Início Site Página 67

A arqueologia do rejeito

Detalhe de Rejeito, de Marcelo Moscheta
Detalhe da instalação "Rejeito", de Marcelo Moscheta, montada a partir de folhas secas feitas de cerâmica. Foto: Filipe Berndt

Caminhando pela Fábrica de Arte Marcos Amaro é possível ver as salas expositivas, esculturas ao ar livre, uma vegetação diversa e muitas folhas secas caídas no chão. Essas últimas podem passar despercebidas aos olhares de alguns, mas foi a partir delas que Marcelo Moscheta decidiu desenvolver um projeto artístico. “A ideia foi trabalhar essas folhas secas, que estavam sendo varridas aqui do espaço, essa natureza que invade a fábrica – que já foi ruína e está em transformação”, conta o artista.

Foi a partir da vegetação seca que Moscheta decidiu refletir sobre outros descartes. A ideia veio logo após a tragédia de Brumadinho, em 2018, quando a lama das barragens assolou a região mineira. Isso acontecia pouco depois do desastre de Mariana, em 2015. A lama que varria vegetação, animais, moradias e vidas humanas tinha nome: rejeito. 

Para o dicionário, “rejeito” pode ser um simples resto, ou aquilo que sobra de qualquer substância submetida a um procedimento e que não pode ser utilizada novamente. Existem rejeitos industriais, nucleares e de mineração. Esse último é o referente aos desastres com as barragens, que carregaram consigo o apagamento de histórias e vidas. É ele também que dá nome ao projeto e à exposição individual de Marcelo Moscheta, Rejeito, na Fábrica de Arte Marcos Amaro.  

Do descarte à memória

“Eu estava muito impactado por aquelas imagens [de Brumadinho], e se falava muito dessa história do rejeito. Pensei em fazer um paralelo entre a história da Fábrica e o que estava sendo o tema do país no momento”. O projeto foi contemplado pelo Prêmio FAMA Museu e Campo da 15ª SP-Arte e o artista passou meses em residência no Museu.  

“Gosto muito de trabalhar essa relação homem-espaço-natureza, como as coisas se dão dentro desse tripé. Então, imaginei que essa ideia do ‘rejeito’, de algo que fosse já descaradamente descartado, pudesse ser invertido em uma aproximação poética aqui para a Fábrica”, explica o artista. Assim, decidiu inverter o sentido do “rejeito”. Se nas tragédias de Brumadinho e Mariana era essa lama que apagava histórias, no projeto artístico era ela quem fazia a arqueologia da FAMA. “É uma ideia de transformação e de tempo. A ideia de uma folha seca condensada em cerâmica – na própria lama -, que é um barro que não encobre a história, mas se torna arqueologia.”

Instalação "Rejeito", de Marcelo Moscheta
Instalação “Rejeito”, de Marcelo Moscheta. Foto: Filipe Berndt

A partir de folhas secas de diferentes plantas, coletadas na Fábrica, Marcelo Moscheta criava moldes em gesso e os transformava em matrizes de silicone. Com auxílio de uma equipe formada por jovens artistas, ele preenchia as matrizes com paper clay – uma mistura de argila com fibra de celulose – e as prensava, formando peças de cerâmica. Elas eram então moldadas, secavam e iam para a queima. O resultado final mimetiza as folhas secas. Ao fim, cerca de 4500 peças foram empilhadas em uma sala, dando origem à instalação Rejeito

Como explica Moscheta, “é uma obra construída a partir de fragmentos mínimos e que toma corpo, volume e presença quando apresentada como acúmulo e aglomeração”. Num mundo em meio à uma pandemia que nos obriga ao isolamento social, isso traz um novo sentido à obra. “Quero falar da força de se estar junto, de aglomerar e marcar presença, mesmo quando, individualmente, parecemos insignificantes, mesmo quando somos o rejeito de um mundo, de um país que tem outros valores e sentidos para o viver”, conclui.

Essa união também esteve presente no processo da obra e da exposição na qual ela se insere. O artista não construiu Rejeito sozinho. “Cada um de nós acaba modelando a folha de uma forma, então cada folha tem a cara de uma pessoa e isso dá uma pluralidade muito grande, por mais que seja a mesma matriz”, diz Eliel Fabro, graduado em Cinema e membro da equipe que auxiliou Moscheta. Ao que a estudante de Cinema Giulia Baptistella complementa: “A gente percebeu que quando moldamos a folha, cada um coloca um pouco de si. Desde abrir a massa, mas principalmente na hora de moldá-la”. 

Em entrevista à arte!brasileiros, os jovens artistas também compartilharam a importância de estarem envolvidos em um projeto como esse: “Foi muito interessante, porque a gente encontra a arte e as suas formas de ser dentro de cada artista, né? Existe uma carga histórica, sentimental e poética que o artista traz consigo”, diz Carlos Mendes. Para o estudante de História, é pela multiplicidade de artistas envolvidos que a “obra transpõe a diversidade de sentimentos, de características, e acaba resultando em um pouquinho de nós dentro da obra do Marcelo”.

Aqui-agora

Porém, essa é uma esfera que não permite tirar de vista a questão ambiental envolvida no projeto e na exposição Rejeito. Em entrevista a arte!brasileiros em março de 2020, Marcelo Moscheta compartilhou sua crença de que esse trabalho seria muito especial para o momento em que vivíamos, “porque trata de alguns pontos que para mim sempre foram importantes, como a ruína, a tensão entre homem e meio ambiente e agora (ainda mais do que antes) essa questão da degradação e da exploração desmedida dos nossos recursos naturais”.

A exposição foi adiada, devido à crise sanitária mundial gerada pelo novo coronavírus, porém isso não tirou a atualidade da proposta artística, já que o assunto não se tornou datado. “Penso que Rejeito se insere temporalmente em um arco que vai de Mariana e Brumadinho até o aumento das queimadas da Amazônia e Pantanal neste ano, passando pela pandemia do Covid-19. Porém, não se prende a eles, uma vez que é universal em seu sentido de tratar de manifestações de preservação da memória da humanidade que nasceram na pré-história e vão continuar ainda sendo mantidas”, explica Moscheta. 

O artista acredita que esse é o início de um novo movimento dentro de suas produções artísticas. “Essa história de um posicionamento um pouco mais crítico frente a essas questões ambientais têm habitado cada vez mais os meus trabalhos”. Assim, a reflexão ecoa pelo restante de sua mostra individual, ocupando a sala com outras produções. Rejeito está em cartaz na Fábrica de Arte Marcos Amaro, em Itu, com entrada gratuita e possibilidade de agendamento prévio online.

Assista ao vídeo e entenda mais sobre o processo de criação de “Rejeito”

 

Artistas de ascendência africana na arte brasileira: presença/ausência?

Emanoel Araújo, "Sem Título", 1976, xilogravura a cores s/ papel, 99,3 x 69,4 cm. Foto: Pinacoteca de São Paulo
Emanoel Araújo, “Sem Título”, 1976, xilogravura a cores s/ papel, 99,3 x 69,4 cm. Foto: Pinacoteca de São Paulo

Pelo fato de estudar a questão da identidade nacional da arte produzida no Brasil desde o início de minha carreira como pesquisador, a posição do artista de ascendência africana dentro do segmento hegemônico da arte do país há anos me interessa e preocupa. Assim, em 2015, quando atuava como diretor geral da Pinacoteca de São Paulo, ao me ver responsável pela homenagem a ser feita a Emanoel Araújo – dos principais profissionais a me antecederem na direção daquele museu – ao invés de optar por enaltecer sua importância na reforma do edifício da Pina Luz, ou seu pioneirismo ao levar para a Pinacoteca grandes exposições internacionais, preferi enfatizar sua posição como o primeiro diretor a iniciar uma política de aquisição de obras de artistas de ascendência africana para o acervo. O resultado foi a mostra Territórios: artistas afrodescendentes no acervo da Pinacoteca[1], em que apresentei uma série de obras de jovens artistas negros, recém-adquiridos pela instituição, ao lado de obras de artistas da mesma origem já presentes no acervo.

Ao buscar detectar o que poderia unir as novas obras que chegavam à coleção com aquelas já existentes, percebi que apenas a origem comum de seus produtores as unia. Estou consciente de que essa percepção estava ligada às características das obras de artistas de origem africana pertencente à Pinacoteca, não sendo uma característica de toda a arte produzida por afrodescendentes. De qualquer modo, naquela oportunidade pareceu-me impossível refletir sobre a arte afro-brasileira como um território uno e pleno. Por isso chamei a mostra de “Territórios”, no plural, e não “Território”. E isto porque o máximo que eu conseguia fazer com o acervo de obras de artistas negros da Pina era articulá-las em pequenos grupos, formados por obras que dialogavam entre si e não entre todas as obras escolhidas para a mostra. Assim, acabei dividindo a exposição em três “territórios”: aquele que unia obras que se valiam de matrizes africanas; outro que reunia obras ligadas a matrizes europeias e, por último, obras mais recentes, pautadas por matrizes contemporâneas[2].

Com a exposição montada e inaugurada, comecei a desconfiar daqueles “territórios”, concebidos para agrupar os três conjuntos de obras. No fim, considerei como falsa a impressão de que eles não dialogavam entre si e que eu havia me equivocado ao partir para o meu trabalho de curadoria pautado por uma estratégia anterior à realidade das obras que eu exibia. Ou seja, o conceito de uma arte “afro-brasileira” ou “afrodescendente” tinha colonizado o meu olhar, fazendo com que eu lançasse mãos de categorias tipológicas prévias para agrupar aquelas obras, o que acabara por me impedir, por exemplo, de associar a obra de Sidney Amaral não à produção de Firmino Monteiro, mas àquela de Rosana Paulino.

Sidney Amaral, “Imolação”, 2009-2014, acrílica s/ tela, 80 X 130 cm. Foto: Pinacoteca de São Paulo

Na continuidade desses pensamentos concluí que para um entendimento mais complexo sobre a arte produzida no Brasil, talvez fosse mais produtivo refletir sobre a obra de Emanoel Araújo em relação, por exemplo, àquela de Amílcar de Castro do que em relação apenas à de Rubem Valentim. Tais pensamentos me levaram a perguntar sobre qual a real importância que a noção de arte afro-brasileira poderia ter para pensarmos a arte produzida no Brasil de maneira de fato produtiva.

***

As questões levantadas por mim em 2015 e registradas no parágrafo acima não foram desenvolvidas, permanecendo latentes até que, faz algumas semanas, mexendo em meu arquivo, me deparei com um artigo que publiquei em 2010 na Novos Estudos Cebrap, sobre a historiografia artística no Brasil[3]. Ali, a certa altura, comparava o livro A arte brasileira, de Gonzaga-Duque, publicado em 1888[4] com História Geral da Arte no Brasil, coordenado por Walter Zanini e lançado em 1983[5].

Para alguns, esses dois livros são incomparáveis. Afinal, o primeiro é um ensaio sobre a arte produzida no Brasil – um misto de narrativa histórica (desde o período colonial) e breves perfis de alguns artistas citados naquela narrativa – escrito por um só autor. Já o livro coordenado por Zanini tinha como espinha dorsal também a arte produzida no Brasil, desde o período anterior a Cabral, até os anos 1970. Só que essa segunda narrativa fora escrita por oito especialistas especialmente convidados[6]. Porém, apesar da autoria compartilhada e de ser ricamente ilustrado (o que não era o caso do livro de Gonzaga-Duque, sem nenhuma ilustração), ambos traziam narrativas sobre a arte brasileira. Se a primeira, ia da arte colonial até as últimas décadas do século XIX, a segunda expandia essa linha, acrescentando, em seu início, o período anterior à colonização e, no final, “trazendo” a narrativa até os anos 1970.

No entanto, em torno desse grande eixo que também caracterizava a obra coordenada por Zanini, gravitavam ainda outros ensaios que não participavam daquela linha principal[7].

Chamo a atenção para o seguinte fato: se o texto de Darcy Ribeiro, completamente voltado para a análise de produção indígena “pura”, foi editado para permanecer no início daquela espinha dorsal – reconhecendo, assim, a legitimidade dessa produção –, já a arte produzida por artistas de origem africana não teve o mesmo destino, permanecendo no conjunto de ensaios satélites, ao lado de temas como a fotografia, a arte-educação etc.

Hoje em dia pode soar inconcebível para muitos os editores do livro terem deixado todos esses assuntos fora da narrativa principal da arte brasileira. De fato, não é possível pensar a arte no Brasil sem levar em conta, por exemplo, o papel que a fotografia e a imagem fotográfica cumpriram na arte local a partir de meados do século XIX.

Porém, mais grave ainda parece ter sido propor uma reflexão sobre a arte no Brasil que não levava em conta a dimensão fundamental da presença do artista negro dentro dela, relegando esse fenômeno a um texto que, embora com qualidades, não deixava de ser um satélite na economia geral da publicação.

***

Comparado ao livro de Gonzaga-Duque, aquele coordenado por Zanini significou uma mudança de mentalidade perante a maneira como os artistas de origem africana eram vistos. Embora tratados fora do eixo principal, o texto de Carneiro da Cunha pensa aquela produção com expertise, inclusive entendendo que estudá-la fechada em si mesma era respeitar-lhe a integridade e especificidade – uma atitude diferente daquela percebida no texto de Gonzaga-Duque, em que a figura do negro foi descrita quase sempre com preconceito.

Moisés Patrício, “Aceita?”, série fotográfica iniciada em 2013, ainda em processo. Impressão digital s/ papel algodão, 10x 10 cm (cada foto). Foto: Coleção Particular

Entretanto, chegando praticamente a quarenta anos de seu lançamento, História Geral da Arte no Brasil demonstra perder fôlego frente à nova complexidade assumida pelo debate artístico brasileiro atual, agora impregnado pela urgência de se repensar o que, há cinco, dez anos, era apenas intuído ou percebido como um problema a ser resolvido[8].

***

Mariano Carneiro da Cunha, no texto “A arte afro-brasileira”, publicado em História Geral da Arte no Brasil, estuda as supostas especificidades dessa manifestação e, passados tantos anos, ainda é uma referência para autores mais recentes[9] . Nele, o autor cria quatro divisões para o que poderia ou não ser um artista afro-brasileiro: 1- Aquele que apenas utiliza temas negros incidentalmente; 2 – o que o faz de modo sistemático e consciente; 3 – o que se serve não apenas de temas como também de soluções negras espontâneas e, não raro, inconscientemente; 4 – o artista decididamente ligado a tradições religiosas ancestrais.

Dentro da primeira divisão, Cunha afirma que chamar Tarsila, Segall, Guignard e Portinari de “afro-brasileiros” apenas por eventualmente terem retratado pessoas negras, seria como chamar Picasso de afro-francês ou afro-espanhol por ter feito o mesmo. No segundo time, Cunha situa artistas como Carybé, Mario Cravo Jr., Hansen Bahia e Di Cavalcanti que não poderiam ser entendidos como afro-brasileiros, porque se valeriam de signos vindos da experiência afro-brasileira para desenvolverem seus discursos estéticos individuais[10].

Nesse mesmo bojo, ele situa artistas como Agnaldo Manuel dos Santos e Rubem Valentim pois, mesmo negros, se valiam de signos ligados à visualidade africana ancestral para levarem a cabo soluções plásticas puramente individuais.

Para Carneiro da Cunha estariam no terceiro grupo os artistas comumente classificados como “primitivos” ou “populares”. Nesses, não apenas a temática, mas também as convenções plásticas tenderiam a ser africanas, dentro de vários enfoques. No quarto seriam encontrados os artistas dedicados à arte ritual, que teriam assumido com a ancestralidade africana não apenas uma ligação individual, mas um compromisso mais totalizante. Nele seria destacado o Mestre Didi (Deoscóredes M. dos Santos).

Rubem Valentim, “Objeto emblemático 4”, 1969 tinta acrílica sobre madeira, 206 X 75 X 43,5 cm. Foto: Pinacoteca do Estado de São Paulo

Pela descrição proposta pelo pesquisador, a arte produzida no Brasil, em suas relações com a herança africana, iria, desde um tênue e pouco significativo uso de representações ligadas à negritude, até àqueles produtores que dariam prosseguimento, no Brasil, a uma religiosidade inata da arte e cultura africanas. Portanto, estudar a arte afro-brasileira era detectar em cada artista o que de específico, e não meramente casual, ele poderia usar da tradição africana.

Se, então, o texto de Carneiro da Cunha propunha essa busca incessante de especificidade para a arte afro-brasileira, a presença de artistas de ascendência africana no texto “Arte contemporânea”, publicado por Walter Zanini em História Geral da Arte no Brasil, era diluída. Isso porque para Zanini, a arte moderna e contemporânea se desenvolvia a partir de pressupostos artísticos e estéticos internacionais, sem nenhuma preocupação étnica ou nacional. Como exemplo, cabe lembrar como ele cita a presença da produção de Rubem Valentim na cena brasileira. Ali, nota-se que a relação com a produção que o artista mantinha com os signos de origem africana não parece mais fundamental para o crítico, quanto as “influências parisienses” do artista:

[…] Rubem Valentim (1922) participara do movimento de renovação artística na Bahia em 1945, e sua pintura revela influências parisienses na primeira metade dos anos 50, antes que se decidisse, por inclinação ideológica, pelos signos enraizados na cultura popular afro-brasileira. Vale-se ele de formas emblemáticas, de estudada e rígida ordenação geométrica, para suas pinturas, relevos e objetos tridimensionais […][11]

Se para Carneiro da Cunha a arte afro-brasileira precisava ser vista na sua especificidade, para Zanini tal questão mais parecia uma idiossincrasia “ideológica” de Valentim, nada que merecesse uma atenção especial. Resultado: estabelecida em um nicho, ou diluída como mais uma característica dentre muitas, a arte produzida por artistas de ascendência africana parece ter perdido significação na historiografia artística brasileira por não ser encarada por aquilo que ela de fato é: uma manifestação constitutiva da arte brasileira que jamais será hegemônica, ou seja, que jamais será preponderante enquanto não reconhecermos que ela também se explicita em sua complexidade, na medida em que absorve essa característica fundamental da experiência brasileira: o fato de também ter origem africana.

Da proposta de Carneiro da Cunha, tendo a reconhecer sua reivindicação da “pureza” do quarto tipo de produção artística, aquele mais visceralmente ligado à religiosidade e às tradições africanas. No entanto, isto não significa que o considere mais importante que os demais estágios de sua divisão. Os artistas fundamentalmente religiosos são grandiosos nos resultados que alcançam em sua luta para continuarem desenvolvendo no Brasil as tradições vindas da África. Porém, observar aqueles pertencentes aos outros grupos propostos pelo estudioso amplia de forma desmesurada o interesse da problemática do artista de origem africana no Brasil, não apenas pelo fato de possuir tal herança, mas também de viver com ela em uma sociedade racista como a brasileira.

***

Arthur Timótheo (1882-1922), “Autorretrato”, 1908, óleo sobre tela, 41.00 x 33.00 cm. Foto: Pinacoteca de São Paulo

Clarival do Prado Valladares, em outro texto seminal sobre a arte afro-brasileira[12], a certa altura compara um artista negro do interior do Brasil no século XIX e seu colega que vivia nas metrópoles ou em cidades litorâneas:

[…] E, por esta via, pelo sertanismo pastoril goiano, mantêm-se por mais um século a cultura mestiça, o barroco brasileiro de tipologia europeia e de expressividade negra. Este é um capítulo para ser estudado em termos de confronto, análise e reavaliação, em nossa opinião suficiente para uma revisão do barroco universal, por seus aspectos de transculturação.

No outro lado do país, nas metrópoles e cidades do litoral e do interior próximo, a cultura mestiça se diluía e se alienava progressivamente. Numerosos artistas negros e mestiços se educavam e se afirmavam nas profissões tradicionais e nos estilos da civilização coetânea, branca, sem compromissos e sem conotação à cultura negra. Ninguém poderá identificar genuinidade ou remanescência de cultura negra nas obras de Rosalvo Ribeiro, Firmino Monteiro, […] Arthur Timotheo da Costa, Horácio Hora […], ou nos descendentes negroides que produzem em nossos dias, na identidade da arte internacional, comandada pela civilização de fora […][13]

Hoje parece difícil entender como Valladares notava a qualidade da produção goiana do século XIX – para ele uma manifestação clara de originalidade transcultural – ao mesmo tempo que não percebia a mesma potência nas produções de artistas do “litoral”. Repisando o clichê mil vezes utilizado de que a “verdade” da arte e da cultura brasileiras estaria no interior do país, a ele passa despercebido, por exemplo, a força de Arthur Timótheo da Costa, presente em seu autorretrato pertencente à coleção da Pinacoteca de São Paulo.

Essa pintura interessa não apenas pela expressão de profunda concentração expressa no olhar do artista, ou mesmo pela maestria com que ele realiza a obra. O que comove ali é o esforço de Arthur Timótheo da Costa em adaptar toda a sua sensibilidade e subjetividade aos domínios da representação, ou melhor, dos códigos de representação do real e do “eu”, estruturados durante séculos na Europa, por artistas brancos. Ali, naquela pintura, é visível a necessidade consciente do artista deixar-se “colonizar”, de criar condições para absorver todos os paradigmas brancos de representação, uma espécie de teste (coroado de êxito) para ver se era possível expressar a si mesmo, como sujeito negro, pelos moldes de representação branca.

Esse é o trunfo de Arthur Timótheo da Costa: alguém cujos familiares haviam sido escravizados, ou seja, privados do domínio de seus corpos e mentes, torna-se capaz de apropriar-se dos esquemas de representação do opressor, válidos na época, para documentar/expressar a sua própria subjetividade, aquela que havia sido negada aos seus.

Talvez pelo próprio momento histórico em que vivia, preso ainda presa à idealização de uma arte afro-brasileira “pura”, fosse impossível para Valladares entender o que podia estar em jogo na produção de Arthur Timótheo da Costa, na sua luta para se apropriar dos modos de representação daqueles que os subjugava para restituir-lhes uma subjetividade truncada, desenraizada talvez, mas não menos potente e válida.

***

A certa altura do texto que Claudinei Roberto da Silva também escreveu para o catálogo da mostra Territórios, da Pina Estação, ele cita o mesmo trecho do texto de Clarival do Prado Valladares, que acabo de citar e se posiciona sobre ele, tendo em vista, porém, a obra de Estevão Silva, outro artista negro, contemporâneo de Arthur T. da Costa. Assim ele se pronuncia:

[…] Apesar de escrito em 1968, o argumento de Valladares é atual e merece ser objeto de reflexão. O crítico afirma […] que na técnica empregada para a realização de algumas obras não se percebe a origem étnica dos artistas. Contudo, observamos diferenças sutis, mas significativas, entre a obra de Estevão Silva e a de artistas seus contemporâneos, como Pedro Alexandrino.

Convergimos aqui obrigatoriamente para uma história da arte que, não preterindo aspectos “estilístico- formais”, valoriza a biografia do autor na análise da obra […]. Mas permanece a pergunta: até que ponto as experiências pessoais, de caráter extra-artístico, são determinantes na construção de uma obra de arte?[14]

Estevão Silva, “Natureza-morta”, 1888, óleo sobre tela, 37 x 48,5 cm. Foto: Pinacoteca de São Paulo

A partir daí, Claudinei Silva analisa as diferenças entre as naturezas-mortas de Estevão Silva e aquelas pintadas por Pedro Alexandrino. Para o autor, ao contrário das naturezas-mortas quase sempre suntuosas de Alexandrino, nas de Estevão Silva o que vemos são:

[…] frutas e hortaliças colhidas na modéstia das hortas domésticas. As frutas apresentadas ainda têm, às vezes, seus talos e galhos partidos indicando proximidade ao local em que foram colhidas. Não raro, estão em adiantado estado de maturação. Soma-se a isso a escala das obras, que são, no caso de Estevão Silva, de proporções muito modestas, em sua maioria […][15]

Para o pesquisador, o formato diminuto das pinturas do artista seria indicativo tanto de sua origem social quanto da destinação daquelas obras: salas mais modestas do que aquelas para onde seguiam as pinturas de Pedro Alexandrino. O autor segue em suas ponderações e, após citar Gonzaga-Duque e José Roberto Teixeira Leite, que, em momentos distintos, também chamaram a atenção para o caráter modesto (porém nem um pouco menor) das pinturas de Estevão Silva, conclui:

[…] Desse modo, a assimilação da técnica europeia não é, a princípio, negação de um valor primevo ou capitulação e submissa adesão à cultura estrangeira. Consiste antes em artifício necessários à sobrevivência num meio hostil e, em alguns casos, estratégias subversivas e prenhas de ironia ou altivez […][16]

Após citar o mesmo autorretrato de Arthur Timótheo da Costa, analisado acima, Claudinei Roberto Silva caminha para a conclusão de seu texto chamando a atenção para um aspecto significativo para entendermos a complexidade daquilo que se convencionou chamar “arte afro-brasileira”:

Existe consenso de que fenômenos culturais de caráter popular, como o samba e o maracatu, são manifestações genuínas da sensibilidade negro-africana no Brasil. Sedimentados os códigos dessas linguagens, apaziguadas as polêmicas sobre suas origens e diferenças regionais e de estilo, foram elas absorvidas e são praticadas por todos e qualquer um no país, não importando a origem étnica do brincante. A arte dos afrodescendentes tem também uma origem, um passado a ser mais bem pesquisado, e um presente comprometido com a complexidade do momento. O futuro será consequência daquilo que hoje pudermos fazer para absorver essa produção e apresentá-la com a dignidade que seus autores há muito fazem por merecer[17] .

E o que poderia significar “apresentá-la com a dignidade que seus autores há muito fazem por merecer”? Estou certo de que o autor não se refere apenas à circunscrição das mesmas a boas exposições em que a produção dos artistas de origem africana possa ser vista com dignidade, dentro dos protocolos exigidos para uma boa exibição de obras de arte. “Apresentá-las com dignidade” é conceder a essa produção o reconhecimento do papel fundamental do papel que ela opera na experiência da arte no Brasil.

Sobretudo para a arte produzida no Brasil a partir de meados do século XIX a contribuição do artista de ascendência africana deve ser analisada naquilo que ela desmente da idealização branca da arte ocidental, naquilo que ela destrói e/ou acrescenta a essa tradição. Apenas quando entendermos que, para pensar a arte e a sociedade brasileiras da passagem do século XIX para o século XX, é tão importante estudarmos os autorretratos de Eliseu Visconti, quanto aquele de Arthur Timótheo da Costa ou as naturezas-mortas de Pedro Alexandrino em relação às de Estevão Silva; apenas quando entendermos que, para pensar a arte e a sociedade brasileiras das primeiras décadas do século XXI, é tão importante estudar a produção de Sidney Amaral, quanto a de Bruno Dunley, assim como a performance de Lia Chaia, quanto as de Moisés Patrício e Renata Felinto, aí sim é que teremos uma história da arte no Brasil menos preconceituosa e mais consciente de sua complexidade.

____________________________________________________________________ 

[1] – CHIARELLI, Tadeu (cur.). Territórios: artistas afrodescendentes no acervo da Pinacoteca. São Paulo: Estação Pinacoteca (Pinacoteca de São Paulo). De 12 de dezembro de 2015 a 27 de junho de 2016.
[2] – “Matrizes africanas”: território composto por obras de Emanoel Araújo, Octávio Araújo, Edival Ramosa e Rubem Valentim; “Matrizes europeias”: território composto por obras de Antonio Bandeira; Rommulo Vieira Conceição; Arthur Timótheo da Costa; João Timótheo da Costa; Miguelzinho Dutra; Maria Lídia Magliani; Firmino Monteiro; Heitor dos Prazeres; Estevão Silva; Genilson Soares e Benedito José Tobias; Mestre Valentin; 3 – “Matrizes contemporâneas”: território composto por obras de Sidney Amaral; Flávio Cerqueira; Jaime Lauriano; Paulo Nazareth e Rosana Paulino.
[3] – “De Anita à Academia: para pensar a História da Arte no Brasil”. Tadeu Chiarelli, in Novos Estudos Cebrap. São Paulo: Centro de Análise e Planejamento (Cebrap). N. 88, Nov. 2010, pág. 113 e segs.
[4] – GONZAGA-DUQUE. 2ª. A arte no Brasil. 2ª. Campinas: Mercado de Letras, 1995.
[5] – ZANINI, Walter (coord.). História Geral da Arte no Brasil. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 1983, 2 vols.
[6] – “A arte no período pré-colonial”, de Ulpiano Bezerra de Meneses; “Do século XVI ao início do séc. XIX: maneirismo, barroco e rococó”, por Benedito Lima de Toledo; “O século XVII e o Brasil holandês”, por José Luís Mota Menezes; “Os pintores de Nassau”, por José Roberto Teixeira Leite; “Séc. XIX. Transição e início do séc. XX”, por Mário Barata; “Art-noveau, modernismo, ecletismo e industrialismo”, Flávio Motta; “Arte Contemporânea”, por Walter Zanini.
[7] – Inicio a série de ensaios “satélites” da publicação com o texto escrito por Darcy Ribeiro, “Arte índia” que, apesar de ocupar o lugar do segundo item dentro da cronologia principal, ele se caracteriza por discutir as “especificidades” da arte indígena, reconhecendo sua importância, mas retirando-a da linha principal da arte brasileira, como no caso do ensaio de Mariano Carneiro da Cunha, sobre arte afro-brasileira. Os demais ensaios satélites do livro: “Arquitetura contemporânea”, Carlos A.C. Lemos; “Fotografia”, por Boris Kossoy”; “Arte Afro-brasileira”, por Mariano Carneiro da Cunha; “Desenho industrial”, por Júlio Roberto Katinsky; “Comunicação visual”, de Alexandre Wollner; “Artesanato”, Vicente Salles e, por fim, “Arte educação”, por Ana Me Tavares Bastos Barbosa.
[8] – Não podemos esquecer, é claro, que a fundação do Museu Afro em São Paulo, em 2004, por Emanoel Araújo, foi, ao mesmo tempo, tanto um sinal da referida complexidade assumida pelo debate artístico brasileiro, quanto um primeiro resultado desse mesmo debate.
[9] – Lembro aqui dos seguintes textos: “Arte afro-brasileira: o que é afinal?”, de Kabengele Munanga, in AGUILLAR, Nelson (org.). Mostra do redescobrimento. Arte Afro-brasileira. São Paulo: Associação Brasil 500 anos. Artes Visuais, 2000. Pág. 98 e segs.; e CONDURU, Roberto. Arte afro-brasileira. Belo Horizonte: Editora C/Arte, 2007.
[10] – Como visto, Carneiro da Cunha não se ocupa do fato da origem africana de Di Cavalcanti.
[11] – “Arte Contemporânea”, Walter Zanini, IN História Geral da Arte no Brasil. São Paulo: Instituto Moreira Salles, vol.2. pág. 682.
[12] – “O negro brasileiro nas artes plásticas”, Clarival do Prado Valladares. IN AGUILAR, Nelson (cur. Geral). Mostra do redescobrimento. Negro de corpo e alma. São Paulo: Associação Brasil 500 anos Artes Visuais, 2000. Pág. 426 e segs. (texto publicado originalmente em Cadernos Brasileiros. Rio de Janeiro: ano X, n. 47. Maio-julho, 1968.
[13] – Clarival do Prado Valladares, op.cit. pág. 428.
[14] – “Quem reagiu está vivo. Arte e afrodescendência mapeando territórios”, in CHIARELLI, Tadeu (cur.) Territórios…op. cit. pág. 34.
[15] – Idem.
[16] – Idem.
[17] – Idem.

“Se houvesse um projeto de país, certamente a cultura seria um dos tópicos determinantes”, diz Marcos Amaro

O artista, colecionador e presidente da FAMA, Marcos Amaro
O artista, colecionador e presidente da FAMA, Marcos Amaro. Foto: Divulgação.

Com apenas 36 anos de idade, o artista, colecionador, galerista e gestor cultural Marcos Amaro se tornou nos últimos anos um nome destacado e recorrente nos círculos da arte contemporânea no país. Para além de sua produção artística e de seu vínculo com o mercado através da galeria Kogan Amaro, o que mais chama a atenção é a consolidação, em curto espaço de tempo, da FAMA Museu e Campo – um vasto museu de arte contemporânea e um espaço dedicado a land art – e de uma série de projetos educativos e de fomento à arte contemporânea no país.

Com um acervo de cerca de 2 mil obras de artistas de variados períodos e estilos – comodatadas da coleção pessoal de Amaro -, a Fábrica de Arte Marcos Amaro (FAMA), situada em um edifício histórico no centro de Itu, abriu suas portas ao público em 2018. Enquanto organização cultural privada sem fins lucrativos – intitulada Associação para Futura Fundação -, a FMA constituiu um corpo diretor, um conselho consultivo e um time de funcionários de cerca de 40 pessoas. No final de 2019 inaugurou também a FAMA Campo, dedicada à arte contemporânea em grande escala e em espaço aberto (em Mairinque) e, no inicio de 2020, se preparava para a inauguração de uma grande mostra de desenhos de Tarsila do Amaral – recentemente incorporados ao acervo da Fábrica (leia aqui).

Uma semana antes da abertura a instituição teve que fechar as portas por conta da pandemia de coronavírus e, agora, cerca de 8 meses depois, a FAMA reabre as portas com essa e mais duas exposições. Tarsila do Amaral – Estudos e Anotações; a coletiva Ontologias, de Cabral, André Albuquerque (Kandro) e Marcos Amaro; e a individual Rejeito, de Marcelo Moscheta, ocupam os espaços da Fábrica a partir deste sábado, dia 14 de novembro. A FAMA Campo, por sua vez, se prepara para expor, talvez ainda este ano, uma nova obra de Carlito Carvalhosa, comissionada após o artista vencer o Prêmio de Arte Marcos Amaro este ano.

Em conversa com a arte!brasileiros, Amaro falou sobre sua atuação nas diferentes áreas e do desafio de separar os trabalhos, de modo que não haja conflitos de interesses entre eles. “Quando a gente clareia as visões de cada projeto, de cada iniciativa, de partida você já deixa nítido o que pode e o que não pode”, afirma. Enquanto gestor, comemorou também a consolidação do projeto da FAMA – que recebeu 10 mil estudantes em 2019 – e o potencial da instituição: “Em uma região de densidade demográfica muito alta, o museu é um dos poucos, talvez o único, com essa vocação de arte contemporânea. Então isso pode contribuir muito, de forma definitiva, para o percurso das artes visuais nessa região.”

A Fábrica de Arte Marcos Amaro, em Itu. Foto: Divulgação

Amaro falou ainda sobre a situação privilegiada da Fundação no cenário nacional, já que ela é financiada com recursos do próprio artista, mas lamentou a contexto para as artes no Brasil: “É triste, como cidadão, pensar que temos um país com tantas oportunidades, diversidade cultural e artística como o Brasil, tantas potências, e isso não ser otimizado e canalizado, inclusive de forma estatal”. Leia abaixo a íntegra da entrevista com Marcos Amaro.

ARTE! – Antes de falar da reabertura da FAMA, seria interessante você contar um pouco do trajeto da instituição. Pode-se dizer que é um espaço que em um período de tempo muito curto se consolidou como uma instituição cultural importante no cenário artístico brasileiro. A que você acha que isso se deve?

Apesar de a FAMA ser relativamente jovem, se você considerar a data de abertura, o projeto da Fundação é mais antigo, de 2012. Então eu diria que essa construção ao longo dos anos, essa edificação conceitual, inclusive, ajudou muito a chegarmos até aqui. E ajudou muito também na impressão causada quando abrimos, o que possibilitou que a gente gradativamente venha se tornando uma instituição cultural importante no Brasil. Então tudo é um processo que vem sendo construído desde 2012. Esse processo passa por uma vocação de artes visuais, por uma vocação de criação – eu como artista – e uma vocação de colecionador. Isso tudo contribui para o fortalecimento do projeto e mais tarde culmina na aquisição da propriedade, da própria Fábrica, como espaço cultural que vem sendo estabelecido.

ARTE! – Ainda no fim do ano passado vcs inauguraram a FAMA Campo, outro passo importante nesta trajetória. Obras em larga escala já eram foco da instituição, mas isso ganha uma outra proporção com o novo espaço…

Sim. O primeiro livro que lançamos, A Força do Tridimensional, que faz um recorte das nossas primeiras exposições na FAMA, ali já na antiga Fábrica São Pedro, apresenta peças de fato em grande escala, com essa peculiaridade do tridimensional. E como é um espaço de 25 mil metros quadrados, muito amplo, a fábrica nos possibilita mostrar trabalhos com uma dimensão maior, que não necessariamente caberiam em um museu tradicional. Existe também esse diálogo entre o contemporâneo e o moderno, no sentido da arquitetura do prédio, que é outro fator de destaque do projeto.

E o FAMA Campo também tem esse fator da grande escala, porém ele valoriza mais o aspecto natural, da paisagem. Então ali a gente sempre vai estar falando de arte na paisagem. A gente não vai levar uma escultura pronta para o espaço. O desafio ali é o artista elaborar projetos específicos para o espaço e que sofram as intempéries do tempo – não projetos que necessariamente tenham essa preocupação museológica, no sentido da conservação. Claro que cada artista tem um tratamento para o projeto que ele realiza, isso é caso a caso.   

Obra de Marcia Pastore na FAMA Campo. Foto: Divulgação

ARTE! – Falando sobre o acervo e a coleção, como se separa o que é sua coleção privada do que é o acervo da FAMA?

As peças do acervo da FAMA são comodatadas. Todas as obras que estão no museu estão em comodato para a FAMA, então não existe uma promiscuidade, no sentido de usar o acervo da instituição para um interesse pessoal. A sinalização de um contrato e um acordo neste aspecto foi justamente para proteger a instituição.

ARTE! – Neste sentido, você é ao mesmo tempo artista, colecionador, galerista e presidente de uma instituição cultural. Como trabalhar sem que haja conflitos de interessa e sem que essas coisas todas se misturem?

Acho que é importante sempre a gente clarear as visões. Quando a gente clareia as visões de cada projeto, de cada iniciativa, de partida você já deixa nítido o que pode e o que não pode. Então, por exemplo, em relação à fábrica, como o projeto nasceu inclusive de um desejo relacionado ao meu ateliê, essa condição minha como artista está muito presente no dia a dia da fábrica. No sentido inclusive da pesquisa, do desenvolvimento e mesmo da difusão do meu trabalho, isso cabe ali. Então isso é uma coisa que já faz parte do cerne inicial do projeto. Acho que uma boa referência nesse aspecto seria a Fundação da Vera Chaves Barcellos. Então é uma Fundação de artista para artista.

Já na galeria (Kogan Amaro), em nenhum momento desde o começo eu tive essa intenção de ser artista da galeria. Para poder trabalhar de forma absolutamente profissional com os outros artistas. Ali não há essa sobreposição. Da mesma maneira que há uma relação de separação entre a galeria e a Fundação, são programas distintos. Eventualmente pode acontecer de a Fundação ter trabalhos de artistas da galeria, porque nós representamos artistas muito bons, que merecem ter um destaque institucional, mas isso não é um projeto. Pode acontecer, mas é algo que é uma consequência do trabalho do artista, que pode estar exposto em qualquer outra instituição.     

ARTE! – Chegando então nesta reabertura, estamos falando de um ano em que vivemos uma pandemia sem precedentes na história. A Fábrica de Arte Marcos Amaro, após quase oito meses fechada, reabre agora suas portas. Pode contar um pouco como foi tomada essa decisão e como será o novo tipo de visitação?

Foi uma decisão muito cautelosa. Do mesmo modo, quando a gente decidiu fechar estávamos a uma semana de abrir a exposição da Tarsila. Então você imagine o quão frustrante foi para todos nós. A exposição estava pronta, com curadoria da Aracy Amaral, que já é nonagenária, e da Regina Teixeira de Barros. Então nós queríamos muito que a mostra acontecesse. Mas o Conselho foi muito sábio. Fomos inclusive a primeira instituição a anunciar o fechamento. Uma decisão difícil, porém necessária. Agora, após conversas com o Conselho, com agentes culturais e com as autoridades da saúde, achamos que seria prudente reabrir, mas com algumas restrições – por exemplo, quanto ao número de visitantes, ao distanciamento social e à todos os protocolos de segurança. Nesse sentido, estamos abrindo de uma forma segura, de modo a garantir a integridade dos visitantes.

E dentro destes oito meses nós também aproveitamos para fazer uma série de reformulações internas no museu, na instituição, no sentido do nosso programa, dos nossos desafios, de onde nós queremos chegar. Então foi um momento de muito fortalecimento interno e de mudanças para a instituição, para podermos sair da pandemia mais fortalecidos, inclusive com um acesso maior no universo virtual.

Vista da exposição "Estudos e Anotações", de Tarsila do Amaral, na Fábrica de Arte Marcos Amaro
A exposição “Estudos e Anotações”, de Tarsila do Amaral. Foto: Filipe Berndt

ARTE! – Sim, vocês tiveram um trabalho que não parou nas redes sociais…

Não paramos. O educativo todo, por exemplo. Felizmente nós não precisamos demitir ninguém, conseguimos manter nossa equipe, e o educativo ficou focado no digital, no desenvolvimento das propostas. 

ARTE! – O foco no trabalho educativo, que tem a ver com uma ideia de participação, não apenas de contemplação, parece ganhar cada vez mais destaque no trabalho de diversas instituições culturais. Ou seja, pensar também não só no número de visitantes, mas na qualidade dessa visitação. Como essa questão é tratada na FAMA?

De partida, acho importante falar da própria diversidade que temos dentro do educativo. Toda essa questão, tão presente no dia a dia dos brasileiros, da inclusão das minorias, isso já se dá de forma clara na constituição do nosso educativo. Questões de gênero e de raça são temas muito caros ao nosso educativo. E daí já nasce essa reflexão sobre diversidade, sobre como lidar com isso, como trabalhar. E um outro ponto que vem se desenvolvendo de maneira importante é a parte de pesquisa e essa questão da qualidade da visitação, de sempre poder oferecer uma interlocução, uma investigação e uma crítica maior para o espectador. De modo que não seja apenas um espaço de contemplação, mas de investigação e de crítica. E isso depende muito da interlocução, então é importante que o educativo cada vez mais se fortaleça, para que possa apresentar debates para o espectador, de modo que as pessoas ampliem suas visões de mundo. Então existe essa missão. E nós estamos, ainda, formando uma biblioteca, que será algo importante nos próximos anos. Uma biblioteca que vai dialogar com o acervo do museu.

ARTE! – Me parece que o fomento, ou seja, o prêmio e as residências também fazem parte dessa ideia de participação…

Com certeza. Temos sempre os artistas residentes, que estabelecem ateliês no espaço, e a gente sempre procura ter essa reciclagem e essa oportunidade. Lançamos recentemente um edital de ocupação, por exemplo, de modo que os artistas venham a ocupar os prédios antigos. Neste momento, uma das mostras que estamos abrindo é do próprio Marcelo Moscheta, que fez parte do prêmio no ano passado. Então o fomento é sim um dos vetores da FAMA, no sentido de poder contribuir neste aspecto não só para as artes visuais, mas também para a região do interior.

ARTE! – Sobre essa relação com o entorno, existe um foco no diálogo com a cidade e com a comunidade. Como se dá esse trabalho?

Materialmente falando, já existe até o projeto do Parque Linear, que fica na Avenida Galileu Bicudo, que é onde nós estamos localizados, e para o qual nós concedemos via empréstimo cinco esculturas. Dali, elas fazem uma ponte com o museu, e isso já é uma situação importante de diálogo, um convite para o museu. E além disso, o próprio programa que temos com as comunidades e as escolas públicas é fundamental. No ano passado foram mais de 10 mil estudantes que visitaram a FAMA, todos do entorno e da região. É interessante pensar que se você pegar Itu, Salto, Sorocaba e a região, são 2,5 milhões de habitantes. É muita gente, uma densidade demográfica muito alta. E o museu é um dos poucos, talvez o único, com essa vocação de arte contemporânea. Então isso pode contribuir muito, de forma definitiva inclusive, para o percurso das artes visuais nessa região. Então nossa ambição cultural passa muito por aí.

ARTE! – Para terminar, é impossível não falar do contexto político em que estamos vivendo. O Brasil vive um período bastante conturbado, em que a área cultural parece ser uma das mais atacadas pelo próprio governo federal. Queria que falasse um pouco como vê a situação e como se dá o trabalho da Fundação neste contexto.

Nós temos uma relativa sorte, porque hoje felizmente eu tenho condições pessoais para fomentar o projeto. Hoje, 100% dos recursos são próprios. É claro que tenho interesse em fazer com que isso mude, gostaria de contar mais com apoios e parcerias tanto da iniciativa privada quanto da iniciativa pública. Então, do ponto de vista de um gestor, há essa preocupação, porque a gente vive nesse ambiente em que a cultura de fato está muito deprimida, digamos assim. E deprimida por uma falta de projeto de país. Se houvesse um projeto de país, certamente a cultura seria um dos tópicos determinantes. Então é triste, como cidadão, pensar que temos um país com tantas oportunidades, diversidade cultural e artística como o Brasil, tantas potências, e isso não ser otimizado e canalizado, inclusive de forma estatal. Ou seja, o Estado não considerar isso um projeto. E entendo que a FAMA se torna também proeminente neste momento por ser uma das poucas instituições que têm essa condição. É um privilégio poder atuar e, de alguma forma, fomentar a cultura, assim como acontece, em diferentes escalas, com Itaú Cultural e Sesc, entre outras.

ARTE! – Instituições que conseguem se proteger, ao menos em parte, desse desmonte na área cultural…

Exato. Mas é claro que eu tenho essa preocupação de longo prazo. Ainda sou jovem e tenho essas condições, mas gostaria que o projeto da Fábrica fosse duradouro, que viesse a se desenvolver de outras maneiras. Então venho pensando em como fazer isso acontecer, com um fundo patrimonial, um endowment, que possa fazer parte da estrutura da organização, para tornar as coisas mais perenes.    

Acervo Comentado Videobrasil: Bakary Diallo

Still de "Tomo", de Bakary Diallo. Cortesia Videobrasil
Still de "Tomo", de Bakary Diallo. Cortesia Videobrasil

Há uma expressão em Bambara, língua nigero-congolesa falada no Mali, que se refere a um território abandonado por causa da guerra ou conflito. Essa palavra, “Tomo”, também dá nome à última obra em vídeo realizada pelo artista malinense Bakary Diallo que lhe rendeu, como prêmio, a residência pelo 18º Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil, em 2013.

Em Tomo (clique aqui para assistir), o conflito ao qual Bakary se refere no título pode ser o bélico ou entre espíritos. Na obra, seguimos o curso de um personagem subjetivo perturbado psicologicamente por sua experiência real da guerra. Ele caminha por um vilarejo abandonado que foi tomado pelas almas daqueles que um dia ali viveram. Eles são representados por fantasmas, ectoplasmas, personagens em chamas e em fumaça. Ainda agarradas à vida terrena, elas continuam a desempenhar suas atividades diárias, realizam tais gestos cotidianos o mais próximo possível da realidade.

A escritora e curadora Renée Akitelek Mboya [1] – em um episódio da série Acervo Comentado Videobrasil – pondera ser interessante, de uma perspectiva linguística, “imaginarmos o ambiente que levou à necessidade da criação de tal expressão, que por si própria é surpreendentemente inclusiva e independente”. Ela lembra ainda que quando a obra foi apresentada, o país já estava inserido na Guerra Civil na qual vive até os dias atuais, cujo início se deu em 16 de janeiro de 2012.

As circunstância que observamos hoje no Mali são parecidas com aquelas que víamos antes da Guerra e com as geradas pelo conflito: uma intensificação dos protestos em um norte conturbado, e problemas que causaram fome generalizada e deslocamentos internos. Foi sobre essas circunstâncias que Bakary fez seu filme. Tem que haver uma forma de usar mídias diferentes, especialmente o vídeo, para recuperar um sentimento de humanidade às pessoas ou figuras que só são consideradas em termos de estatísticas.

Mboya destaca que na obra, o personagem é visto rasgando a terra, no que ela se refere como uma tentativa de arrancar o trauma da guerra de forma física, talvez uma forma encontrada por Bakary para ilustrar a violência que essa mesma terra conheceu.

Indo além da análise do conteúdo visual da obra, a curadora indaga “se Bakary, com este trabalho, estava fazendo algum tipo de ritual de memória, ou um ritual para honrar os conterrâneos que perdeu”. Infelizmente, o autor nunca pode responder à dúvida de sua colega cineasta, o malinense faleceu em um acidente aéreo em julho de 2014, quando viajava com destino à França, de onde partiria para o Brasil para fazer sua residência artística no Instituto Sacatar, na Ilha de Itaparica, na Bahia. Antes disso, em 2010 ganhou uma bolsa da Fundação Lagardère pelo trabalho “Les Feuilles d’un Temps”, pouco tempo depois de ter iniciado seus estudos, em 2007, no Conservatório de Artes e Multimédia de Bamako.

Trabalhando sobretudo com vídeo, usou elementos da vida cotidiana para construir narrativas sintéticas, que frequentemente questionam os efeitos da violência. Apresentou seus filmes em mostras como a Bienal de Arte Africana Contemporânea, Dak’Art, Dacar (2012), l’Afrique en mouvement, Montreal (2012), 9ª Bienal Africana de Fotografia, Bamaco (2011), e 20ª Semana de Cinema Experimental de Madri (2010). Frequentou o Le Fresnoy – Estúdio Nacional de Artes Contemporâneas (2010).

A ideia dos meus trabalhos é deixar uma grande abertura porque em torno de um trabalho, existe o imaginário do artista, o imaginário coletivo, depois disso temos a interpretação que um ou outro podem ter sobre esse trabalho. Por isso sempre procuro a maior abertura possível, para que as pessoas possam viajar e sonhar.

Ainda não conhece o Acervo Comentado?

Acervo Comentado Videobrasil é uma parceria entre arte!brasileiros e a Associação Cultural Videobrasil. A cada 15 dias publicamos, em nossa plataforma e em nossas redes sociais, uma parte de seu importante acervo de obras, reunido em mais de 30 anos de trajetória. Confira os outros episódios neste link.

Sobre Videobrasil

A instituição foi criada em 1991, por Solange Farkas, fruto do desejo de acolher um acervo crescente de obras e publicações, que vem sendo reunido a partir da primeira edição do Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil (ainda Festival Videobrasil, em 1983). Desde sua criação, a associação trabalha sistematicamente no sentido de ativar essa coleção, que reúne obras do chamado Sul geopolítico do mundo – América Latina, África, Leste Europeu, Ásia e Oriente Médio –, especialmente clássicos da videoarte, produções próprias e uma vasta coleção de publicações sobre arte.

Este projeto contribui para “redescobrir e relacionar obras do acervo Videobrasil, e vertentes temáticas, na voz de críticos, curadores e pensadores iluminando questões contemporâneas urgentes”, afirma Farkas.


[1]  Renée Akitelek Mboya (Nairobi, 1986) é escritora, curadora e cineasta. Seu costume é aquele que se baseia na biografia e na narração de histórias como forma de pesquisa e produção. Renée está atualmente preocupada em ol har e falar sobre as imagens e as maneiras pelas quais elas são produzidas, mas especialmente como elas passaram a desempenhar um papel crítico como evidência da paranóia branca e como expressões estéticas da violência racial. Renée busca entender melhor as maneiras como as imagens são utilizadas para reforçar a narrativa institucionalmente fabricada do corpo racializado como um perigo constante para o direito. Renée trabalha em Dakar e é editora colaborativa do Wali Chafu Collective.

New territories expand reflection on art

Beatriz Lemos, Thiago de Paula Souza e Diane Lima, curadores da 3a edição da Frestas - Trienal de Artes
Beatriz Lemos, Thiago de Paula Souza e Diane Lima são os curadores da 3a edição da Frestas - Trienal de Artes, organizada pelo Sesc Sorocaba. Foto: Indiara Duarte

The second day of the ARTE!Brasileiros International Seminar, on October 9, started with a conversation with the curatorial team of the 3rd edition of Frestas – Triennial of Arts. Organized by Sesc-SP, based on the Sorocaba unit, the continuous program brings together local artists from regional and international productions, establishing a dialogue between social issues specific to the Brazilian context and reflections from the global sphere.

In this edition, the curatorial team is formed by Beatriz Lemos, Diane Lima and Thiago de Paula Souza, who participated in the seminar. Early in her speech, Diane pointed out that, as a collective curator, two key points are triggered: the negotiations and the contradictions that constitute the curatorial process. As three non-white curators, they realized the gap in representation and chose to think about the negotiations and contradictions within these representative and identity policies. “We have a scenario in Brazil where seeing us here today would be in the category not of the art of the possible, as proposed by the theme of the seminar, but of the art of the impossible, and that goes through our curatorship”, said Diane.

With the title The river is a serpent, this edition of the Triennial brings together cosmologies and worldviews “that do not pass only through economic and social spheres, that sustain a collection of knowledge and Afro-indigenous, native and ancestral thoughts”, says the curator. For the trio, “The river is a serpent is not a theme, but a worldview interested in gathering and presenting the lessons we have learned so far”, explains Diane.

Between negotiations and contradictions

Beatriz Lemos points out that the apprenticeships started with the understanding of which is the Sorocaba floor, where Frestas would be installed. For this, they held listening meetings in the city and created a dialogue with artists, producers, managers and educators. “It was from there that we realized that our starting points would be the territory and the educational”, she explains.

Diane Lima, Beatriz Lemos e Thiago de Paula Souza, curadores de Frestas, no Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí
Durante a viagem curatorial, o trio visitou o Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí. Foto: Arquivo pessoal

In order to expand these negotiations and understand other Brazilian narratives, in addition to their own knowledge and repertoires, the trio embarked on a trip around the country. “The most important thing for us was to build a collective trip, so that from this body in movement and in conflict with other territories we could create this curatorial body”, says Beatriz.

They made an initial two-month route through locations in the North and Northeast. Thus they came into contact with the local logic of the art circuits and the sociability of these specific regions. “We seek to understand in different ways the grandeur of these natures and how environmental crime strategies operated”, she says. For Beatriz, this would be the way to understand how large private initiatives affect traditional, quilombola and indigenous communities in the regions, through environmental racism. This, in turn, consists of “practices, historically legitimized, which cancel out a fruition of pleasure and contact of environmental means to black, indigenous, non-white and migrant communities”, explains Beatriz. To which Diane complements: “In fact, artistic practices and their expressions are tools to overcome these natural collapses that we have been experiencing”.

For Thiago, understanding this scenario was essential, as a way of building a curatorial practice that “seeks collaboration as an ethical way of imagining the world in another way; to ask how contemporary art can help us develop a slightly less brutal horizon in which violence does not shape our existence ”.

To maintain this idea, they sought “curatorial experiments in dialogue with artists who have life and practice directly connected with colonial violence, without contributing to the assimilation of these practices”, explains the curator.

When the river takes the shape of a serpent

In his speech, Thiago explained that, in this second half of 2020, the trio develops a program of studies, based on meetings with a group of 15 artists. Composed of training activities, it aims to promote radical educational practices and, at the same time, encourage policies for redistribution and access to art. In addition to this program, free and open online actions are planned, such as courses, seminars, lectures, editorial releases, film and video shows and a teacher training program.

The result of Frestas is different from what was thought at the beginning, because the edition was prepared in a pre-pandemic world. However, the situation seemed to intensify the message that the curatorship intended to convey. “The pandemic not only reveals the obscenity of the country’s racial and class structures, but also the obscenity in the sense of what the art system has always tried to hide,” explains Diane. For her, the global situation did not prevent it, but at certain points it even reinforced an important question of this thought: What does it mean to be a dissident and racialized body within the contemporary art circuit, which has always made our knowledge invisible and subordinate? And it is this issue that The river is a serpent intends to reflect.

Se interessou? Assista à conversa completa com os curadores de Frestas no VI Seminário Internacional: em defesa da natureza e da cultura – a arte do possível clicando aqui.

We are nature

O líder indígena e ambientalista Ailton Krenak. Foto: Reprodução

Rained. And the rain brought joy to Ailton Krenak in a moment that synthesized the speeches of the first table of the VI ARTE!Brasileiros International Seminar, which also included Naiara Tukano and Antonio Donato Nobre.

Naiara opened the event with a song by her people Yepá Mahsã, from the top of Rio Negro, in the Amazon, and a brief and blunt manifesto. “We, indigenous peoples, are the living memory of thousands of years, our visions and worldviews are our science, where we learn to communicate and live together with the land. That is why we defend life and diversity, ”he said in an excerpt from the initial message.

O líder indígena e ambientalista Ailton Krenak. Foto: Reprodução

After the speeches of institutional opening by Patricia Rousseaux, for arte!brasileiros, and Julian Fuchs, by the Goethe-Institut, Krenak would be the first to speak, but a connection problem postponed his testimony, luckily for those who attended the seminar.

Thanks to the connection problem, we ended up witnessing the first rain after months of drought at Aldeia Krenak, on the banks of the Rio Doce, in Minas Gerais, which was greeted by the joy and singing of the indigenous leader and former constituent deputy. As soon as the rain started, he turned his computer over to share the scene with those attending the seminar. “The most beautiful art is this rain that falls from the sky now, on top of these hills, making the earth breathe, falling on dry land, making a lump rise from the ground,” he said excitedly.

Nothing is more in tune with this moment than the reasoning he developed about “this scandal of affirming that there is nature and culture, separating something indivisible”.

The paths of the heart

This inclusive view had already been defended by Antonio Donato Nobre in his opening speech: “Indigenous people are the true sages of nature, they have a direct connection with nature and have preserved that connection, which global society has lost. I want to come here to give a message as a scientist, but from a scientist who is discovering the ways of the heart ”.

Something in common in these three opening speeches was the need for affection and respect for the planet, which Nobre pointed out in a parallel between the philosopher Socrates and the astronauts. “2500 years ago, Socrates would have said that when the human being looks at the outside world, he will recognize his greatness. People who live in contact with nature are aware of what it means to be on Earth, ”he said.

Then he reported how astronauts gain the same perception after returning from space: “When they see the Earth from outside, they are instantly transformed, they have the overview effect, which is the panorama effect suggested by Socrates.”

Thus, astronauts and indigenous people do not suffer from distancing from the planet, or a division that replicates in the separation between mind and body. For the scientist, “there is a cognitive disaster in Western society, which occurred mainly in Europe, of the divorce between the so-called rational mind, where the intellect resides, and the broad, intuitive, holistic, integrative cognition”.

So, according to Nobre, it is necessary to stop thinking just with reason: “It is the heart that unites the whole body and it thinks too, because neuroscience has discovered that it has neurological tissues. So, when we have an open heart, we capture things. Without a heart, the intellect is cold, it can do aberrant things ”. In his speech, he cited the scientists who contributed to Nazism as an example, but there is no shortage of government cases in Brazil that confirm the theory.

Be sure to watch the full speech to see the short video shared by Donato, developed over a decade, which points out how the Amazon is the heart of the planet.

Transformation

Naiara Tukano, on the other hand, began her speech by telling about the cosmology of her people, which came from the great transformation canoe, the Cobra-Canoa. It was in the womb of a Cobra-Canoa that the first ancestors of the Tukano peoples set out on an underwater journey through the Amazon, Negro and Uaupés rivers, in the northwest of the Amazon, and thus arrived in the region where they currently live, in the Upper Rio Negro. The canoe stopped along this route and, at each stop, these ancestors acquired powers and knowledge that are still part of the cultural heritage of the ethnic groups of the Tukano family.

Naiara told how, thousands of years before this trip, “we were fish people, until we became animals that live in the forests, like otters, monkeys; then the breeder came and cut the animals’ tails and brought man to earth, this being the third time of humanity, when man appeared”.

The significance of this animal ancestry and of this transformation process over time has an important reflection in Tukano thought: “We must understand that other visible and invisible beings that live on Earth are our relatives, they tell us how we should act without causing harm or even receive evil. So, we never forget our place”, said Naiara.

A ativista indígena e artista Naiara Tukano. Foto: Reprodução

Hence, then, the perception of the importance of caring for the planet in a global way, as she states: “When we disrupt Earth’s flows, we harm it, because it is a whole, it has its own conscience and we you cannot cut it out like a mosaic, as we are doing. For hundreds of years our shamans have warned us to take care of nature, we are nature. ”

And she concludes on the importance of reviewing attitudes in times of pandemic: “We need to reconnect with our essence, and through art, spirituality, songs, that we connect again with the earth. Plant, reduce waste, seek a simpler way of life, seek other forms of exchange based on other wisdoms. It is by reconnecting with the earth that we can seek a path of healing. The breath of life exists in each one of us”.

Dead nature

Shortly after what had been programmed, Ailton Krenak entered the seminar problematizing one of the genres of painting. “All the great masters of painting in the West have left a trail of still life behind them”, he said. And he continued: “Could it be that they were foreshadowing a time when nature was going to rise up, leave those screens and invade our lives in the form of viruses, in the form of affection, in the sense of turning us inside out, of questioning us , and denounce that there is no boundary between culture and nature, except in our mentalities, calling for a change in mentality ”.

Later, he would explain that “as poets, these artists were foreshadowing what is happening in the 21st century; it is not a complaint, an accusation, but a revelation of what we were going to live a long time later”.

But he warned the art world: “It is as if the idea of ​​our art biennials, of our galleries, were all in the past, overcome by time, by the urgency of a new mentality, of us humans learning to step with careful, stepping gently on Earth, deeply marked by our footprints, which put us on the threshold of this Anthropocene”.

It was around that time that the rain and the most poetic moment of the seminar began. While he affirmed that “the sky will always give us the art of the possible”, a water truck passes by, as if to remember the destruction of the Rio Doce by Samarco, five years ago, and which made it necessary to supply it with vehicles that cover 200 years. km to 300 km to supply the village with 130 families.

And Krenak concluded with Naiara: “When I questioned the division we make between nature and culture, it is a call for people to live more immersed in nature and in our own experience of the body being nature”.

Get away from the self-centered subject; produce art in friction and difference

O documentarista irlandês Bob Quinn em cena de "One Hundred Steps", filme de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca. Foto: Divulgação
O documentarista irlandês Bob Quinn em cena de "One Hundred Steps", filme de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca. Foto: Divulgação

After a first table focused on looking at environmental issues, indigenous knowledge, the possibility of a “less cold” science, in addition to questioning the false dichotomy between nature and culture, the second presentation brought the debate closer to issues more directly linked to artistic production. In the presentations by Andrea Giunta, curator of the 12th Mercosul Biennial, and the artist duo Bárbara Wagner and Benjamin de Burca (currently participating in MANIFESTA 13), questions about the responsibility of art in the contemporary world, the search for a collective action, the visibility of marginalized knowledge and the need to escape the logic of the “self-centered body” in the arts reinforced a conductive line between the different speeches.

First to present, Giunta gave an overview of this year’s edition of the Mercosul Biennial (Online Bienal 12), which would take place in person in Porto Alegre and ended up migrating to the virtual environment due to the pandemic. Highlighting the plurality involved in the themes and in the show’s title, Female(s). Visuality, actions and affections, the Argentine emphasized the importance of this diversity being present in the constitution of the biennial curatorial team. In this sense, she emphasized the fundamental role of Fabiana Lopez, Dorota Biczel and Igor Simões, who brought attentive looks to artistic production, especially in Latin America, and also from other countries around the globe. A total of 25 countries were represented by more than 70 artists and collectives.

The term “feminine(s)” – not “feminine”, nor “feminisms” – represented for Giunta this choice for a plurality of points of view, not always only from women, believing in the “idea of ​​difference as multiplicity and not as separation”. In this sense, the word “affection” also took place for curatorship, especially at a time of such fragility with the pandemic. “And when we were all isolated, it was very important to ask: how are the artists who were about to travel to Porto Alegre and could not go? So, we asked them to record short videos with their cell phones for our website, which was very important. This created an archive of affections, a type of presence of artists at the biennial that we had not previously planned. These are some good things that have happened.”

“Sobre La Familia en el alegre verdor”, obra de Chiachia & Giannone exposta na Bienal do Mercosul. Foto: Divulgação

Affection, as Giunta stated in a recent interview with arte!brasileiros, is not disconnected from struggles, protests and an art that calls for social change. “With affection, powerful revolts were created,” she said. In this sense, Giunta presented at the seminar a series of works that she considers representative of the themes treated at the biennial, starting with a tapestry by Chiachio & Giannone that presents a scene of integration between man and nature, where people and animals are part of a same family – “not man as owner, controlling nature, but man in nature”. Then, the curator presented a photograph of the Argentine feminist collective Nosotras Proponemos: “We take into account activism, women’s rights, and also feminines and feminisms as the need to think again about all relations between the human and the world”, said.

Emphasizing that “the feminist struggle is for the rights over one’s own body”, she also presented works that deal with feminicide, such as Fatima Pecci Carou, and the various ways of experiencing the body, as in the works of Jota Mombaça, Liuska Astete, Janaina Barros, Lorraine O’Grady or Priscila Resende. The possibility of restructuring the language in the field of gender discussion arose in the production of Mujeres Públicas, while crucial questions about memory – and specifically colonial and Afro-Brazilian memory – were discussed in the work of Aline Motta. At this point in her speech, Giunta recalled a phrase by Rosana Paulino, “that told me something very important related to the theme of this seminar: in Christian and Catholic traditions, based on the Bible, God gave nature for men, in Afro-Brazilian religions, man and nature are together ”.

Psicanálise do cafuné catinga de mulata, de Janaína Barros, obra exposta na Bienal do Mercosul. Foto: Divulgação

Ireland, France, and North Africa in dialogue

Continuing a fruitful and diverse series of audiovisual productions filmed in different parts of the globe, the duo Bárbara Wagner (Brazil) and Benjamin de Burca (Ireland / Germany) has just debuted, at MANIFESTA 13, in Marseille, the work One Hundred Steps. The 30-minute film was the subject of the duo’s presentation at the seminar, which also featured a firsthand view of the work. At the virtual seminar, while Benjamin showed up with his cell phone at the Marseille Music School, exposing the end of the work’s montage, Bárbara spoke from her home about the film’s production process, which started in late 2019. Few days after the seminar, arte!brasileiros also talked on the phone with Benjamin.

After works about frevo or brega in Recife, on the Maloya genres in Réunion Island (French department close to Africa), schlager in Munster (Germany) and rap in Toronto (Canada), the duo enters the universes of Irish popular music (with its harmonicas, chants and taps) and North African music with Arab roots in Marseille, in the south of France. If, on the one hand, the film deepens the research of the duo in marginalized musical universes, in a constant dialogue between documentary and fiction, between what is pop culture or traditional manifestation, on the other hand the film seems to bring new elements to the work of Bárbara and Benjamin. One Hundred Steps is, for example, the first film that takes place in two different countries and bluntly enters European and African colonial history.

According to Bárbara, the research started with the approval of a publicly funded project by the Irish Arts Council. Therefore, the first opportunity arose for the duo to develop work in Benjamin’s home country. It was in their search for the Irish region of Connemara that they came across the work of Irish documentary filmmaker Bob Quinn. “In the 1980s he developed a quartet of documentaries that spoke of the origin of Irish culture in a very sophisticated way, questioning the European hegemony in shaping the culture there and suggesting that the contact with countries in North Africa was essential,” said the artist. In the series, entitled Atlantean, “he asks: what if our Irish culture is much closer to Africa than Europe?”

Cena de One Hundred Steps filmada em Marselha; trabalho de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca integra a MAMIFESTA 13. Foto: Divulgação

Based on this hypothesis and living with Quinn, now 87 years old, Bárbara and Benjamin had an initial project in mind until the moment when the MANIFESTA invitation came to “give a formal tie to the work”, according to Bárbara. In the end, the film became “kind of a visual and editing experiment between Ireland and southern France, in dialogue with North Africa”. For this, the duo invited popular artists to perform in two emblematic spaces for colonial history in these places – palaces that have become museums -, creating ambiguities, frictions, and moments of beauty with various layers of meaning.

In Ireland, musicians and dancers were filmed in spaces at Bantry House, a palace from the end of the 17th century directly related to British imperialism in the country and which, in addition to a sumptuous garden, has a 100-step staircase – the “hundred steps” of the title – built between 1840 and 1850, the decade of the great Irish hunger. “In every corner of Ireland there is a huge mansion built by the dying people. And if we think about it, this great hunger, which created a diaspora of almost 2 million people, is still very recent in the country’s history ”, says Benjamin. The artists who enter the house, therefore – and Bob Quinn appears there with his camera – “become that other voice, which is the voice of Irish culture”, according to Bárbara.

In Marseille, on the other hand, a museum house in an old bourgeois residence, “with a similar history, despite the quite different context”, served as a stage for the performance of North African musicians living in the city. “So, we created a way to get closer, without necessarily being comparing. It is speculation, again, but above all rhythmic and musical”, explains Bárbara. If Arab culture in North Africa appears explicitly at home in Marseille, it may also be diffused in Irish music, which, according to Quinn, drank from these roots. “And suddenly we look at these artists, as if they were visitors, the Irish and the Arabs, and the film creates this fantastic device in which we can realize the occupation of these spaces with another story”, concludes the artist. Because, according to Benjamin, “colonialism continues to exist in another way, more mental, more immaterial”.

In the speeches at the end of the table, Andrea Giunta emphasized, in line with the presentation by Bárbara and Benjamin, that “art has the capacity to be an archive, an archive of experiences that were created at different times. And with this file we can ask the questions of the present”. Thus, for her it is necessary to rethink the relationship of the body with the world, in the sense of moving away from the idea of ​​the self-centered subject so common in art – “to understand, experience and feel that we are in the world”. Bárbara agreed: “In the sense of the body that experiences another form of knowledge, which is shared. Our work is an audiovisual work that is supported by collaboration. It is not possible to work alone, you can’t do it without friction, without difference”.

The resistance from distance

Minerais exportados pelo Brasil integram a obra "A cruz do sul", em que Aline Baiana faz crítica ao extrativismo. Foto: Mathias Voelzke Völzke

For Lisette Lagnado, one of the four curators at the 11th Berlin Biennial, the new coronavirus highlighted even more issues that the event itself, whose official opening took place on September 5, three months late, had set out to discuss in 2020 “We were talking about necropolitics, fanaticism, capitalist patriarchy, extraction and ecological devastation. The pandemic only came to deepen the gap that separates the countries of the global south from the place where we are,” pondered Lisette in her opening speech at the VI International Virtual Seminar ARTE! Brasileiros.

The conversation was mediated by the journalist Fabio Cypriano, with the participation of the Spanish Agustín Pérez Rubio (from the curatorial team of the Berlin Biennial, alongside Lisette, the Chilean María Berríos and the Argentine Renata Cervetto) and two of the artists selected for the exhibition , the Brazilian Aline Baiana and the Guatemalan Edgar Calel.

Still at the opening, Lisette expressed some discomfort with the seminar’s subtitle, The Art of Possible. “Our job as producers and cultural agents is always to deal with the impossible,” she said. “It is very difficult to put the concept of solidarity when an international, European biennial announces its dates, despite the fact that the artists are still in lockdown in the countries of the global south. I wanted to draw attention to the violence intrinsic to the initial decision to make the biennial happen in 2020 “.

For the curator, the “most substantial chapter of the biennial” – whose epilogue, entitled The crack begins within, will be shown until November 1 in the German capital – had been opened in September 2019, with workshops, small exhibitions and performances, in the Berlin Wedding neighborhood, in a space that proposed listening and exchanging with local residents, mostly immigrants.

“There was a whole dynamic of being together and suddenly we were interrupted in this way of working”. It was necessary, continued the curator, to create what she calls an ethical protocol: “To say that we would not give an inch in our position and, in this sense, the word possible is dangerous because it may seem opportunistic. Rosa Luxemburg said that opportunism is the art of the possible. And I want to insist that, when doing a biennial in these conditions, we have to worry about our own principles. And don’t bend to those dictated by an exceptional situation.”

Activist artist

In the virtual seminar, Lisette exemplified the political weight of the show, initially presenting the American Marwa Arsanios and her trilogy Who’s afraid of ideology?. The work reflects, said the curator, an ecological feminism that since 2017 marks the work of Marwa, together with women who participate in movements for the fight for land, in places like northern Syria and Colombia.

“[It is something that] recontextualizes a feminism of the 1990s, which concealed the ideological analysis by stating that gender equality was already a step over,” she said. “With this criticism, Marwa went looking for a feminism beyond a kind of liberal middle class life, which she found in ecological activism. In this film, the rural area is the territory where the fight for land takes place and where these women are also guardians of seeds, water sources and biodiversity. We see here an example of the figure of a caring and activist artist.”

Cena da obra “Quem tem medo de ideologia?”, de Marwa Arsanios. Foto: Reprodução

Marwa’s activism ends up finding echoes in the sphere of contemporary art, also regulated by the logic of extraction, said the curator. “I bring, like her, the concern to avoid transforming these precarious lives into commodities worshiped at international biennials. How to prevent the appropriation of these genuine knowledges from turning into something else through the exploitation of others’ sores”. 

The cross of colonialism

Aline Baiana began her participation by questioning the difficulty, on the part of science, of perceiving Afro-Brazilian or indigenous knowledge as such, relegating to these perspectives a fabulous character, often in children’s books. 

“What I try to do with my work is to share these understandings of the world and to tension them with the Western understanding, hegemonic […] a way to collaborate for the anti-colonial struggle”, explains Aline, who presents in Berlin the installation The southern cross.

“This work started, as an idea, when the environmental crime took place in Mariana [the Brumadinho dam burst in January 2019]. I was shocked and disturbed seeing those images of the river dead by a company that has already taken its name [Vale do Rio Doce], which made me think of this place of infinite exploration that Brazil and other southern countries occupy. And as the mining risks are obliterated from the final product, they are left to the populations. ”

The choice of the work’ name also contained a criticism: the constellation, symbol of Mercosur and present in flags of many countries in the hemisphere, represented as a cross, from a Christian perspective, in a colonizing act.

Aline also explained why the idea of “art of the possible” bothered her, remembering two phrases: “It is easier to imagine the end of the world than the end of capitalism”, by the British Mark Fisher, in the book Capitalist Realism. “We live in capitalism, its power seems inescapable – but until then, the divine right of kings also seemed. Any human power can be resisted and changed by human beings. Resistance and change often begin in art”, by American Ursula K. Le Guin. “What I think as an artist is that the role of art is perhaps to provoke reconnections, to imagine other possibilities”, concluded Aline.

Ancestrality and resistance

In his speech, Edgar Calel initially considered that we are the product of nature and the ancient cultures of the world, such as the one he was born and raised in Guatemala. The artist then read an excerpt from an account of the creation of the universe according to Popol Vuh, a Mayan documentary record from the 16th century.

“Under this panorama of ancestral indigenous literature, it seems interesting to me how, through art, people are able to cross different physical and time spaces, and with that we unite ancient and contemporary situations, with the need to listen to the past for project the future. Part of my job is to do these physical and temporal journeys as well”, said Edgar.

O artista Edgar Calel veste pele de onça em ritual ancestral no prédio da Bienal em São Paulo

Acima, a performance decolonizadora de Edgar Calel, que veste pele de onça em ritual ancestral no prédio da Bienal (SP).

The artist took the video Sueño de obsidiana to the Berlin exhibition, made in collaboration with São Paulo native Fernando Pereira Santos. In it, Edgar represents an indigenous ritual linked to the land, having as scenario one of the icons of Brazilian modernist architecture, the Bienal building, in São Paulo. With the skin of a jaguar, his animal spirit according to the Guatemalan tradition, or a blue sweater, which is displayed in the daadgalerie, and in which he sewed the names of the indigenous languages of his country, the artist speaks of anti-colonial resistance through reconnection with ancestry.

“Taking this walk in that concrete building, being an indigenous person of Mayan descent, is a statement about the destruction of the limits, the borders imposed between countries like Brazil, Paraguay, Bolivia, etc. We are all one. This, for me, is something fundamental, that we must contribute to this other possible world”, he argued. 

God and Devil

“This is a biennial of sensitive capital, of relationship capital,” said Agustín Pérez Rubio, when he began his participation. “And also, what perhaps the pandemic has made us value it more, an idea of cure, of a healer, not only of healing anything, but of accompanying, caring,” he said.

Agustín used the image of Edgar dressed in jaguar skin, in the Bienal building, to talk about another section of the Berlin exhibition: fanaticism and the god of capitalism, of the internet and, in the case of the Guatemalan artist’s work, an idea of contemporary art church, incorporated by the modernist construction. According to him, it is important to open cracks in institutions such as the biennial and museums, for these questions: “For artists like Edgar to show us how, in an icon of Brazilian modernity, the denial of knowledge, which has been segregated for years, is implicit”, argues Agustín.

The curator then mentioned the work of Antonio Pichillá, also from Guatemala, presented at the Berlin exhibition: the video Action of a tree character, shown at the Gropius Bau, which houses the segment The inverted museum of the biennial, an attempt to “counter-narrative” to the Eurocentric perspective on art. “To understand how this colonial vision is perpetuated by the institutions,” said Agustín, citing the Humboldt Forum, a museum space that will open later this year in Berlin.

Agustín also criticized the reception of the works by German journalists: “They can only see the ethnography of these works and fail to consider them from a philosophical, aesthetic and artistic root as contemporary works. Or, for them, they are works with something esoteric. It is very interesting to see that all these critics and German culture have allowed this racism and this way of seeing otherness to be perpetuated, based on their Eurocentric ethnography”, he said. “And since esotericism in Germany is very close to the extreme right, they prefer not to talk about these works”. 

Demolition, retribution

How, then, to avoid the extraction of biennials and other cultural events? How did the curatorial quartet at the Berlin exhibition deal with the issue? “Patriarchy, colonial sores, are suffocating us, and we have to react even with violence. On the other hand, there is a question of care. So, how to be violent and, at the same time, welcome other voices, and these more vulnerable lives? What always guides me is a mixture of intuition and ethics. And in that sense, listening has been our compass”. For Agustín, in addition to listening, a non-extractive way would be to understand that you take something, but also return it. “The idea of restitution, with artists, communities, vulnerable museums”, he concluded.

Strategies of the possible

In a video conference of the Goethe-Institut, the Argentine Osías Yanov and the Brazilian Castiel Vitorino talked about the works they exhibited in Berlin

To complement the open seminar, the Goethe-Institut Rio also held a specially organized videoconference for a group of guests who were unable to travel when the 11th Berlin Biennial opened in September. Among them, curators, artists, and managers from different museums and from different units of the Goethe-Institut in Latin America. On this day, in addition to the curators, the artists Osías Yanov (Argentina) and Castiel Vitorino (Brazil) participated.

In Berlin, Osías participated in the space dedicated to the show’s experiments, the ExRotaprint. Part of his project was compromised by the sanitary restrictions of the pandemic, including his group exercises, which he had already done in Argentina, in a reflection on the repression of bodies, among other issues.

Trabalho de Osías Yanov apresentado no seminário. Foto: Divulgação

The artist sought to maintain the necessary distance contact with his group of performers, who drew drawings and read short stories. The results were presented at the biennial, along with elements dear to his artistic research: spoons – cucharitas – that refer to the act of sleeping embraced with someone, and appeared in sculptural forms, and salt – a substance linked to the notion of purification and healing. Through loudspeakers, the sound recording of the readings made acrylic tables vibrate on the floor, creating drawings in the salt in contact with them.

Lisette Lagnado stressed the importance of listening in Osías’ work and mentioned another experiment carried out on ExRotaprint with the feminist collective FCNN, which discussed the institutional space that art leaves for young mother artists, who have nowhere to leave their children. The presence of women at the biennial, in the fight against patriarchy, is also one of the important themes of the exhibition. In Berlin, the curator had the opportunity to read a book on motherhood, by the Egyptian Iman Mersal, which brought up the idea of ​​a child destroying the possible future of the mother, in a hurry to reach the new world. “It was something we were feeling about the biennial, facing the pandemic, and we borrowed this notion of crack, fissure, for the title.”

Trabalho de Castiel Vitorino apresentado no seminário. Foto: Divulgação

Castiel took a series of photographs to Berlin in which he appears wearing masks bought at an antiques store in Santos (SP), sold as African, but actually made by a friend of the store owner. With the work, the artist exposes the exoticization of the colonizing discourse about the cultures of the continent. “With photography, I try to create images to remind me of the possibility of living outside circumscribed and ordered by racial mythology,” he said.

 

 

VI International Virtual Seminar ARTE!Brasileiros: In defense of nature and culture – the art of the possible

Palestrantes do VI Seminário Internacional Virtual: em defesa da natureza e da cultura - a arte do possível
Palestrantes do VI Seminário Internacional Virtual: em defesa da natureza e da cultura - a arte do possível

Held in different cities and institutions, international seminars and debates organized by arte!brasileiros are considered important spaces for reflection, diffusion and diffusion of contemporary critical thinking, related not only to the world of art, but to society as a whole. From “Collecting in Brazil in the 21st century”, in 2012, to “Cultural Management: Contemporary Challenges”, in 2019, a large number of thinkers from different countries and areas were able to dialogue among themselves and with the public about a wide variety of themes.

Continuing this journey, on October 8 and 9, 2020, arte!brasileiros held, in partnership with the Goethe-Institut, the “VI Virtual International Seminar ARTE!Brasileiros: In defense of nature and culture – the art of possible”. This time, not at the Ibirapuera Auditorium, Itaú Cultural, MAM-SP or CCBB Rio – places that have hosted these events -, but on the web, on the YouTube platform.

The impossibility of the face-to-face meeting, resulting from the Covid-19 pandemic and the need for social isolation, brought several new challenges and some difficulties, but it also resulted in a great “collateral advantage” – so to speak -, a much higher audience seen in previous events. There were about 5,000 accesses during the two days of the event, with numbers that continue to rise on the platforms, since the event is still available on our channel.

The theme of the pandemic, which does not appear disconnected from the destruction of nature and attacks on culture experienced in the world – and especially in Brazil -, permeated the speeches of environmentalists, philosophers, scientists, artists and curators who participated in the seminar. In the next pages, in five texts, the reader will have full coverage of the presentations that brought together, on the 8th, the indigenous artist and militant Naiara Tukano, the indigenous leader and environmentalist Ailton Krenak, the scientist Antônio Donato Nobre, the curator Andrea Giunta (12th Mercosul Biennial), artists Bárbara Wagner and Benjamin de Burca and philosopher Franco “Bifo” Berardi; and, on the 9th, curators Beatriz Lemos, Diane Lima and Thiago de Paula Souza (3rd edition of Frestas – Triennial of Arts), artists Edgar Calel and Aline Baiana and curators Agustín Pérez Rubio and Lisette Lagnado (11th Berlin Biennial).

A few days after the event, we received, with great joy, the news that our publisher Patricia Rousseaux and arte!brasileiros were winners of the ABCA Award – Brazilian Association of Art Critics – 2019, in the category “Antônio Bento Award – diffusion of visual arts in the media”. This recognition validates our work and gives us the strength to continue.

Editorial: Against the devastation!

"Trópicos Malditos, Gozosos e Devotos 07" (2020), Rivane Neuenschwander. Foto: Divulgação.
"Trópicos Malditos, Gozosos e Devotos 07" (2020), Rivane Neuenschwander. Foto: Divulgação.

Since March 2020, while we isolated ourselves as a form of security in the face of an epidemic unprecedented in our generation, we accompanied the closure of our daily meeting spaces: bakeries, bars, restaurants, cinemas, theaters, museums, galleries, bookstores, hairdressers. Thus, each of us organized our activities seeking solutions to a completely unexpected reality.

At the same time, in the world and in Brazil specifically, crimes of omission and attacks on life were intensified: against rivers, mangroves, forests, animals, women, blacks, immigrants, cultural institutions, in short, attacks on everything that did not represent an immediate socioeconomic retribution or did not generate some kind of immediate profit. Solutions for health and science began to be questioned at the expense of supposed fiscal and financial gains.

We had the feeling that the floodgates of a dam filled with backwardness and hatred were opened and, almost like in a sci-fi movie, monsters of all kinds were in a stampede capable of updating the atrocities that once formed part of our colonial history.

The cover of this edition, a detail of the work Trópicos malditos, gozosos e devotos 7, 2020, by the artist Rivane Neuenschwander, is almost a synthesis of what the unconscious and art can come to express, against fear and violence.

When we began discussions on the holding of our 6th International Seminar in May of this year, together with the directors of the Goethe-Institut, our partners in the project, the urgency of defending man and nature were urgent. We feel the need for art to be part of the reflection on the notion of the world we want to inhabit.

In this sense we managed to enable a virtual meeting, where the cast of guests – artists, philosophers, scientists, environmental leaders and curators – who have been working in this complex scenario for a long time, had the opportunity to talk about their activities in their different countries and places of activity.

“When we break the flows of the Earth, we harm it, because it is a whole, it has a consciousness of its own and we cannot cut it as a mosaic, as we are doing. For hundreds of years our shamans have been warning to take care of nature, we are nature,” said young indigenous activist and artist Naiara Tukano wisely.

So we made the meeting a place from where we could feel less alone, as a method of defense. Word and art have been fundamental weapons for reflection, comfort and attack.

Andrea Giunta, researcher and curator of the Mercosur Biennial 12, who had to dive into the adaptation of the event with the project curators, said at the Seminar: “Art has the ability to be an archive, an archive of experiences that were created at different times. And with this file we can ask the questions of the present.”

This edition is populated with articles that show ideas and productions of artists and curators who work in dialogue with their surroundings; works that reflect an attitude of immersion in his time; works that express the need to abandon the self-centered subject, to think about the importance of learning with the other, and from the other.

PS: We were very happy to know, at the end of this edition that arte!brasileiros had been recognized by ABCA, with the Antônio Bento Award 2019, as the best vehicle of diffusion in the media of art and culture. We will remain committed to the quality and coherence of our work.