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Pola Ribeiro assume direção do MAM-BA e diz que é preciso “recuperar a alma” do museu

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O novo diretor do MAM-BA, Pola Ribeiro. Foto: Shirley Stolze/ Divulgação

Uma das mais importantes instituições culturais de Salvador e da Bahia, tanto por sua história e acervo quanto pelo patrimônio arquitetônico de sua sede, o Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM-BA) passou quase um ano sem diretor. Após esse período – no qual muitos acusaram o governo de descaso com o museu (o MAM está vinculado à Secretaria de Cultura do Estado) – e ainda de portas fechadas por conta da pandemia, a instituição ganha agora novo diretor, o cineasta, comunicador e gestor público Pola Ribeiro.

“Eu tenho consciência de que estou entrando para um projeto de curta distância, já que são os dois últimos anos de um governo de oito anos” diz Ribeiro, em referência à gestão de Rui Costa (PT). “Então não estou com projetos muito mirabolantes, mas com o plano de reestruturar o museu e dar musculatura a ele.” Para além dos ajustes administrativos, Ribeiro – que já comandou o Instituto de Radiodifusão do Estado da Bahia (Irdeb) e a Secretaria de Audiovisual do Ministério da Cultura -, afirma que pretende levar novamente “um pensamento” à instituição, o que teria faltado neste período sem direção.

Para isso quer contar com a presença de um curador-chefe (o nome ainda não foi divulgado), reforçar o trabalho educativo, fortalecer diálogos com outras linguagens artísticas como a música e a dança e se reaproximar da população local e de outras instituições de Salvador. Pretende também reconectar o MAM com o Recôncavo, região localizada em torno da Baía de Todos-os-Santos com intensa influência da cultura e das religiões de matriz africana. “Porque nos últimos 20 anos Salvador deu uma certa esnobada no Recôncavo, como se ela fosse Litoral Norte”, afirma, se referindo à uma região mais turística e rica do Estado.

Nesse sentido, por reforçar a ligação com o mar, Pola não vê com maus olhos a polêmica reforma do píer do Solar do Unhão, que acrescenta um atracadouro para pequenos barcos e lanchas. Nos últimos tempos, diversos arquitetos e urbanistas, entre eles pessoas que já trabalharam no MAM, se manifestaram afirmando que a reforma (que inclui a volta de um restaurante ao piso inferior do museu) distorce o projeto de Lina Bo Bardi – que reformou o Solar nos anos 1960 – e significa uma elitização e turistificação da instituição.

O novo diretor, que assume o museu com a obra já em fase de finalização, ressalta que o projeto foi feito pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e diz que vai trabalhar para que o restaurante esteja à serviço do museu “e não seja algo folclórico, explicitamente turístico”. Leia abaixo a íntegra da entrevista:

Pola Ribeiro
O Solar do Unhão visto do mar. Foto: Divulgação

ARTE! – Você assume a diretoria do MAM-BA após a instituição ter passado quase um ano sem diretor. Queria que começasse contando um pouco qual a situação do museu hoje. Ou seja, o que você encontrou pela frente?

Pola Ribeiro – O MAM está dentro de um guarda-chuva do Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (IPAC), como outros dez museus. Então ele esteve sem diretor, mas não ficou totalmente sem uma gestão. Porque ali não é só um museu, é também o conjunto arquitetônico, o patrimônio, e isso não pode ficar largado. Agora, o que aconteceu tem uma certa gravidade, porque o mesmo período em que o museu ficou sem direção foi o tempo da pandemia de Covid-19. Então tem uma expressão aqui na Bahia que diz: “Tem, mas está faltando”. E é um pouco isso. O MAM está lá, mas com muita coisa precisando de reajustes, desde a manutenção do ar-condicionado, do elevador, da câmera de segurança etc. E estamos levantando isso tudo nesse período em que o museu ainda se encontra fechado, para podermos engatar o trabalho. Tem também a reforma na área do restaurante e do píer do atracadouro, que é um projeto do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), tocado pela Secretaria de Turismo, e que vai ser entregue agora no dia 19 de março. Mas para além disso tudo, dos ajustes administrativos e de colocar a coisa para rodar, o MAM ficou sem um pensamento. O museu já teve várias gestões, com pensamentos que vão se modificando a cada novo diretor, todos contribuindo de algum modo, mas nesses dez meses sem diretor ele ficou um pouco improvisado.    

ARTE! – Nesse sentido, quais então são os seus planos? Ou seja, qual é o pensamento que você traz para a sua gestão?

Em primeiro lugar estou negociando para trazermos um curador, com a ideia de que o museu tenha um diretor e também um curador-chefe, para pensarmos um projeto museal. E eu tenho consciência de que estou entrando para um trabalho de curta distância, já que são os dois últimos anos de um governo de oito anos. Então não estou com projetos muito mirabolantes, mas com o plano de reestruturar o museu e dar musculatura a ele. Então temos um projeto para o centenário da Semana de Arte Moderna, outro para o bicentenário da Independência do Brasil – e o museu tem essa vocação histórica, ligada ao passado de Salvador e da Bahia, vinculada, por exemplo, à Revolta dos Alfaiates -, e ainda teremos o Salão de Arte da Bahia, que é um evento que já vem acontecendo há alguns anos e deve finalizar nossa programação em 2022. Então temos que fazer esse desenho, e pretendemos também dialogar com outras instituições e eventos de arte, como a Bienal de São Paulo e os museus de arte moderna do país.

Mas quando eu falo desta programação de dois anos não estou dizendo que é uma coisa fechada, porque o que eu estou tentando fazer, colocar para a cidade, é que a gestão daquele espaço vai para além do IPAC, da Secretaria de Cultura, porque ali é uma plataforma da cidade. Eu vejo aquilo como um espaço de diálogo. O MAM está entre a Cidade Alta e a Cidade Baixa; está também do lado tanto de uma das partes mais ricas da cidade, que é a Bahia Marina, quanto de uma comunidade carente; e ele reconecta Salvador com o Recôncavo. Porque Salvador, nos últimos 20 anos, deu uma certa esnobada no Recôncavo, como se ela fosse litoral Norte, Praia do Forte, o que é péssimo para a cidade. Então a gente busca se reconectar com o Recôncavo, lembrando que o MAM está ali na beira do mar, com uma praia quase dentro dele.

ARTE! – Em entrevista ao jornal A Tarde você disse que vai precisar ter uma escuta muito apurada, até por não ser um “nativo das artes visuais”. Você já falou sobre trazer um curador, mas poderia falar um pouco mais sobre esse assunto? Essa escuta se refere a pessoas de dentro e de fora do museu?

Pensando na cidade, eu tenho um relacionamento muito bom com diversas pessoas do setor cultural, com gestores de teatro, cinema, televisão. Com galeristas ainda não comecei a conversar, mas tenho conversado bastante com artistas. E estamos construindo isso, sabendo que a escuta é também com músicos (a Jam no MAM é uma referência), dançarinos etc. Porque o MAM tem essa característica, que tem sido a característica dos museus contemporâneos, de colocar diferentes linguagens em diálogo, pensar uma ressignificação das artes. Então estamos escutando muito, para fazer também uma gestão com a comunidade, que muitas vezes não se reconhece no museu. Precisamos trazer de volta também muita gente que se desconectou do museu, além de gente do circuito do comércio, da Fundação Gregório de Matos (órgão vinculado à prefeitura), entre outros. Então para tratar do MAM e do Solar do Unhão não existe conversa partidária, sectária. Tem que contar com todo mundo que pode contribuir, porque aquele lugar tem muito para dar.     

E sobre a questão de trazer um curador, existe o fato de que se você falar o meu nome no MASP, na Bienal, nos museus de arte de Recife ou do Rio, as pessoas não reconhecem, como reconheceriam no circuito do audiovisual. E eu não tenho muito tempo. Não tenho tempo de ir aos poucos ganhando credibilidade no setor, para assim colocar o museu no circuito. Então precisamos de um nome que as pessoas vejam e já reconheçam e reconectem imediatamente. 

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Área externa do museu durante a realização da Jam no MAM, em foto anterior à pandemia. Foto: Divulgação

ARTE! – Na mesma entrevista você falou também da importância de focar no trabalho educativo. Essa ideia de que um museu seja um espaço de participação, não apenas de contemplação, parece ganhar cada vez mais espaço na pauta das instituições culturais. O foco no educativo vai neste sentido? Quais os planos neste momento?

Exatamente. Eu visitei essa semana a Secretaria do Trabalho e tenho um encontro marcado com o secretário de Educação e de Ciência e Tecnologia após o Carnaval, para podermos buscar programas para o MAM. Como eu disse, estamos nos últimos dois anos de governo, então eu preciso trabalhar com programas que já existam, para que eu possa canaliza-los para aquele local. Então estou indo fazer essa sinalização com as autoridades maiores, de secretarias, para mostrar a importância do museu. Por exemplo, nós temos um projeto aprovado com a Sherwin-Williams, onde eles cedem além de oficiais, as tintas para pintar as fachadas da comunidade do Unhão. Então eu quero fazer isso, mas não preciso fazer apenas como gestor do Unhão, mas junto com a Secretaria do Trabalho, que tem um trabalho de ação comunitária que pode crescer.

E as oficinas do MAM sempre foram uma referência, há 40 anos, porque estão no desenho inicial da Lina. Era um museu de arte popular, depois um museu de arte moderna, com oficinas de artesanato ou desenho industrial. E a gente quer retomar isso, mas tirando o caráter sazonal delas. O que eu mais quero é que quem assumir o museu daqui dois anos não ache que eu fiz uma gestão personalista, e não queira botar debaixo do tapete o que foi feito para começar uma outra coisa totalmente diferente. Quero que a gente tenha uma gestão que a gente saiba que vai ter continuidade nas mãos de outra pessoa, trabalhar com essa perspectiva. 

ARTE! – O MAM, para além de sua atuação, de seu acervo, é também um patrimônio arquitetônico de Salvador, tanto pensando no conjunto histórico colonial quanto no projeto de Lina Bo Bardi. Neste sentido, existe uma polêmica em torno do atual projeto de instalação do restaurante no piso inferior do museu e do atracadouro. Muitos dizem que isso distorce o projeto da Lina e a ideia de um museu democrático, não voltado apenas para as elites e para o turismo. Enfim, queria saber como você vê essa questão?

Eu cheguei com esse projeto já em fase de finalização. E é um projeto do Iphan, porque qualquer alteração no museu tem que passar por uma autorização do Iphan. Observando com o olho de quem é apaixonado por aquele lugar, mas não tem o conhecimento técnico sobre interferências urbanas em patrimônio histórico, eu não vejo problema. É um píer de concreto, não sai da linha do mar, ou seja, não  atrapalha a vista do prédio, e eu acho que vai ficar belíssimo. E o espaço será também atracadouro, mas apenas de pequenas embarcações. E quando eu falo que Salvador se desconectou do Recôncavo, é porque ela se desconectou da Bahia de Todos os Santos. E eu sinto que este é também um canal de ligação, de onde se pode sair e ir para o Forte de São Marcelo, para a Ilha de Itaparica ou para o Museu Wanderley de Pinho, em Candeias, que está sendo recuperado. Então eu não acho que este atracadouro em si vá significar a elitização ou não.

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Célebre escada desenhada por Lina Bo Bardi no museu. Foto: Divulgação

ARTE! – Mas quando se fala nessas pequenas embarcações, o que são? A imagem de divulgação que foi publicada nas redes é a de uma lancha de luxo, por exemplo. Quer dizer, quem vai usar este atracadouro? 

Veja bem, o MAM está do lado da Bahia Marina e a maioria das pessoas que tem barco em Salvador tem a sua garagem náutica ali. Então eu não vejo tanto por aí. E a questão do restaurante… Nós tínhamos ali no MAM um restaurante de comida baiana, com shows folclóricos, que era muito careiro, e a gente achava que o museu ficava muito à serviço do restaurante. E eu vou trabalhar para que, desta vez, nessa licitação esteja colocado que o restaurante também esteja à serviço do museu, e não seja algo folclórico, explicitamente turístico. E que seja um espaço mais de comidas leves, para quem visitou o museu e quer sentar um pouco, ver o por do sol. Até porque ao lado, na Bahia Marina, já existem vários restaurantes grandes.   

ARTE! – Porque inclusive os arquitetos dizem que não há uma estrutura ali para abrigar uma grande cozinha de restaurante…

Sim, é isso mesmo.

ARTE! – Voltando um pouco à questão do pensamento do museu e dos rumos curatoriais, uma série de pautas relacionadas à questões raciais, de gênero e à ideia de decolonialidade têm ganhado espaço no debate feito pelas instituições culturais do país. Você pretende trazer esses temas para o trabalho no MAM?

Com certeza. Claro que eu tenho pouco tempo, como eu disse, e não posso botar o sarrafo tão alto. Mas queremos recuperar a alma do museu. No contato que já tive com a equipe, com os funcionários, sinto as pessoas muito apaixonadas pela instituição, e acho isso fundamental para poder mexer nas coisas. E reconectar com a comunidade, reaproximar pessoas que já foram funcionários do museu. E acho que isso vem também com essa estratégia que estamos fazendo de envolver as instituições, de despartidarizar, de dialogar com todo mundo, com as divergências, com as diferenças, com as complexidades…    

ARTE! – Falando do contexto político atual, por mais que o MAM seja um museu ligado à Secretaria de Cultura do Estado, temos hoje no país um governo federal que parece ver a área cultural, as artes, quase como inimigas. Como trabalhar neste momento tão conturbado para o setor cultural?

Quando eu fui convidado para o cargo eu tive que pesar essa questão. Porque, por exemplo, quando eu fui gestor do IRDEB, ou mesmo na Secretaria do Audiovisual, no meu telefone eu tinha o número do ministro, do governador, dos secretários… e eu ligava diretamente para o ministro para dizer que tinha tido uma ideia. Era uma coisa fantástica essa possibilidade de articulação nacional. Então eu pensei nisso, como uma coisa negativa do novo contexto, mas por outro lado aumentou a minha responsabilidade de assumir o cargo. Nesse momento em que temos tantos gestores que estão trabalhando contra as estruturas que foram criadas, contra as políticas públicas que foram desenhadas na base de intermináveis discussões, com pessoas boicotando e destruindo ponto por ponto, eu pensei que não tinha como dizer não. Eu tenho que ir e fazer desse limão uma limonada, fazer o que for possível com a motivação que ainda tenho para me apaixonar por isso.

E se você for olhar o MAM como um problema, você fica dez anos lá e não resolve. O administrador me falou que a equipe de pintura começa a pintar desde a capela e vai indo até o fim do parque de esculturas, e que quando acaba tudo já tem que começar a pintar a capela de novo. Porque a gente está na beira do mar. Então problemas não faltam. Mas temos que pensar como uma plataforma que de fato dá eco ao que é produzido aqui, para ser escutado fora, e também com uma escuta grande para o que existe fora e pode ser apresentado aqui. Ou seja, que seja também uma janela para os baianos, para que possam dividir essa experiencia que é um museu, que se transforma, mas não deixa de ser algo forte. 

Rosely Nakagawa participa do novo Acervo Comentado Videobrasil

"Myxomatosis", Solon Ribeiro, Acervo Comentado Videobrasil. Foto: Divulgação.
"Myxomatosis", Solon Ribeiro. Foto: Divulgação.

A curadora Rosely Nakagawa Matuck [1] comenta o vídeo “Myxomatosis” (2008), do artista cearense Solon Ribeiro (Crato-CE, 1956) [2], exibido no 19º Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil (São Paulo, 2015). Na obra, alguns fotogramas de filmes são projetados nas dependências de um matadouro; juntamente com a ação do artista, vísceras expostas, sangue e carne alteram a dinâmica do espaço, provocando um embate entre contextos. “Esses fotogramas que ele projeta no cenário de um matadouro começam a adquirir um tom de crítica, principalmente porque ele recebe imagens projetadas de atrizes do cinema, uma conexão com a indústria cinematográfica, esse mundo industrializado que vai moendo pessoas, personagens e ideias”, comenta a curadora.

Confira abaixo:

Sobre o Acervo Comentado:

Acervo Comentado Videobrasil é uma parceria entre arte!brasileiros e a Associação Cultural Videobrasil. A cada 15 dias publicamos, em nossa plataforma e em nossas redes sociais, uma parte de seu importante acervo de obras, reunido em mais de 30 anos de trajetória.

Este projeto contribui para “redescobrir e relacionar obras do acervo Videobrasil, e vertentes temáticas, na voz de críticos, curadores e pensadores iluminando questões contemporâneas urgentes”, afirma Farkas.

Videobrasil

A instituição foi criada em 1991, por Solange Farkas, fruto do desejo de acolher um acervo crescente de obras e publicações, que vem sendo reunido a partir da primeira edição do Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil (ainda Festival Videobrasil, em 1983). Desde sua criação, a associação trabalha sistematicamente no sentido de ativar essa coleção, que reúne obras do chamado Sul geopolítico do mundo – América Latina, África, Leste Europeu, Ásia e Oriente Médio –, especialmente clássicos da videoarte, produções próprias e uma vasta coleção de publicações sobre arte.


[1]Rosely Nakagawa Matuck é curadora independente, graduada em Arquitetura pela FAU/USP com especialização em Museologia pela mesma universidade. Como curadora independente, realiza mostras e edições de livros de fotógrafos brasileiros e estrangeiros, atuando em diversos estados brasileiros, especialmente no Norte e Nordeste, assim como no exterior.  Em 1970 criou a primeira galeria de Fotografia de São Paulo, a Galeria FOTOPTICA,  ao lado de Thomaz Farkas. Coordenou a Casa da Fotografia FUJI Brasil e foi curadora das galerias Fnac. Colaborou com diversos Festivais de Imagem e Fotografia, como a Bienal Videobrasil, Fotoempauta, Solar Festival Internacional, Prêmio Diário Contemporâneo entre outros.
[2] Solon Ribeiro é artista, curador e professor, graduado em arte e comunicação com especialização em fotografia pela L’École Superieure des Arts Decoratifs, Paris, em 1991. Atua na investigação de cruzamentos entre a fotografia, o cinema, a cenografia, a instalação e a performance. Através da recontextualização de imagens e fotogramas cinematográficos oriundos de montagens narrativas, o artista problematiza o estatuto do arquivo a fim de desmontar sua relação íntima com o passado. Com o intuito de liberar a imagem a novas formas e significações, procura explorar seus aspectos mágicos e metafísicos.

Instituto de Arte Contemporânea de Ouro Preto tem inscrições abertas para residência artística

Sem título [Ouro Preto]. Fotografia de Germano Neto. Cortesia Instituto de Arte Contemporânea de Ouro Preto (ia)

Até o dia 13 de fevereiro, o Instituto de Arte Contemporânea de Ouro Preto (ia) tem inscrições abertas para a primeira edição do Programa Emergencial de Residência Artística – iai. A vivência de seis semanas acontecerá de forma inteiramente digital, contando com orientações curatorial e pedagógica e oferecendo bolsas de R$ 2 mil aos participantes.

A ser realizado com recursos da Lei Aldir Blanc, o programa é voltado para artistas visuais, pesquisadores e arte-educadores que se encontram em situação de vulnerabilidade e com sua produção comprometida ou paralisada em função da pandemia do novo coronavírus. Serão selecionados três candidatos residentes em Ouro Preto (MG), e outros três  brasileiros ou estrangeiros residentes em outros municípios do estado de Minas Gerais.  Dessa forma, o projeto busca traçar paralelos entre manifestações artísticas locais e globais e “reiterar a inevitabilidade atual de se produzir, observar, fruir e interagir em um contexto de distanciamento social”, explicam os fundadores da instituição em nota oficial.

Idealizado pelo Instituto de Arte Interativo (iai), braço virtual do ia, o projeto tem como eixo central um processo criativo com fins pedagógicos. Além disso, propõe um olhar decolonial para as artes associado à possibilidade de se estabelecer novas formas de ser e estar no mundo através de plataformas digitais. Assim, a residência se estrutura a partir de três questionamentos principais: de que modo as plataformas digitais podem ajudar a criar outras formas de produzir e estar no mundo? Como as plataformas digitais podem ser utilizadas para encontrar outras temporalidades e espacialidades nos/dos trabalhos artísticos? Como a realidade digital pode evidenciar territórios invisíveis e contribuir para uma discussão decolonial? “O programa que idealizamos, além de dialogar com essas perguntas, cada vez mais fundamentais, quer apontar horizontes de possibilidades não só para as residências, mas para os processos de fomento, produção e fruição da arte contemporânea”, afirma Bel Gurgel, idealizadora do Instituto de Arte Contemporânea de Ouro Preto.

Ao fim do Programa Emergencial de Residência Artística – iai será realizada uma mostra coletiva virtual e a confecção de um material didático destinado a escolas da rede pública de ensino do município de Ouro Preto.

Fotografia de Germano Neto. Cortesia Instituto de Arte Contemporânea de Ouro Preto (ia)

O Instituto

Fundado em 2016, O ia é uma organização cultural sem fins lucrativos que busca fomentar expressões artísticas nas comunidades de Ouro Preto, Mariana e região, exaltando especialmente produções ligadas à diáspora africana e à gênese da nacionalidade. Através da pesquisa e de projetos culturais busca edificar um diálogo entre os saberes e fazeres artísticos locais (próprios da região dos Inconfidentes) e globais (estaduais, nacionais e internacionais) e promover um entendimento do panorama contemporâneo gerando reconhecimento e pertencimento histórico-cultural por meio da arte.

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Pretend It’s a Review

Pretend It's a City, Fran Lebowitz e Martin Scorsese.
Fran Lebowitz e Martin Scorsese, em cena de "Pretend It's a City". Foto: Netflix.

Dez anos atrás, Martin Scorsese e Fran Lebowitz colaboraram em Public Speaking, um documentário em que a autora expôs suas filosofias de vida. Agora, na nova série da Netflix Pretend It’s A City, Fran se reúne com Scorsese novamente para enfurecer mais pessoas. Por que? Ela também não sabe: “Embora eu saiba que as pessoas – com muita frequência – fiquem furiosas comigo, isso ainda me surpreende, porque ‘quem sou eu’? Estou tomando decisões por você?. Se pudesse mudar as coisas, eu não ficaria com tanta raiva delas, a raiva vem do fato que não tenho poder, mas estou cheia de opiniões”.

Pretend It's a City, Fran Lebowitz e Martin Scorsese.
Fran Lebowitz e Martin Scorsese, em cena de “Pretend It’s a City”. Foto: Netflix.

Além de ser uma reclamona por hobby, Fran Lebowitz é uma pessoa engraçada por profissão e uma escritora imersa em um bloqueio criativo de mais de duas décadas. Ela publicou três livros e começou sua carreira escrevendo uma coluna para a Interview Magazine, criada por Andy Warhol – seu encontro com Warhol vale ser conferido nesta entrevista. Mas seu atributo que justifica a reunião com Scorsese, um nova-iorquino apaixonado como ela, é justamente sua vida social na metrópole estadunidense e sua observação de tudo o que acontece ao seu redor.

Embora o título da série já aluda claramente a Manhattan, o protagonismo é duplo; a cidade aparece através das histórias e das andanças de Fran – metafórica e literalmente, quando o diretor a coloca como um flâneur Godzilla desbravando um modelo em escala da cidade, no Queens Museum. Vale notar que essa é uma das poucas direções que Martin dá a Fran em três horas de show, já que em Pretend It’s a City ele assume o papel de co-conspirador, às vezes na penumbra, se mostrando presente através dos ataques de riso encadeados pelas perguntas e respostas da entrevistada. Ninguém gosta mais da companhia de Lebowitz do que Scorsese, provavelmente por isso que ele nos fez a gentileza de usar seu meio para compartilhá-la.

Gravado em um tempo pré-pandêmico, o show utiliza uma linguagem visual que nos coloca frente a frente com Lebowitz em seu habitat, seja ele um bar, um teatro ou uma biblioteca. O encontro virtual é quase uma quebra de protocolo já que Fran nunca possuiu um computador, muito menos um smartphone, e ela não está nas redes sociais. Justamente, o título da série se refere à frustração dela com as pessoas tão absortas em seus dispositivos que esbarram em você na rua. “Finja que é uma cidade… onde há outras pessoas”, ela implora.

Cada episódio temático introduz seu guarda-chuva de assuntos, como observa a crítica Judy Berman à TIME Magazine: “Resplandecente em seus paletós, jeans e botas de caubói, sua marca registrada, cabelo preto repartido ao meio como seu antepassado espiritual Oscar Wilde, ela fala de escrever: ‘A maioria das pessoas que amam escrever são escritores terríveis’. Sobre a libertação queer: ‘Nada é melhor para uma cidade do que uma população densa de homossexuais furiosos.’ Em leilões de arte de nove dígitos: ‘Vivemos em um mundo onde eles aplaudem o preço, não o Picasso.’ Sobre as pessoas que desejam ver suas próprias experiências representadas em livros (um de seus grandes amores, junto com sono, festas e cigarros): ‘Um livro não deveria ser um espelho – deveria ser uma porta.’ Sobre os guilty pleasures: ‘Não os tenho, porque o prazer nunca me faz sentir culpada.’”

Sua persona se apresenta com o passar dos episódios, mas ela chega sem pedir licença, em grande parte porque Scorsese renuncia à tentativa de apresentar Lebowitz aos não iniciados. “Qualquer um que não esteja familiarizado com seu trabalho vai se acostumar com ela sendo o tipo de observador cultural ao qual plateias em Nova York sentariam para ouvir por horas”, ressalta Steve Greene, editor de Televisão para a Indiewire.

Nessas ocasiões, como uma conversadora, ela é astuta, autodepreciativa, dotada de um timing cômico impecável, mesmo nas entrevistas mano a mano, cujos trechos são inseridos por Scorsese aqui e ali junto com filmagens de acervo. As passagens mostram Lebowitz calmamente discordando, com relação a esportes, de um ansioso Spike Lee; engavetando qualquer tirada de David Letterman – ainda na década de 1980, logo após o lançamento de seu primeiro livro, Metropolitan Life -; e sua troca de postos para entrevistadora em uma conversa com Toni Morrison, a escritora estadunidense premiada com o Nobel de Literatura, com quem Lebowitz manteve uma amizade de mais de quatro décadas e a quem a série é dedicada.

Pretend It's a City é dedicado a Toni Morrison. Retrato de Morrison por Timothy Greenfield-Sanders. Foto: The New Yorker.
Retrato de Toni Morrison por Timothy Greenfield-Sanders. Foto: The New Yorker.

“Conheci Toni em 1978. Eu, é claro, era uma criança: tinha 27 anos e ela 47. Havia uma série de leituras na biblioteca pública em frente ao Museu de Arte Moderna, conta Lebowitz em um artigo para o The New York Times. “Eles me perguntaram se eu iria ler e eu disse que sim. Eles disseram: ‘Sempre temos duas pessoas. Você sabe quem é Toni Morrison?’ Ela não era muito conhecida na época, mas eu tinha lido todos os seus livros. Eu disse: ‘Eu amo o trabalho dela’. Eles disseram: ‘Você gostaria de ler com ela?’ Eu disse: ‘Isso é ridículo.’ Quer dizer, somos tão diferentes como escritoras. Mas eu acabei fazendo aquilo, e parecia que uma grande amizade havia se formado em apenas uma hora.”

A extinção das fronteiras é o que define a mudança

Ayoung Kim
Cena de "In Search of Petra Genetrix". Foto: Divulgação

* Por Bernardo José de Souza

Fronteiras estabelecem limites entre um espaço e outro, ou entre algo e uma outra coisa. Ao demarcar territórios, elas se impõem como mapeamento arbitrário, divisando zonas de poder e controle sobre fluxos humanos, de informação e mercadorias. Fronteiras também sinalizam os limites entre o conhecido e o desconhecido, entre o que é possível e o que não é possível – ou entre o que nos é dado a ver e aquilo que resta invisível. Reais ou virtuais, também servem para marcar diferenças, forjar antinomias e estancar formas fluidas de conhecimento.

Alegórica em essência, a obra de Ayoung Kim (atualmente em exposição no Videobrasil Online) desloca-se no tempo e no espaço movida pelo espírito especulativo que faz borrar fronteiras geográficas e epistemológicas. Quando toma a ficção científica como plataforma política, a artista sul-coreana recupera passagens da história universal ao passo em que atualiza suas diversas mitologias em busca de uma linguagem comum, atemporal. Nesta toada, escavar o passado e prospectar formas anômalas no presente e no futuro constituem processos dinâmicos para o desenvolvimento das epopeias audiovisuais e performativas narradas pela artista.

Se as obras iniciais de Kim dão conta da investida neocolonial do Ocidente rumo ao Oriente no século 20, suas últimas avançam desde o futuro sobre o passado em marcha à ré, conformando uma paisagem ficcional onde utopia e distopia confundem-se ao ponto de tornarem-se uma coisa só; ao esfumar o horizonte histórico, a artista acaba por relativizar juízos categóricos quanto à natureza do avanço tecnológico. Sobretudo em suas obras mais recentes, as tecnologias passam a ser ferramentas tão naturalizadas pela humanidade a ponto de converterem-se em entidades vivas, investidas de seus próprios dilemas animistas, éticos e políticos, quer afetivos, quer morais.

A artista Ayoung Kim. Foto: Min Gyungbok

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Acumulação Desigual de Tempos

Interessada nos processos de modernização que ganharam fôlego acelerado no pós-Guerra, os primeiros vídeos de Ayoung Kim investigam o impacto da cultura ocidental sobre as vidas e as cidades sul-coreanas. Em Every North Star Part 1 and 2 – Tales of a City (2010), confrontados com a cidade portuária de Busan, acompanhamos a trajetória decadente de uma estrela do turfe – Jin Hee Park, única mulher jóquei da Coreia do Sul até então – submetida às pressões de um esporte historicamente masculino, cuja perversa lógica competitiva reproduz as feições de um mundo globalizado a reboque da hegemonia cultural anglo-saxã, e do mercado capitalista de modo geral. Competitividade esta que também se revela no tríptico Please Return to Busan Port – Tales of a City 2, no qual a Olimpíada de Seul em 1988 é apresentada em reverse mode, com os atletas movendo-se em direção contrária ao pódio (e à vitória, portanto), enquanto noutra tela, simultaneamente, é possível observar um ciclista furtivamente escondendo drogas em sua bicicleta de corrida – uma alusão ao doping, mas possivelmente também ao contrabando que ali escoa através do mar. Ambas as obras são contos urbanos sobre sonhos perdidos num mundo de aparente prosperidade, muito embora fadado à arbitrariedade de sua herança neocolonial.

Situada na Ásia Oriental, a Coreia do Sul constitui uma democracia nos moldes ocidentais, em que pese o trauma de sua história recente marcada por governos autoritários e pela autofágica Guerra da Coreia (1950-1953), ainda hoje sem um ponto final, mas cujo desfecho objetivo, em meio ao contexto volátil da guerra fria, foi a secessão entre o norte e o sul da península orquestrado pelas forças soviéticas e norte-americanas. Já durante as últimas décadas do século 20, o país acabaria conhecido como um dos tigres asiáticos, convertendo-se numa das mais ricas e dinâmicas economias do mundo.

Valendo-se de uma passagem da biografia paterna – ele, funcionário de uma empresa coreana para prospecção de petróleo no Kuait –, em Zepheth – Whale Oil from the Hanging Gardens to You (2014), Ayoung Kim passa a explorar questões relacionadas à geopolítica, mas também à geologia e à ecologia em sentido amplo. Com esta obra, a artista propõe um outro arranjo midiático para suas narrativas, deixando o audiovisual momentaneamente num segundo plano para privilegiar a experimentação sonora, a musicalidade das vozes, a performance e o uso de algoritmos na composição dos textos. Na trilogia Zepheth (que em hebreu significa piche), são as imagens mentais que vão ganhar corpo; ora relatos burocráticos, ora passagens poéticas que versam sobre o petróleo e seus derivados, sobre o mar, os mergulhadores e as pérolas, sobre o deserto, o calor, a mudança da paisagem na estação das chuvas e os deslocamentos das tribos beduínas sobre a terra árida, dentre tantos outros arquétipos e iconografias ancestrais ou iminentemente atuais – ou mesmo ambas, a um só tempo.

Em meio à babilônia de relatos que se sobrepõem em Zepheth (vocalizados por um coro a ressoar a antiguidade grega), descortina-se um arco narrativo que alcança tempos tão remotos quanto os do Velho Testamento, e logo avança sobre a modernidade fazendo confluir um conjunto de histórias aparentemente disparatadas, mas que no fundo, e à rigor, respondem pela paisagem forçosamente sincrética com a qual convivemos na contemporaneidade. Da Arca de Noé revestida de betume às fontes de petróleo e suas labaredas, do óleo das baleias nos postes de luz ao ar-condicionado que ameniza as temperaturas do deserto, emerge um mundo globalizado no qual o espaço geográfico é tão resultado das formações geológicas, quanto das tecnologias desenvolvidas para transformar a natureza. Diante deste tumultuado panorama histórico, a presença nômade na paisagem desértica cede espaço à arquitetura intensiva das cidades e dos campos de petróleo no Golfo Pérsico e alhures – um abastecimento fóssil cujos dividendos retroalimentam os conflitos bélicos que só fazem “prosperar” entre as fronteiras territoriais do Oriente Médio, divisadas sob o signo do neocolonialismo europeu, contumaz em seu desprezo pela formação histórica, étnica e cultural dos povos nativos.

Esta acumulação desigual de tempos (Milton Santos) – essas camadas de história natural e humana sobrepostas no espaço físico, mas também no plano simbólico – talvez constitua a real operação semântica promovida por Ayoung Kim em seu ímpeto especulativo à contrapelo, quer da história, quer das formas assumidas pela memória. Ao justapor elementos inorgânicos, geologicamente consolidados há milhões de anos (a memória da pedra) aos vestígios narrativos compilados pela humanidade no curso de sua aventura sobre o planeta – seja por meio da oralidade, seja da palavra e da imagem gravadas analógica ou digitalmente –, a artista desborda as fronteiras do real, abre uma brecha no espaço-tempo e ingressa no reino da ficção, ou da virtualidade.

Cena de “Porosity Valley 2”. Foto: Divulgação

Porosity Valley (2017) vem justamente amalgamar diversos estratos de informação que se encontram dispersos nos âmbitos da natureza e da cultura & tecnologia, esferas em teoria distintas se levado em conta o paradigma epistemológico ocidental estruturado a partir da premissa dual sujeito/objeto – isto é, o sujeito apartado da natureza via cultura; ou, dito de outra forma, a humanidade e sua segunda natureza.

No campo especulativo conformado pela artista a partir desta nova narrativa audiovisual e suas sequências, imantadas pelo animismo, pela mitologia e pela ficção científica, a dicotomia real x virtual parece já ter sido superada, senão de todo no plano existencial, ao menos no tecnológico. Resta, entretanto, por entender como a inteligência artificial que emerge na dimensão futura de Porosity Valley vai projetar seu manto metafísico sobre a natureza e sua humanidade.

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Porosity Valley & Petra Genetrix e suas sequências (2017–2020)

Em meio à paisagem rugosa de Porosity Valley (espécie de pedra/placa-mãe) depositam-se criaturas pós-humanas cujas origens remetem tanto à ancestralidade geológica e às mitologias da antiguidade quanto à era da informação e à esfera da virtualidade. Animados por uma inteligência artificial – espécie de Deus ex-machina, guardião de uma nova natureza, híbrida, feita de big & meta data & resíduos psicoemocionais –, alguns habitantes desse futuro distante são levados a responder sobre sua condição ambígua no planeta Terra, bem como sobre sua promíscua relação com o fator humano, com os sentimentos e prerrogativas próprias da humanidade, cuja essência invariavelmente implica liberdade de pensamento e ação; em suma, livre-arbítrio.

Petra Gentrix, a misteriosa personagem desta saga sci-fi, encontra-se em busca de um lugar no mundo, de uma identidade e de sua autopreservação. Após um desastre ambiental (uma erupção causada pela agressiva extração de petróleo), ela é forçada a uma fuga intempestiva cujo destino deve ser arbitrado por uma autoridade maior – uma instância que se situa entre a virtualidade da inteligência artificial e o aparato burocrático mediado por humanos servis aos desígnios maiores da tecnologia. Constituída como um ente atemporal, sem gênero definido (ou não aplicável), Petra Genetrix é o resultado do acúmulo de informações obtidas ao longo de sua vida útil em contato com a espécie humana – uma forma parasitária de inteligência, desprezada pelo tempo e depositada na natureza como dejeto tecnológico, um vestígio mental contaminado pelas pulsões e desejos humanos; ou um receptáculo virtual para os mais caros dilemas existenciais da humanidade: suas preocupações ontológicas, seus sofrimentos e dores da alma, bem como seus prazeres redundantes que operam na contramão das noções de eficiência.

No atual estágio de nossa civilização, quando a humanidade se acerca mais e mais à tecnologia – física e intelectualmente –, a meta-narrativa proposta por Ayoung Kim tem o condão de articular metáforas e alegorias que respondem pelas prementes indagações político-filosóficas de nosso tempo. À exemplo de sua personagem Petra Genetrix, a artista igualmente está buscando sentido no conjunto de transformações sofridas pela natureza (também humana) na esteira de processos culturais e tecnológicos cujos resultados se apresentam tão opacos quanto inimagináveis. Assim, a ficção científica formulada por Kim opera antes como ferramenta hermenêutica a inquerir sobre o presente do que como exercício de futurologia ou mero diversionismo – embora haja, subjacente, o desejo de tanto explorar cenários futuros quanto fazer troça das vicissitudes ora impostas pela tecnologia.

Cena de “Petrogenesis Petra Genetrix”. Foto: Divulgação

Ao investir a anti-heroína de um caráter ambivalente quanto à sua natureza híbrida (mineral/humana/tecnológica), a artista pergunta tanto dos dilemas ético-políticos contingentes à sua condição de guardiã virtual da memória humana, quanto daqueles relativos à autonomia do pensamento e dos fluxos de informação em sociedades contemporâneas gradativamente mais refratárias aos direitos individuais. A ausência de liberdade experimentada por Petra Genetrix, em razão de seu desterro e da instabilidade atribuída à sua carga emotiva, vai espelhar, em larga medida, o status social de indivíduos cujos Estados identificam como nocivos ao ambiente político – terroristas, muçulmanos, rebeldes, imigrantes, mulheres, transexuais, negros, indígenas, entre tantos outros “grupos de risco”.

Quando deposita em suas fábulas ingredientes de um mundo em descontrole, semelhante a este que se assoma ao nosso horizonte imediato – diante do Antropoceno, da pandemia, da guerra, da discriminação sócio-étnico-racial e de gênero –, a artista trata de estabelecer correspondências entre o futuro e o presente, assim posicionando o espectador vis-a-vis sua iminente realidade, qual seja, a de uma contemporaneidade cingida por formas obscuras de controle social. Petra Genetrix, em sua qualidade de monstruosidade – isto é, um ente cuja natureza ambígua, potencialmente subversiva e apátrida representa um risco ao status quo –, responde, por analogia, ao contingente humano hoje excluído da vida cultural, política e econômica por força da sociedade de controle (Gilles Deleuze), do biopoder (Michel Foucault) e da necropolítica (Achilles Mbembe) – instâncias ideológicas cultivadas por Estados e corporações cujo papel discriminatório aparta os cidadãos dos meios de produção e do sistema de bem-estar social; ou então os submete, de maneira sub-reptícia, à manipulação política por meio dos insidiosos algoritmos gerados pelas big techs.

Tais mecanismos disciplinares, de vigilância e controle, que se dão a ver lá e cá – quer na ficção, quer na realidade –, nos permitem pensar a disseminação virtual da informação a partir de, pelo menos, duas categorias distintas: uma virótica, outra viral, uma vez que as informações tanto podem responder a estímulos “infecciosos” que lhes são dados pela inteligência artificial, quanto podem se reproduzir exponencialmente de forma autônoma, e anômala, nas redes de comunicação. Daí concluir que, no caso virótico, a I.A. nos rouba a capacidade de pensar livremente, caçando o juízo crítico sempre que se impõe como narrativa totalizante (via algoritmos e fake news, por exemplo); já no caso viral, a informação se dissemina insidiosamente nas redes, de maneira fortuita, obliterando os mecanismos de censura virtual (o WikiLeaks é um bom exemplo disso; o que equivaleria, no campo da ficção, ao vazamento de emoções humanas por Petra Genetrix). Quando, entretanto, o resultado do processo é consoante ao sistema coercitivo, a engrenagem haveria cumprido sua meta evitando o dano; quando, alternativamente, algo escapa ao controle da inteligência artificial, então se procederia ao expediente da quarentena ou da neutralização do vírus (pensamento, sentimento ou informação).

O que o projeto Petra Genetrix nos sinaliza, em seu futuro especulativo, é a noção de afeto enquanto risco: elementos humanos residuais a transitar pelas redes de circulação de dados, mas que devem ser detidos, controlados, ou então classificados como mental waste (resíduo mental), e, portanto, enviados ao exílio permanente sempre que houver afronta ao padrão de eficiência do sistema. Neste campo minado pela virtualidade, Kim acena com uma forma sui generis de cyber terrorismo “passivo”, qual seja, a do perigo representado pelas manifestações de humanidade e afeto no fluxo supostamente estável da I.A. Tão logo a fragilidade psíquica é introduzida na matriz informática, percepções de erro e ineficiência acabariam por corromper o sistema, produzindo falhas e desequilíbrios, provocando o colapso do (utópico ou distópico?) hibridismo entre homem e máquina.

Tal qual ocorre sob as placas tectônicas, por analogia a “lava” de sentimentos e dúvidas humanas a penetrar a rede pode provocar uma irrupção instantânea, como um vulcão – ou um erro fatal a comprometer a integridade do sistema operacional. É quando a volatilidade dos afetos finalmente encontra a solidez do disco rígido, malgrado a tão propalada virtualidade da rede – o afetivo (deficiente) alcançaria, então, a matriz de eficiência tecnológica.

Ayoung Kim
Cena de “In Search of Petra Genetrix”. Foto: Divulgação

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A natureza ainda não existe

No universo ficcional de Porosity Valley e Petra Genetrix (e de suas sequências em vídeo ou performance), os movimentos migratórios de placas tectônicas, indivíduos e informações, bem como a confluência entre as mais diversas culturas – que se encontraram e contaminaram no curso da história e do avanço tecnológico – nos leva a todos de roldão, como num cataclismo, relativizando as noções de utopia e distopia ao pôr em xeque o próprio entendimento sobre a natureza.

Segundo Theodor W. Adorno, “A natureza ainda não existe” – antes, trata-se de uma construção empreendida pela humanidade desde sua segunda natureza, aquela da convenção cultural e da tecnologia. Já a simbiose entre humanos e inteligência artificial proposta por Kim configuraria possivelmente um outro estágio, ou uma terceira natureza; não mais a segunda, tão naturalizada pela humanidade a ponto de exigir uma projeção romântica que pudesse dar conta, ao menos no plano ideal, do que seria o reino da primeira natureza, destituída das formas engendradas pela cultura: ou seja, a ideia de uma natureza (primordial) redentora, capaz de libertar a humanidade das amarras impostas pela segunda natureza – paradoxalmente, esta última resultado da obra e engenhosidade humanas.

Nesta terceira natureza, por assim dizer, homens e mulheres se tornam objetos, e não mais sujeitos em face da inteligência artificial. Ao reificar os sentimentos eminentemente humanos como material degradante a ser excluído em definitivo da matriz (espécie de bit rot), a I.A. acaba por remover a humanidade da equação sujeito/objeto que bem caracterizava a cultura iluminista ocidental, qual seja: nós, humanos, como agentes transformadores e controladores da natureza. Na obra de Ayoung Kim, ao revés, seríamos nós, humanos, os submetidos a esta outra força que mimetiza a natureza e, por consequência, a própria humanidade, a saber, a inteligência artificial.

Bibliografia:
SANTOS, Milton. 2007. Pensando o Espaço do Homem. São Paul: EdUSP.
DELEUZE, Gilles. 2010. Conversações. São Paulo: Ed. 34 Ltda.
FOUCAULT, Michel. 1999. Em Defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes.
MBEMBE, Achilles. 2011. Necropolítica. Barcelona: Melusina.
ADORNO, Theodor W. 2013. Aesthjetic Theory. New York: Bloomsbury Academic.

*Bernardo José de Souza é curador, professor e crítico de arte. Foi Diretor Artístico da Fundação Iberê Camargo até 2019. Atualmente, como curador independente, reside em Madri. Foi Coordenador de Cinema, Vídeo e Fotografia da Secretaria de Cultura de Porto Alegre entre os anos de 2005 e 2013 e integrou as equipe de curadoria da 9a Bienal do Mercosul (Porto Alegre, 2013) e da 19a Bienal Sesc_Videobrasil (2015).

Assista ao vídeo sobre a mostra “Oficina Molina – Palatnik”, no Sesc Avenida Paulista

Obras de Palatnik e Mestre Molina na Oficina Molina - Palatnik. Foto: Coil Lopes
Obras de Palatnik e Mestre Molina. Foto: Coil Lopes

Em cartaz até dia 27 de março no Sesc Avenida Paulista, a exposição Oficina Molina – Palatnik propõe um diálogo entre as obras de Abraham Palatnik (1928-2020) e Mestre Molina (1917-1998), dois artistas brasileiros que se conectam pela atração pelo movimento e engenhosidade. Com curadoria da equipe do Sesc-SP, a mostra evidencia semelhanças e diferenças entre os trabalhos destes dois inventores, como afirma Danilo Santos de Miranda: “Representantes de vertentes artísticas tidas, de um lado, como popular e, de outro, como erudita, tanto Molina como Palatnik ocupam papel de destaque no Acervo Sesc de Arte”. Para o diretor regional do Sesc-SP, “se há patentes dessemelhanças entre seus processos de criação, percebe-se, todavia, que os dois artistas mobilizaram seus repertórios e universos culturais em prol de singulares sínteses moto-construtivas”.

Seguindo os cuidados e protocolos por conta da pandemia de Covid-19, a mostra pode ser visitada com agendamento pelo site do Sesc. Para falar mais sobre a exposição, a arte!brasileiros entrevistou Lizandra Magalhães e Fabiana Delboni, assistentes da Gerência de Artes Visuais do Sesc-SP e responsáveis pela montagem de Oficina Molina – Palatnik. Assista ao vídeo:

Para a segurança de todos frente à pandemia de coronavírus, a temperatura corporal é aferida na entrada e o uso de máscaras é obrigatório durante toda a visitação.

Na celebração de seus 90 anos, Augusto de Campos ganha mostra na Biblioteca Mário de Andrade

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O poeta Augusto de Campos. Foto: Fernando Lazslo/ Divulgação

Célebre poeta e artista visual – além de ensaísta, tradutor e crítico literário -, Augusto de Campos está prestes a completar 90 anos de idade. Se antecipando à data (no dia 14 de fevereiro), a Biblioteca Mário de Andrade inaugurou, ainda no fim de 2020, Poema cidadecitycité pela cidade, mostra que segue em cartaz na instituição até 23 de abril deste ano.

Com curadoria de Daniel Rangel e montada em parceria com a N+1 Arte Cultura, a mostra tem como grande destaque a versão audiovisual do poema cidadecitycité, exposto em um painel de led com 10 metros de comprimento e instalado na fachada principal da biblioteca. A versão em led foi desenvolvida para a exposição REVER, realizada em 2016 no Sesc Pompeia, e se junta na mostra à distintas versões do poema – realizadas desde 1963 até a atualidade, impressas em papel, em adesivo vinil de recorte ou registradas em gravações sonoras.

De acordo com Rangel, em texto de divulgação, “a instalação em led de cidadecitycité é uma tradução intersemiótica multimídia pensada para o espaço público que ganha aqui uma maior potência por estar exposta no centro de São Paulo, cidade diretamente conectada com o poema e com a própria trajetória da poesia concreta de Augusto de Campos e de seus companheiros.”

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“cidadecitycité” nas paredes da Mário de Andrade. Foto: Divulgação

Criador nos anos 1950, ao lado de Haroldo de Campos e Décio Pignatari, do que ficou conhecido como poesia concreta – através inicialmente do grupo “Noigandres” -, Augusto é autor de uma vasta obra “verbovicovisual”, termo que se refere às dimensões semânticas, sonoras e visuais da palavra. Sempre teve forte posicionamento político, desde os tempos de oposição à ditadura até os mais recentes acontecimentos políticos do país (como pode-se ver nesta entrevista concedida à arte!brasileiros em 2019).

Em conversa anterior com a revista, em 2016, Augusto de Campos se queixava de certa falta de reconhecimento ao tipo de poesia desenvolvida por ele e seus parceiros ao longo das décadas: “Eu acho que a poesia concreta ainda está numa fronteira onde ela nem é tão reconhecida no campo da literatura nem no campo das artes visuais. Então ela vive meio numa fronteira, numa espécie de limbo crítico”. Ao mesmo tempo, o poeta afirmava que era possível perceber alguma mudança nos últimos anos. Novas mostras individuais do artista após a retrospectiva no Sesc Pompeia, como a realizda na galeria Luciana Brito em 2019 e a atual exposição na Mário de Andrade, parecem confirmar este movimento. Ainda neste ano, será montada mais uma mostra do poeta na biblioteca paulistana, intitulada Transletras.      


Serviço –
“Poema cidadecitycité pela cidade”
Até 23 de abril de 2021, segunda a sexta das 13h às 16h
Não é necessário fazer agendamento (entrada permitida de até 4 pessoas por vez)
Biblioteca Mário de Andrade – Rua da Consolação, 94, São Paulo

2016 | Sesc apresenta maior mostra já realizada de Augusto de Campos

augusto de campos
Escultura da obra "Viva Vaia". Foto: Divulgação

“O fato é que estes poemas caberiam melhor talvez numa exposição, propostos como quadros, que num livro”, escreveu certa vez o concretista Augusto de Campos, hoje aos 85 anos. Se caberiam melhor ou não, o certo é que a obra “verbovicovisual” – termo que se refere às dimensões semânticas, sonoras e visuais da palavra – do poeta paulistano cabe não só em livros e quadros, mas também em vídeos, colagens, esculturas, músicas, instalações, holografias e projeções. Decorre desta constatação a montagem da exposição REVER, em cartaz no Sesc Pompeia, maior mostra dedicada à obra de Augusto de Campos já realizada.

“Eu acho que essas coisas já estavam potencialmente dentro da poesia concreta”, diz o autor sobre as várias plataformas utilizadas na mostra, inclusive as mais tecnológicas. “Claro que você não podia prever a que ponto chegaríamos, mas havia, virtualmente, pressupostos”, continua Augusto em entrevista a arte!brasileiros. Nessa linha, como explica o curador da mostra, Daniel Rangel, o poema Desgrafite se tornou um grafite, Espelho foi impresso em cima de um grande espelho e assim por diante. “Muitos dos suportes que a gente escolheu para expor já estavam, entre aspas, nos livros”, afirma Rangel, que concebeu a exposição em diálogo constante com o poeta. Os livros, no caso, são os quatro lançados por Augusto ao longo da vida – Viva Vaia (1979), Despoesia (1994), Não (2003) e Outro (2015) – que, junto a outras peças e a manuscritos, são as bases da exposição.

Alguns dos suportes presentes também já haviam sido utilizados pelo autor ao longo se sua carreira de 65 anos, iniciada pouco antes de fundar ao lado de Haroldo de Campos e Décio Pignatari o grupo Noigandres, em 1952. A célebre poesia Viva Vaia, por exemplo, escrita em 1972 em homenagem a Caetano Veloso e exposta como uma grande escultura de aço em REVER, já havia sido apresentada neste formato outras vezes, mesmo que em reproduções menores. Vídeos, hologramas e animações, por exemplo, também não são novidades para o poeta, que sempre buscou acompanhar as tecnologias de cada época. “Até os vídeos em 3D, realizados pela primeira vez agora, já pediam o 3D antes mesmo dele existir”, diz Rangel. “Isso é uma característica do trabalho do Augusto, que sempre foi um vanguardista”. Se não fosse pela questão geracional, talvez o próprio autor estivesse produzindo com tecnologia de ponta em casa: “Comecei a trabalhar com meu próprio computador doméstico só em 1992. Então eu já tinha 60 anos, quando o ideal era ter 20”, brinca.

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Augusto de Campos durante entrevista no Sesc Pompeia. Foto: Marcos Grinspum Ferraz

Diante da diversidade de plataformas e linguagens utilizadas, Rangel afirma que a mostra tem como objetivo, além de apresentar uma grande retrospectiva (também prospectiva, segundo ele) do trabalho do autor, corrigir uma falha histórica que permanece ainda hoje. “Em qualquer biografia sobre Augusto, ele é considerado poeta, tradutor, crítico e ensaísta, mas nunca artista. E um dos objetivos desta exposição é corrigir um pouco esse erro, uma vez que ele é também um grande artista”. Perguntado sobre o assunto, Augusto relembra a célebre Exposição Nacional de Arte Concreta, em 1956, que lançou as bases do concretismo no País, reunindo poetas e artistas plásticos. “Então não esse, da arte, não me é um ambiente estranho, apesar de não ser tão frequente em uma exposição a presença de poetas”, diz ele. Mas Augusto também é um artista, não? “Eu suponho que sim”, responde o próprio, rindo.

A questão da falta de reconhecimento de Augusto enquanto artista é, na verdade, parte de uma possível falta maior, de reconhecimento da própria poesia concreta. Em entrevista, certa vez, o autor afirmou que os poetas concretos se defrontaram com um muro de negação diante de minoritários aplausos. “Isso mudou muito, hoje a poesia concreta está até em livros didáticos. Na crítica ainda há quem seja muito contra, mas isso é natural, até importante. Porque significa que você incomoda, e a arte tem que provocar, né?”. O curador é ainda mais contundente em sua afirmação: “Eu acho que a poesia concreta ainda está numa fronteira onde ela nem é tão reconhecida no campo da literatura, nem no campo das artes visuais. Então ela vive meio numa fronteira, numa espécie de limbo crítico”. Mas assim como o poeta, Rangel reconhece uma melhora no panorama. “Agora começa a cair mais a ficha das pessoas em relação ao Augusto, mas ele passou muito tempo numa espécie de ostracismo. Tanto é que uma exposição deste porte só acontece agora. Precisou chegar aos 85 anos pra ganhar uma exposição que ele pode realmente chamar de dele”.

Enquanto celebra os 65 anos de carreira e a realização de sua maior exposição, Augusto lamenta profundamente a situação do país e o possível afastamento da presidenta Dilma Rousseff. Autor do poema-colagem Psiu (1966) em plena ditadura militar e de outras obras relacionadas à vida política brasileira ao longo das décadas, Augusto não apresenta em REVER nenhum trabalho ligado diretamente ao conturbado momento atual, até mesmo porque a mostra foi planejada muito antes de ter inicio o processo de impeachment. “Mas, quem sabe, depois do circo grotesco que nós fomos obrigados a assistir pela televisão, proporcionado pela Câmara dos Deputados, a poesia possa trazer um pouco de sensibilidade, um pouco de consciência. Quem sabe pode dar um pouco de luz e de esperança para esse momento tão conturbado e triste”.

Relembrando que é também advogado e foi procurador do Estado durante 40 anos, Augusto argumenta que a destituição da presidenta não tem base jurídica sólida. Mas com a veia poética que fala mais alto, ele conclui trabalhando as palavras: “Fica até um paradoxo, porque o que se está vendo aqui, na exposição, é obra em progresso, e o que o Brasil está passando é obra em regresso”.

*Em 2019 a arte!brasileiros entrevistou novamente Augusto de Campos. Leia aqui.

Livro apresenta espectro promissor das artes visuais por meio da seleção de 20 artistas

Capa do livro "20 em 2020, Os artistas da próxima década: América Latina". O livro tem uma capa preta. No topo da mesma, pode-se ler "os artistas da próxima década" em caixa alta, numa letra pequena e rosa. No centro da capa, vemos um "20" grande, escrito de lado, em rosa; seguido por "em" e o topo de outro "20" escrito da mesma forma. O livro está de pé sobre um fundo rosa, no mesmo tom das letras da capa
Capa de "20 em 2020, os artistas da próxima década: América Latina". Foto: Divulgação

Reunindo análises de 14 críticos e curadores de diversas nacionalidades, 20 em 2020, os artistas da próxima década: América Latina busca responder quem irá definir o horizonte artístico e cultural nesta nova década. Com textos em português, inglês e espanhol, o livro destaca a obra de 20 artistas latino-americanos que se relacionam com o continente por meio de suas pesquisas. Para isso, compila análises individuais sobre a produção de cada um, além de apresentar seus currículos, imagens de obras e vistas de exposições.

20 em 2020 é resultado de uma ampla pesquisa curatorial desenvolvida pela Art Consulting Tool. “Os artistas aqui apresentados nos dão um panorama abrangente de tendências, poéticas, lugares, dinâmicas, risos, obsessões, sensibilidades, ações, reações, desprendimentos, ataques… Enfim, de todo o caleidoscópio da arte que consideramos latino-americana devido ao seu âmbito geográfico ou por afinidades históricas, culturais e linguísticas compartilhadas”, reflete Gerardo Mosquera na introdução do livro. Para o curador, os artistas selecionados mostram a diversidade das produções contemporâneas da América Latina, indo na contramão de qualquer tipo de generalização sobre a região.

Essa questão guia algumas das perguntas fundamentais trabalhadas na obra: o que é a América Latina? Será que se pode falar de uma voz artística latino-americana? Há uma unidade estética e cultural para todo o continente? “Este livro procura sustentar dissidências, realçar a periferia e sugerir imaginários variáveis. O que fica claro a partir de nossa pesquisa é a resistência oferecida pelos artistas latino-americanos, cada um com suas poéticas e sensibilidades, sem panfletagem. Resistência contra a homogeneização e comodificação de nossas almas, ritos e mitos. Resistência ao enquadramento raso de clichês antigos, contra qualquer estereotipização”, afirma Fernando Ticoulat, sócio-fundador da Art Consulting Tool

Entre críticos e curadores, a consultoria reuniu os brasileiros Diane Lima, Germano Dushá, Júlia Rebouças, Kiki Mazzucchelli e Raphael Fonseca; o cubano Gerardo Mosquera; os mexicanos José Esparza Chong Cuy e Ruth Estévez; os argentinos Andrei Fernández e Mariano López Seoane; o peruano Miguel A. López; e as americanas com ascendência latina Nika Chilewich, Olga Viso e Pilar Tompkins Rivas.

Já os artistas, selecionados como retratos daquilo que está por vir no mundo artístico e cultural, são Ad Minoliti, Adriano Amaral, Alia Farid, Carolina Caycedo, Dalton Paula, Frieda Toranzo Jaeger, Gabriel Chaile, Gala Porras-Kim, Iván Argote, Jill Mulleady, Johanna Unzueta, Jota Mombaça, Katherinne Fiedler, Naufus Ramírez-Figueiroa, Pia Camil, Reynier Leyva Novo, Sheroanawe Hakihiiwe, Tabita Rezaire, Tania Pérez Córdova e Yuli Yamagata.

Serviço

Se interessou? 20 em 2020, os artistas da próxima década: América Latina estará disponível para venda na Martins Fontes e na Amazon por R$179,90.

Dia Nacional das Histórias em Quadrinhos

Traço de Giz, de Miguelanxo Prado

Capa de "Traço de Giz", de Miguelanxo Prado, publicado no Brasil pela Editora Pipoca e Naquim
Capa de “Traço de Giz”, de Miguelanxo Prado, publicado no Brasil pela Editora Pipoca e Naquim. Foto: Divulgação.

O que é: o quadrinho mais premiado da história da Espanha. Lançada originalmente em 1992, Traço de Giz é uma das realizações mais representativas de Miguelanxo Prado e um clássico das HQs europeias. Foi agraciada com o prêmio de Melhor Álbum Estrangeiro no Festival de Angoulême, Melhor Álbum no Salão de Quadrinhos de Barcelona e indicado aos prêmios Eisner e Harvey. Agora, a Editora Pipoca & Nanquim traz Traço de Giz para o Brasil.

Sinopse: “Raul navegava em alto-mar quando foi atingido por uma tempestade, o que deixou seu barco à deriva e o levou para uma ilhota que não consta em nenhum mapa. Um cenário pacato com apenas dois habitantes, uma estalagem, um velho farol desativado e um muro com estranhas mensagens. Mas a embarcação de Raul não é a única atracada no cais e logo ele conhece a bela e misteriosa Ana, por quem se sente imediatamente atraído. No entanto, conforme os dias avançam, Raul se vê incomodado em suas tentativas de compreender alguns absurdos locais: qual o propósito de uma estalagem sem clientes no meio do nada? Por que há tantas gaivotas mortas? Quem é Ana? E por que dizem que a chegada de uma terceira embarcação à ilha significa o prenúncio de uma tragédia?”

Comentário: “Ele tem um encanto danado pela luz, pelo efeito que a luz causa sobre os corpos, sobre as superfícies, os materiais. Mas não só sobre esse tipo de efeito como também como as pessoas se impressionam, como elas se sentem. Uma coisa que ele é muito delicado, que ele é muito bom, é nas trocas de olhares, nos pequenos gestos.”, comenta Alexandre Linck, do canal Quadrinhos na Sarjeta.

 

Sunny, de Taiyo Matsumoto

Dia Nacional das Histórias em Quadrinhos. Capa de "Sunny", de Taiyo Matsumoto, publicado no Brasil pela Editora Devir
Capa do primeiro volume de “Sunny”, de Taiyo Matsumoto, publicado no Brasil pela Editora Devir. Foto: Divulgação.

O que é: Sunny é um dos trabalhos mais pessoais de Taiyo Matsumoto. Retrata a vida de um grupo de adolescentes órfãos, as suas inseguranças, revoltas e sentimentos de abandono. O estilo utilizado por Matsumoto nessa série marca uma nova fase para o artista. Sunny, no Brasil, terá 3 volumes. Em 2021 a editora Devir – pelo selo Tsuru – publicará o segundo deles, sendo que o primeiro já está disponível.

Sinopse: “Os personagens desta história sonham e dão asas à sua imaginação dentro de um velho carro cor de mostarda, ao qual dão o nome de Sunny. O otimismo inocente e a camaradagem dos garotos contrariam a melancolia subjacente à narrativa, refletindo a própria experiência pessoal do autor, que cresceu em famílias de acolhimento”.

Comentário: “Além do fato de que ele representa um ponto muito fora da curva do tradicional estilo mangá, um raro caso de desenhista e narrador japonês que sofreu forte contaminação das escolas europeias, ele tem uma capacidade muito impressionante de criar relações afetivas entre personagens”, analisa Rafael Coutinho, autor de Mensur e O Beijo Adolescente, em conversa com Ramon Vitral.

 

A Guerra do Deserto, de Enrique Breccia

Dia Nacional das Histórias em Quadrinhos. Capa de "A Guerra do Deserto", de Enrique Breccia, publicado no Brasil pela Editora Veneta. Foto: Divulgação.
Capa de “A Guerra do Deserto”, de Enrique Breccia, publicado no Brasil pela Editora Veneta. Foto: Divulgação.

O que é: um quadrinho sobre o extermínio dos povos indígenas na Argentina do século 19; a Veneta lança a obra em janeiro de 2021. Nele, Enrique Breccia reúne narrativas sobre um momento definidor em seu país: o surgimento de Martín Fierro, um herói nacional, e o desenrolar da guerra de extermínio contra a população indígena que fez da Argentina um país “branco”. Enrique Breccia é filho do também quadrinista Alberto Breccia; ele começou sua carreira na década de 1960 ao colaborar com seu pai nos desenhos do livro Che – os últimos dias de um herói nacional, com roteiro de Héctor Germán Oesterheld.

Sinopse: “O livro é um mergulho na Argentina do século XIX, quando o governo empreendeu uma cruzada contra populações indígenas a fim de liberar terras para o pasto – a exportação de carne já se tornava uma importante atividade econômica no país. Publicadas originalmente nos anos 70, na revista italiana Linus, as histórias reunidas neste livro abordam os embates entre gaúchos e indígenas na disputa pelos pampas argentinos, mas retratam também dramas humanos no México de Emiliano Zapata, e a luta do povo argelina contra a colonização francesa.”

O prefácio do livro foi liberado pela Editora Veneta, confira aqui como ele complementa os desenhos de Breccia.

 

Menção Honrosa

Guardiões do Louvre, de Jiro Taniguchi

O que é: a partir de encomenda do Louvre, Taniguchi trabalhou no mangá depois de passar um mês no museu em maio de 2013. Antes disso, em 2011, Jiro foi nomeado Cavaleiro da Ordem das Artes e Letras, uma condecoração concedida pelo Ministério da Cultura da França. Quatro anos depois, foi homenageado no Festival de Angoulême com uma exposição de escala inédita na Europa. Taniguchi faleceu em 2017, deixando um legado que compreende quase quatro décadas de produções da nona arte. Embora Guardiões do Louvre não seja um lançamento, é uma boa dica para quem gosta dos quadrinhos e está saudoso para viajar e visitar os museus de fora.

Sinopse: “Depois de uma excursão pela Europa, um artista japonês faz uma parada em Paris sozinho, com a intenção de visitar os museus da cidade. Mas, acamado em seu hotel devido a febre, ele enfrenta o sofrimento da solidão absoluta em uma terra estrangeira, privado de qualquer recurso ou apoio familiar. Quando a febre baixa um pouco, ele inicia seus passeios e logo se perde nos monumentais salões do Louvre. Lá, descobre muitas facetas do mundo das artes, em uma jornada que oscila entre alucinações febris e realidade. Ele se vê conversando com pintores famosos de diversos períodos da história, sempre guiado pelos… Guardiões do Louvre”.

Comentário: “É uma história para ser consumida aos poucos, para ser degustada, prestando atenção nas nuances”, nota Thiago Ferreira, do canal Comix Zone.