A onipresença de bandeiras do Estado de Israel em uma manifestação recente da extrema-direita na Avenida Paulista, em São Paulo, surgiu como a confirmação de um fenômeno em expansão: a confusão teológica e o charlatanismo bíblico como estratégias de combate ideológico e político. Naquela ocasião, duas mulheres com bandeiras de Israel nas costas, abordadas pelos repórteres, responderam da seguinte forma à questão “Por que vocês estão com Israel?”: “Porque são cristãos como nós”. Na verdade, os cristãos representam apenas 1,9% da população israelense, sendo que os judeus representam cerca de 83% do povo de Israel. Cristo não é reconhecido como o Messias por Israel. Ou seja: Israel não é cristão.

A escalada dessa esquizofrenia que cresce misturando deliberadamente credos e crenças híbridas, que se escora na demonização do outro, no expurgo e na censura para mover perseguições de fundo político, cultural, social e antropológico se dissemina com assombrosa velocidade pelo País e pelo mundo. Não é absolutamente coincidência que, há alguns dias, o ex-presidente norte-americano Donald Trump tenha lançado estrepitosamente a sua própria versão da Bíblia, apelidada de Deus Abençoe os USA, nos Estados Unidos. Em plena campanha pela reeleição, Trump aposta nessa reiteração gospel da supremacia white power para seguir semeando o terror na política internacional. Ato contínuo, o setor de estudos teológicos de Harvard publicou uma alentada análise da estratégia do “Evangelho” de Trump, lembrando que, num passado recente, pastores protestantes utilizaram a Bíblia como forma de ameaçar pessoas negras escravizadas que se rebelassem contra seus algozes. Em 1749, o reverendo Thomas Bacon, um pastor anglicano de Maryland, celebrou um sermão no qual dizia que os escravizados deveriam glorificar seus mestres brancos como se fossem “Superintendentes de Deus”.

No Brasil, a ressonância dessas estratégias já se faz ver desde o avanço da Bancada da Bíblia no Congresso (já com duas centenas de congressistas) até o território da cultura de massas. Chamou atenção o recente embate entre as cantoras Ivete Sangalo e a evangélica Baby do Brasil durante o Carnaval de Salvador, o famoso episódio do “macetar o apocalipse”. E, mais adiante, o embate prosseguiu com a cantora evangélica Claudia Leitte que, também sob argumentos de zelo religioso, mudou ao vivo uma letra de música (também no Carnaval) para promover um “expurgo” de um ícone dos cultos afro. Na música “Caranguejo”, que tem 20 anos de existência, Claudia – que enriqueceu cantando a tradição afro na Bahia – mudou um trecho da letra e substituiu Iemanjá por “Yeshua”, nome de Jesus em hebraico. E o veto ao uso do Estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro, para a turnê de Caetano Veloso e Maria Bethânia, revelado recentemente, opõe duplamente liberdade de expressão e política: o boicote partiu do governador Cláudio Castro, ex-cantor gospel e evangélico que se fez na política sob o guarda-chuvas da fé.

O patíbulo móvel em que se assenta a intolerância religiosa e cultural, ao longo da História do Brasil (e do mundo), promoveu no passado (e segue promovendo) o etnocídio, tornando-se base do extermínio de povos originários. Depois, consolidou-se na perseguição crescente aos cultos de origem africana no Brasil. Alastra-se pelos territórios comportamentais, sitiando gays, mulheres, negros, transgêneros e dissidentes de toda espécie, como os artistas e as manifestações culturais. Arte! Brasileiros publica nesta edição textos que remontam às raízes históricas dessas guerras, buscando esclarecer como as milícias da fé agem – com o beneplácito dos extremistas alocados na ordem política.
Há casos recentes que ilustram como a intolerância religiosa busca se abrigar nas instituições do Estado brasileiro. Em 2021, arte!brasileiros denunciou com exclusividade uma insidiosa manobra no interior do Instituto Brasileiro de Museus e do Iphan: a tentativa, por parte de um representante do extremismo neopentecostal abrigado no governo Bolsonaro, de sabotar a catalogação e o preparo de uma coleção histórica de objetos históricos da cultura afro brasileira – o Acervo Nosso Sagrado.

Manifestação em solidariedade ao povo palestino, Londres, outubro de 2023

A sociedade indiferente pode acabar vitimada por sua inércia. O Brasil é um País laico, a Constituição protege todas as manifestações religiosas e há liberdade de culto. É preciso denunciar e reagir. A denúncia de arte!brasileiros acerca do caso de sabotagem do Acervo Nosso Sagrado teve repercussões positivas da parte da sociedade civil. O IPHAN, atendendo a um pedido do Museu da República, adotou oficialmente o nome da coleção como Nosso Sagrado (sua denominação anterior, cunhada pela Polícia Civil, era Coleção de Magia Negra). Em 2023, o ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, assinou um convênio com o Museu da República para promover um levantamento de todos os processos no Brasil de apreensão de objetos de cultos afro-brasileiros. Também foi constituída uma gestão compartilhada (a primeira no país) entre o museu e lideranças religiosas de matriz africana (lideradas por Mãe Meninazinha, do Ilê Omolu Oxum, em São João do Meriti). Agora, o pesquisador e ex curador do Instituto dos Pretos Novos, Marco Antônio Teobaldo, está fazendo uma tese pioneira de mestrado (orientado por Mario Chagas, diretor do Museu da República), sobre Museologia de Terreiro, para atualizar a academia sobre a importância para o patrimônio histórico e imaterial dos terreiros. Ele próprio é iaô (filho de santo) do Ilê Omolu Oxum, e já teve outros convênios do Ilê com a faculdade de museologia da Unirio. E, recentemente, em congresso internacional de museus, na Sicília, ele incluiu no documento final do evento a Museologia de Terreiro. A importância disso é o reconhecimento técnico, da parte da museologia, de que não se pode pegar uma peça de terreiro, um artefato sagrado de culto ancestral, e tratá-la com os métodos convencionais europeus: colocar em uma vitrine, classificar e restaurar a partir dos parâmetros tradicionais da museologia. É um avanço significativo.

Os cultos afro têm sido alvo do ódio religioso há séculos, e esse ódio está se renovando nas hostes neopentecostais. Há alguns dias, em Sepetiba, na Zona Oeste do Rio, fiéis do Centro Espírita Ogum Beira Mar encontraram seu terreiro de umbanda revirado e com imagens de santos quebradas, uma ação que vem se repetindo constantemente. Não é uma exclusividade brasileira: há intolerância por todos os lados. Muitas vezes, o medo é aliado dos obscurantistas, como no caso recente de uma universidade no Texas, em Houston, que cancelou a palestra da artista paquistanesa Shahzia Sikander, devido a ataques que ela sofreu por uma escultura de arte pública chamada de Witness, uma figura com chifres de bode e braços tentaculares. Um grupo de extrema direita texano acusava a figura de fazer o elogio de “imagens satânicas”.

Ao avanço do obscurantismo, é preciso responder com informação e ação legal. As trevas sempre se valeram de uma aliança com a violência para chegar ao seu objetivo, que é sem dúvida o estabelecimento de uma teocracia, um Estado teocrático, dogmático e autoritário. Assistimos agora à emergência de uma corrente “evangélica” do tráfico de drogas, o chamado “narcopentecostalismo”, reivindicando protagonismo nas comunidades e morros do Rio de Janeiro. A associação mística entre evangélicos e os símbolos israelenses também se pronuncia nesse contexto – existe até uma área batizada como Complexo de Israel por uma facção criminosa. Complexo de Israel é como está sendo chamado o conjunto de favelas dominadas pelo traficante Álvaro Malaquias Santa Rosa, conhecido como Peixão, que domina as áreas de Cidade Alta, Vigário Geral, Parada de Lucas, Cinco Bocas e Pica-pau. Ali vivem cerca de 134 mil pessoas. Investiga-se ainda a expansão da quadrilha para duas localidades que nunca foram dominadas por traficantes: a Estrada do Porto Velho e a Rua Lyrio Maurício da Fonseca, na região de Brás de Pina.

A teóloga Romi Bencke, que é pastora da Igreja Evangélica da Confissão Luterana no Brasil, aponta uma clara polarização em torno da imagem bíblica do Deus da Guerra (ou Deus dos Exércitos), uma imagem que sacraliza a subjugação de um povo sobre o outro e a limpeza étnica; uma anti-imagem do sagrado, contrária à vida, porque autoriza bombardeios, censura e interdita qualquer tentativa de paz. “Há uma tendência de avanço de uma cultura religiosa menos aberta em relação a comportamento, artes e aceitação de outras religiosidades. Isso é perceptível no Brasil por meio de um cristianismo cada vez mais autocentrado e fechado para acolher as novas agendas de direitos humanos e diversidade cultural e religiosa. O moralismo está se sobrepondo à capacidade de acolher, sem censuras prévias, as diferentes manifestações da criatividade humana”, analisou Romi. “Em outros países, como a Índia, vemos o mesmo, só que na versão hinduísta. Penso que, se o Estado brasileiro compreendesse melhor o sentido da laicidade garantida na Constituição, seus agentes poderiam ter um papel relevante na garantia do convívio entre diferentes visões de mundo. Infelizmente, no entanto, os governos tendem a estabelecer uma relação utilitarista com grupos religiosos, tendo como horizonte apenas os possíveis ganhos eleitorais. Isso tanto por parte de partidos que se apresentam como de esquerda ou progressistas, quanto por partidos de direita e extrema direita”.

A censura também se expande. Na esteira da hegemonia informacional, passou-se a fustigar artistas que porventura se expressassem criticamente sobre o conflito em curso no Oriente Médio, particularmente se fosse de forma desfavorável ao Estado de Israel. Atentados contra a livre expressão passaram a ser corriqueiros. Em novembro, o venerável artista chinês Ai Wei Wei teve exposições suas em Londres, Nova York e Paris suspensas após questionar em uma rede social os argumentos da guerra. Outros artistas, como a atriz Susan Sarandon e o cantor Roger Waters, perderam agentes e contratos por causa de sua atitude crítica.

Mas é difícil tapar o sol com a peneira. Na noite dos Oscars de Hollywood, no início de março, superastros da música e do cinema, como Billie Eilish e Mark Ruffalo, ostentavam broches vermelhos em apoio a um cessar-fogo na Faixa de Gaza. Havia protestos também do lado de fora do Kodak Theater, um dos lugares onde a cerimônia dos Oscars era realizada, com centenas de manifestantes pedindo o fim do massacre. E, ao receber seu prêmio de Melhor Filme Estrangeiro, o britânico Jonathan Glazer, o diretor de Zona de Interesse, filme baseado em uma história do campo de concentração nazista em Auschwitz (baseada em romance de Martin Amis), também chamou atenção para o massacre no Oriente Médio. Subindo ao palco com o produtor James Wilson, Glazer, que é judeu, afirmou: “Todas as nossas escolhas são feitas para refletir e nos confrontar com o presente. Não só para dizer ‘olha o que eles fizeram’, mas também ‘olhem para o que estamos fazendo agora’. Nosso filme mostra que a desumanização nos conduz para o pior”, disse. ✱

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