Juazeiro do Norte, no Ceará, encontra-se em uma região curiosa, no centro do Nordeste, perto das divisas com Piauí, Pernambuco e Paraíba. Ficou de fora das rotas de colonizadores que levavam todo tipo de minerais do Brasil para Europa. Em compensação, o clima permitia o pastoreio e, com isso, uma rica produção de couro.

Essa região forma uma espécie de vale, rodeado por serras e uma floresta, a primeira a ser preservada no Brasil pela Unesco, a Florestal Nacional do Araripe-Apodi, que é administrada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
Ela recebeu e recebe diferentes migrações nordestinas, mas sua maior influência veio da presença do sacerdote católico, nascido em 1844, no Crato, Cícero Romão Batista, conhecido como Padre Cícero ou Padim Ciço.

Expulso da igreja católica tradicional pela sua adesão ao sincretismo e por seu respeito a outras religiões, consideradas como heresias, ele estimulou, junto à população da cidade, a ideia de que em cada casa era necessário ter um altar na frente e um ateliê no fundo. Entendendo por ateliê um espaço para tudo que se refere ao “fazer”. Sejam comidas, máscaras, brinquedos, esculturas, instrumentos musicais, ferramentas. Um educador respeitadíssimo e tido como referência de comportamento social.

Essa talvez seja uma das explicações para a sensação de estarmos no meio de uma sociedade excepcionalmente horizontal, aparentemente parada no tempo, quase pré-industrial. De lá para cá não se instalaram grandes fábricas na periferia e, com isso, não se criou uma classe operária resultante de uma burguesia tradicional, aquela da linha de produção, que bate ponto com cartão. A maioria trabalha nos serviços, na educação, no comércio e no artesanato. É uma sociedade que respeita e cultua os mestres, cidadãos que trouxeram para a comunidade suas histórias familiares de cultura popular.

Em 2003 foi decretada a Lei Tesouros Vivos, que reconhece mais de 120 mestres da região e lhes outorga uma bolsa vitalícia com um salário mínimo, uma espécie de aposentadoria que lhes permite continuar passando sua sabedoria e serem uma referência para os jovens. Dezenas de artesãos oferecem seus trabalhos no Centro Mestre Noza, Associação dos Artesãos de Juazeiro do Norte.
Na Floresta Nacional, o Mestre Galdino, especialista em biodiversidade, conhece tudo sobre animais, plantas medicinais, flores e abelhas e se tornou um dos guias mais importantes da região.

Em Potengi, ao lado da Lagoa de Sassaré, Mestre Antônio Luiz, o mais antigo representante do Reisado do Couro (uma das tradições criadas junto ao Reisado do Congo), nascido em 1957, ensina os rituais para as novas gerações que aprendem a “brincar” com as mesmas máscaras, vestimentas e os entremeios, construídos ainda em 1978.
A lenda do Reisado originalmente é europeia, aqui no Brasil é revisitada nos bairros mais pobres desde o Século XIX, onde, através de “caretas”, máscaras típicas, as crianças se transformam em reis durante as apresentações.

No Crato, o Centro Cultural do Cariri Sérvulo Esmeraldo foi erguido durante a pandemia, inaugurado no dia 1º de abril de 2022 e integra a rede de equipamentos culturais da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará. Está instalado um prédio histórico desativado, de cerca de 50 mil metros quadrados, construído na década de 1940 para abrigar o Seminário da Ordem da Sagrada Família de ensino religioso e fechado em 1969. A partir de 1973 funcionou como o Hospital Manoel de Abreu e acabou sendo desativado em 2014.
“O Centro Cultural do Carirí é gerenciado através de uma parceria entre a Secretaria de Cultura do Governo do Ceará, a Secult Ceará e o Instituto Mirante de Cultura e Arte, que entende a necessidade de investir como política pública na educação, na saúde, no território, numa estratégia de sobrevivência onde a Cultura é o resultado de diversas ações estruturais para o desenvolvimento humano”, diz Rosely Nakagawa, diretora do Centro Cultural do Cariri, criou a Galeria Fotoptica com Thomas Farkas em 1979, é curadora e gestora cultural, e foi uma das primeiras curadoras do SESC Pompéia em São Paulo na década de 1980.

O Centro, com apoio da população, de pécnicos e profissionais das universidades, de institutos e associações, tornou-se uma fonte de aprendizado e trabalho para a região. Abriga salas de última geração de rádio, design, ateliês de pintura, desenho e escultura. Possui um espaço totalmente equipado para teatro e shows, o chamado Palco Escola, dirigido por Américo Córdula, que ensina a presença cênica, trazendo a força da ancestralidade, através de performances, do teatro e da dança.
As salas expositivas apresentam hoje três mostras que se relacionam com a história e memória do lugar. Esta é uma intenção clara da diretora do centro e do curador Bitu Cassundé, gerente de Patrimônio e Memória.

A experiência parece ser colaborativa, como deveria ser sempre, abriga artistas e curadores que participaram da construção do centro, como Luiz Santos e Carlos Henrique Soares, que montaram Amostra Prenascimento, com obras criadas a partir de materiais da demolição do prédio antigo.

A exposição do cearense Efrain Almeida, Encarnado, reúne, além das suas tradicionais esculturas, uma sequência de pinturas especialmente desenvolvidas para as comemorações dos dois anos do centro.

O curador de fotografia, escritor e editor Diógenes Moura foi convidado para revisitar a exposição montada inicialmente em 2018, para o Fotofestival SOLAR, realizado na cidade de Fortaleza e que posteriormente foi apresentada no Museu Afro Brasil em São Paulo, adicionando temas como a tragédia nacional provocada pela pandemia de covid-19, as queimadas na Amazônia. Em território caririense, com mais de 300 fotografias, Terra em Transe ampliou o retrato de um país marcado por enormes contradições.

“Para a atualização da exposição no Centro Cultural, a edição foi feita ao lado do fotógrafo Allan Bastos. (…) Terra em Transe é uma exposição feita para magoar, silenciosa, sem piedade a respeito do grande abismo que é o Brasil. Por isso mesmo, cada fotografia necessita de tempo para ser vista. É uma exposição contrária ao mundo da rapidez”.
O Centro Cutural do Carirí é um espaço precioso, que recebe rodas de conversa, piqueniques no seu parque, shows de música ao ar livre, uma iniciativa digna de ser contada e sustentada.

Agradecimentos:
A toda a equipe que nos recebeu, solícita e cheia de histórias para contar. Gente que gosta do que faz. Obrigada Bibiana Belisário, uma das gerentes de comunicação mais competentes que conheci; a Samuel Macedo, nosso motorista, fotógrafo indicado ao Prêmio Pipa; a Pamela Quiros e Aécio Diniz, responsáveis pela futura inauguração da rádio, e a todos os que nos acompanharam. A Rosely Nakagawa, pela sua atuação impecável e pelo convite, e a Tiago Santana, diretor-presidente do Instituto Mirante de Cultura e Arte.

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