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Filme aborda a loucura da evangelização de indígenas no Javari

O Avesso do Céu
Imagens do Filme: O Avesso do Céu [The reverse of Heaven], da dupla Dias & Riedweg está em exibição na Galeria Vermelho em São Paulo

É muito difícil sair impassível depois de uma exibição do filme O Avesso do Céu, da dupla Dias & Riedweg, em cartaz na galeria Vermelho até 11 de maio. Nele é retratada a violência da manipulação religiosa no território indígena tikuna, na região do Alto Solimões e do Javari, na fronteira do Brasil com Peru e Colômbia, em cenas reais, que misturam rituais a imagens do desmatamento na Amazônia, tornando impossível não perceber a ligação intrínseca entre ambas.

A dupla, constituída há 30 anos pelo brasileiro Maurício Dias e o suíço Walter Riedweg, é conhecida por atuar com comunidades específicas sejam porteiros de prédios, policiais, crianças de rua ou internos de clínicas psiquiátricas, em um raro exemplo de envolvimento afetivo no panorama da arte brasileira. Essa nova obra, finalizada em 2023, contudo, se constrói novamente em uma imersão de três meses com dois grupos: indígenas e evangélicos, mas neste último sem a costumeira empatia.

Por isso, resolvi mandar duas perguntas para Maurício, que estava em São Paulo para a abertura, que foram respondidas em uma série de 13 áudios transcritos a seguir. As perguntas foram: o que os levou a produzir uma obra em Atalaia do Norte; e como se deu o envolvimento que em geral vocês costumam dedicar em seus trabalhos. Leia a seguir as respostas:

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Maurício Dias – O que levou a gente para Atalaia do Norte foi a ideia de fazer um trabalho sobre a síndrome de Jerusalém. Ela surgiu, na verdade, em 2013, da residência à convite de Benjamin Seroussi no Jerusalém Visual Arts Center, em Israel.
A gente ficou em Jerusalém um tempo. E o que mais impressionou a gente lá era a “maluquice da devoção”. Eu chamo de maluquice porque é na verdade essa veneração exacerbada, exposta por centenas de peregrinos cada vez que eles se encontram com as referências e monumentos quase mitológicos das religiões deles. Isso acontece tanto entre os judeus, como os cristãos e os islâmicos. Nessa região tem a mesquita de Al-Aqsa, de onde Maomé supostamente se transformou num cavalo alado e foi para os céus, tem o extinto e destruído Templo de Salomão, onde judeus rezam no Muro das Lamentações, e isso tudo ao lado do Santo Sepulcro, onde Jesus, supostamente, está enterrado e onde centenas de peregrinos católicos e evangélicos fazem a Via Dolorosa, aquele caminho da Cruz, repetindo as estações até o Calvário. E vários crentes entram assim em um transe, que tem o nome de Síndrome de Jerusalém. Isso é uma coisa tão recorrente que o Estado de Israel não sabia o que fazer, porque atrapalhava a vida local, já que esses transes psicóticos, às vezes, se tornam violentos. Por isso, eles acabaram criando [em 1951] uma clínica para tratar disso, chamada Kfar Shaul, construída em um antigo vilarejo palestino.

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Essa síndrome de Jerusalém é uma coisa que a gente está, desde 2013, tentando abordar no nosso trabalho. A gente vem fazendo uma série de trabalhos com pacientes psiquiátricos, e nesses trabalhos, nessas imersões que a gente faz com um grupo de pacientes do IPUB, o Instituto de Psiquiatria da UFRJ, a gente vê com frequência o problema da fé, da mitologia, da existência de Deus. Essa questão, ela é, entre os pacientes psiquiátricos, ainda mais forte do que na sociedade em geral. Então a síndrome de Jerusalém tornou-se uma questão forte nesses trabalhos e acabou gerando uma série de trabalhos no contexto da psiquiatria que a gente fez nos últimos anos: Casulo, que ganhou a bolsa Zum do IMS, em 2018, o trabalho que a gente fez para a Casa Daros, em 2015, Nada absolutamente nada e Nada quase nada, que apresentamos na Verbo, na Vermelho, em 2016, que é uma performance a partir de textos do Robert Walser.

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E O Avesso do Céu, esse filme novo, também surge nesse contexto. Ele não é um filme sobre os indígenas, nem sobre os evangélicos. Ele é um filme sobre a loucura, sobre o estado do avesso, o estado de ser da fé dominada pela religião. A gente entende a fé como uma expressão individual de qualquer indivíduo para se relacionar com a sua condição de existência. Se ele é indígena, a fé vai servir para caçar, para pescar. Se ele é alguém do mercado da Faria Lima, ele vai “levar uma fezinha” para transações arriscadas. A fé faz parte da vida, a fé faz parte da condição humana de se relacionar com o desafio de estar vivo sem saber muita coisa sobre a vida, né? A gente tem essa diferença em relação aos outros seres. A gente lida com a ideia da morte o tempo todo que está vivo. E eu acho que a fé surge aí. E a religião, ela vai colonizar essa fé. Todas as religiões fazem isso. Em algum momento elas vão colonizar essa fé para organizar a fé territorialmente, que é o que acontece lá em Israel o tempo inteiro e acontece agora no Javari.

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O trabalho nunca aconteceu em Israel porque foi impossível para a gente fazer isso lá. A gente não fala hebreu, nem árabe. A gente nunca conseguiu nenhuma resposta da clínica Kfar Shaul, nem nenhum apoio institucional de lá para poder começar esse trabalho. Então a gente meio que botou esse trabalho na geladeira. Eu li um artigo do Bruno Meyerfeld, que é o correspondente franco-brasileiro do Le Monde no Brasil, em uma série de artigos a história da construção da Transamazônica, que deveria ter chegado a Atalaia do Norte, extremo Oeste do Brasil, na tríplice Fronteira do Peru, Colômbia e Brasil. Mas a Transamazônica nunca chegou até lá, ficaram faltando uns 600 km e eles desistiram porque essa região é completamente selvagem.

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E o último texto dessa série era focado em Atalaia do Norte, descrevia esse paraíso prometido na Terra, uma cidadezinha de 20 mil habitantes, completamente desorganizada, completamente bolsonarista, na qual você tem mais de 60 igrejas evangélicas diferentes, todas movidas por missionários que tentam entrar no Vale do Javari, o último reduto com indígenas não contactados na contemporaneidade.

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E aí a gente sacou que tinha que deslocar esse trabalho para tratar da conversão da fé em território, da conversão da fé de um indivíduo para uma religião, para o contexto amazônico, que essa questão se materializaria lá e de uma forma mais contemporânea e sul-americana. A maioria dos nossos trabalhos se desenvolve dentro da realidade ou na ótica latino-americana, então esse trabalho nessa tríplice fronteira para a gente virou uma nova obsessão também, como para os missionários. Essa cidade é uma espécie de trampolim para os missionários entrarem no Vale do Javari, para tentarem conhecer, encontrar, catalogar e converter novas culturas. É um pouco como a consequência do mito que sempre existiu da colonização. Os brancos fizeram isso na costa brasileira, desde o século 16, e foram penetrando país adentro. Em cada estado isso teve um nome e uma atividade diferentes mas um método parecido. Mas, Por trás dessa entrada religiosa sempre teve a questão extrativista. Se em Minas foram os minerais, na Amazônia foi a borracha, e hoje em dia é sobretudo a madeira. Então, lá no Javari, esses missionários já entram completamente financiados por exploradores que vão pegar as coisas do Javari depois. Tem coca, tem madeira, tem o pescado, que é super apreciado na alta culinária, porque são esses peixes gigantes da Amazônia, a caça, enfim, tudo o que ainda continua a fascinar a dita civilização como exótico e isso é o motor que leva esses missionários para lá. Os missionários são realmente crentes religiosos, daí a identificação com os governos de extrema direita. Mas você tem missionários do mundo todo lá prontos para entrar em aviões para jogar coisas, jogar espelhos, jogar correntes e presentinhos para seduzir indígenas que nem contactados foram. A gente não esteve com esses indígenas, é óbvio que é nocivo esse contato, e nunca foi o que a gente quis. O quer a gente queria era uma documentação desse encontro, dessa obsessão dos missionários para desvelar um pouco do que tem por trás desse dessa obsessão, que tem um interesse comercial atrás dela.

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E aí a gente foi na cara e na coragem, sem contato nenhum, a não ser uma chamada telefônica com Anderson Rocha, o secretário de Cultura na cidade vizinha, Benjamin Constant, que era uma cidade petista, um antropólogo local superinteressante que reagiu às nossas demandas. Ele colocou a gente em contato com alguns indígenas tikunas, completamente evangelizados, mas que têm um trabalho de defesa territorial, de reorganização social na região, e, também com o Tikuna Santo Cruz, que criou e dirige o Museu Magüta em Benjamin Constant sobre a cultura tikuna. E ele nos colocou em contato com famílias tikunas, com as quais a gente conviveu bastante com uma delas. A gente foi lá três vezes, cada vez um mês, e ficou com essa família tikuna. O pai é o homem que aparece ao longo do vídeo e que vai possibilitar um roteiro. No filme, é ele que derruba uma árvore, é ele o pai da menina que vai ter o ritual da moça nova. Por isso que é ele que bota aquela árvore abaixo e que vai batucar na árvore para retirar dela a pele. E essa pele ele vai secar, cortar os pedaços, para receber as pinturas que vão decorar o ritual e fazer a indumentária desse ritual da moça nova.
Esse é um ritual essencial na cultura tikuna, ritual de garantia da reprodução deles, do clã. Ele é feito quando a menina tem a primeira menstruação e é considerada pronta para a vida da mulher, para ser mãe e antes dela ter a primeira relação sexual, ela vai passar por um ritual em que seus cabelos são arrancados da cabeça. Ela recebe uma bebida fermentada de mandioca para anestesiar a dor. Tanto os mais velhos como os mais novos da família vão se vestir com essa pele pintada. São os mascarados e eles vão dar para ela a bebida e arrancar os cabelos para que ela seja assim batizada na vida adulta. Esse ritual foi proibido pelas igrejas, já completamente perseguido pela igreja católica, posteriormente pela Igreja da Santa Cruz e atualmente pelos evangélicos. Essas igrejas vão coibir o ritual da moça nova, e através do dízimo, elas manipulam a renda das pessoas porque pegam de um para dar para os outros controlando e ameaçando assim as práticas culturais originais dos tikunas. Esses rituais são praticados nas cozinhas e nos quintais, escondidos.

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A gente filmou um dos rituais dessa família com a qual a gente esteve em contato. E aí a gente deu para eles seis celulares que viraram devices importantes de câmera nesse trabalho. Eles filmaram outros rituais de moça nova e algumas outras festas deles e depois eles davam para a gente os arquivos. Eles ficaram com os aparelhos e a gente recebeu os arquivos, já entrando na sua segunda questão, da mais valia ou de como é a nossa relação com eles.

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Esse material que a gente recebeu deles entra no filme em imagens que aparecem em preto e branco, ou em fotografias, com um tratamento pictórico diferente para diferenciar a fonte das imagens que não são imagens diretamente filmadas por nós. É como se fossem aspas num texto, e as citações dos participantes estão no final do filme.

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Esse foi um trabalho superdifícil de pesquisar, de financiar e de executar sobretudo. Entre a primeira e a terceira vez que a gente esteve lá aconteceu a emboscada e os assassinatos do Bruno Pereira e do Dom Phillips, e isso modificou bastante a nossa recepção nesse lugar. Quando a gente chegava, as pessoas fechavam as portas ou diziam “vocês têm que ter muito cuidado porque os outros dois foram mortos”. Eles associaram a gente, com toda razão, ao dessa imprensa mais ativista, ao indigenista e ao jornalista que foram assassinados. A gente estava tocando em um assunto muito difícil, muito bélico, perigoso mesmo, e o approach da gente era obviamente subversivo. E aí eu entro na sua segunda questão.

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Como é o relacionamento da gente com esse grupo? Não é um grupo, são dois grupos: os evangélicos e os indígenas. O nosso relacionamento com os indígenas foi de empatia, mesmo considerando todo o estranhamento. Empatia política, empatia pelo ponto de vista deles serem os grandes defensores da natureza, da floresta, os donos da terra, os verdadeiros primeiros donos dessa terra. Eles não se consideram brasileiros, eles se consideram tikunas. Parte dos depoimentos que a gente tem, mas não incluímos no vídeo porque não fazia parte do tema, é sobre essa questão do pertencimento. Eles não se consideram brasileiros, eles se consideram tikunas. É uma particularidade porque isso indica também que, como toda relação de pertencimento, o pertencimento precisa ser recíproco, e se eles não têm o Brasil, o Brasil também não tem eles. Essa é a questão central ali, a questão do território. E o outro grupo são os evangélicos, com os quais a gente não tem nenhuma empatia. Se a gente voltar lá, se eles virem esse filme, não vão se identificar com ele. É provável que um evangélico ou um bolsonarista que veja esse filme tenha um problema com ele. É um filme indigesto. Já é indigesto para nós, de esquerda, para nós que trabalhamos com cultura. Um filme difícil de ver. Não estou falando só da cena do sacrifício do animal, eu estou falando da dor que nós todos temos de ser cúmplices dessa situação de eterna colonização. A descolonização começou no dia seguinte da colonização porque ela vai aparecer como um ato direto de arrependimento da colonização, que é um ato de barbárie.

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Então, como a gente se relaciona com isso? Da mesma forma que todo mundo que está assistindo o vídeo: a gente tem empatia, tem dor e tem asco dessa relação dos missionários. Tem vários dos depoimentos que não entraram nesse filme por causa de tamanho e da funcionalidade do filme. Muita coisa ficou de fora, mas a gente tem depoimentos dos missionários nos quais eles falam sobre essa obsessão. E é mesmo uma obsessão acima de tudo, mais do que vontade de ajudar ou mais do que bondade entre aspas. Essa gente tem essa obsessão de colonizar, tem prazer de conhecer esse dito selvagem e de civilizar, de socializar, converter essa pessoa não só em cristã como em branca! E a gente fez um trabalho sobre isso, sobre essa conversão. Esse é o nosso lugar no trabalho, é um local de terceiros, de observação crítica. A gente não pode se solidarizar, nem com um lado nem com outro, com toda a empatia possível, porque senão a gente não teria distância crítica necessária para tratar essa questão, que é um problema. A gente está tratando ali da obsessão, e o que vem com a obsessão: a conversão… é uma barbárie. É uma colonização, um processo de perpetuação de dominação muito barra pesada. E isso ocorreu durante o governo Bolsonaro… No mesmo período em que a Damares distribuía fetos de plástico em campanha contra o aborto no gabinete dela em Brasília, do suposto Ministério de Direitos Humanos e Direitos da Mulher! Ela mesma tem uma filha de origem indígena Kamayurá adotada sem a permissão dos pais biológicos no Xingu. Essas questões são muito difíceis. A gente procurou não fazer do filme puramente uma denúncia, mas é muito barra pesada o que a gente viu lá. E o que a gente tenta manter no filme é o que possibilita essa barra pesada: a conversão.

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A igreja é a chave para o extrativismo. Ela abre a porta do paraíso para a entrada do inferno, ela promete o paraíso divino e ela traz o inferno para dentro do paraíso, que é aquilo lá, que está em estado puro, em estado de vida! O que a gente burramente chama de estado primitivo. É um total descontrole, um total equívoco. Uma situação de equívoco e que beira a loucura. E esse é o ponto do nosso trabalho: tentar apontar para esse equívoco e tratá-lo como tal. Enfim, esse trabalho trata de coisas que todo mundo vem tratando, mas a gente procurou ir ao que a gente acha que é ponto central ali, que é a transformação do pajé em pastor, a transformação de pessoas que vivem na floresta em vilarejo e o processo de evangelização dessas pessoas. Achamos que essa é realmente a porta de entrada para o extrativismo, que acontece de forma ilegal e galopante na região, a última da Amazônia, que ainda pode ser defendida. ✱

A recriação de uma cosmogonia

O Anticósmico
O Anticósmico - Maioral é Dragão Negro, 2024 da série: Chama Negra 85

Thiago Martins de Melo nasceu 1981, em São Luís do Maranhão, onde mora e trabalha. O artista já participou de várias residências em Guadalajara, México, onde atualmente está envolvido em um projeto junto a Rigo Campuzano, um jovem curador mexicano.
A produção de Thiago se caracteriza pela visceralidade de sua pintura e suas pesquisas na área de psicologia e acerca das religiões de resistência aos colonizadores, especialmente espanhóis e portugueses.

Publicamos a seguir dois textos referentes a obras expostas na Espanha e no estande da Lima Galeria, do Maranhão, durante a SP-Arte, em São Paulo.

Exu force power, 2012
Exu force power, 2012

“Quimbanda Brasileira dentro de tantas outras correntes e cultos de resistência no Brasil tem sua gênese no entrechoque da violência cristã sob o signo do deus crucificado sobre o povo da terra hoje chamada Brasil e os povos da África que cruzaram o Atlântico sob o ferro e o fogo do colonizador.

O culto aos ancestrais divinizados de guerreiros indígenas, de escravizados e exilados do Santo Ofício encontrou no Brasil terra fértil para a manutenção de seus poderes sob a via do sincretismo e dos Macaias, a cura, a maldição, a vingança pela via da espiritualidade alcançou a alcunha de diabólica. O culto sabático encontrou sua aliança com os espíritos da floresta e os voduns ancestrais.

A Quimbanda Brasileira, como verdadeiro culto de mão esquerda, assumiu conceitos cabalísticos, gnósticos anti-demiúrgicos que fazem jus às suas máscaras deíficas de associação ao Diabo e também ao grande senhor dos caminhos o orixá Exu, de quem os poderosos mortos tomam emprestado sua alcunha.
A Quimbanda é o culto do envenenamento do Coronel, da decapitação do nazareno, da liberdade individual, do empoderamento dos desgraçados, de honra àqueles que morreram nas fogueiras da inquisição, no machado do carrasco, nas forcas, no aço, na bala, na fome, na tortura e que tendo vivenciado a dor humana se divinizaram na senda adversária para guiar seus irmãos encarnados. Laroyê Exu, Exu é Mojubá. (TMM)

O mago, 2023
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“O Mago é o início da ação na jornada espiritual do tarot. Todas as ferramentas que simbolizam os quatro elementos estão ao seu dispor, incluso a mesa que tem uma de suas pernas como apoio. Os 22 arcanos do tarot tem sua correlação com a árvore da vida, o mago seria o 11º caminho, o da inteligência luminosa, Keter-Hockmah.
O tarot tem sua origem desconhecida, o mito mais antigo relaciona sua origem à tradição egípcia, do chamado Livro de Thoth. Em que Deus Thoth escondeu a sabedoria do mundo em um objeto de vício, o jogo das cartas.
Mas o tarot nos chega através de suas versões medievais francesa e italiana. A sabedoria dos arcanos e dos caminhos da vida transforma esse jogo de cartas em uma catedral que foi guardada e transmitida pelos antigos como toda tradição hermética de ouvido em ouvido até chegar a nós na era da disseminação indiscriminada de informação e desinformação.
No Brasil, existem teorias de que o primeiro baralho tenha chegado escondido na vinda dos jesuítas. De certo, é que as tradições mágicas da península ibérica e do mediterrâneo encontraram durante os séculos terra fértil no sincretismo com tradições indígenas e africanas no Brasil.” ✱

A guerra, a guerra cultural, a arte

O que estamos fazendo aqui? Acompanhando uma infindável quantidade de guerras cotidianas, uma guerra de notícias, vindas de todos os cantos do planeta, fake news cada vez mais frequentes, informações que revelam uma polarização de ideias – políticas, religiosas, sociais – que operam e acreditam em civilizações diferentes.
Os lugares da batalha estão demarcados, há séculos, e foram retratados nas tragédias épicas da literatura e da arte. E nessa batalha sempre houve um setor da humanidade que pulsa pela vida e outro que pulsa pela morte.

Entendemos a vida como parte da defesa de nossa civilização, o respeito pelo outro, pela natureza, pela evolução do conhecimento, da ciência, pela valorização da cultura. Do outro lado se articulam a censura, os cancelamentos, as inverdades, a catequização, o viver no excesso, a despeito da falta de tudo para o outro.
Com a tecnologia, o que mudou é a forma como enxergamos tudo isso, a velocidade e sua dimensão universal.

Esta edição traz vários artigos, entrevistas e reportagens que retratam, a partir de diferentes ângulos, diferentes formas de violência que se repetem e, ao mesmo tempo, como a arte e a cultura, ao longo da história, driblam e jogam na defesa e no ataque, fazendo da repetição o lugar do possível.

Em Paradoxos da Repetição, a psicanalista e escritora Dominique Fingermann sustenta:
“Não existe assunto mais eminentemente clínico para um psicanalista do que o problema da repetição. Motivo de tantos lamentos, a repetição parece estruturar nossa própria capacidade de sofrer, ela pode conduzir alguém a se engajar na experiência de uma análise, ela pode se tornar o inferno mais íntimo de cada um. (…) Cada análise pode aceder a esse ponto de virada, ou seja, mais além de sua redundância patética ou tediosa, extrair o alcance ético da repetição. Pois, se na psicanálise o fenômeno apresenta-se como um estraga prazer, a filosofia extrai dessa temporalidade paradoxal algo que volta, sempre atual e único, nunca passado, a arte e a música usam seus recursos para produzir o mais novo e surpreendente, e a poesia joga com seu ritmo para lançar mão da sua rima e de sua pulsação própria.”

Apresentamos, nas páginas 10, uma histórica correspondência entre o pai da física, Albert Einstein, e o médico e pai da psicanálise, Sigmund Freud. Estas cartas foram publicadas em 1933, em Paris, em inglês, francês e alemão, sob o título de Por que a guerra?
As reflexões nelas contidas faziam parte, quase cem anos atrás, das discussões tidas no fórum do Instituto Internacional de Cooperação Intelectual (IICI), fundado em 1926, em Paris, que tinha como objetivo “fortalecer a colaboração entre intelectuais de cultura e nacionalidade distintas, a fim de criar condições propícias ao surgimento de um novo humanismo, com o escopo de respaldar os esforços em prol da paz.” A Alemanha, que se preparava para o futuro imediato da Segunda Guerra Mundial, proibiu sua publicação.
Esta nova edição se debruça sobre conflitos aos quais continuamos expostos: Fabio Cypriano aborda as Guerras Culturais; Maria Hirszman relembra o Golpe de 1964 e seus ecos, com a entrevista do historiador João Cézar de Castro Rocha, que se dedicou a examinar os discursos da extrema direita na tentativa de compreender as razões do movimento contemporâneo.

Jotabê Medeiros escreve sobre a violência religiosa e traz um contundente depoimento do cineasta Luiz Bolognesie. Em uma entrevista a Fabio Cypriano, o artista Mauricio Dias, da dupla Dias & Riedweg, denuncia também a violência catequizadora.

A edição traz ainda as obras viscerais do artista maranhense Thiago Martins de Melo, uma reportagem de Leonor Amarante em meio às manifestações das mulheres mexicanas defendendo seus direitos e os investimentos culturais no Ceará – não só em Fortaleza, mas também em Juazeiro do Norte e no Crato, com a construção do Centro Cultural do Cariri. Iniciativas que emprestam o fôlego necessário para continuar caminhando. Boa leitura! ✱

Contra o apagamento fundamentalista, a força dos xamãs

Por Luiz Bolognesi

A violência evangélica, jesuíta, capuchinha e a agora neopentecostal protestante, que tem base nessa igreja protestante evangélica que vem dos Estados Unidos e que invade a América Latina a partir dos anos 1960 – começa, na verdade, nos anos 1950, mas é nos anos 1960 que ela invade –, que toma conta daqui, é um processo ideológico de dominação do capital. Esses neopentecostais também estão atacando as aldeias indígenas, os locais de religiosidade africana, os candomblés e as umbandas, e destruindo tudo, mas é um processo que começa no século 16, então a gente tem que ter essa visão histórica, retrospectiva.

Eu entendo que é um processo de extrema violência. Ao lado da violência de gênero, é o processo mais violento da América, dos mais violentos do Planeta da história do homo sapiens, porque o holocausto desses povos originários que eu tô relatando em meus filmes, e que começou com uma guerra biológica, foi consolidado por um processo ideológico-religioso, um processo de queimar mesmo, uma inquisição contra as religiosidades locais em que pajés foram queimados. Há relatos, nas cartas jesuíticas, de pegarem um pajé, em São Vicente (SP), botarem na boca de um canhão e darem um tiro de canhão na frente de todo mundo. Chamaram todos os tupiniquins daqui e disseram: “Ah, esse aqui é o fodão de vocês? Tá”. Amarraram o cara, botaram na boca do canhão e explodiram o canhão. Para todos verem aquilo, o corpo do cara estraçalhado, e aí falaram: “É assim que a gente faz com pajé de vocês”. 200, 300 tupiniquins viram aquilo. “Então, venham para nossa religião”. E era assim, um processo de dominação extremamente violento. E isso não acabou, continua.

O Ex-Pajé é um documentário em que a gente acompanha a vida de um pajé que está sendo trucidado pela chegada da igreja evangélica, e o filme é todo sobre isso, mas ele repercute, na verdade, o que vem acontecendo desde a chegada dos europeus, dos portugueses e dos franceses, principalmente. Porque os franceses também chegaram aqui com os capuchinhos, os padres capuchinhos, ao Rio de Janeiro e no Maranhão, e fizeram o mesmo trabalho de evangelização extremamente violenta que os jesuítas faziam no processo de colonização portuguesa. E há os relatos de ambos para atestar isso. A gente tem relatos da atuação dos capuchinhos no Maranhão, tem relato da atuação dos capuchinhos ali na Ilha do Governador, na Baía da Guanabara, com os missionários Jean de Léry (1536-1613) e o André Thevet (1516-1590), e lá no Maranhão, Claude D’Abbeville (m. 1632).

Na descrição que fizeram do processo de evangelização no Maranhão, eles relatam que queimaram pajés e xamãs. E a gente tem relatos dos jesuítas escrevendo pro papa, escrevendo também para o Inácio de Loyola (1491-1556), que era o chefe da congregação jesuíta. Loyola ficou um tempo na Espanha, depois esteve em Roma e as cartas de então eram dirigidas a ele e ao Papa, centenas de cartas que estão todas reunidas em correspondências avulsas dos jesuítas no século 16. Eu leio, li não todas, mas uma parte considerável delas, são três ou quatro volumes gigantes editados em italiano e português, dos quais eu tenho as duas edições.

São relatos impressionantes do processo de evangelização, nos quais eles descrevem com extrema violência o quanto o grande inimigo da evangelização eram os xamãs. Que eles conseguem vários “avanços”, mas que a resistência dos pajés era um negócio impressionante contra eles, e que portanto precisavam ser eliminados. Então, desde o século 16, na conquista da América, o foco consistiu em destruir a identidade cultural dos povos locais. E eles entendiam muito rapidamente a guerra. Os jesuítas eram estrategistas.

Não podemos esquecer que os jesuítas eles têm uma origem militar porque o Inácio de Loyola, esse padre (e eu acho que ele foi até beatificado) que fundou a congregação dos jesuítas, e recebeu muito dinheiro da Igreja no século 16, ele foi um militar. Ele lutou, não lembro se a favor do Reino de Castela, participou de tropas, ele liderou tropas. Então ele levou para a congregação jesuíta da igreja, que fundou, a Companhia de Jesus, um princípio de estratégias militares, de análise de diagnóstico de campo, de como agir. A estrutura dos jesuítas era muito militar; não é à toa que eles formaram exércitos indígenas, fizeram os Sete Povos das Missões, que foi altamente militarizado, e fizeram uma guerra de enfrentamento contra os espanhois que foi de interesse da Coroa Portuguesa, quando os espanhois tentaram entrar pelo sul do País para expandir o território numa guerra contra Portugal. E quem segurou a onda foram os jesuítas, com um exército de guaranis. Então, eles tinham essa estrutura militar. Isso já é, se eu não me engano, do século 17. Mas, antes disso, eles sempre trabalharam assim e essas cartas, que são muitas, têm vários relatos na Bahia, relatos em São Paulo, relatos no litoral de São Paulo, deles dizendo do processo de evangelização e aldeamento, que é como eles chamavam. A estratégia era trazer várias aldeias para o mesmo campo, para o mesmo território, para o mesmo lugar e evangelizar essa gente. Evangelizar, entenda, consistia em vender a ideia de Cristo e destruir as ideias da religiosidade anímica que havia aqui na América.

E eles tiveram trabalho. A pesquisa histórica e antropológica, com base nessas cartas originais, deixa muito claro pra gente que eles tiveram êxito nesse processo não porque as narrativas cristãs fossem tão fortes e melhores que as narrativas dos pajés. Não, aí eles tomavam um cacete. O próprio (Ailton) Krenak, o Viveiros de Castro, esse grande antropólogo, filósofo e pensador, eles falam que os povos originários são muito curiosos e abertos ao outro, diferentemente do processo da visão civilizatória europeia que é “o outro é alguém que eu temo e que eu preciso dominar, controlar e destruir”; os povos originários, não, eles são extremamente curiosos, eles querem provar, eles querem saborear, eles querem comer, eles querem foder, eles querem lamber, eles querem jantar, querem almoçar o outro, querem perguntar e até hoje é assim, você vai conviver com eles, eles começam a te fazer um milhão de perguntas, querem saber “como você vive, como são suas filhas? como são os seus filhos? como você transa? o que que você bebe? por que você bebe? por que que você não bebe?”. Eles são ultracuriosos, é muito legal isso. Era uma característica do processo, do encontro civilizatório, mas os europeus estavam o tempo todo nesse lugar do controle. Então, nas narrativas, os pajés ganhavam os indígenas; experimentavam os católicos mas voltavam para os hábitos deles. O problema começou quando veio a pandemia. O problema foi a “Covid”. Porque a Covid não começou agora, a Covid começou no século 16 com a chegada dos europeus. Só que a Covid chamava gripe, chamava sarampo, chamava catapora, chamava varíola, chamava rubéola: uma série de vírus que não havia aqui que dizimou os povos. E é aí que que a porca torce o rabo, que a coisa se inverteu: os pajés tinham um “plano de saúde”, a carteirinha do pajé resolvia tudo, ali tinha internação na rede, tinha todas as coisas da floresta, os pajés já sabiam fazer tudo com remédio da floresta.

Com curas da floresta e mais todo o tratamento anímico de rezas e tal, era muito saudável o processo aqui. Uma série de vermes de que os europeus sofriam, os indígenas não sofriam porque eles sabiam as curas estomacais, intestinais. Tinha berne aqui, uma série de mosquitos punha nos europeus os ovos, a carne deles criando ovinho de bicho de mosquito. E há mil relatos dos indígenas, contando que os pajés curavam isso com veneno de aranha. Agora estão usando veneno de aranha pra curar câncer (há uma nova pesquisa do Instituto Butantã que mostra o potencial do veneno de aranha contra a leucemia).

Então, os pajés já dominavam isso, só que os pajés não tinham conhecimento contra “Covid”. Ele não sabiam lidar contra catapora, varíola, sarampo, não havia esse conhecimento. Então quando esses surtos chegaram, morriam aldeias inteiras de pandemia com a covid da época, que era gripe.

E aí tem trocentos relatos nessas cartas avulsas jesuíticas, trocentos relatos do Padre Manoel da Nóbrega, do Padre Anchieta e mais uma caralhada de jesuítas contando que tava todo mundo morrendo nos aldeamentos nas aldeias em volta. Foi uma corrida que matou mais que a Covid, dizimou os povos originários. E o que os evangelizadores falavam? O que que esses filhos da puta falavam? “Vocês estão sendo castigados porque não aceitaram Jesus; o pajé de vocês é um demônio, e o meu xapiri, o meu grande Espírito, que é Jesus, está matando vocês todos”. Na cosmogonia dos povos originários, havia uma guerra, e o próprio Pierre Clasters (1934-1977) fala isso: o pajé é o xamã, ele é um guerreiro espiritual, ele até vive em guerra contra o pajé do lugar vizinho. Se cai uma tempestade que derruba, se o vento arranca a palhoça de uma aldeia, eles acham que foi o pajé da outra aldeia inimiga que mandou aquele vento e derrubou aqui, portanto, é sinal de que o pajé deles é fraco. Aí, ou trocavam de pajé ou até matavam um pajé, às vezes. “Pô, você não nos protege”. Havia uma guerra espiritual e as tragédias ambientais, as tragédias climáticas, tudo era muito atribuído à força ou a fraqueza do seu pajé. Então, quando os jesuítas chegam dizendo “vocês estão sendo castigados pelo meu Deus porque vocês não seguem Jesus”, eles acreditavam e migravam pro catolicismo. Isso até hoje.

O meu filme Ex-Pajé é um comentário feito a quente enquanto está acontecendo esse processo de destruição do pajé, ele sendo humilhado, sendo destituído do seu lugar de poder e força, sendo tratado como um demônio. E de como as rezas, os cantos, as flautas mágicas, que até ontem eram a cura, eram a transcendência do povo Paiter Suruí, iam virando algo do Diabo, e isso na boca de um pastor que chegou ali com toda essa narrativa, com remédios, aquilo que derrubou o pajé Perpera. O contato dos Paiter Suruí se deu apenas nos anos 1960, e o contato trouxe doenças. Eram mais ou menos 800 Paiter Suruí quando foi feito o contato em 1969. Até 1972, morreram mais de 400 de gripe, sarampo, catapora, a mesma coisa do século 16. E aí chega o evangelizador, esse que tá no filme, no final dos anos 1970, trazendo as curas com remédio, antibiótico, aspirina, dizendo que o pajé é um demônio. Esse pastor alemão (que não é o cachorro, é o pastor mesmo), que ele veio da Alemanha, ele pegou um grupo de indígenas evangelizados e foi de casa em casa queimando as redes, dizendo “quem é cristão dorme em cama, em leitos horizontais”, e queimou as redes. Eles tinham até então um lugar de reza Paiter Suruí, que era um um pauzinho com uma pena que era bem não era benzido, mas mantinham em casa como um centro espiritual; também foi queimado. Então esse processo que eu relato no Ex-Pajé uma certa sutileza, ele é a ponta de um iceberg de uma violência extrema que está na origem de todo o processo colonial e do sucesso da conquista violenta europeia.

Porque nas guerras locais, os indígenas, nos primeiros 30 anos, ganharam todas as batalhas; eles passaram a perder quando a Covid se instalou e eles ficaram extremamente fragilizados, e aí começaram a migrar pra religiosidade do invasor entendendo que aquele invasor tinha uma força espiritual que eles não conheciam – e não era força espiritual, era guerra biológica. E aí começam aderir e fazer acordo e fazer guerras do lado dos portugueses.

Foi isso que eu vi entre os Paiter Suruí (grupo indígena que habita os estados de Rondônia e Mato Grosso). Um espectador alemão, na sessão do Festival de Berlim em que o filme Ex-Pajé ganhou lá o Prêmio Especial do Júri (em 2018), numa sessão para 800 pessoas, perguntou pra Cabena, a minha personagem: “Por que, se foi curada pelo pajé, você voltou pra igreja evangélica?”. E ela respondeu: “Porque eu tenho medo de ir para o inferno”. O que os evangelizadores jesuítas e capuchinhos diziam aos povos originários é que eles estavam morrendo das covids porque eles não aceitavam Jesus, então, eles tinham que vir para o lado de Jesus e quando eles vinham para o lado de Jesus era: “Destrua o seu pajé! Porque ele é o demônio”.

Na hora em que a Cadena foi picada por uma cobra, enquanto está à beira da morte no hospital, e os médicos não estão dando conta, os evangelizados chamam o pajé Perpera, ele vai lá, reza e salva ela. E ela conta que já estava indo pra área dos mortos, já estava vendo o sogro dela morto, os parentes dela mortos, já estava chegando à aldeia dos mortos. Ela contou que ouviu então o canto do Perpera quando ela estava agonizando no hospital e o canto do Perpétua fez com que o sogro dela que a estava recebendo na aldeia dos Mortos virasse para ela e falasse: “Não Cadena, você volte para lá porque você tem muitos netos meus que ainda precisam de você, então você não vai vir para o Dia dos Mortos. Volte”. E o caminho de volta foi seguindo o canto do Perpera. Então, na hora do vamos ver, os pajés resolvem. São os pajés que vão salvar o Brasil do apocalipse que está vindo aí. O futuro é ancestral ou então não haverá futuro. Quando eu fiz A Última Floresta (documentário de 2021), que também é um filme sobre isso, foi para acompanhar um grande pajé fortíssimo, que é o Davi Kopenawa, um grande xamã.

Kopenawa está no epicentro da resistência, ele não aceitou a igreja evangélica. Ele foi evangelizado. O nome dele, Davi, foi colocado por um pastor branco. Ele esteve quase que na iminência de se tornar pastor, e aí teve os insights de que aquilo era uma monstruosidade. Fez o enfrentamento, expulsou os evangélicos da sua área, de sua aldeia, não aceita isso e faz uma luta de resistência que já se não se tornou mais uma resistência só dele; a resistência desse xamã é uma resistência da floresta. Ele está salvando os rios do mercúrio. Ele está salvando o Brasil do apocalipse. Esse é o lugar do xamã. Essa luta não acabou, eles não foram destruídos, eles são os vencedores. Só que é uma luta muito braba, muito difícil. E eu, como artista, estou na minha trincheira, com a minha metralhadora que é a câmera de cinema, relatando tudo isso trazendo consciência. É assim que se faz a resistência.

Por fim, no outro filme que eu fiz, Uma História de Amor e Fúria (2013), um desenho animado que ganhou o Festival de Anecy, o mais importante do mundo, eu abordo a visão de um guerreiro tupinambá do século 16 que é tornado imortal pelo pajé. Essa é a história do filme, que atravessa quatro, cinco séculos de história do Brasil, até chegar no ano de 2096. O problema em 2096 é que a commodity mais cara é a água, e o presidente da república é o Pastor Armando. Então, por aí você vê a minha leitura diagnóstica prospectiva, de tentar interpretar o que vem acontecendo, desemboca nessa distopia de 2096, projetando que a gente vai ter uma guerra pela água, que milícias privatizadas terceirizadas farão a segurança e matarão crianças que roubam água dos dutos de água.
O presidente da República é um pastor evangélico. Por que a gente chega nesse prognóstico? Porque a gente tá vivendo no Brasil um projeto e um processo que vêm desde os jesuítas, passando pela chegada dos neopentecostais, que tem a ver com aquele livro A Ética Protestante o Espírito do Capitalismo, do Max Weber, no qual ele explica de que modo a ética da religião protestante serviu ao fortalecimento do capitalismo americano, e a chegada do capitalismo americano como hegemônica, o quanto isso se deve ao triunfo da ética protestante.

E, depois dos Estados Unidos, espalhou-se a filosofia de prosperidade, do controle dos prazeres, da poupança, de guardar o dinheiro quase como um caminho para comprar o seu lugar no céu. De como essa ideia serviu ao capitalismo americano e como isso foi jogado aqui na nossa América. Nesse processo, a Teologia da Libertação Católica, que tinha uma visão de desigualdade econômica, social, uma visão da violência, do processo colonial, e isso levou inclusive a esquerda a chegar ao poder. Mas aí se dá uma bobeada gigantesca da esquerda. Talvez a maior bobeada da esquerda na história do Novo Mundo é que ela chegou ao poder e esqueceu essa conexão extremamente importante, que era a Teologia da Libertação, deixando que ela fosse substituída pela Teologia da Prosperidade dos neopentecostais, que vêm com uma outra narrativa que serve a direita e agora a gente está vendo a extrema direita aprendeu a lidar com isso. Existe um projeto ligado a segmentos de pensamento extremamente conservador, que é o que mais cresce no planeta, essa ideologia e essa cosmovisão ultra conservadora que tem a ver com uma crise do homo sapiens. Uma crise de recursos que o homo sapiens está enfrentando nesse momento, algo que ele nunca viu até agora. O homem sempre encontrou na natureza recursos para poder predar e seguir numa certa construção de um modo de vida confortável. Agora, os recursos findaram, e o homem se vê na iminência de matar o próprio sapiens para poder competir pelos recursos. Já está faltando água e a água vai ser disputada e o homem sabe que agora não se trata mais de matar neandertal, lobos, panteras, onças, javalis, insetos, biomas inteiros para sobreviver. Ele vai ter que matar o próprio sapiens. Já está acontecendo, né? Isso já está rolando e dentro desse pensamento ideológico da extrema direita, que já percebeu isso, ela precisa identificar o outro e tomar a linha de frente, se armar, porque a ideia vai ser eliminar o outro. Esse é o processo da extrema direita, e nesse sentido eles estão aproveitando muito bem esse processo de conquista de corações e mentes pela via da igreja neoentecostal, criando a tendência de criar um estado fundamentalista, como o Irã. Sim, o Brasil está virando o Irã se a gente não tomar cuidado, se a gente não criar dispositivos (de contenção). Se a gente não pensar num enfrentamento em grande escala para manter o estado laico, em 15 ou 20 anos nós vamos entrar em um estado fundamentalista. Veja por exemplo o caso do Senado brasileiro. Há cultos evangélicos lá dentro. Tudo bem? Pode ser. Mas e seu quisesse fazer um trabalho de macumba numa encruzilhada de corredores do Senado. Eu poderia? Acho que não. Então, a gente já está nesse processo. O estado laico está extremamente ameaçado e a gente tá partindo para essa igreja evangélica fundamentalista com narrativas de ódio, de perseguição ao outro, de “apedreja, mata, assassina”, e nas comunidades já estão estão matando gays, estão matando mães de santo, estão queimando terreiros, casas de rezas indígenas pelo país inteiro, então é um processo é de uma extrema violência e a gente tá dormindo.

Não se trata de focar e dizer que a igreja evangélica é um inimigo, trata-se de dar luz e de visibilidade ao que está acontecendo, o processo que está acontecendo e quais são as consequências que isso vai ter para que as pessoas possam fazer suas escolhas. Um exemplo de estado fundamentalista é o Irã, onde as mulheres têm que tampar o rosto, as mulheres são enforcadas se deixam o rosto delas à vista, o cabelo aparecendo. É para isso que a gente tá caminhando. Eu conheço, tenho amigos meus da minha juventude lá no sul da Bahia que jogavam bola comigo e que hoje não jogam mais bola porque a igreja não deixa. Não vão mais no forró porque a igreja não deixa as mulheres, então, nem pensar. Amigo meu, aluno de capoeira que virou mestre de capoeira, que se tornou um dos maiores capoeiristas ali da região sul da Bahia e que parou a capoeira porque o pastor falou que capoeira não é coisa que se faça, que desrespeita Jesus. E aí o Grande Mestre de capoeira do Sul da Bahia abandona sua arte por causa da igreja. É isso que está acontecendo no Brasil, a gente tá partindo pra configuração de um Estado fundamentalista, de uma igreja fundamentalista.

*O roteirista e cineasta Luiz Bolognesi dirigiu, entre outras produções, o longa-metragem de animação Uma História de Amor e Fúria (2013), Melhor Longa Metragem em Annecy (França); o filme Ex-Pajé (2018), menção honrosa de melhor documentário do Festival de Berlim 2018, Melhor Fotografia no Festival Présence Autochtone (Canadá, 2018) e Hugo de Prata no Festival Internacional de Chicago (2018), além de Melhor filme no festival de documentário É Tudo Verdade 2018. Seu mais recente trabalho, A Última Floresta, sobre uma aldeia yanomami isolada, teve estreia mundial no Festival de Berlim em 2021. ✱

Repetem. É bom lembrar

Fantasmas da esperança, 2018

O golpe militar de 1º de abril de 1964 inaugurou um longo período de autoritarismo, repressão, desmandos e violência no país. Oficialmente, o regime durou 21 anos. Mas seus ecos e consequências se fazem sentir até hoje, intensificados pelos recentes desvios autoritários do governo Jair Bolsonaro, que culminaram com a tentativa fracassada de sublevação e tomada de poder de 8 de janeiro de 2023. O ressurgimento de discursos (e ações) de caráter autoritário acabou por ampliar a dimensão simbólica do aniversário de 60 anos do movimento civil-militar, reforçando ainda mais a importância dos eventos planejados para refletir e tratar dos feitos e efeitos do golpe.

Antes de mais nada, existe uma rede de instituições espalhadas pelo país que tem por função primordial investigar e denunciar os desmandos do período e que planejam ações de peso para este ano, com a realização de exposições, debates e publicações. A esse esforço permanente se somam mostras ocasionais, com forte sintonia com o tema, ou criações poéticas pontuais, esforços de reflexão e arregimentação de conteúdos que ajudam a iluminar, em termos históricos e conceituais, esses momentos de inflexão da história. Concretiza-se assim um esforço prático e construtivo de se rememorar o passado como ferramenta – teórica e política – para que ele não nos assombre permanentemente, combatendo o negacionismo e o recalque.

O Memorial da Resistência de São Paulo, além de dar continuidade a sua programação normal, se espraiará para além de seus limites, realizando eventos em parceria com outras instituições, como sua vizinha Estação Pinacoteca. No terceiro andar do prédio que foi ocupado pelo DEOPS, acontecerá uma ampla mostra da coleção de Alípio Freire, que foi recentemente doada ao Memorial e que reúne uma serie de memórias da luta, da prisão e da resistência produzidos pelo jornalista, artista e militante político. O Memorial também realiza parceria com a PUC-SP, que leva ao espaço do museu a exposição Resistências, uma exposição que conta a trajetória da PUC e trata de momentos importantes de resistência da instituição aos desmandos da ditadura.

O Memorial da Democracia de Pernambuco, instituição inaugurada no final de 2022, também programou uma série de ações rememorativas da data da sublevação. Em primeiro de abril será inaugurada a praça da democracia em Abreu e Lima (PE), mesmo local em que aconteceu o primeiro ato do movimento pelas Diretas Já, e realizado um ato em favor da democracia e repúdio à ditadura. Nos dias subsequentes, serão abertos no novo espaço uma mostra literária e a exposição Arte e Resistência.

Outra instituição cuja trajetória está intimamente ligada ao antagonismo à ditadura – sendo inclusive tombada pelo município e pelo estado de São Paulo como “lugar de memória da resistência” – é o Centro MariAntonia. Em cartaz a partir do dia 19 de março, a mostra “Paisagem e poder: construções do Brasil na ditadura”, se debruça sobre um aspecto fundamental, porém menos elaborado, dos efeitos deixados pelos mais de 20 anos de autoritarismo no País: a forma como os sucessivos governos militares alteraram a espacialidade no país, consolidando um modelo de maior integração regional, instituições muito centralizadas de planejamento e intensificação das desigualdades.

“Eles agiram com mão pesada, impondo um modelo de desenvolvimento a qualquer custo e sufocando muitas vozes”, explica José Lira, diretor do MariAntonia e curador da mostra juntamente com outros pesquisadores convidados e – como ele – vinculados à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Trata-se de uma exposição histórica, documental, que se dividirá em quatro eixos principais, que funcionam como camadas de um mesmo processo: a transformação nas cidades e nos modos de morar, com o surgimento das periferias e a generalização das favelas por todo o país; a relação entre industrialização e mineração; projetos de integração e expansão regional, que acabam sendo responsáveis pela prosperidade material do centro-oeste e da Amazonia e consolida no nordeste um modelo agropecuário amparado nas velhas oligarquias; e o desenvolvimento das rodovias, estradas, como forma de promover a integração nacional e exploração dos recursos. Além da mostra, que também conta com uma sala específica sobre São Paulo, serão realizados uma série de eventos, debates, seminários e um intenso trabalho educativo, oferecendo visitas a escolas e universidades, potencializando os efeitos de uma pesquisa que se espraia por muitos temas, como geografia, história, ciências sociais e naturais.

Já o CCBB trará, em suas quatro sedes (São Paulo, Belo Horizonte, Brasília e Rio de Janeiro), a exposição Arte Subdesenvolvida. Segundo o curador Moacir dos Anjos trata-se de uma investigação, a partir do campo da arte e da cultura, sobre os desafios do subdesenvolvimento no Brasil e núcleos importantes da mostra tratam dos efeitos e resistências à violência do golpe e de seu posterior endurecimento, com o Ato Institucional n.o 5, como os textos Eztetyka da Fome, de Glauber Rocha, e Brasil Diarréia, de Hélio Oiticica. Dos Anjos também está preparando para a Fundação Joaquim Nabuco, em Recife, uma mostra histórica sobre o Movimento de Cultura Popular (MCP), que atuou nos primeiros anos da década de 1960, até ser fechado pelo golpe. Serão mais de 60 fotografias e mais de 100 documentos, cartazes, folders, obras de arte, publicações de época etc. pela primeira vez reunidos. Aberta em abril, a mostra permanecerá em cartaz por seis meses.

A conexão entre memória e apagamento, construção e desconstrução de discursos ideológicos que perpassam as mais diferentes dimensões da sociedade não é um campo fértil de trabalho apenas para pesquisadores, mas também para os artistas. Em outubro do ano passado, Rivane Neuenschwander exibiu em São Paulo um conjunto de obras em que revisita memórias e traumas conectados ao uso político do medo, dando continuidade a uma pesquisa que iniciou em 2014 acerca das memórias e temores infantis. Parte dessa pesquisa também será mostrada na grande exposição que a artista deve fazer a partir de outubro, em Inhotim.

Durante muito tempo Rivane colecionou depoimentos de memórias sobre o período da ditadura e algumas dessas histórias foram ressignificadas na forma de trabalhos. “Funciona como um novelo de lá que você vai desenrolando”, conta a artista. Há histórias impressionantes, como a referência à prisão e tortura de nove chineses pouco antes do golpe, acusados de subversão e de tentar “assassinar” o então governador da Guanabara, Carlos Lacerda, com agulhas de acupuntura. Seria risível se não fosse dramático, gerando uma interessante metáfora acerca dos “pontos de tensão” do organismo social brasileiro. Imprensa alternativa, cumplicidade do empresariado com o golpe, perseguição a religiões de matriz africana estão entre os fios que a artista segue, recriando simbolicamente, o que ela chama de “retrato subjetivo do Brasil daquela época”, relembrando que uma violência que reverbera ainda. E não apenas no campo simbólico.

Às vezes a ajuda do acaso também contribui para que o encontro entre índices de memória se transforme em reflexão poética sobre traumas sociais. É o caso, por exemplo, do Juliana Kase. Através de um amigo, chegaram a suas mãos um conjunto amplo de clichês de propaganda do regime militar, que eram distribuídos por todo o país para veiculação de propaganda dos “feitos” do regime. Ela reimprimiu todo esse material e desenvolveu uma longa pesquisa, exibida há alguns anos no Paço das Artes. “A estética vira ética”, sintetizou a artista, enfatizando: “porque mesmo os que não foram vitimados por torturas ou violências praticadas pelo Estado também são vítimas de um condicionamento ideológico e de um embrutecimento das relações humanas sem se dar conta.” ✱


Instituto MariAntonia/mostra Paisagem e Poder

Exposição mostra as marcas da intervenção militar no país, que buscou uma maior integração regional, impondo um modelo de desenvolvimento a qualquer custo e intensificando as desigualdades. A mostra tem quatro núcleos: a transformação nas cidades e nos modos de morar, com o surgimento das periferias e a generalização das favelas por todo o país; a relação entre industrialização e mineração; projetos de integração e expansão regional, que acabam sendo responsáveis pela prosperidade material do centro-oeste e da Amazonia e consolida no nordeste um modelo agropecuário amparado nas velhas oligarquias; e o desenvolvimento das rodovias, estradas, como forma de promover a integração nacional e exploração dos recursos.


Que país é este? A câmera de Jorge Bodanzky durante a ditadura brasileira, 1964-1985/IMS-SP

Exposição reúne produção visual do cineasta Jorge Bodanzky (fotos e filmes) ao longo do período da ditadura. Nela, Bodanzky desconstrói a ideia de progresso propagandeada pelos governos militares e expõe questões fundamentais como a repressão, a violência e a destruição ambiental. Além da exposição, acontece também uma retrospectiva dos filmes do autor de títulos como Iracema, uma Transa Amazônica.


Resistências, na PUC-SP

Exposição no Memorial da Resistência, no Largo General Osório reúne imagens da invasão ocorrida em setembro de 1977 à PUC de São Paulo. Soldados da ditadura comandados pelo Coronel Erasmo Dias invadiram a universidade. Cerca de mil estudantes foram presos, alguns feridos. Nas fotos de Helio Campos Mello acima, estudantes e policiais se enfrentam e, dentro do DCE vandalizado, um soldado mexe e examina documentos.


Sol fulgurante: arquivos de vida e resistência/Estação Pinacoteca

A exposição parte da Coleção Alípio Freire, doada ao Memorial da Resistência em 2023, em diálogo com obras contemporâneas feitas por pessoas em situação de cárcere, além de obras pertencentes a coleção da Pinacoteca de São Paulo e dos coletivos Mulheres Possíveis e Bajubá.

 

Colaboradores da edição #66

FABIO CYPRIANO, crítico de arte e jornalista, é diretor da Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes da PUC-SP e faz parte do conselho editorial da ARTE!Brasileiros. Cypriano escreve sobre as guerras culturais nas redes sociais e também sobre o filme O Avesso do Céu, da dupla Dias & Riedweg.

MARIA HIRSZMAN é jornalista e crítica de arte. Trabalhou no Jornal da Tarde e em O Estado de São Paulo. É pesquisadora em história da arte, com mestrado pela USP. Nesta edição, Maria escreve sobre os eventos que relembram o golpe de 1964 e entrevista o historiador João Cezar de Castro Rocha.

LEONOR AMARANTE é jornalista, curadora e editora. Trabalhou no Jornal O Estado de S.Paulo, na revista Veja, na TV Cultura e no Memorial da América Latina. Nesta edição, é de sua autoria a matéria a respeito da cidade mexicana de Tijuana.

TALES AB’SÁBER é psicanalista, ensaísta e cineasta, professor de filosofia da Psicanálise na Universidade Federal de São Paulo. Ganhador de dois prêmios Jabutis, Ab’Sáber é autor de, entre outros, Lulismo, carisma pop e cultura anticrítica (Hedra, 2011). Nesta edição, responde ao questionamento do crítico João Cezar de Castro Rocha sobre o seu documentário Intervenção, Amor não quer dizer grande coisa.

JOTABÊ MEDEIROS é repórter e biógrafo, entre outros, do cantor Belchior. Foi repórter de O Estado de S.Paulo e da Folha de S.Paulo, entre outros. Jotabê assina matéria sobre as estratégias de poder e preconceito das igrejas.

Fotos: arquivo pessoal

Um oásis no semiárido nordestino

Juazeiro do Norte, no Ceará, encontra-se em uma região curiosa, no centro do Nordeste, perto das divisas com Piauí, Pernambuco e Paraíba. Ficou de fora das rotas de colonizadores que levavam todo tipo de minerais do Brasil para Europa. Em compensação, o clima permitia o pastoreio e, com isso, uma rica produção de couro.

Essa região forma uma espécie de vale, rodeado por serras e uma floresta, a primeira a ser preservada no Brasil pela Unesco, a Florestal Nacional do Araripe-Apodi, que é administrada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
Ela recebeu e recebe diferentes migrações nordestinas, mas sua maior influência veio da presença do sacerdote católico, nascido em 1844, no Crato, Cícero Romão Batista, conhecido como Padre Cícero ou Padim Ciço.

Expulso da igreja católica tradicional pela sua adesão ao sincretismo e por seu respeito a outras religiões, consideradas como heresias, ele estimulou, junto à população da cidade, a ideia de que em cada casa era necessário ter um altar na frente e um ateliê no fundo. Entendendo por ateliê um espaço para tudo que se refere ao “fazer”. Sejam comidas, máscaras, brinquedos, esculturas, instrumentos musicais, ferramentas. Um educador respeitadíssimo e tido como referência de comportamento social.

Essa talvez seja uma das explicações para a sensação de estarmos no meio de uma sociedade excepcionalmente horizontal, aparentemente parada no tempo, quase pré-industrial. De lá para cá não se instalaram grandes fábricas na periferia e, com isso, não se criou uma classe operária resultante de uma burguesia tradicional, aquela da linha de produção, que bate ponto com cartão. A maioria trabalha nos serviços, na educação, no comércio e no artesanato. É uma sociedade que respeita e cultua os mestres, cidadãos que trouxeram para a comunidade suas histórias familiares de cultura popular.

Em 2003 foi decretada a Lei Tesouros Vivos, que reconhece mais de 120 mestres da região e lhes outorga uma bolsa vitalícia com um salário mínimo, uma espécie de aposentadoria que lhes permite continuar passando sua sabedoria e serem uma referência para os jovens. Dezenas de artesãos oferecem seus trabalhos no Centro Mestre Noza, Associação dos Artesãos de Juazeiro do Norte.
Na Floresta Nacional, o Mestre Galdino, especialista em biodiversidade, conhece tudo sobre animais, plantas medicinais, flores e abelhas e se tornou um dos guias mais importantes da região.

Em Potengi, ao lado da Lagoa de Sassaré, Mestre Antônio Luiz, o mais antigo representante do Reisado do Couro (uma das tradições criadas junto ao Reisado do Congo), nascido em 1957, ensina os rituais para as novas gerações que aprendem a “brincar” com as mesmas máscaras, vestimentas e os entremeios, construídos ainda em 1978.
A lenda do Reisado originalmente é europeia, aqui no Brasil é revisitada nos bairros mais pobres desde o Século XIX, onde, através de “caretas”, máscaras típicas, as crianças se transformam em reis durante as apresentações.

No Crato, o Centro Cultural do Cariri Sérvulo Esmeraldo foi erguido durante a pandemia, inaugurado no dia 1º de abril de 2022 e integra a rede de equipamentos culturais da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará. Está instalado um prédio histórico desativado, de cerca de 50 mil metros quadrados, construído na década de 1940 para abrigar o Seminário da Ordem da Sagrada Família de ensino religioso e fechado em 1969. A partir de 1973 funcionou como o Hospital Manoel de Abreu e acabou sendo desativado em 2014.
“O Centro Cultural do Carirí é gerenciado através de uma parceria entre a Secretaria de Cultura do Governo do Ceará, a Secult Ceará e o Instituto Mirante de Cultura e Arte, que entende a necessidade de investir como política pública na educação, na saúde, no território, numa estratégia de sobrevivência onde a Cultura é o resultado de diversas ações estruturais para o desenvolvimento humano”, diz Rosely Nakagawa, diretora do Centro Cultural do Cariri, criou a Galeria Fotoptica com Thomas Farkas em 1979, é curadora e gestora cultural, e foi uma das primeiras curadoras do SESC Pompéia em São Paulo na década de 1980.

O Centro, com apoio da população, de pécnicos e profissionais das universidades, de institutos e associações, tornou-se uma fonte de aprendizado e trabalho para a região. Abriga salas de última geração de rádio, design, ateliês de pintura, desenho e escultura. Possui um espaço totalmente equipado para teatro e shows, o chamado Palco Escola, dirigido por Américo Córdula, que ensina a presença cênica, trazendo a força da ancestralidade, através de performances, do teatro e da dança.
As salas expositivas apresentam hoje três mostras que se relacionam com a história e memória do lugar. Esta é uma intenção clara da diretora do centro e do curador Bitu Cassundé, gerente de Patrimônio e Memória.

A experiência parece ser colaborativa, como deveria ser sempre, abriga artistas e curadores que participaram da construção do centro, como Luiz Santos e Carlos Henrique Soares, que montaram Amostra Prenascimento, com obras criadas a partir de materiais da demolição do prédio antigo.

A exposição do cearense Efrain Almeida, Encarnado, reúne, além das suas tradicionais esculturas, uma sequência de pinturas especialmente desenvolvidas para as comemorações dos dois anos do centro.

O curador de fotografia, escritor e editor Diógenes Moura foi convidado para revisitar a exposição montada inicialmente em 2018, para o Fotofestival SOLAR, realizado na cidade de Fortaleza e que posteriormente foi apresentada no Museu Afro Brasil em São Paulo, adicionando temas como a tragédia nacional provocada pela pandemia de covid-19, as queimadas na Amazônia. Em território caririense, com mais de 300 fotografias, Terra em Transe ampliou o retrato de um país marcado por enormes contradições.

“Para a atualização da exposição no Centro Cultural, a edição foi feita ao lado do fotógrafo Allan Bastos. (…) Terra em Transe é uma exposição feita para magoar, silenciosa, sem piedade a respeito do grande abismo que é o Brasil. Por isso mesmo, cada fotografia necessita de tempo para ser vista. É uma exposição contrária ao mundo da rapidez”.
O Centro Cutural do Carirí é um espaço precioso, que recebe rodas de conversa, piqueniques no seu parque, shows de música ao ar livre, uma iniciativa digna de ser contada e sustentada.

Agradecimentos:
A toda a equipe que nos recebeu, solícita e cheia de histórias para contar. Gente que gosta do que faz. Obrigada Bibiana Belisário, uma das gerentes de comunicação mais competentes que conheci; a Samuel Macedo, nosso motorista, fotógrafo indicado ao Prêmio Pipa; a Pamela Quiros e Aécio Diniz, responsáveis pela futura inauguração da rádio, e a todos os que nos acompanharam. A Rosely Nakagawa, pela sua atuação impecável e pelo convite, e a Tiago Santana, diretor-presidente do Instituto Mirante de Cultura e Arte.

A civilização em disputa

Imagens criadas por Inteligência Artificial usadas nas redes sociais para divulgar a manifestação realizada em fevereiro de 2024 na Avenida Paulista em apoio a Bolsonaro: mescla perigosa e passadista de conservadorismo, fé e patriotismo

O historiador e professor de literatura comparada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, João Cezar de Castro Rocha, dedicou-se a examinar o discurso da extrema direita na tentativa de compreender as razões do movimento, suas estratégias e os caminhos que levaram à radicalização, em todo o mundo e particularmente no Brasil. País que, segundo ele, seria “um laboratório mundial de criação metódica da realidade paralela”. Sintetizada em livros como Guerra Cultural e Retórica do Ódio, de 2021, e Bolsonarismo: da Guerra Cultural ao Terrorismo Doméstico, de 2023, sua análise trata o discurso radicalizado como um processo narrativo e sugere caminhos de interpretação e enfrentamento por meio do diálogo e do afeto. Em entrevista à arte!brasileiros, ele fala sobre as origens e desdobramentos do uso da retórica do ódio, que combina negação absoluta da diversidade, caos cognitivo e criação de uma midiosfera perversa, fortalecendo um discurso autoritário e teocrático de poder.

arte!✱ – A Guerra Cultural é uma das marcas da nossa história recente. Como você define o fenômeno?

João Cezar de Castro Rocha – Vamos pensar juntos. A guerra cultural é uma ponta de lança da extrema direita transnacional e é um movimento muito bem articulado. A ideia central é que, para realmente chegar ao poder, é preciso fazê-lo através da conquista de corações e mentes. Ou seja, através da cultura. Daí a extrema direita no mundo inteiro tem como alvos preferenciais a imprensa livre, a arte e a universidade: instâncias críticas de reflexão sobre a realidade. É uma espécie de leitura enviesada, perversa, do conceito de hegemonia do Antonio Gramsci. Em 1992, Pat Buchanan (que se candidatou às primárias presidenciais do Partido Republicano) surpreendeu o mundo ao dizer em seu discurso que aquela não era uma eleição como as outras: “We are fighting for the soul of America”, diz ele literalmente. A comparação aqui seria com a fala de Michelle Bolsonaro na manifestação de 25 de fevereiro último, na Paulista.

arte! – Eles repetem isso o tempo todo, buscando alimentar essa sensação de novidade, pressão e guerra, para que não abaixem a guarda.

O tempo todo. É uma guerra pela cultura. E isso tem consequências tremendas. Porque, se é uma guerra, nós não estamos lidando com o outro, o diferente, o diverso. Estamos lidando com o inimigo. Numa guerra, só há uma forma de lidar com o inimigo. Eliminá-lo.

arte!✱ – E como nós, vistos como inimigo, podemos combater esse ataque? Qual é o seu método?

Em primeiro lugar, temos que ter consciência de que essa guerra está em curso. Isso é importante porque, por vezes, tudo parece tão delirante, tão afastado da realidade, que nossa tendência é não prestar atenção nos discursos articulados. Aqui, eu creio, entra a minha colaboração. Tenho agora discutido muito a Teologia do Domínio. Não sou teólogo, há muitas pessoas no Brasil que conhece o assunto duzentas vezes mais do que eu. A contribuição que eu tento dar é analisar cuidadosamente o discurso e a tradução do projeto por trás daquele discurso. Trabalho os textos minuciosamente, lendo duas, três, cinco vezes, passo às vezes anos pensando, procurando elos que não são visíveis no primeiro momento.

arte!✱ – Seria quase uma análise literária do fenômeno?

O que eu tento fazer é analisar cuidadosamente os discursos e, como eu tenho uma formação de historiador, procuro sempre contextualizá-los no longo prazo, numa longa duração. A guerra cultural, num primeiro momento, é uma reação à contracultura nos Estados Unidos e também na Europa. Na França, por exemplo, é uma reação a maio de 68. Nos Estados Unidos, ao movimento hippie, mas também aos Panteras Negras. A contracultura, como movimento, acabou sendo assimilada pelo próprio capitalismo que contestava. Mas a contracultura como atitude, afetava a base do sistema capitalista. Abria mão da propriedade privada em todos os níveis, especialmente nas relações pessoais; a contracultura considerava como valor máximo a experiência e não a posse, e não a riqueza. Riqueza significava uma experiência rica e não conta de banco. Ela propunha também uma transformação radical nas relações interpessoais, a maneira como mulher se relacionava com o marido, etc. E a contracultura foi identificada na guerra cultural sobretudo à escola de Frankfurt. E isso tem uma razão concreta: na Segunda Guerra foram para os Estados Unidos os mais importantes pensadores da Escola de Frankfurt: Adorno, Horkheimer, Lowenthal, Herbert Marcuse. Se os primeiros voltaram para a Alemanha, Marcuse ficou na California, na Universidade de San Diego. Você sabe quem ele teve como aluna? Angela Davis! Marcuse escreveu obras que foram absolutamente icônicas e fundamentais para o movimento de 68. De novo, o que eu tento fazer é estabelecer esses elos que são quase narrativos, quase uma forma literária de abordar a questão. Steve Bannon tem um documentário, Generation Zero, que discute a bolha financeira, a crise imobiliária. Você sabe de quem é, para ele, a culpa da crise de 2008?

É da Escola de Frankfurt! Por que essa obsessão? Porque Marcuse, no final dos anos 60 era o inspirador da contracultura, o guru da juventude norte-americana, da juventude em Paris. A guerra cultural parte do princípio de que o que está em jogo, de fato, é uma batalha pela definição da civilização. E há aqui um abraço completo: o que se defende é a civilização greco-romana-judaico-cristã, entenda isso como quiser.

arte!✱ – Branca, masculina, que não questiona a escravidão, o capitalismo, o colonialismo, ou seja, tudo que é preciso questionar não se pode.

Isso. Como disse Machado de Assis, “é mais fácil apreciar o chicote quando se tem se tem o cabo na mão”. Quando ele é empunhado, não quando é recebido nas costas. Mas lembremos que guerra cultural é anterior a expansão do universo digital, através da onipresença quotidiana das redes sociais. Agora, a extrema direita é o grande fenômeno político das duas primeiras décadas do século XXI. E é muito importante reconhecer aqui que a extrema direita chega ao poder, pelo menos pela primeira vez, por meio de eleições livres e democráticas. Bolsonaro venceu as eleições em 2018; em 2016, Trump não ganhou no voto popular, mas venceu no Colégio Eleitoral norte-americano; Viktor Orbán, que era de esquerda na sua juventude – imagina isso – também venceu a primeira eleição na Hungria; Javier Milei obteve 55% dos votos na eleição argentina… O que acontece? A extrema direita compreendeu muito antes do campo progressista o potencial inédito das redes sociais. E esse potencial é a produção de caos cognitivo. Caos cognitivo pelo excesso de informação, não pela sua ausência. E as redes sociais, em relação à questão do tempo, produzem algo que se nós não compreendermos, não seremos capazes de enfrentar.

arte!✱ – É como combater uma hidra, da qual você corta uma cabeça e logo nascem mais três?

Você sabe que eu tenho revisitado o Édipo Rei, do Sófocles. Tenho relido muitos clássicos para pensar a situação contemporânea. Édipo decifra a esfinge. Essa é a referência que sempre fazemos, não é? Mas mesmo decifrada a esfinge, o final do Édipo não é feliz. Não basta decifrar a esfinge, ao contrário do que nós pensamos. A hipótese realmente nova que proponho é a seguinte: isso que nós chamamos de humano, como uma forma de operação de tempo e espaço, não existe sem defasagem temporal. O que caracteriza o humano é a necessidade de uma defasagem temporal entre os seguintes atos: uma ação, a sua transmissão, a sua recepção e a sua posterior interpretação. O que as redes sociais estabelecem realmente de inédito na história da comunicação humana é a promessa de uma impossível simultaneidade. Veja, nas redes sociais, um ato, uma ação, antes de ser concluída, já é transmitida; sendo transmitida, ela já é recepcionada; e muitas vezes a interpretação da ação que ainda não foi concluída impacta o curso da própria ação. Esse eixo de simultaneidade produz um colapso hermenêutico. E veja, não existe a menor possibilidade da experiência estética sem a contemplação. Mas a contemplação é uma forma de retardar o tempo. Quantas vezes, diante de um conto, de um poema, de um quadro, de uma sinfonia, de um balé você tem a impressão de que desliga, fecha os olhos. Você precisa de tempo, não é verdade? Porque aquilo que chamamos de hermenêutica é a ideia fundamental de que entre nós, no presente, e a linguagem do passado – embora seja a mesma – abriu-se um buraco. Não existe mais comunicação imediata, o tempo passou, a defasagem temporal é o que nos faz humanos. O mundo está cada vez mais desumano? Sim, porque nessa vertigem de um tempo simultâneo entre ação-transmissão-recepção-interpretação-impacto, a extrema direita nada de braçada.

arte!✱ – O autoritarismo segue uma lógica de aceitação ou negação pura e simples. É maniqueísmo puro.

Isso, o maniqueísmo é a pura verticalidade, não tem nuance. Não tem defasagem temporal. Tudo é aqui, agora, já.

arte!✱ – Você chegou a ver as artes produzidas por inteligência artificial para divulgar a manifestação do dia 25 de fevereiro na Paulista? Foram criadas a partir de um comando básico. O poder do homem branco e do poder divino sobre essa multidão.

Eu vi. Isso foi inteligência artificial?! É Inacreditável! De fato, praticamente só há pessoas brancas. Impressionante. Olha que loucura, que me dei conta agora. Há dois sinais de trânsito fechados, antes do senhor, e depois todos estão abertos, com o horizonte ao fundo.

arte!✱ – Você indica em seus livros que depois da pandemia a guerra cultural já não é a grande e única arma da extrema direita. Poderia explicar?

João Cezar de Castro Rocha – No princípio, a guerra cultural foi a mais poderosa máquina eleitoral do século XXI. No momento em que o campo progressista ainda não compreendia a engrenagem das redes sociais, a extrema direita produziu o caos cognitivo, inicialmente a partir do negacionismo climático. E depois do revisionismo histórico. Na presença do caos cognitivo só há uma resposta possível: é o puro afeto. Então a guerra cultural permite, paradoxalmente, despolitizar a pólis pela hiper politização do cotidiano. O resultado concreto que ninguém mais discute projetos de pólis. Daí a importância da pauta de costumes, muito favorável para a criação de pânico social. As pessoas presas à pauta de costumes não tratam da redistribuição de renda, da desigualdade, da utopia de um mundo mais justo. Não! Na pauta de costumes é assim: “amanhã, a sua filha na escola vai entrar no banheiro e vai ter um homem”, “amanhã, o seu filho vai receber uma aula de ideologia de gênero etc.

Imagem criada por Inteligência Artificial usada nas redes sociais para divulgar a manifestação realizada em fevereiro de 2024 na Avenida Paulista em apoio a Bolsonaro: mescla perigosa e passadista de conservadorismo, fé e patriotismo

 

arte!✱ – Isso relembra o discurso fake da Damares sobre as crianças vítimas de pedofilia de Marajó, por exemplo.

Já que você falou da Damares, veja esse exemplo de dissonância cognitiva coletiva. Em 2013, a Damares Alves – não tenho nenhuma dificuldade de reconhecer que Damares é muito carismática e adorada em certas comunidades evangélicas –viajou o país inteiro como assessora da Frente Parlamentar Evangélica para denunciar a existência do “kit gay”, que nunca existiu. Em 2018, Bolsonaro lança mão dessa denuncia e é como se ele passasse a existir. Em outras palavras, quando uma dissonância cognitiva é tornada coletiva e milhões de pessoas a abraçam, ela se torna real. É como diz Freud ao discutir o erro e a ilusão: o erro é o equívoco objetivo, a ilusão é um equívoco, mas é sobretudo a projeção de um desejo. Se eu projeto meu desejo e esse desejo é também projetado por 58 milhões de pessoas, ele deixa de ser equívoco e se torna realidade política objetiva. O “kit gay” que nunca houve passou a existir e foi importante na campanha de 2018. Todo meu trabalho consiste em tentar entender como é que, discursivamente, do ponto de vista retórico, a extrema direita consegue, em primeiro lugar, transformar o erro em ilusão. Isto é, capturar o desejo. Em segundo lugar, como consegue transformar a ilusão em ilusão coletiva. E como isso pode ser feito? Por meio das redes sociais.

arte!✱ – É quase um diagnóstico psiquiátrico, não? Podemos recorrer a vários autores que pensam os efeitos dessa modernidade para ajudar a refletir sobre esse caos cognitivo?

É, é uma questão psíquica muito difícil. Há muitos pensadores que atribuem à introdução de poderosos novos meios de comunicação transformações de caráter antropológico a longo prazo. Raymond Williams – importante crítico cultural britânico e um dos criadores do Cultural Studies – tem um livro pouquíssimo conhecido no Brasil, On Television. No início desse livro, ele fala algo muito impressionante. Segundo ele, as pessoas pensam que um novo meio de comunicação é apenas uma outra forma de armazenar e transmitir dados. Ele diz que não, que eles podem alterar profundamente a percepção da realidade. E que, portanto, têm consequências antropológicas imprevisíveis. Veja, você tem toda uma geração entre os dez e vinte anos, que passa de dez a 12 horas por dia com o celular nas mãos, você entra no metrô e as pessoas não se olham; você vai no restaurante e há casais que não conversam. Pela primeira vez na história da humanidade há um meio de comunicação que pode estar 24 horas por dia, sete dias por semana sendo usado. O livro não era assim, a televisão não era assim, o cinema nunca foi. Agentes sociais, no universo digital, têm uma capacidade extraordinária de nos manter reféns no seu interior. É a primeira vez que um meio de comunicação realiza isso. Nós precisamos começar a pensar nas consequências antropológicas desse fato. Uma consequência antropológica fundamental é que a arte e a literatura tornam-se absolutamente excepcionais, algo à parte, porque tanto a leitura literária quanto a contemplação estética dependem de uma outra fruição do tempo.

arte!✱ – Ou seja, também o desejo utópico de universalizar a arte é derrotado?

Completamente. Por exemplo, nessas duas imagens que você mostrou é uma espécie de retrocesso inacreditável a uma concepção ou beletrista de literatura ou academicista de arte. É curioso pensar até que ponto a extrema direita tem uma compreensão muito aguda dessa transformação e a utiliza. Porque, em boa medida, a guerra cultural da extrema direita é um braço avançado do neoliberalismo selvagem que vivemos hoje, neoliberalismo que enfrenta pela primeira vez de maneira concreta a necessidade de reconhecer que os recursos naturais não são ilimitados, como se acreditava.

arte!✱ – Vamos falar novamente de Brasil. Além desse tempero novo das redes sociais, temos outra especificidade que é esse eterno regresso à questão da ditadura militar e a força do neopentecostalismo. Você chega a ver um certo enfraquecimento da guerra cultural?

Isso é um pouco a hipótese básica do meu último livro. Desde a campanha, até o início de 2020, o governo Bolsonaro é o governo da guerra cultural. Isto é, uma máquina de produzir narrativas que, com base em “fake news” e teorias conspiratórias, inventa constantemente inimigos que devem ser eliminados. E isso mantém a militância permanentemente mobilizada. A guerra cultural é uma poderosa máquina eleitoral, porque é uma poderosa máquina narrativa de radicalizações: o bem e o mal, o justo e o ímpio etc. Me parece que, com a pandemia, algo de fundamental se quebrou. Porque, no princípio, a reação – tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, Trump e Bolsonaro – era de ou minimizar ou negar a pandemia. No Brasil, a Carla Zambelli teve a coragem de difundir uma “fake news” de que os caixões eram enterrados com pedras e não com corpos. E os bolsonaristas disputavam narrativas sobre a origem do vírus, sobre o número de mortos, sobre estatísticas, como se fosse apenas mais um meme. Acontece que houve um momento no mundo inteiro em que os mortos da covid deixaram de ser números. Eles passaram a ser rostos: o meu primo, um parente próximo, um amigo de infância. Os mortos deixaram de ser disputáveis enquanto objeto narrativo, porque passaram a nos afetar a todos. Quando isso acontece, a guerra cultural ela perde muito na sua vigência, porque não é possível transformar a vida em simples disputa narrativa, especialmente quando morre o seu pai, o seu irmão… Há limite para o caos cognitivo.

arte!✱ – De certa forma, estamos vendo a mesma coisa e na Palestina, não?

É isso! Há um limite para a disputa narrativa e o limite é aquilo que nos tornou humanos: a consciência da finitude. Porque a extrema direita é tão perversa, mas tão inteligentemente perversa, que viceja porque se apropria de duas características diferenciais da condição humana. Veja, se nós falamos de humano, nós necessariamente falamos em narrativa. Não existe um grupo humano contactado por antropólogos que não tenha uma forma especial de descrever um mundo, de descrever a si mesmo, a origem das coisas. É a narrativa como a essência mesmo do humano. Em segundo lugar, a finitude. Quer dizer, a consciência que nós temos de que somos, sim, seres para a morte. A extrema direita lança mão das duas coisas de maneira muito perversa. Na pandemia, a finitude falhou. A guerra cultural deixou de ser a disputa de narrativa e se transformou em forma de vida. Não basta disputar narrativas sobre o número de mortos, é preciso tomar kit cloroquina. Não basta a narrativa sobre caixões enterrados com pedras, é preciso usar máscara de maneira deliberadamente equivocada, na testa, no queixo e nunca nas vias respiratórias. A guerra cultural foi perdendo lugar para a vida.

arte!✱ – Pela própria radicalidade ela se supera?

Isso. Ela passa a ter caráter religioso.

arte!✱ – Chegamos aos adoradores de pneus…

E aos que buscam socorro nos alienígenas. Você lembra que eles colocavam o celular na horizontal sobre a cabeça? Você sabe por que? Porque, se estivesse na vertical como é que os alienígenas iam ler o pedido de SOS?! Dissonância cognitiva na veia. Aconteceu o mesmo nos Estados Unidos. O apoio agora é menos a adoração de um mito político e mais a veneração ao líder religioso. A revista The Economist publicou uma matéria no início do ano dizendo que a maioria dos apoiadores de Trump acredita que ele é escolhido de Deus.

arte!✱ – De certa forma isso aconteceu na manifestação da Paulista, inclusive com essa passagem de bastão de bolso de Jair Bolsonaro para Michelle Bolsonaro?

Sim. Uma coisa muito sintomática: muitos deputados e ex-ministros foram barrados. Não subiram no trio elétrico Mário Frias, Ricardo Salles, Júlia Zanatta, Carla Zambelli, Bia Kicis, Osmar Terra: todos os que são radicalmente bolsonaristas do ponto de vista da guerra cultural. Os que subiram tem uma associação mais forte com o neopentecostalismo, com a religião. A fala da Michelle Bolsonaro é flagrantemente inconstitucional, porque propõe a submissão do estado laico à religião. Se trata da submissão do estado e das políticas públicas à doutrina que ela defende. E você percebe que chega um momento em que a guerra cultural não dá mais conta, porque a categoria que ela trouxe para tratar disso é categoria do mal. O mal é uma questão fascinante, que está na origem de Crime e Castigo de Dostoiévski. É fundamental nos Irmãos Karamazov também. Como compreendê-lo na sua essência, na sua radicalidade? É uma questão filosófica, literária e teológica. O mal enquanto categoria não cabe na política. Porque a política é a arte na pólis de negociar diferenças. Trazer a categoria do mal para a política é negar a política radicalmente. É dizer que o que se deseja é um estado que tenha caráter teocrático e vocação fundamentalista. É a guerra cultural transformada finalmente em batalha espiritual. Não é uma ameaça pequena.

arte!✱ – E como fica a arte nessa batalha?

Ninguém sabe a resposta. O que eu tenho pensado é que nós precisamos de uma perspectiva dupla: a curto e a médio e a longo prazo. O que vou dizer agora não é compreendido por muitos, mas é a vida. Eu quero muito poder em breve dialogar com bolsonaristas numa mesa. De preferência, como dizia Deleuze, numa mesa redonda, que é a mesa própria da filosofia. A médio e longo prazo, a educação, a arte e a literatura serão incontornáveis. Mas a curto prazo, para que o médio e o longo prazo sejam possíveis, para que a perspectiva generosa tenha tempo se desenvolver, eu só vejo uma alternativa: o rigor da lei. Se não houver uma punição rigorosa para os articuladores do golpe, financiadores, policiais militares, generais que agiram por ação ou omissão, nós voltaremos ao eterno dilema da memória mal resolvida da ditadura militar de 1964. Isto é, como os militares nunca foram punidos porque impuseram uma chantagem para permitir a redemocratização, a anistia de agosto de 1979. Se isso se repetir agora, eles retornam muito mais fortes em 2026. Sem essa perspectiva rigorosa, o delírio da extrema direita bolsonarista não conhecerá o ponto fundamental para a sua superação, que é o choque de realidade! Os que estão agora enfrentando penas gravíssimas, compreenderam da maneira mais traumática possível, que o mundo não se limita ao WhatsApp.

arte! – Uma história que me trouxe esperança foi a do terraplanista que, por meio de uma experiência pessoal, descobriu que a terra é redonda. Será que os bolsonaristas com quem você se sentaria à mesa têm essa perspectiva de superação por diante?

Isso, também fiquei inspirado! Quanto aos bolsonaristas, devo me expressar melhor aqui. Proponho que façamos uma distinção entre eleitores de Bolsonaro e bolsonaristas. Bolsonarista é alguém que, por exemplo, idolatra Carlos Brilhante Ustra, que é machista, homofóbico, transfóbico, que não tem nenhuma preocupação com a igualdade em nenhuma instância e que sempre aposta na lei do mais forte. Por isso, é defensor ardoroso do armamentismo. Com essas pessoas, é muito difícil pensar em diálogo, porque praticamente só há diferenças. E não há necessariamente por parte dessas pessoas interesse algum de escutar algo que não seja o espelho das suas convicções. Mas eu creio que nos 58 milhões de votos que o Bolsonaro recebeu no dia 30 de outubro de 2022, que nem sequer 20% se encaixa nessa categoria. E digo com base em algo bem concreto. O momento de maior declínio da popularidade de Bolsonaro durante a pandemia, ele caiu justamente a 20% de aprovação do eleitorado, quando o apoio neopentecostal se tornou decisivo para que ele mantivesse alguma possibilidade política ainda. E eu diferencio esse bolsonaristas do eventual eleitor do Bolsonaro. Este é alguém descontente com o sistema, ou antipetista radical, ou alguém cujo cotidiano efetivamente não melhorou muito nos últimos anos. Porque há uma dificuldade real no cotidiano das pessoas mais vulneráveis no Brasil. Com estes, creio, é possível conversar. Conversar, no entanto, não quer dizer que eles se tornarão eleitores de esquerda. Eles têm todo o direito a serem de direita, de centro, liberais. O problema só surge quando o diálogo se torna inviável pela pretensão do outro de eliminar tudo o que não seja o espelho. Mas vou repetir: para que seja possível no curto prazo, a perspectiva rigorosa é rigorosamente indispensável. Especialmente num país que tem uma memória tão mal resolvida da ditadura militar, um país que não foi capaz – mesmo na redemocratização – de julgar os crimes cometidos pelas forças armadas durante a ditadura. Nesse sentido uma anistia hoje, em 2024, apenas reforçaria a tendência golpista e autoritária dessas mesmas forças armadas e de todos os civis que apoiaram ativamente a articulação golpista.

arte!✱ – Gostaria também de saber como você decidiu embrenhar-se nesse acompanhamento das redes, da midiosfera bolsonarista.

Como historiador de formação, sempre me interessei muito pelo período militar. E li muito sobre o tema. Além disso, na minha universidade, duas colegas que eu sempre respeitei muito pela inteligência, pela correção, pela integridade, começaram a partir de 2017 a enviar mensagens que eu considerava curiosas. Para resumir a história, se tornaram bolsonaristas radicais, o que me surpreendeu muito. Então comecei a me interessar para tentar compreender o fenômeno, como essas pessoas tinham se deixado enredar de maneira tão intensa por teorias conspiratórias tão obviamente equivocadas.

arte!✱ – Você sempre fala que se prometeu não adoecer. O que isso quer dizer?

Esse ponto de não adoecer para mim foi muito importante. Eu não tinha redes sociais, não tinha nem Twitter nem Instagram. Tinha apenas Facebook. Ingressei nos dois em fevereiro de 2020 e comecei a estudar mais a profundamente a guerra cultural. Quando achei que tinha alguma compreensão do que estava acontecendo. decidi começar a participar do debate público mais ativamente. Tomava como um compromisso cívico de decifrar a esfinge bolsonarista. De fato, inicialmente foi uma esfinge, porque não se compreendia exatamente como o homem tão obviamente limitado do ponto de vista cognitivo, do ponto de vista de conhecimentos básicos, como era possível que ele empolgasse a um número tão grande de pessoas, que o viam literalmente como um líder, um mito. Então havia esse desejo inicial de compreensão e esse desejo, uma vez que eu ingressei nas redes sociais, para mim era muito importante não permitir que eu começasse a ter o mesmo comportamento. E creio que muitos companheiros de esquerda nem sempre conseguiram com sucesso evitar o que eu chamo desse adoecimento, ou seja dessa forma necessariamente agressiva, violenta, da incapacidade de escutar o outro, da incapacidade de aceitar que alguém discorde da sua opinião. Ou seja, essa radicalização, esse desejo de reduzir o mundo a espelho, que em última instância a extrema direita realiza. E é curioso, porque a extrema direita tem muitas afinidades estruturais com o próprio universo das redes sociais. Em alguma medida, a operação do algoritmo é a própria visão do mundo da extrema direita. ✱

As milícias da fé, uma estratégia de poder & preconceito

A onipresença de bandeiras do Estado de Israel em uma manifestação recente da extrema-direita na Avenida Paulista, em São Paulo, surgiu como a confirmação de um fenômeno em expansão: a confusão teológica e o charlatanismo bíblico como estratégias de combate ideológico e político. Naquela ocasião, duas mulheres com bandeiras de Israel nas costas, abordadas pelos repórteres, responderam da seguinte forma à questão “Por que vocês estão com Israel?”: “Porque são cristãos como nós”. Na verdade, os cristãos representam apenas 1,9% da população israelense, sendo que os judeus representam cerca de 83% do povo de Israel. Cristo não é reconhecido como o Messias por Israel. Ou seja: Israel não é cristão.

A escalada dessa esquizofrenia que cresce misturando deliberadamente credos e crenças híbridas, que se escora na demonização do outro, no expurgo e na censura para mover perseguições de fundo político, cultural, social e antropológico se dissemina com assombrosa velocidade pelo País e pelo mundo. Não é absolutamente coincidência que, há alguns dias, o ex-presidente norte-americano Donald Trump tenha lançado estrepitosamente a sua própria versão da Bíblia, apelidada de Deus Abençoe os USA, nos Estados Unidos. Em plena campanha pela reeleição, Trump aposta nessa reiteração gospel da supremacia white power para seguir semeando o terror na política internacional. Ato contínuo, o setor de estudos teológicos de Harvard publicou uma alentada análise da estratégia do “Evangelho” de Trump, lembrando que, num passado recente, pastores protestantes utilizaram a Bíblia como forma de ameaçar pessoas negras escravizadas que se rebelassem contra seus algozes. Em 1749, o reverendo Thomas Bacon, um pastor anglicano de Maryland, celebrou um sermão no qual dizia que os escravizados deveriam glorificar seus mestres brancos como se fossem “Superintendentes de Deus”.

No Brasil, a ressonância dessas estratégias já se faz ver desde o avanço da Bancada da Bíblia no Congresso (já com duas centenas de congressistas) até o território da cultura de massas. Chamou atenção o recente embate entre as cantoras Ivete Sangalo e a evangélica Baby do Brasil durante o Carnaval de Salvador, o famoso episódio do “macetar o apocalipse”. E, mais adiante, o embate prosseguiu com a cantora evangélica Claudia Leitte que, também sob argumentos de zelo religioso, mudou ao vivo uma letra de música (também no Carnaval) para promover um “expurgo” de um ícone dos cultos afro. Na música “Caranguejo”, que tem 20 anos de existência, Claudia – que enriqueceu cantando a tradição afro na Bahia – mudou um trecho da letra e substituiu Iemanjá por “Yeshua”, nome de Jesus em hebraico. E o veto ao uso do Estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro, para a turnê de Caetano Veloso e Maria Bethânia, revelado recentemente, opõe duplamente liberdade de expressão e política: o boicote partiu do governador Cláudio Castro, ex-cantor gospel e evangélico que se fez na política sob o guarda-chuvas da fé.

O patíbulo móvel em que se assenta a intolerância religiosa e cultural, ao longo da História do Brasil (e do mundo), promoveu no passado (e segue promovendo) o etnocídio, tornando-se base do extermínio de povos originários. Depois, consolidou-se na perseguição crescente aos cultos de origem africana no Brasil. Alastra-se pelos territórios comportamentais, sitiando gays, mulheres, negros, transgêneros e dissidentes de toda espécie, como os artistas e as manifestações culturais. Arte! Brasileiros publica nesta edição textos que remontam às raízes históricas dessas guerras, buscando esclarecer como as milícias da fé agem – com o beneplácito dos extremistas alocados na ordem política.
Há casos recentes que ilustram como a intolerância religiosa busca se abrigar nas instituições do Estado brasileiro. Em 2021, arte!brasileiros denunciou com exclusividade uma insidiosa manobra no interior do Instituto Brasileiro de Museus e do Iphan: a tentativa, por parte de um representante do extremismo neopentecostal abrigado no governo Bolsonaro, de sabotar a catalogação e o preparo de uma coleção histórica de objetos históricos da cultura afro brasileira – o Acervo Nosso Sagrado.

Manifestação em solidariedade ao povo palestino, Londres, outubro de 2023

A sociedade indiferente pode acabar vitimada por sua inércia. O Brasil é um País laico, a Constituição protege todas as manifestações religiosas e há liberdade de culto. É preciso denunciar e reagir. A denúncia de arte!brasileiros acerca do caso de sabotagem do Acervo Nosso Sagrado teve repercussões positivas da parte da sociedade civil. O IPHAN, atendendo a um pedido do Museu da República, adotou oficialmente o nome da coleção como Nosso Sagrado (sua denominação anterior, cunhada pela Polícia Civil, era Coleção de Magia Negra). Em 2023, o ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, assinou um convênio com o Museu da República para promover um levantamento de todos os processos no Brasil de apreensão de objetos de cultos afro-brasileiros. Também foi constituída uma gestão compartilhada (a primeira no país) entre o museu e lideranças religiosas de matriz africana (lideradas por Mãe Meninazinha, do Ilê Omolu Oxum, em São João do Meriti). Agora, o pesquisador e ex curador do Instituto dos Pretos Novos, Marco Antônio Teobaldo, está fazendo uma tese pioneira de mestrado (orientado por Mario Chagas, diretor do Museu da República), sobre Museologia de Terreiro, para atualizar a academia sobre a importância para o patrimônio histórico e imaterial dos terreiros. Ele próprio é iaô (filho de santo) do Ilê Omolu Oxum, e já teve outros convênios do Ilê com a faculdade de museologia da Unirio. E, recentemente, em congresso internacional de museus, na Sicília, ele incluiu no documento final do evento a Museologia de Terreiro. A importância disso é o reconhecimento técnico, da parte da museologia, de que não se pode pegar uma peça de terreiro, um artefato sagrado de culto ancestral, e tratá-la com os métodos convencionais europeus: colocar em uma vitrine, classificar e restaurar a partir dos parâmetros tradicionais da museologia. É um avanço significativo.

Os cultos afro têm sido alvo do ódio religioso há séculos, e esse ódio está se renovando nas hostes neopentecostais. Há alguns dias, em Sepetiba, na Zona Oeste do Rio, fiéis do Centro Espírita Ogum Beira Mar encontraram seu terreiro de umbanda revirado e com imagens de santos quebradas, uma ação que vem se repetindo constantemente. Não é uma exclusividade brasileira: há intolerância por todos os lados. Muitas vezes, o medo é aliado dos obscurantistas, como no caso recente de uma universidade no Texas, em Houston, que cancelou a palestra da artista paquistanesa Shahzia Sikander, devido a ataques que ela sofreu por uma escultura de arte pública chamada de Witness, uma figura com chifres de bode e braços tentaculares. Um grupo de extrema direita texano acusava a figura de fazer o elogio de “imagens satânicas”.

Ao avanço do obscurantismo, é preciso responder com informação e ação legal. As trevas sempre se valeram de uma aliança com a violência para chegar ao seu objetivo, que é sem dúvida o estabelecimento de uma teocracia, um Estado teocrático, dogmático e autoritário. Assistimos agora à emergência de uma corrente “evangélica” do tráfico de drogas, o chamado “narcopentecostalismo”, reivindicando protagonismo nas comunidades e morros do Rio de Janeiro. A associação mística entre evangélicos e os símbolos israelenses também se pronuncia nesse contexto – existe até uma área batizada como Complexo de Israel por uma facção criminosa. Complexo de Israel é como está sendo chamado o conjunto de favelas dominadas pelo traficante Álvaro Malaquias Santa Rosa, conhecido como Peixão, que domina as áreas de Cidade Alta, Vigário Geral, Parada de Lucas, Cinco Bocas e Pica-pau. Ali vivem cerca de 134 mil pessoas. Investiga-se ainda a expansão da quadrilha para duas localidades que nunca foram dominadas por traficantes: a Estrada do Porto Velho e a Rua Lyrio Maurício da Fonseca, na região de Brás de Pina.

A teóloga Romi Bencke, que é pastora da Igreja Evangélica da Confissão Luterana no Brasil, aponta uma clara polarização em torno da imagem bíblica do Deus da Guerra (ou Deus dos Exércitos), uma imagem que sacraliza a subjugação de um povo sobre o outro e a limpeza étnica; uma anti-imagem do sagrado, contrária à vida, porque autoriza bombardeios, censura e interdita qualquer tentativa de paz. “Há uma tendência de avanço de uma cultura religiosa menos aberta em relação a comportamento, artes e aceitação de outras religiosidades. Isso é perceptível no Brasil por meio de um cristianismo cada vez mais autocentrado e fechado para acolher as novas agendas de direitos humanos e diversidade cultural e religiosa. O moralismo está se sobrepondo à capacidade de acolher, sem censuras prévias, as diferentes manifestações da criatividade humana”, analisou Romi. “Em outros países, como a Índia, vemos o mesmo, só que na versão hinduísta. Penso que, se o Estado brasileiro compreendesse melhor o sentido da laicidade garantida na Constituição, seus agentes poderiam ter um papel relevante na garantia do convívio entre diferentes visões de mundo. Infelizmente, no entanto, os governos tendem a estabelecer uma relação utilitarista com grupos religiosos, tendo como horizonte apenas os possíveis ganhos eleitorais. Isso tanto por parte de partidos que se apresentam como de esquerda ou progressistas, quanto por partidos de direita e extrema direita”.

A censura também se expande. Na esteira da hegemonia informacional, passou-se a fustigar artistas que porventura se expressassem criticamente sobre o conflito em curso no Oriente Médio, particularmente se fosse de forma desfavorável ao Estado de Israel. Atentados contra a livre expressão passaram a ser corriqueiros. Em novembro, o venerável artista chinês Ai Wei Wei teve exposições suas em Londres, Nova York e Paris suspensas após questionar em uma rede social os argumentos da guerra. Outros artistas, como a atriz Susan Sarandon e o cantor Roger Waters, perderam agentes e contratos por causa de sua atitude crítica.

Mas é difícil tapar o sol com a peneira. Na noite dos Oscars de Hollywood, no início de março, superastros da música e do cinema, como Billie Eilish e Mark Ruffalo, ostentavam broches vermelhos em apoio a um cessar-fogo na Faixa de Gaza. Havia protestos também do lado de fora do Kodak Theater, um dos lugares onde a cerimônia dos Oscars era realizada, com centenas de manifestantes pedindo o fim do massacre. E, ao receber seu prêmio de Melhor Filme Estrangeiro, o britânico Jonathan Glazer, o diretor de Zona de Interesse, filme baseado em uma história do campo de concentração nazista em Auschwitz (baseada em romance de Martin Amis), também chamou atenção para o massacre no Oriente Médio. Subindo ao palco com o produtor James Wilson, Glazer, que é judeu, afirmou: “Todas as nossas escolhas são feitas para refletir e nos confrontar com o presente. Não só para dizer ‘olha o que eles fizeram’, mas também ‘olhem para o que estamos fazendo agora’. Nosso filme mostra que a desumanização nos conduz para o pior”, disse. ✱

Tijuana: violência & cultura

 

A música de protesto Canción Sin Miedo, de Vivir Quintana, trouxe energia ao início da concentração da Marcha das Mulheres em Tijuana, México, no último dia 8 de março. Na voz da cantora local Giuliana, violão em punho, a mensagem contundente da compositora ressoou como um chamado. Com versos como “cada minuto, de cada semana / nos roubam amigas, nos matam irmãs / Destroçam seus corpos, os desaparecem”, Quintana denuncia as injustiças e violências enfrentadas pelas mulheres. Sua música é um chamado à ação e à memória, convocando os políticos e a sociedade a reconhecerem e combaterem essa realidade brutal. Giuliana se diz indignada e está na marcha pelo direito à vida, pela busca incansável das crianças que desaparecem todos os dias, pelas mulheres que são silenciadas e por aquelas que já perderam suas vidas. “Aqui as pessoas cometem crimes e simplesmente escapam impunes, ninguém é responsabilizado”. A canção de Quintana é uma carta de alerta à população e, por isso tornou-se um hino presente em várias manifestações.

Em outro ponto da concentração, encontro uma voz firme e decidida: a ativista e atriz de teatro, Adriana Millanés, que é parte integrante da Fundação Manos Entrelazadas. Esta instituição, há 17 anos dedica-se incansavelmente à prevenção do abuso sexual infantil e da violência intrafamiliar. Adriana, com uma determinação inabalável, destaca: “Aqueles que negam a existência desse problema são, sem dúvida alguma, cúmplices da discriminação e violência contra as mulheres”. Ela compartilha uma estatística alarmante: 1.426 mulheres desapareceram apenas nos primeiros dois meses e meio deste ano. Em um dia significativo para a manifestação, como o Dia Internacional da Mulher, ela ressalta que as pessoas estão nas ruas porque não aceitam mais essa situação. No entanto, ela lamenta que, no dia seguinte, 9 de março, tudo permanecerá inalterado, destacando a contínua crise enfrentada pelas mulheres no México. Após a marcha, Adriana Millanés segue para seu trabalho, subindo ao palco da Antiga Bodega de Papel, um renomado teatro local, onde atua na icônica peça de Eve Ensler, Os Monólogos da Vagina. Assim, após lutar nas ruas, ela continua sua missão de conscientização e empoderamento por meio da arte.

Converso com Ana Hernandez, professora de uma escola elementar que diz ter a esperança de que, ainda este ano, o México tenha uma presidenta que diminua a violência no país. “É um momento especial em nossas vidas, eu acredito na determinação de uma mulher e no seu compromisso de executar o prometido”. A eleição está marcada para 2 de junho e estão no páreo, a ex-prefeita da Cidade do México, Claudia Sheinbaum, líder com 50,5% das intenções de voto, do mesmo partido (Morena) do presidente Andrès Manuel López Obrador. E a senadora Xóchitl Gálvez, com cerca de 28,8% das intenções de voto. O único homem é Jorge Álvarez Máynes, sem chances na competição com apenas 4,8% de intenção de votos.

Tijuana enfrenta um desafio significativo: o constante fluxo de uma população em movimento, que atravessa a cidade em uma tentativa desesperada de cruzar clandestinamente a fronteira. Muitos buscam emprego nas Maquiladoras, indústrias que contratam trabalhadores por períodos flexíveis – uma hora, uma semana ou um mês – dependendo da demanda. É uma dança frenética de oportunidades e incertezas, onde alguns se estabelecem temporariamente, enquanto outros insistem na busca pelo tão almejado sucesso na travessia da fronteira. Esses indivíduos, enraizados na esperança, constroem uma comunidade vibrante e diversificada em Tijuana. Com seus 130 anos de história, Tijuana se destaca como um centro pulsante, abrigando uma população impressionante de três milhões de habitantes.

Os homens não participam da Marcha, ficam intimidados por sua segurança. Um repórter fotográfico foi atingido por manifestantes com tintas e teve que se retirar. No todo, a manifestação foi controlada, embora um grupo de mulheres vestidas de preto, com rosto coberto portassem nas mãos martelos e tacos de basebol. Com palavras de ordem, entre outras, “Somos más e podemos ser piores”, “Nem uma Mais”, o movimento cumpriu seu propósito. Um dos feitos de impacto foi a exposição de fotos e xerox, na praça das Tijeras (tesouras), dos rostos de estupradores, agressores e exploradores, em cuja lista apareciam professores, padres, políticos, e parentes das vítimas.

Mesmo com seus problemas Tijuana atrai mexicanos de outros estados e latino-americanos de vários países. Ranqueada como a segunda metrópole mais populosa do México é considerada a porta da América Latina. Como uma cicatriz que não fecha, a cidade é cortada por um muro de mais de 700 quilômetros que divide e atravessa também outras cidades. Enquanto os banhistas tentam relaxar na praia de Tijuana, o abominável muro se ergue imponente, dominando todos os ângulos da paisagem e avançando pela areia por mais de cem metros em direção ao mar.

Ao contrário do que ocorria no litoral na Alemanha Oriental, na época da Guerra Fria, onde guardas armados portando binóculos potentes tudo observavam, em Tijuana a vigilância é praticamente monitorada por drones. Parte do muro foi erguido ou restaurado durante o governo de Donald Trump, e outros trechos foram levantados a partir de 1991.
Nas últimas décadas, o governo mexicano colocou em prática um projeto cultural ambicioso, visando amenizar o estigma negativo de Tijuana e apresentá-la também como cidade voltada às artes. Entre outras iniciativas surge o Salão Internacional de Estandarte (1996), idealizado por Marta Palau que participou da 19ª Bienal de São Paulo de 1987, e que depois o transformou em Bienal. Ainda com esse propósito surge InSITE, uma exposição internacional criada pela Intersection Gallery de San Diego, California e que acontecia simultaneamente no Centro Cultural Tijuana (México), construído com um projeto arrojado, dentro desse programa de reestruturação, e inaugurado em 1982. Na opinião de Roberto Rosique artista, crítico, professor e membro do conselho curador da Trienal de Tijuana, InSITE foi impulsionado pela visão empresarial de Michel Krichman y Carmen Cuenca, com recurso do Conselho Nacional para a Cultura e as Artes (Conaculta), além de empresários norte-americanos. Para legitimar o projeto foram convidados artistas e curadores internacionais. Os críticos brasileiros Adriano Pedrosa, curador da Bienal de Veneza 2024, e Ivo Mesquita, ex-diretor da Pinacoteca do Estado, foram curadores desse evento em edições diferentes.

Com o objetivo de fomentar e promover a arte local, além de estimular o intercâmbio internacional na cidade, Álvaro Blancante, renomado crítico de arte mexicano, foi um dos visionários na concepção da Trienal de Tijuana: 1. Internacional Pictórico, de 2021. Embora não tenha testemunhado sua concretização, tendo falecido em 2021, o projeto floresceu. A segunda edição, que está sendo trabalhada sob a minha curadoria geral, será inaugurada no dia 26 de julho deste ano. O evento contará com a presença de artistas consagrados e emergentes ajudando a Trienal de Tijuana a se consolidar como um marco importante no calendário cultural da região, reafirmando o compromisso da cidade em celebrar e promover a arte em todas as suas formas, com a participação de artistas representando 15 países diferentes.