrinsicamente associados aos partidos de esquerda, foi necessário que conservadores buscassem estratégias para questionar esse campo e, então, junta-se em um mesmo pacote os avanços sobre questões identitárias, a pedagogia do oprimido de Paulo Freire, a arte contemporânea, vacinas e o aborto, para citar os principais focos dessas guerras.

Contudo, o objetivo efetivo, mesmo que baseado na pauta dos costumes, é simplesmente buscar desconstruir o charme das propostas libertárias da esquerda através do medo: “Eles vão destruir nossas famílias”. Esse mote, no entanto, é tão apelativo quanto fantasioso, afinal no Brasil atual 48% dos lares brasileiros têm mulheres como chefe de família, para citar um dado que aponta como a tradicional equação papai e mamãe está cada vez mais em questão.

Não há dúvida de que a eleição de Bolsonaro, em 2018, foi construída em boa parte sobre o pano de fundo das guerras culturais, como as “denúncias” do kit gay ou da “mamadeira de piroca”, fake news geradas exatamente para espalhar o pânico. Os recentes ataques à Pinacoteca do Ceará, nesse sentido, são muito semelhantes aos conjugados ataques às artes no Brasil em 2017.

Neste único ano, véspera das eleições presidenciais, foram vítimas de discursos de ódio ao menos três ações do Sesc – uma performance em Brasília, uma peça em Jundiaí e a fala em São Paulo da canadense Judith Butler, além de uma exposição no Museu de Arte Moderna de São Paulo e outra no Santander Cultural de Porto Alegre. Lideraram essas ações de disseminação de mentiras o Movimento Brasil Livre (MBL), um dos pilares de apoio ao bolsonarismo, naquela época. As acusações são exatamente no formato descrito por Hunter para os Estados Unidos: “Eles observam algum objeto artístico de forma isolada, descontextualizado do projeto estético mais amplo do artista, e consideram ele obsceno, pornográfico e lascivo.”

No caso, o sociólogo tomou por base as polêmicas que envolveram artistas como o fotógrafo Robert Mapplethorpe (1946-1989) com sua última retrospectiva organizada em vida, The Perfect Moment, que iria ser exibida em vários museus norte-americanos e teve sua itinerância em Washington cancelada, após ataques ferozes da American Family Association.

Voltando ao Brasil do século 21, teve papel essencial nos ataques às artes em 2017 o uso das redes sociais de forma sincronizada, algo muito semelhante ao que ocorreu com a tentativa de golpe no 8 de janeiro de 2023. A forma violenta como obras de arte foram destruídas nas sedes dos Três Poderes, em Brasília, atesta como a campanha iniciada anos antes foi essencial para a formação em massa de dissonantes cognitivos.

Ao mesmo tempo, os ataques à cultura servem como cortinas de fumaça, que buscam desviar a atenção pública de fatos relevantes, como o que ocorreu em 8 de março de 2023, quando o deputado federal mais votado no Brasil com 1.492.047 votos, Nikolas Ferreira, subiu à tribuna no Dia da Mulher com uma peruca feminina e fez um discurso transfóbico. Bolsonarista, o deputado acabava de voltar da conferência conservadora CPAC, nos Estados Unidos, onde também estava Eduardo Bolsonaro, que tirou como uma das estratégias a crítica à cultura trans. Sua ação foi capa de jornais e competiu com as histórias das joias recebidas por Bolsonaro irregularmente.

A retomada neoliberal, que teve início com o golpe de 2016 sob a liderança do capital financeiro especulativo, vem financiando grupos que se propagam como defensores de valores liberais, mas, na verdade, estão dispostos a defender todo tipo de censura e ataque a artistas, um dos segmentos que, quase de maneira unânime, denunciava os desmanches sociais. Não por acaso, um dos primeiros atos do presidente imposto Michel Temer foi extinguir o Ministério da Cultura, em 2016, ação que foi rapidamente revista, por pressão dos artistas e a repercussão negativa dela decorrente.

Em outubro de 2017, o repórter da revista Piauí Bruno Abbud publicou um artigo após ter acesso a dois meses de conversa em um grupo de WhatsApp do Movimento Brasil Livre (MBL), denominado MBL mercado, do qual tomavam parte pelo menos 158 funcionários de instituições como Banco Safra, XP Investimentos e Merrill Lynch, para arrecadar fundos para o grupo e “levar as pautas dos executivos às discussões públicas e aos encontros a portas fechadas que os membros do MBL teriam com políticos e lideranças nacionais”, de acordo com Abbud na reportagem.

Em duas semanas, o grupo arrecadou R$ 50 mil dos investidores, mas doações também são feitas em milhas, o que garante passagens aéreas gratuitas aos militantes neoliberais.

Nos conteúdos dessas conversas, revelam-se algumas estratégias das motivações desse grupo que ataca a “arte degenerada” do início do século 21.
As trocas de mensagens são da época em que o então prefeito de São Paulo João Doria (PSDB) lançava-se candidato a presidente do Brasil, o que os líderes do MBL comemoravam e defendiam: “Com ou sem psdb. A aliança q pode lhe eleger está no pmdb dem evangélicos agro e mbl. Nosso trabalho será o de unir essa turma num projeto comum”, postou Renan Santos, um de seus fundadores.

É justamente essa aliança de “neoliberais” com setores reacionários, como os evangélicos e os ruralistas, que visa difamar agentes culturais, nos termos daquilo que ocorreu ao longo de 2017. Se não houve confisco de obras ou exposições para ridicularizar as vanguardas da época, como quando os nazistas chegaram ao poder, a “propaganda” contra a arte contemporânea segue estridente, como agora no Ceará.

E o campo de batalha está nas redes sociais, o mais adequado local para agregar grupos moralistas baseados em fake news, gerando o que se chama “pós-verdade” (post-truth), a palavra do ano de 2016, segundo o dicionário inglês Oxford. De acordo com sua definição, trata-se de um substantivo “que se relaciona ou denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais”.

Claro que boatos existem, desde sempre, mas a força das falsas verdades, atualmente, decorre de dois fatores: o uso das redes sociais e a bolha que se forma em torno de grupos com a mesma opinião. Os algoritmos utilizados pelo Facebook, por exemplo, fazem com que seus usuários tendam a receber informações que estejam de acordo com seu próprio ponto de vista, reforçando a ideia de que as mostras defendem pedofilia e dando a impressão, a quem tem tal opinião, de que todos concordam com ele. Por outro lado, o WhatsApp acaba sendo outro irradiador de notícias falsas, já que as pessoas que recebem informações por esse aplicativo tendem a acreditar no que leem, uma vez que recebem as mensagens de amigos ou parentes, sem checar sua veracidade.

 

Esse é, de fato, um fenômeno global que ocorre mesmo em sociedades com bons níveis de acesso à informação por meio de jornais. O Brexit, por exemplo, teria sido aprovado por conta de boatos de que a permanência na União Europeia custava à Grã-Bretanha US$ 470 milhões por semana. Um dos responsáveis por essa campanha seria a empresa britânica Cambridge Analytica, parcialmente de propriedade do investidor norte-americano Robert Mercer, defensor de pautas conservadoras.

A empresa também teria sido encarregada da primeira campanha de Donald Trump à presidência dos EUA e, entre suas atividades, estaria a tentativa de vazamento de 33 mil e-mails da então candidata Hillary Clinton, como denunciou Julian Assange. Nas trocas de mensagens do grupo de WhatsApp do MBL com o mercado financeiro, chegou a ser sugerida a contratação da Cambridge Analytica por João Doria (PSDB) para sua campanha à presidência, que acabou desarticulada pelo próprio partido.
Nos Estados Unidos, os irmãos bilionários Charles e David Koch, filhos de um empresário de petróleo, são considerados outros possíveis financiadores de movimentos liberais que se utilizam de fake news. No Brasil, integrantes do MBL estariam relacionados aos institutos patrocinados pelos irmãos Koch.

Facebook, o incentivo à discórdia e o exibicionismo moral

Analistas diversos, como James Ball, no livro Post-Truth. How Bullshit conquered the world (pós-verdade como a bobagem conquistou o mundo), apontam como as fake news foram importantes tanto para a vitória de Donald Trump, nos EUA, em 2016, como para o Brexit, na Inglaterra, no mesmo ano, frutos de estratégias deliberadas de agências com expertise na área e que enganam a opinião pública com campanhas com conteúdos exagerados e até mesmo falsos. No Brasil, não há dúvida sobre o impacto das fake news na eleição de Jair Bolsonaro, divulgadas principalmente por WhatsApp, como revelou a jornalista Patrícia Campos Mello, ao contrário dos casos anteriores, onde o Facebook foi a mídia mais usada para compartilhamento de informações.

Com tudo isso, torna-se cada vez mais urgente o debate sobre o controle das redes sociais, tendo em vista que está já se tornando consensual que o Facebook se tornou uma rede baseada na exploração “da atração do cérebro humano pela discórdia”, como aponta o jornalista norte-americano Max Fisher, no livro A Máquina do Caos. Como as redes sociais reprogramaram nossa mente e nosso mundo. Segundo ele, “a tecnologia das redes sociais exerce uma atração tão poderosa na nossa psicologia e na nossa identidade, e é tão predominante em nossa vida, que transforma o jeito como pensamos, como nos comportamos e como nos relacionamos uns com os outros”.

As redes sociais, especialmente Facebook e Instagram, se tornaram viveiros de delinquentes, estimulados pelos algoritmos que potencializam discursos de ódio. Miguel Lago, em artigo na revista Piauí de fevereiro de 2023, “Prendam os perfis!”, apontou como essas redes foram essenciais para o 8J: “Nunca um evento histórico brasileiro foi registrado a partir de tantos ângulos e câmaras. (…) Antes mesmo que a imprensa e autoridades entendessem o que se passava, milhões de bolsonaristas assistiam à invasão por meio de celulares de agressores. É quase como se tudo estivesse sendo feito pelos perfis apenas com o intuito de criar conteúdo para as redes sociais”. Não por acaso, a tal vereadora que atacou a Pinacoteca do Ceará fala por meio do seu celular, de dentro da própria exposição, como fizeram os enlouquecidos do 8 de janeiro.

Pois é exatamente essa mistura da discórdia incentivada pelas redes sociais com as campanhas contra a cultura que se utilizam os “defensores” dos bons costumes. Se essa é uma guerra que veio para ficar, ela precisa e pode ser minimizada com algum tipo de controle nas redes, um debate mais que necessário, ainda mais agora com a sofisticação da Inteligência Artificial Generativa.

No entanto, mais que algum tipo de controle, o campo progressista precisa seguir com suas ações no campo da cultura de valorização das pautas libertárias. Contra o “gabinete do ódio” a melhor estratégia é o “gabinete do amor”. ✱

Deixe um comentário

Por favor, escreva um comentário
Por favor, escreva seu nome