Uma questão para Tales Ab’Sáber*

João Cezar de Castro Rocha – Em seu documentário Intervenção, Amor não quer dizer grande coisa, antecipou-se muito dos horrores que hoje desejam dominar a cena brasileira. Como entender que o delírio de teorias conspiratórias tenha se tornado realidade política para dezenas de milhares de pessoas?

Tales Ab’Sáber – O que pode uma obra de cultura, de arte ou de crítica, se sua comunidade se recusa em vê-la, aceitá-la, recebê-la? De fato em 2016 fizemos este filme, eu, o cineasta e professor da ECA USP Rubens Rewald e o montador e jornalista livre Gustavo Aranda. Quando mostrei para eles, ainda em 2015, o que ocorria nas redes e chats de uma extrema direita que se organizava para um novo modo de guerra na internet, ficaram muito impressionados e começamos a trabalhar imediatamente. Acompanhamos todo o processo da queda de Dilma, até meados de 2016, observando a vida, a ação e o “pensamento” dessa “nova” direita delirante, violenta e virulenta, porque ela se expandia de modo contagiante e amplo nas redes. Suas intensidades, facilitações, lógica paranoica simplória de fundo e direito à qualquer mentira, até chegar a alcançar a força do delírio, no caso a mentira partilhada como desejo político – demonstrava o filme – facilitavam imensamente a adesão do ressentimento social e da ignorância autoritária brasileiras àquele mundo, mundo afetivo destrutivo, ficcional coletivo. Todo movimento político, e técnico, fascista busca operar no nível de uma conversão psíquica: do sujeito do sonho, da razão mediada e do contrato social, se passa ao grupo do delírio, da realização imediata no desejo e à passagem ao ato, o direito à violência política, que se expressa, incialmente, como ato de linguagem como choque. Aquela direita que se unia a cada dia pelo afeto da guerra total – o que os psicanalistas, desde os anos de 1930 e 1940, conheceram como a produção de uma posição psíquica esquizo-paranoide, e que Freud nomeou a dinâmica grupal em 1920 – teve papel fundamental no caso histórico, ao se auto organizar nas redes e dado o direito ao vale tudo de toda ordem, de fato criminoso em uma democracia. O seu principal método era a mentira hipérbole social, a calúnia sem limites, sem cobrança nem necessidade de checagem: a posse impune da palavra, tudo feito para convocar a identificação de uma “nova” gente pronta para qualquer coisa, ao menos no símbolo, ou no falso símbolo. No período das grandes manifestações nacionais lavajatistas convocadas e mobilizadas por grupos da nova direita dita liberal, de fato violentamente neoliberal e avessa aos parâmetros sociais da Constituição de 1988, com o apoio tácito e estratégico das grandes redes de comunicação e a identificação política de seus jornalistas ditos profissionais com o seu desejo de impeachment, aquela direita do vale tudo, do delírio e do sadismo da vitória na mentira – com a qual gozavam excitados – contava com cerca de 15% de manifestantes nas ruas, segundo pesquisa da época. Eram aqueles que saiam com faixas pedindo, clamando, exigindo, diziam eles no filme, uma intervenção militar constitucional. Ou seja, um golpe de tipo clássico brasileiro, em que as forças armadas tomam o poder, e arruínam democracia e vida no país. Ao final do processo de degradação dos parâmetros da política brasileira, em 2018, o candidato que enunciava as coisas naqueles termos de violência e vale tudo de toda ordem alcançou 58 milhões de votos no Brasil… Hoje os golpistas brasileiros, agora dirigidos e orientados por um líder fascista grotesco, com seu gabinete do ódio profissional multiplicado nas redes, que nos ameaça a cada semana e todos os dias com o pior do pior, chegaram a 30%: os que aceitam tudo e qualquer coisa por Bolsonaro, do remédio falso à inflação, do isolamento mundial à destruição liminar da frágil democracia, do golpe farsesco baseado em nada à corrupção e destruição do Estado por verdadeiros imbecis. O filme estava na raiz deste processo, pegando em pleno voo, ou ovo…, duas dimensões fundamentais da nova política da extrema direita, neofascista, no Brasil: o sistema da propaganda fascista de uma nova indústria cultural da mentira e violência nas redes, e a fusão de tal máquina de guerra material com a máquina de guerra do desejo, o sistema mentira/violência/delírio que o modulou. Atraindo a falsa moral dos autoritários, criando voz unificada para a ignorância política, imagens comuns de uma guerra particular, de gangue, milícia digital, encenada no tempo real do desejo, para eles viverem no Brasil dos seus sonhos, configurou o pesadelo que se tornou o bolsonarismo. Se este movimento aconteceu como aconteceu, e hoje temos estudos do neofascismo brasileiro e seu sistema de representações, afetos e signos em todas as Universidades brasileiras, Intervenção: Amor não quer dizer grande coisa deu forma e conceito àquele processo psicopolítico de outra ordem sobre a experiência do Brasil, como você e alguns poucos outros críticos e intelectuais apontaram – lembro Laymert Garcia dos Santos, Ismail Xavier, Leandro Saraiva e o grupo de linguistas sociais da UFSCAR, dos professores Luzmara Curcino e Carlos Piovezani… Estudando o movimento concreto daquelas massas das redes, o elemento da irracionalidade e do desejo de violência sempre saltou aos olhos de quem quisesse ver. No entanto, houve pouquíssimo interesse pelo filme, quando ele falava sozinho disso tudo, em 2016. Um filme político, feito para intervir, produzir, gerar saber sobre que horas são e onde estávamos, frente ao qual, metade da plateia caia no choro e em desespero, e a outra metade recusava como princípio a realidade do que via, de um país que desconhecia, mas queria governar… Assim, depois das evidências do filme e sua pesquisa, tivemos que suportar algumas das melhores mentes do pais, já em 2018, dizendo que Bolsonaro não ganharia a eleição… e, dentre elas, era este também o entendimento do Partido dos Trabalhadores sobre o processo político e social que vivíamos. Ou seja, entendimento nenhum. Um movimento político triste, de desatenção à própria cultura, alienação dos termos da vida popular e encastelamento em ideias particulares, desde o próprio eu, que não correspondiam à história. Uma certa falência conceitual, do nosso próprio campo, aquela mesma que Mano Brown denunciou na época em festa do baile fiscal dos democratas entre si. O delírio fascista, evidente, perigoso, fácil e expansivo se completava na alucinação negativa da própria esquerda, que se esmerava na recusa em reconhecer o que acontecia na sua cara. E, se via, quando via, caia no choro, e não no pensamento, na crítica e na estratégia real. Esse foi o destino social daquele filme, bastante revelador de algo mais de nossas fixações tolas e impotentes. No Brasil vivemos no período a guerra de dois delírios, um positivo e violento, outro negativo e aquém do tempo. A história política deste filme é a história de uma cultura cindida, em alguma medida toda ela esquizofrênica. ✱

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