Fantasmas da esperança, 2018

O golpe militar de 1º de abril de 1964 inaugurou um longo período de autoritarismo, repressão, desmandos e violência no país. Oficialmente, o regime durou 21 anos. Mas seus ecos e consequências se fazem sentir até hoje, intensificados pelos recentes desvios autoritários do governo Jair Bolsonaro, que culminaram com a tentativa fracassada de sublevação e tomada de poder de 8 de janeiro de 2023. O ressurgimento de discursos (e ações) de caráter autoritário acabou por ampliar a dimensão simbólica do aniversário de 60 anos do movimento civil-militar, reforçando ainda mais a importância dos eventos planejados para refletir e tratar dos feitos e efeitos do golpe.

Antes de mais nada, existe uma rede de instituições espalhadas pelo país que tem por função primordial investigar e denunciar os desmandos do período e que planejam ações de peso para este ano, com a realização de exposições, debates e publicações. A esse esforço permanente se somam mostras ocasionais, com forte sintonia com o tema, ou criações poéticas pontuais, esforços de reflexão e arregimentação de conteúdos que ajudam a iluminar, em termos históricos e conceituais, esses momentos de inflexão da história. Concretiza-se assim um esforço prático e construtivo de se rememorar o passado como ferramenta – teórica e política – para que ele não nos assombre permanentemente, combatendo o negacionismo e o recalque.

O Memorial da Resistência de São Paulo, além de dar continuidade a sua programação normal, se espraiará para além de seus limites, realizando eventos em parceria com outras instituições, como sua vizinha Estação Pinacoteca. No terceiro andar do prédio que foi ocupado pelo DEOPS, acontecerá uma ampla mostra da coleção de Alípio Freire, que foi recentemente doada ao Memorial e que reúne uma serie de memórias da luta, da prisão e da resistência produzidos pelo jornalista, artista e militante político. O Memorial também realiza parceria com a PUC-SP, que leva ao espaço do museu a exposição Resistências, uma exposição que conta a trajetória da PUC e trata de momentos importantes de resistência da instituição aos desmandos da ditadura.

O Memorial da Democracia de Pernambuco, instituição inaugurada no final de 2022, também programou uma série de ações rememorativas da data da sublevação. Em primeiro de abril será inaugurada a praça da democracia em Abreu e Lima (PE), mesmo local em que aconteceu o primeiro ato do movimento pelas Diretas Já, e realizado um ato em favor da democracia e repúdio à ditadura. Nos dias subsequentes, serão abertos no novo espaço uma mostra literária e a exposição Arte e Resistência.

Outra instituição cuja trajetória está intimamente ligada ao antagonismo à ditadura – sendo inclusive tombada pelo município e pelo estado de São Paulo como “lugar de memória da resistência” – é o Centro MariAntonia. Em cartaz a partir do dia 19 de março, a mostra “Paisagem e poder: construções do Brasil na ditadura”, se debruça sobre um aspecto fundamental, porém menos elaborado, dos efeitos deixados pelos mais de 20 anos de autoritarismo no País: a forma como os sucessivos governos militares alteraram a espacialidade no país, consolidando um modelo de maior integração regional, instituições muito centralizadas de planejamento e intensificação das desigualdades.

“Eles agiram com mão pesada, impondo um modelo de desenvolvimento a qualquer custo e sufocando muitas vozes”, explica José Lira, diretor do MariAntonia e curador da mostra juntamente com outros pesquisadores convidados e – como ele – vinculados à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Trata-se de uma exposição histórica, documental, que se dividirá em quatro eixos principais, que funcionam como camadas de um mesmo processo: a transformação nas cidades e nos modos de morar, com o surgimento das periferias e a generalização das favelas por todo o país; a relação entre industrialização e mineração; projetos de integração e expansão regional, que acabam sendo responsáveis pela prosperidade material do centro-oeste e da Amazonia e consolida no nordeste um modelo agropecuário amparado nas velhas oligarquias; e o desenvolvimento das rodovias, estradas, como forma de promover a integração nacional e exploração dos recursos. Além da mostra, que também conta com uma sala específica sobre São Paulo, serão realizados uma série de eventos, debates, seminários e um intenso trabalho educativo, oferecendo visitas a escolas e universidades, potencializando os efeitos de uma pesquisa que se espraia por muitos temas, como geografia, história, ciências sociais e naturais.

Já o CCBB trará, em suas quatro sedes (São Paulo, Belo Horizonte, Brasília e Rio de Janeiro), a exposição Arte Subdesenvolvida. Segundo o curador Moacir dos Anjos trata-se de uma investigação, a partir do campo da arte e da cultura, sobre os desafios do subdesenvolvimento no Brasil e núcleos importantes da mostra tratam dos efeitos e resistências à violência do golpe e de seu posterior endurecimento, com o Ato Institucional n.o 5, como os textos Eztetyka da Fome, de Glauber Rocha, e Brasil Diarréia, de Hélio Oiticica. Dos Anjos também está preparando para a Fundação Joaquim Nabuco, em Recife, uma mostra histórica sobre o Movimento de Cultura Popular (MCP), que atuou nos primeiros anos da década de 1960, até ser fechado pelo golpe. Serão mais de 60 fotografias e mais de 100 documentos, cartazes, folders, obras de arte, publicações de época etc. pela primeira vez reunidos. Aberta em abril, a mostra permanecerá em cartaz por seis meses.

A conexão entre memória e apagamento, construção e desconstrução de discursos ideológicos que perpassam as mais diferentes dimensões da sociedade não é um campo fértil de trabalho apenas para pesquisadores, mas também para os artistas. Em outubro do ano passado, Rivane Neuenschwander exibiu em São Paulo um conjunto de obras em que revisita memórias e traumas conectados ao uso político do medo, dando continuidade a uma pesquisa que iniciou em 2014 acerca das memórias e temores infantis. Parte dessa pesquisa também será mostrada na grande exposição que a artista deve fazer a partir de outubro, em Inhotim.

Durante muito tempo Rivane colecionou depoimentos de memórias sobre o período da ditadura e algumas dessas histórias foram ressignificadas na forma de trabalhos. “Funciona como um novelo de lá que você vai desenrolando”, conta a artista. Há histórias impressionantes, como a referência à prisão e tortura de nove chineses pouco antes do golpe, acusados de subversão e de tentar “assassinar” o então governador da Guanabara, Carlos Lacerda, com agulhas de acupuntura. Seria risível se não fosse dramático, gerando uma interessante metáfora acerca dos “pontos de tensão” do organismo social brasileiro. Imprensa alternativa, cumplicidade do empresariado com o golpe, perseguição a religiões de matriz africana estão entre os fios que a artista segue, recriando simbolicamente, o que ela chama de “retrato subjetivo do Brasil daquela época”, relembrando que uma violência que reverbera ainda. E não apenas no campo simbólico.

Às vezes a ajuda do acaso também contribui para que o encontro entre índices de memória se transforme em reflexão poética sobre traumas sociais. É o caso, por exemplo, do Juliana Kase. Através de um amigo, chegaram a suas mãos um conjunto amplo de clichês de propaganda do regime militar, que eram distribuídos por todo o país para veiculação de propaganda dos “feitos” do regime. Ela reimprimiu todo esse material e desenvolveu uma longa pesquisa, exibida há alguns anos no Paço das Artes. “A estética vira ética”, sintetizou a artista, enfatizando: “porque mesmo os que não foram vitimados por torturas ou violências praticadas pelo Estado também são vítimas de um condicionamento ideológico e de um embrutecimento das relações humanas sem se dar conta.” ✱


Instituto MariAntonia/mostra Paisagem e Poder

Exposição mostra as marcas da intervenção militar no país, que buscou uma maior integração regional, impondo um modelo de desenvolvimento a qualquer custo e intensificando as desigualdades. A mostra tem quatro núcleos: a transformação nas cidades e nos modos de morar, com o surgimento das periferias e a generalização das favelas por todo o país; a relação entre industrialização e mineração; projetos de integração e expansão regional, que acabam sendo responsáveis pela prosperidade material do centro-oeste e da Amazonia e consolida no nordeste um modelo agropecuário amparado nas velhas oligarquias; e o desenvolvimento das rodovias, estradas, como forma de promover a integração nacional e exploração dos recursos.


Que país é este? A câmera de Jorge Bodanzky durante a ditadura brasileira, 1964-1985/IMS-SP

Exposição reúne produção visual do cineasta Jorge Bodanzky (fotos e filmes) ao longo do período da ditadura. Nela, Bodanzky desconstrói a ideia de progresso propagandeada pelos governos militares e expõe questões fundamentais como a repressão, a violência e a destruição ambiental. Além da exposição, acontece também uma retrospectiva dos filmes do autor de títulos como Iracema, uma Transa Amazônica.


Resistências, na PUC-SP

Exposição no Memorial da Resistência, no Largo General Osório reúne imagens da invasão ocorrida em setembro de 1977 à PUC de São Paulo. Soldados da ditadura comandados pelo Coronel Erasmo Dias invadiram a universidade. Cerca de mil estudantes foram presos, alguns feridos. Nas fotos de Helio Campos Mello acima, estudantes e policiais se enfrentam e, dentro do DCE vandalizado, um soldado mexe e examina documentos.


Sol fulgurante: arquivos de vida e resistência/Estação Pinacoteca

A exposição parte da Coleção Alípio Freire, doada ao Memorial da Resistência em 2023, em diálogo com obras contemporâneas feitas por pessoas em situação de cárcere, além de obras pertencentes a coleção da Pinacoteca de São Paulo e dos coletivos Mulheres Possíveis e Bajubá.

 

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