Tarsila do Amaral (Capivari/SP, 1886 – São Paulo/SP, 1973) Retrato de Mário de Andrade, 1922 Óleo sobre tela [Oil on canvas], 53,5 x 46,5 cm Acervo Artístico-Cultural dos Palácios do Governo do Estado de São Paulo Foto: Eduardo Ortega

PARTE DOIS

Pelo fato da mostra Mário de Andrade. Duas Vidas ter sido concebida a partir das obras colecionadas pelo crítico, quando desci até o subsolo do MASP para visitá-la, estava ansioso por rever algumas das peças que haviam pertencido a Mário e mesmo conhecer outras que nunca haviam sido exibidas¹. Dentre as várias obras que a integram, a coleção congrega um dos mais importantes conjuntos de arte do modernismo brasileiro, com obras de praticamente todos os artistas do movimento: de Anita Malfatti e Di Cavalcanti a Candido Portinari e outros. Mas a mostra não fica confinada apenas aos modernistas brasileiros. Ela traz também alguns exemplares do conjunto de peças coloniais de Mário e uma série de fotografias produzida por ele durante suas viagens para o Norte e o Nordeste do Brasil, durante a segunda metade dos anos 1920. 

Obras de diversas origens, o que as une é o fato de terem sido colecionadas por um dos intelectuais brasileiros mais importantes do século passado. Mas o que faz a coleção de Mário na série de exposições deste ano no MASP, dedicadas à questão LGBTQIA+? 

Ora, Mário de Andrade era homossexual. 

Na verdade, fica difícil afirmar de maneira categórica a homossexualidade do intelectual porque, em primeiro lugar, não é público, que eu saiba, qualquer caso amoroso que Mário possa ter tido com outros sujeitos. De concreto, o que sempre existiu foram os comentários que seus opositores espalhavam em conversas e mesmo em jornais e outros tipos de publicações. De fato, seus inimigos e ex amigos (Oswald de Andrade, por exemplo), eram mestres em tentar desqualificá-lo, tanto por sua origem africana (ou seja, por ter índices fenotípicos de homem negro), quanto por suas supostas afetações e interesse por homens.

Todas essas insinuações, não passavam disso, insinuações. Mesmo em seus depoimentos mais reservados em cartas a amigos e amigas, como Manuel Bandeira e Oneyda Alvarenga – considerados reveladores de sua sexualidade – o autor é evasivo, anuncia sua homossexualidade (no caso da carta para Bandeira) para, em seguida, fugir da questão².

Embora conhecesse um ou outro de seus trabalhos literários em que o homoerotismo era discretamente aludido, o certo é que, quando, em meados dos anos 1990, pesquisei sua produção como crítico de arte para meu doutorado, a questão da sexualidade de Mário não estava na ordem do dia. Durante a pesquisa para a tese, o único índice que, de fato, me chamou a atenção em relação à sexualidade de Mário foi aquele trecho da crítica que ele escreveu sobre as figuras de Portinari, citado na primeira parte deste artigo. Ali me pareceu evidente a emersão de algo vindo à tona na descrição daqueles “machos rudes” em contraposição às mulheres “boas como minha mãe”. E só.

Voltando à exposição, é interessante que as obras que a integram, além de terem pertencido ao crítico, possuem em comum apenas outro aspecto: todas representam figuras masculinas. 

Seria esse aspecto a demonstrar a dimensão queer de Mário?

Flávio de Carvalho (Barra Mansa, Rio de Janeiro, Brasil, 1899—1973, Valinhos, São Paulo, Brasil). Homem [Man], 1933. Aquarela e tinta de caneta sobre papel [Watercolor and pen ink on paper], 37,5 × 29,7 cm
IEB-USP

Se as obras de Bacon, lá no primeiro andar do museu, assinalavam uma sexualidade homoerótica, dilacerada – e que, como afirmei, transcendia essa questão e se dirigia a uma reflexão sobre a própria condição humana –, na mostra da coleção de Mário não havia nada disso. De fato, o que está ali apresentado não é a coleção do crítico, mas um recorte da mesma, resgatando apenas obras em que estão representados homens. Ora, por si só, a mostra apenas desse segmento não evidencia a homossexualidade do colecionador, e, para chegar a uma conclusão mais efetiva sobre a questão, o certo teria sido cotejar quantitativamente quantas obras, na coleção, representam homens e quantas representam mulheres, seres andróginos e crianças.

Mas é claro que essa medição também não ajudaria a determinar a sexualidade de Mário. Assim, a exposição acaba valendo pelo interesse das obras exibidas e não pelo teor geral da mostra.

***

Alguns dias depois da visita às duas exposições, comecei a ler o interessantíssimo catálogo da Mário de Andrade. Duas Vidas, que contém textos importantes para ampliar nossa compreensão sobre a dimensão queer da personalidade de Mário. Assim, mais do que nunca o catálogo assumiu uma importância ímpar para assegurar o objetivo e, portanto, também o interesse da exposição. Por tais motivos comentarei dois artigos ali publicados. 

O primeiro deles leva o mesmo título da exposição, assinado por Regina T. Barros que, logo no início, atenta para o propósito principal da exibição: rever a coleção de arte de Mário de Andrade “pela perspectiva de uma sensibilidade gay”. Isto é, pelo fato de também integrar o grupo de mostras LGBTQIA+ do museu, a exposição possui propósitos próximos daquela dedicada a Bacon: adequar a pluralidade e alcance das obras ali apresentadas a um só direcionamento.

Na continuidade da leitura, me deparei com um trecho de uma carta que Mário endereçou a um amigo em que, rememorando a viagem que fez pela Amazônia – onde teve contato com a população mais pobre do lugar, inclusive fotografando-a. O trecho me lembrou a crítica de Mário sobre os homens figurados por Portinari:

Era uma verdadeira sensação de rendez-vous [encontro], o carinho meticuloso com que eu esperava todas as noitinhas o urro dos guaribas do mato. E aquelas conversas de terceira classe com seres duma rudimentaridade espantosa, seres por isso mesmo perfeitamente gratuitos, naquele cheiro veemente, contagioso, de lenha umedecida, bois e corpos seminus, você não imagina, Osório, eu era aquilo, meio vegetal meio água parada, não sei³

(A pulsão que emana desse parágrafo me parece ainda maior do que aquela presente no artigo sore Portinari, demonstrando que muitas vezes – e como o outro poeta –, Mário nunca soube direito onde colocar o desejo).

A curadora citou a carta para afirmar a presença, na subjetividade de Mário, da atração, do desejo sexual entre classes sociais (cross-class desire) – conceito que ajudaria a entender o interesse do intelectual em fotografar os homens desvalidos do Norte do País. E vai mais longe: Regina T. de Barros afirma, na sequência, que, concomitante a essa atração interclasse experimentada pelo crítico (onde, digo eu, estava inserida uma relação de poder, em que Mário era o mais forte), havia também uma identificação entre ele e seus modelos, pois o intelectual, em muitos autorretratos que produziu durante a viagem, repetiu as poses de seus retratados – mais um dado para ajudar a penetrar na dimensão complexa da subjetividade do crítico.

Mário de Andrade (São Paulo, Brasil, 1893—1945) Aposta de ridículo em Tefé [Bet of Ridiculous in Tefé], 12.6.1927 [June 12, 1927]
Impressão digital sobre papel [Digital print on paper], 6,1 × 3,7 cm
IEB-USP

Dentre uma série de outras questões, Regina atenta para algo que ajudaria a entender a razão da mostra: a relação privada que Mário estabelecia com sua coleção de desenhos⁴: “Os amadores do desenho guardam os seus em pastas. Desenhos são para a gente folhear, são para serem lidos que nem poesia”, disse o intelectual. E Regina acrescenta:

Nus masculinos, dorsos musculosos (…) negros, mulatos, indígenas, operários, intelectuais, marinheiros, garis, policiais, jogadores (…); homens no bar, homens repousando: uma seleção de desenhos colecionados por Mário tematizando figuras masculinas (…) e que, por si só pouco ou nada têm de eróticas (…)

E, em seguida, o pulo do gato:

Porém, quando entendidas como um conjunto de imagens consumidas de maneira privada, longe dos olhares da censura católica, moralista e heteronormativa, podem ser lidas sob uma perspectiva de recepção gay, mesmo que a posteriori (…)

E, então, a curadora cita o estudioso Rudi Bleys, para quem a intenção de uma determinada obra pode não ter sido homoerótica em sua concepção, mas “não é inteiramente errado reconhecer certo conteúdo ‘gay’ somente em virtude da contextualização”.⁵ Ou seja, individualmente as obras que formam a coleção de Mário de Andrade podem não ter sido concebidas com qualquer objetivo ligado à homossexualidade, mas o todo em que se inserem – a própria coleção.

Mas, a pergunta continua: o que vemos na exposição do MASP é a coleção de Mário? O crítico não teria colecionado figuras de mulher, de crianças, de seres andróginos, somente figuras de homens? 

A questão será respondida mais adiante, em O encanto que nasce das adorações serenas, de Ivo Mesquita, texto também publicado no catálogo:

A coleção de arte de Mário de Andrade não foi constituída apenas por trabalhos escolhidos por ele. Muitas peças foram presentes de amigos, artistas ou não, mas ele investiu um bom dinheiro na época, ajudou uns tantos profissionais, algo marcante em uma pessoa que sempre viveu do seu salário. Reúne artistas brasileiros e estrangeiros e não há nessa reunião nada predominante entre figuras, retratos, paisagens e naturezas-mortas (…) Tampouco pode-se dizer que contenha uma temática erótica, como estamos buscando. Há umas tantas cenas de casais (…), bordeis (…). Nada excitante. Mas há alguns nus femininos, cenas de intimidade entre mulheres, bastante sexy como os de Carlos Leão (…), Enrico Bianco (…) e Marie Laurencin (…). Coerente com a coleção de um cavalheiro elegante naqueles dias⁶.

O que o texto apresenta, é que, para seus objetivos, pouco importa quantas figuras de homens ou de mulheres Mário colecionou. O que o interessa é demonstrar como o crítico olhava para as imagens masculinas amealhadas durante anos. E, para tanto, Ivo como que incorpora o olhar de Mário com o objetivo de traduzir para o leitor a dimensão queer desse olhar. E assim, agindo como uma espécie de guia, ele nos transforma em turistas aprendizes de uma subjetividade complexa como a de Mário, não para “entendê-la”, mas apenas para frui-las.

(Desde o início Ivo está preocupado com a “experiência do olhar” e seu peso na aproximação com a arte).

O autor incorpora o olhar de Mário, é certo, mas não se submete a ele, pelo contrário. É notável como no texto existe, por assim dizer, um acolhimento crítico do que Mário percebia nos trabalhos de arte que escolheu ou que, por acaso, chegaram até ele.

Um encontro esquisito esse de Mário e Bacon no MASP. Duas exposições de natureza distintas convivendo no mesmo lugar, exibidas no mesmo período porque enfocam perspectivas diferentes do universo queer: aquela presente na obra de um dos pintores mais importantes da segunda metade do século 20, e a outra fechada na coleção de um dos intelectuais brasileiros mais profícuos da primeira metade do século passado.

Quando Mário faleceu, em 1945, Bacon, ainda novo, estava deslanchando sua carreira.

Será que o crítico teve tempo de contemplar pelo menos alguma reprodução fotográfica da produção do pintor? Será que sentiria tesão ao observar tais imagens? Impossível saber a resposta. Mas Mário, sem dúvida, entenderia que a produção daquele então jovem Bacon, embora totalmente comprometidas com as pulsões pessoais que lhe ensejaram, iam muito além delas.

P.S. Como os leitores e leitoras perceberam, além da visita às duas exposições, foi fundamental para esta resenha, a leitura dos catálogos correspondentes. Se o MASP merece todos os elogios pelas duas mostras, ele merece também pelo menos um reparo: como comentam nas redes sociais, impossível firmar-se como uma instituição diversa, inclusiva e plural, cobrando R$ 35,00 (meia entrada), R$ 179,00 pelo catálogo da mostra dedicada a Bacon e R$139,00 pelo catálogo da mostra dedicada à coleção de Mário de Andrade. Que tipo de inclusão é essa?

¹ A maior parte da exposição, com curadoria de Regina T. de Barros, apresenta obras pertencentes ao acervo do Instituto de Estudo Brasileiro da USP, instituição que guarda a coleção de arte de Mário, assim como seu arquivo e biblioteca. A mostra fica em cartaz até o próximo dia 9 de junho.

² No catálogo, atento para dois textos que tratam do assunto. O primeiro, “Mário de Andrade: duas vidas”, de Regina Teixeira de Barros, (p. 14 e segs.) trata, entre outros aspectos, desse caráter evasivo do autor frente à sua sexualidade. A autora também se refere aos preconceitos sofridos por Mário. O segundo, “Os mesmos insultos extraliterários se repetem incansavelmente: homofobia e preconceito na recepção de Mário de Andrade”, (p. 94 e segs.) de Jorge Vergara, faz um interessante estudo sobre os preconceitos sofridos por Mário de Andrade. BARROS, Regina T. de Mário de Andrade: duas vidas. São Paulo: MASP, 2024.

³ Carta a José Osório de Oliveira. São Paulo. 1 de agosto de 1934. Apud BARROS, Regina Teixeira de. Op. cit. p. 26.

⁴ Na verdade uma coleção de papeis: desenhos, mas também gravuras e fotos.

⁵ BARROS, Regina Teixeira de. Op. cit. p. 26. P. 29/30.

⁶ MESQUITA, Ivo. “O encanto que nasce das adorações serenas”. In BARROS, Regina Teixeira de. Op. cit, p. 54.

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