O Avesso do Céu
Imagens do Filme: O Avesso do Céu [The reverse of Heaven], da dupla Dias & Riedweg está em exibição na Galeria Vermelho em São Paulo

É muito difícil sair impassível depois de uma exibição do filme O Avesso do Céu, da dupla Dias & Riedweg, em cartaz na galeria Vermelho até 11 de maio. Nele é retratada a violência da manipulação religiosa no território indígena tikuna, na região do Alto Solimões e do Javari, na fronteira do Brasil com Peru e Colômbia, em cenas reais, que misturam rituais a imagens do desmatamento na Amazônia, tornando impossível não perceber a ligação intrínseca entre ambas.

A dupla, constituída há 30 anos pelo brasileiro Maurício Dias e o suíço Walter Riedweg, é conhecida por atuar com comunidades específicas sejam porteiros de prédios, policiais, crianças de rua ou internos de clínicas psiquiátricas, em um raro exemplo de envolvimento afetivo no panorama da arte brasileira. Essa nova obra, finalizada em 2023, contudo, se constrói novamente em uma imersão de três meses com dois grupos: indígenas e evangélicos, mas neste último sem a costumeira empatia.

Por isso, resolvi mandar duas perguntas para Maurício, que estava em São Paulo para a abertura, que foram respondidas em uma série de 13 áudios transcritos a seguir. As perguntas foram: o que os levou a produzir uma obra em Atalaia do Norte; e como se deu o envolvimento que em geral vocês costumam dedicar em seus trabalhos. Leia a seguir as respostas:

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Maurício Dias – O que levou a gente para Atalaia do Norte foi a ideia de fazer um trabalho sobre a síndrome de Jerusalém. Ela surgiu, na verdade, em 2013, da residência à convite de Benjamin Seroussi no Jerusalém Visual Arts Center, em Israel.
A gente ficou em Jerusalém um tempo. E o que mais impressionou a gente lá era a “maluquice da devoção”. Eu chamo de maluquice porque é na verdade essa veneração exacerbada, exposta por centenas de peregrinos cada vez que eles se encontram com as referências e monumentos quase mitológicos das religiões deles. Isso acontece tanto entre os judeus, como os cristãos e os islâmicos. Nessa região tem a mesquita de Al-Aqsa, de onde Maomé supostamente se transformou num cavalo alado e foi para os céus, tem o extinto e destruído Templo de Salomão, onde judeus rezam no Muro das Lamentações, e isso tudo ao lado do Santo Sepulcro, onde Jesus, supostamente, está enterrado e onde centenas de peregrinos católicos e evangélicos fazem a Via Dolorosa, aquele caminho da Cruz, repetindo as estações até o Calvário. E vários crentes entram assim em um transe, que tem o nome de Síndrome de Jerusalém. Isso é uma coisa tão recorrente que o Estado de Israel não sabia o que fazer, porque atrapalhava a vida local, já que esses transes psicóticos, às vezes, se tornam violentos. Por isso, eles acabaram criando [em 1951] uma clínica para tratar disso, chamada Kfar Shaul, construída em um antigo vilarejo palestino.

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Essa síndrome de Jerusalém é uma coisa que a gente está, desde 2013, tentando abordar no nosso trabalho. A gente vem fazendo uma série de trabalhos com pacientes psiquiátricos, e nesses trabalhos, nessas imersões que a gente faz com um grupo de pacientes do IPUB, o Instituto de Psiquiatria da UFRJ, a gente vê com frequência o problema da fé, da mitologia, da existência de Deus. Essa questão, ela é, entre os pacientes psiquiátricos, ainda mais forte do que na sociedade em geral. Então a síndrome de Jerusalém tornou-se uma questão forte nesses trabalhos e acabou gerando uma série de trabalhos no contexto da psiquiatria que a gente fez nos últimos anos: Casulo, que ganhou a bolsa Zum do IMS, em 2018, o trabalho que a gente fez para a Casa Daros, em 2015, Nada absolutamente nada e Nada quase nada, que apresentamos na Verbo, na Vermelho, em 2016, que é uma performance a partir de textos do Robert Walser.

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E O Avesso do Céu, esse filme novo, também surge nesse contexto. Ele não é um filme sobre os indígenas, nem sobre os evangélicos. Ele é um filme sobre a loucura, sobre o estado do avesso, o estado de ser da fé dominada pela religião. A gente entende a fé como uma expressão individual de qualquer indivíduo para se relacionar com a sua condição de existência. Se ele é indígena, a fé vai servir para caçar, para pescar. Se ele é alguém do mercado da Faria Lima, ele vai “levar uma fezinha” para transações arriscadas. A fé faz parte da vida, a fé faz parte da condição humana de se relacionar com o desafio de estar vivo sem saber muita coisa sobre a vida, né? A gente tem essa diferença em relação aos outros seres. A gente lida com a ideia da morte o tempo todo que está vivo. E eu acho que a fé surge aí. E a religião, ela vai colonizar essa fé. Todas as religiões fazem isso. Em algum momento elas vão colonizar essa fé para organizar a fé territorialmente, que é o que acontece lá em Israel o tempo inteiro e acontece agora no Javari.

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O trabalho nunca aconteceu em Israel porque foi impossível para a gente fazer isso lá. A gente não fala hebreu, nem árabe. A gente nunca conseguiu nenhuma resposta da clínica Kfar Shaul, nem nenhum apoio institucional de lá para poder começar esse trabalho. Então a gente meio que botou esse trabalho na geladeira. Eu li um artigo do Bruno Meyerfeld, que é o correspondente franco-brasileiro do Le Monde no Brasil, em uma série de artigos a história da construção da Transamazônica, que deveria ter chegado a Atalaia do Norte, extremo Oeste do Brasil, na tríplice Fronteira do Peru, Colômbia e Brasil. Mas a Transamazônica nunca chegou até lá, ficaram faltando uns 600 km e eles desistiram porque essa região é completamente selvagem.

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E o último texto dessa série era focado em Atalaia do Norte, descrevia esse paraíso prometido na Terra, uma cidadezinha de 20 mil habitantes, completamente desorganizada, completamente bolsonarista, na qual você tem mais de 60 igrejas evangélicas diferentes, todas movidas por missionários que tentam entrar no Vale do Javari, o último reduto com indígenas não contactados na contemporaneidade.

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E aí a gente sacou que tinha que deslocar esse trabalho para tratar da conversão da fé em território, da conversão da fé de um indivíduo para uma religião, para o contexto amazônico, que essa questão se materializaria lá e de uma forma mais contemporânea e sul-americana. A maioria dos nossos trabalhos se desenvolve dentro da realidade ou na ótica latino-americana, então esse trabalho nessa tríplice fronteira para a gente virou uma nova obsessão também, como para os missionários. Essa cidade é uma espécie de trampolim para os missionários entrarem no Vale do Javari, para tentarem conhecer, encontrar, catalogar e converter novas culturas. É um pouco como a consequência do mito que sempre existiu da colonização. Os brancos fizeram isso na costa brasileira, desde o século 16, e foram penetrando país adentro. Em cada estado isso teve um nome e uma atividade diferentes mas um método parecido. Mas, Por trás dessa entrada religiosa sempre teve a questão extrativista. Se em Minas foram os minerais, na Amazônia foi a borracha, e hoje em dia é sobretudo a madeira. Então, lá no Javari, esses missionários já entram completamente financiados por exploradores que vão pegar as coisas do Javari depois. Tem coca, tem madeira, tem o pescado, que é super apreciado na alta culinária, porque são esses peixes gigantes da Amazônia, a caça, enfim, tudo o que ainda continua a fascinar a dita civilização como exótico e isso é o motor que leva esses missionários para lá. Os missionários são realmente crentes religiosos, daí a identificação com os governos de extrema direita. Mas você tem missionários do mundo todo lá prontos para entrar em aviões para jogar coisas, jogar espelhos, jogar correntes e presentinhos para seduzir indígenas que nem contactados foram. A gente não esteve com esses indígenas, é óbvio que é nocivo esse contato, e nunca foi o que a gente quis. O quer a gente queria era uma documentação desse encontro, dessa obsessão dos missionários para desvelar um pouco do que tem por trás desse dessa obsessão, que tem um interesse comercial atrás dela.

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E aí a gente foi na cara e na coragem, sem contato nenhum, a não ser uma chamada telefônica com Anderson Rocha, o secretário de Cultura na cidade vizinha, Benjamin Constant, que era uma cidade petista, um antropólogo local superinteressante que reagiu às nossas demandas. Ele colocou a gente em contato com alguns indígenas tikunas, completamente evangelizados, mas que têm um trabalho de defesa territorial, de reorganização social na região, e, também com o Tikuna Santo Cruz, que criou e dirige o Museu Magüta em Benjamin Constant sobre a cultura tikuna. E ele nos colocou em contato com famílias tikunas, com as quais a gente conviveu bastante com uma delas. A gente foi lá três vezes, cada vez um mês, e ficou com essa família tikuna. O pai é o homem que aparece ao longo do vídeo e que vai possibilitar um roteiro. No filme, é ele que derruba uma árvore, é ele o pai da menina que vai ter o ritual da moça nova. Por isso que é ele que bota aquela árvore abaixo e que vai batucar na árvore para retirar dela a pele. E essa pele ele vai secar, cortar os pedaços, para receber as pinturas que vão decorar o ritual e fazer a indumentária desse ritual da moça nova.
Esse é um ritual essencial na cultura tikuna, ritual de garantia da reprodução deles, do clã. Ele é feito quando a menina tem a primeira menstruação e é considerada pronta para a vida da mulher, para ser mãe e antes dela ter a primeira relação sexual, ela vai passar por um ritual em que seus cabelos são arrancados da cabeça. Ela recebe uma bebida fermentada de mandioca para anestesiar a dor. Tanto os mais velhos como os mais novos da família vão se vestir com essa pele pintada. São os mascarados e eles vão dar para ela a bebida e arrancar os cabelos para que ela seja assim batizada na vida adulta. Esse ritual foi proibido pelas igrejas, já completamente perseguido pela igreja católica, posteriormente pela Igreja da Santa Cruz e atualmente pelos evangélicos. Essas igrejas vão coibir o ritual da moça nova, e através do dízimo, elas manipulam a renda das pessoas porque pegam de um para dar para os outros controlando e ameaçando assim as práticas culturais originais dos tikunas. Esses rituais são praticados nas cozinhas e nos quintais, escondidos.

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A gente filmou um dos rituais dessa família com a qual a gente esteve em contato. E aí a gente deu para eles seis celulares que viraram devices importantes de câmera nesse trabalho. Eles filmaram outros rituais de moça nova e algumas outras festas deles e depois eles davam para a gente os arquivos. Eles ficaram com os aparelhos e a gente recebeu os arquivos, já entrando na sua segunda questão, da mais valia ou de como é a nossa relação com eles.

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Esse material que a gente recebeu deles entra no filme em imagens que aparecem em preto e branco, ou em fotografias, com um tratamento pictórico diferente para diferenciar a fonte das imagens que não são imagens diretamente filmadas por nós. É como se fossem aspas num texto, e as citações dos participantes estão no final do filme.

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Esse foi um trabalho superdifícil de pesquisar, de financiar e de executar sobretudo. Entre a primeira e a terceira vez que a gente esteve lá aconteceu a emboscada e os assassinatos do Bruno Pereira e do Dom Phillips, e isso modificou bastante a nossa recepção nesse lugar. Quando a gente chegava, as pessoas fechavam as portas ou diziam “vocês têm que ter muito cuidado porque os outros dois foram mortos”. Eles associaram a gente, com toda razão, ao dessa imprensa mais ativista, ao indigenista e ao jornalista que foram assassinados. A gente estava tocando em um assunto muito difícil, muito bélico, perigoso mesmo, e o approach da gente era obviamente subversivo. E aí eu entro na sua segunda questão.

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Como é o relacionamento da gente com esse grupo? Não é um grupo, são dois grupos: os evangélicos e os indígenas. O nosso relacionamento com os indígenas foi de empatia, mesmo considerando todo o estranhamento. Empatia política, empatia pelo ponto de vista deles serem os grandes defensores da natureza, da floresta, os donos da terra, os verdadeiros primeiros donos dessa terra. Eles não se consideram brasileiros, eles se consideram tikunas. Parte dos depoimentos que a gente tem, mas não incluímos no vídeo porque não fazia parte do tema, é sobre essa questão do pertencimento. Eles não se consideram brasileiros, eles se consideram tikunas. É uma particularidade porque isso indica também que, como toda relação de pertencimento, o pertencimento precisa ser recíproco, e se eles não têm o Brasil, o Brasil também não tem eles. Essa é a questão central ali, a questão do território. E o outro grupo são os evangélicos, com os quais a gente não tem nenhuma empatia. Se a gente voltar lá, se eles virem esse filme, não vão se identificar com ele. É provável que um evangélico ou um bolsonarista que veja esse filme tenha um problema com ele. É um filme indigesto. Já é indigesto para nós, de esquerda, para nós que trabalhamos com cultura. Um filme difícil de ver. Não estou falando só da cena do sacrifício do animal, eu estou falando da dor que nós todos temos de ser cúmplices dessa situação de eterna colonização. A descolonização começou no dia seguinte da colonização porque ela vai aparecer como um ato direto de arrependimento da colonização, que é um ato de barbárie.

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Então, como a gente se relaciona com isso? Da mesma forma que todo mundo que está assistindo o vídeo: a gente tem empatia, tem dor e tem asco dessa relação dos missionários. Tem vários dos depoimentos que não entraram nesse filme por causa de tamanho e da funcionalidade do filme. Muita coisa ficou de fora, mas a gente tem depoimentos dos missionários nos quais eles falam sobre essa obsessão. E é mesmo uma obsessão acima de tudo, mais do que vontade de ajudar ou mais do que bondade entre aspas. Essa gente tem essa obsessão de colonizar, tem prazer de conhecer esse dito selvagem e de civilizar, de socializar, converter essa pessoa não só em cristã como em branca! E a gente fez um trabalho sobre isso, sobre essa conversão. Esse é o nosso lugar no trabalho, é um local de terceiros, de observação crítica. A gente não pode se solidarizar, nem com um lado nem com outro, com toda a empatia possível, porque senão a gente não teria distância crítica necessária para tratar essa questão, que é um problema. A gente está tratando ali da obsessão, e o que vem com a obsessão: a conversão… é uma barbárie. É uma colonização, um processo de perpetuação de dominação muito barra pesada. E isso ocorreu durante o governo Bolsonaro… No mesmo período em que a Damares distribuía fetos de plástico em campanha contra o aborto no gabinete dela em Brasília, do suposto Ministério de Direitos Humanos e Direitos da Mulher! Ela mesma tem uma filha de origem indígena Kamayurá adotada sem a permissão dos pais biológicos no Xingu. Essas questões são muito difíceis. A gente procurou não fazer do filme puramente uma denúncia, mas é muito barra pesada o que a gente viu lá. E o que a gente tenta manter no filme é o que possibilita essa barra pesada: a conversão.

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A igreja é a chave para o extrativismo. Ela abre a porta do paraíso para a entrada do inferno, ela promete o paraíso divino e ela traz o inferno para dentro do paraíso, que é aquilo lá, que está em estado puro, em estado de vida! O que a gente burramente chama de estado primitivo. É um total descontrole, um total equívoco. Uma situação de equívoco e que beira a loucura. E esse é o ponto do nosso trabalho: tentar apontar para esse equívoco e tratá-lo como tal. Enfim, esse trabalho trata de coisas que todo mundo vem tratando, mas a gente procurou ir ao que a gente acha que é ponto central ali, que é a transformação do pajé em pastor, a transformação de pessoas que vivem na floresta em vilarejo e o processo de evangelização dessas pessoas. Achamos que essa é realmente a porta de entrada para o extrativismo, que acontece de forma ilegal e galopante na região, a última da Amazônia, que ainda pode ser defendida. ✱

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