Dzi Croquettes: Benê Lacerda, 1974
Dzi Croquettes: Benê Lacerda, 1974. Foto: Madalena Schwartz, acervo IMS.

“Eu sempre tive família, eu cresci protegida pelas minhas avós”, contou no programa Roda Vida a vereadora trans por São Paulo, Erika Hilton, em fevereiro passado. “Nunca tive problemas com minha identidade, em ser uma criança viada”, enfatizou em sua fala cheia de críticas certeiras à chamada “ideologia de gênero”. Essa noção de família ampliada e acolhedora foi tematizada pela fotógrafa Madalena Schwartz, em uma série que adianta as imagens transgressoras de Nan Goldin dos anos 1980, que a tornaram um ícone do submundo trans.

Juntar essas três mulheres em um parágrafo não seria tão óbvio antes da mostra Madalena Schwartz: as Metamorfoses – Travestis e transformistas na SP dos anos 1970, em cartaz até setembro no Instituto Moreira Salles, mas é impossível não perceber como todas defendem uma humanização do universo trans. A surpresa aqui é que enquanto Goldin, bissexual assumida, se tornou mundialmente conhecida ao retratar basicamente seu círculo de amizades na noite, Schwartz (1921–1993) era uma senhora marcada por um perfil recatado.

Nascida na Hungria, migrou aos 12 anos para a Argentina. Nos anos 1960, com o marido e dois filhos, foi viver em São Paulo, onde a família administrava uma lavanderia no centro da cidade. Quase aos 50 anos, quando seu filho ganhou uma câmera fotográfica, ela passou a frequentar o Foto Cine Clube Bandeirante, o que permitiu desenvolver uma nova carreira, tornando-se “a grande dama do retrato em nosso país”, como definiu Pedro Karp Vasquez, citação que se lê em uma das paredes da mostra.

Madalena Schwartz, meados de 1969. Acervo Pedro Luis Szigeti.
Madalena Schwartz, meados de 1969. Acervo Pedro Luis Szigeti.

Um depoimento em vídeo de Madalena, logo no início da exposição, confirma como amigos e familiares costumam descrevê-la: uma senhora tímida e elegante, sempre com roupas clássicas. Sua discrição, no entanto, não foi empecilho para seu reconhecimento. Fotografou para revistas importantes no mundo todo e, em 1974, fez sua primeira individual no Masp, o Museu de Arte de São Paulo, a convite de seu então diretor, o italiano Pietro Maria Bardi.

A exposição agora em cartaz politiza a obra de Madalena ao tematizar o universo trans, uma questão urgente no Brasil, marcada por perseguições e assassinatos, ao mesmo tempo em que a visibilidade delas se torna inédita, caso de Erika Hilton, a mulher mais votada na cidade de São Paulo nas eleições do ano passado. 

Essa politização segue a linha de A luta Yanomami, que há três anos tratou da questão indígena através da obra da fotógrafa Claudia Andujar, húngara como Madalena. Contudo, as duas têm características muito distintas, apesar de em comum serem fotógrafas brilhantes e a fotografia ser uma estratégia essencial de ambas na comunicação com o mundo: enquanto Claudia era uma militante da causa indígena, Madalena jamais caracterizou sua obra como uma atitude engajada. Trata-se muito mais de uma grande retratista que, por conta de amigos artistas e vizinhos no Copan, onde morava, acabou também olhando para essa cena.

A exposição, com curadoria de Samuel Titan Jr. e do argentino Gonzalo Aguilar, contextualiza essas relações da fotógrafa, ao apresentar um imenso mapa do centro de São Paulo em uma das paredes da mostra, onde são vistos os principais espaços por onde Madalena Schwartz transitava: sua residência no Copan, a lavanderia na rua Nestor Pestana, a sede do Clube Bandeirante, os teatros da cidade, entre alguns pontos.

O Copan, aliás, inspira a arquitetura no próprio espaço, já que os painéis em cor lilás da exposição seguem discretamente a forma sinuosa do edifício, ao mesmo tempo em que ele é retratado em uma série de imagens noturnas e bastante impactantes no fundo da sala.

Nos painéis estão mais de cem imagens, a maioria de travestis, mas também artistas performáticos como Ney Matogrosso, Patrício Bisso e Elke Maravilha.

E o painel divide outras duas contextualizações: de um lado uma documentação audiovisual sobre São Paulo nos anos 1970, marcado pela ditadura militar e a transgressão ao mesmo tempo; enquanto de outro lado, imagens da cultura travesti e transformista em outros países da América Latina, também nos anos 1970 e 1980, reforçando o caráter politizado da mostra. Aliás, os nove conjuntos, que são trabalhos efetivamente militantes, basicamente atestam a grandiosidade de Schwartz.

Danton e pessoa não identificada, anos 1970. Foto: Madalena Schwartz, Acervo IMS.
Danton e pessoa não identificada, anos 1970. Foto: Madalena Schwartz, Acervo IMS.

Frente às questões do movimento Me Too, é de se perguntar se uma mostra de uma mulher tão arrojada como Madalena não deveria ter também uma curadora mulher, como aconteceu na mostra de Diane Arbus (1923–1971), no Metropolitan Museum de Nova York, em 2016. Afinal, em uma época de debates sobre representatividade, o IMS poderia buscar entender o contexto, o que também faltou na abertura da mostra, novamente só com homens: os curadores e João Silvério Trevisan, que aliás teve uma fala que tratou pouco da artista.

Isso não compromete, contudo, a merecida visibilidade que o trabalho precursor de Schwartz recebe. As imagens no painel, acertadamente distribuídas em distintos formatos, apontam como além de dominar o uso de claros e escuros na fotografia, uma questão técnica relevante, ela conseguia revelar uma intimidade com seus retratados, que mescla cumplicidade e empatia, especialmente as realizadas nos bastidores ou em sua própria casa.

As fotos de Meise, por exemplo, revelam a fragilidade da modelo enquanto se transforma, usando ainda de espelhos na criação de duplos, uma composição muito semelhante ao que Nan Goldin faria na década seguinte. Esse tipo de imagem sobrecarregada de simbologias também se vê na série com Danton, seu maquiador de um salão na rua Augusta, especialmente na que ele está nu com o rosto caracterizado como mulher, sentado em um banquinho enquanto outro rapaz atrás dele se movimenta, novamente gerando um duplo. Danton aparece em outras imagens sem maquiagem, quando é visto de forma mais delicada e vulnerável, o que só se consegue em um retrato quando de fato há uma espécie de solidariedade entre quem é retratado e quem retrata, muito semelhante à cumplicidade dos indígenas retratados por Andujar.

Mais do que falar do universo travesti, transformista e transgressor dos anos 1970, Madalena Schwartz trata da humanidade de forma mais ampla e, por isso, de seu caráter inclusivo: trata-se de uma mesma família com individualidades distintas. 

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