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A Memória das últimas coisas e depois

Registros de memória em Tsunami, Photographs and Then
The photograph is part of the "Lost & Found" project and can be found in the book "Tsunami, Photographs and Then", its authors and stories remain unknown. Courtesy of Munemasa Takahashi.
“Certo, certo. Não esqueçam o que vocês verão aqui”. Esse foi o comentário feito por um dos frequentadores do barzinho Kobune a Munemasa Takahashi, em 26 de abril de 2011, depois dele contar que não estava na província de Miyagi (Japão) como mais um voluntário, colaborando no local que havia sido atingido um mês e meio antes da sua visita, por um terremoto de magnitude 9.1, e que movimentou muralhas de água que bombardearam a costa da ilha.

Takahashi, que havia estudado fotografia e construído uma vida em torno dela, se sentia desamparado com sua impotência diante do desastre. “Quando eletricidade, gás e água pararam, quando não havia comida ou combustível e não havia como se aquecer, não havia nada que a fotografia pudesse fazer para ajudá-los. As fotografias pareciam documentar e entregar as cenas do terrível evento às pessoas em lugares seguros”, ele viria a explicar, sobre a cobertura da tragédia em imagens, no prólogo do livro Tsunami, Photographs and Then, organizado posteriormente por ele num esforço de retratar a construção dos projetos Memory Salvage e Lost & Found em uma publicação bilíngue – japonês e inglês – oferecendo ricos detalhes, entrevistas com visitantes das exibições e, claro, algumas das imagens expostas.

Antes disso, sua maior esperança para evitar a inércia diante da tragédia, era viajar até uma das áreas menos afetadas na província, gastar dinheiro com os comerciantes locais e tentar movimentar um pouco a economia do lugar.

Registros de memória em Tsunami, Photographs and Then
A fotografia é integrante do projeto Lost & Found e pode ser encontrada no livro Tsunami, Photographs and Then, seus autores e histórias permanecem desconhecidos. Cortesia de Munemasa Takahashi.

“Por favor, me avisem se vocês puderam colaborar”, dizia uma mensagem espalhada pelas redes oito dias depois de sua visita. Era um chamado por voluntários para integrarem os esforços de limpeza e catalogação das fotos – retratos de família, registros caseiros etc. – levadas pelo tsunami e eventualmente resgatadas pelo SDF (Forças de Autodefesa).

Respondendo à convocação, Takahashi entrou em contato com o Professor Kuniomi Shibata, que conduzia o projeto Memory Salvage (Salvamento da Memória), sob supervisão da Corporação FUJIFILM. Neste momento, os voluntários ainda trabalhavam na sala de Shibata, na Universidade Feminina de Otsuma, e haviam barreiras a serem contornadas para que as pessoas pudessem procurar pelas fotografias em seus computadores – mais tarde dois softwares foram desenvolvidos para que as imagens pudessem ser encontradas de acordo com reconhecimento facial e área em que foram resgatadas. Era necessário digitalizá-las. Contudo, o fornecimento de eletricidade era escasso e irregular, o que significa que eles precisavam de uma maneira para fazê-lo sem depender da fonte de alimentação inconsistente, ou seja, utilizando câmeras digitais. O obstáculo do método, por sua vez, era a escassez de equipamentos e o ambiente de trabalho. Era contaminado, cheio de pequenas partículas de poeira do lodo seco que poderiam danificar os equipamentos, significando que qualquer ferramenta teria que ser doada, e não emprestada. Incrédulo, novamente, Takahashi enviou um pedido à web. Os apetrechos foram oferecidos em poucas horas, alguns por totais desconhecidos do fotógrafo, outros por colegas e professores de sua escola de fotografia.

Conforme o processo de limpeza e digitalização começou a caminhar tranquilamente, com 20 a 80 voluntários comparecendo todos os finais de semana, as fotografias reproduzidas começaram a se acumular. Dessa forma foi criado um espaço para devolvê-las aos proprietários. Elas foram indexadas e reunidas de volta em álbuns físicos, com três imagens em suas capas para identificação pelo antigo dono, fornecendo o retorno de uma parcela daquilo que lhes foi usurpado pelo desastre. Até 2014, pelo menos 300 mil fotografias físicas haviam sido retornadas aos seus donos. Talvez, assim como a personagem Hana, do escritor Amós Oz, as pessoas se apeguem à memória como alguém que se agarra a um parapeito, num lugar alto, e numa época em que as coisas são tão efêmeras elas confiam lembranças a dispositivos externos porque querem deixar provas que as identifiquem.

Hopeless Box

As fotos chegavam ao projeto lavadas, encharcadas e até completamente obliteradas. Por um tempo, aquelas danificadas consideravelmente, cujo estado era praticamente impossível de passar por restauro, eram designadas para o Hopeless Box (“caixa sem esperança”), uma solução para deixá-las intactas até que a equipe descobrisse qual seria seu destino, embora cada vez mais colaboradores expressassem que seria melhor simplesmente descartá-las. Com o andar da campanha, uma questão que ainda martelava a cabeça dos organizadores era a possibilidade de fornecer um retorno financeiro para a comunidade afetada. Um esquema de moradias temporárias começava a ser implementado e necessitava verbas para custear sua construção e seus trabalhadores. Eles concordavam que era significativo mostrar esses registros a quem não podia visitar o acervo.

Como escreveu certa vez o pesquisador Boris Kossoy, “desaparecidos os cenários, personagens e monumentos, sobrevivem, por vezes, os documentos”

Uma resolução foi expor as fotos que outrora estavam perdidas, surgindo assim o Lost & Found Project, levando-as da Galeria Internacional da Fotografia, no Japão, até o Centro para Fotografia Contemporânea, na Austrália, e a Fundação Aperture, nos Estados Unidos. “Nós optamos por exibir as fotos em um formato de exposição porque queríamos que as pessoas as vissem pessoalmente, não através de material impresso ou da Internet”, relata Takahashi, notando também que logo antes da exposição sair do papel os organizadores ainda se faziam perguntas como: “E se não pudermos arrecadar dinheiro suficiente para as habitações temporárias? E se for eticamente errado mostrar as fotos publicamente?”.

Seguindo o sentido oposto, a mostra se tornou uma forma de entregar uma narrativa sobre as pessoas atingidas pelo tsunami que fugisse de uma história recheada com números que involuntariamente seria traduzida em um conto sobre tragédia ou uma alegoria forçosa sobre esperança diante do caos. Lost & Found – com registros fornecendo ricas eminências de história, abraçando uma constelação maior do que nos resta da tragédia e também imagens visualmente impressionantes como resultado da sua deformação química – fornece um espaço de suspensão nessa dicotomia.

Por que fotografamos?

“Por que as pessoas estão sempre tirando fotos?” é uma questão que parece assolar recorrentemente Munemasa Takahashi, pelo menos ao longo da escrita do livro Tsunami, Photographs and Then.

Registros de memória em Tsunami, Photographs and Then
A fotografia é integrante do projeto Lost & Found e pode ser encontrada no livro Tsunami, Photographs and Then, seus autores e histórias permanecem desconhecidos. Cortesia de Munemasa Takahashi.

A fotografia cria uma realidade que existe precisamente nela, nem antes, nem fora dela, fornece um traço indicial de quem esteve lá, como se pareciam. Walter Benjamin afirmaria que “no culto da lembrança dos seres queridos, afastados ou desaparecidos, o valor de culto das imagens encontra-se o último refúgio. Na expressão fugidia de um rosto humano, nas fotos antigas, pela última vez emana aura. É isso que lhes empresta aquela melancólica beleza, que não pode ser comparada a nada”.

Caso as fotografias agrupadas para o projeto Lost & Found sejam bem recebidas pelos visitantes, talvez seja possível falar de uma ressignificação daquilo que essas fotografias simbolizaram, se distanciando de um exclusivo testemunho de desastre, voltando a se aproximar de um canalizador das questões universais do ser humano; como escreveu Ursula Le Guin, do que há “no ventre do tempo, e morte, e chance”.

Linguagem pré-incaica

Caixa de mdf com sementes: cerâmica e pintura acrílica.
Caixa de mdf com sementes: cerâmica e pintura acrílica. Fotos: Patricia Rousseaux

ARTE!* – Quando surgiu a ideia de desenvolver esse projeto?

Ximena Garrido-Leca – No ano de 2010 visitei a ruína de Pachacamc[1], perto de Lima.  Conversando com o arqueólogo soube que durante as escavações tinham encontrado sementes da espécie Phaseolus Lunatus brancas e pretas, que não eram nada comuns e que tinham se perdido. Estavam pensando em reinseri-las na cultura. Nesse momento ele me deu várias sementes de presente. 

A partir dai fiquei muito curiosa sobre a história, e comecei a pesquisar. De fato, essas sementes, espécie de feijões, tinham sido representadas em várias culturas peruanas, pré-hispânicas em cerâmicas e peças têxtis, especialmente na cultura Moche, a cultura Mochica. Outro arqueólogo, Rafael Arcofuego, a princípios do século XX desenvolveu uma teoria onde estas representações seriam um sistema de escritura. Existem outras teorias refutando esta ideia, dizendo que não, que seriam jogos ou parte de um ritual agrário, mas eu decidi me focar na sua teoria. Ele sustenta que cada paillard de sementes representa uma ideia, não seriam ideogramas e sim um sistema de comunicação simbólico.

Estrutura hidropônica e plantas da espécie Phaseolus Lunatus
Estrutura hidropônica e plantas da espécie Phaseolus Lunatus

Teria existido 100 a 850 a.C., e isso confirmaria a ideia de ter existido sim, uma outra escritura peruana, antiga, pré-incaica. Assim, decidi pesquisar mais e montar um projeto baseado em traduzir um texto colonial, La extirpación de la ideolatria en el Peru, escrito por Pablo José de Arriaga em 1621, uma espécie de manual da colônia de como erradicar os costumes indígenas.

Tomei um capítulo, o Edicto contra la ideolatria, que narra os costumes, os rituais e como aplicar os castigos. A partir daí, fui montando grupos gráficos com as sementes reproduzidas em cerâmica. Construindo um novo texto gráfico, a partir de conjuntos de morfologia e de cor.


[1] A cidade foi construída por volta de 200 a.c. Seu nome é uma referência ao “Pacha Kamaq”, deus criador da Terra segundo a crença da população local pré-inca. Pachacamac foi um importante centro administrativo e religioso para grandes civilizações pré-coloniais em períodos distintos, como os Limas, os Huaris e, por
final, poderosos Incas; até ser totalmente saqueado e destruído pelos espanhóis. Hoje, 500 anos depois,
os esforços para reconstruir suas inúmeras pirâmides, templos, praças e casas são incessantes.

A arte não se desliga da vida

Prêmio PIPA Online
"Monalisa Indígena", de Denilson Baniwa, último vencedor do Prêmio PIPA Online. Foto: Divulgação.

Vencedor do Prêmio Pipa Online em 2019, Denilson Baniwa se descreve como um artista indígena, que é indígena e é artista. Nascido em uma comunidade do povo Baniwa no Rio Negro, no estado do Amazonas, o artista fala em entrevista à ARTE!BRASILEIROS sobre a sua inserção no circuito das artes, sobre decolonialidade, apropriação cultural e o sagrado.

ARTE!✱   O que a arte indígena é hoje no cenário da arte brasileira?

DB – Essa questão da arte indígena em contraste à arte “considerada arte” é uma coisa que já vem sendo discutida há bastante tempo. Acho que até antes de ter essa galera toda indígena trabalhando e circulando. Acho que o diferente agora é que tem esse tanto de artistas indígenas com um poder de aproximação e de voz bem marcante, que consegue conversar e dizer um ponto que não era visto antes, que é a partir dessas pessoas indígenas. Para a gente, não tem essa diferença entre arte e vida ou arte e resistência assim como tem no Ocidente, onde a arte é um instrumento de poder em relação a outros seres humanos. Mas quando esses artistas indígenas se propõem a circular de uma maneira que se utiliza de linguagens não indígenas também é uma estratégia de conversar por uma língua que seja entendido por quem não faz parte dessa cultura. Acho que se a gente começasse a trabalhar com códigos que só, por exemplo, os Baniwas entendessem ficaria difícil para o meu trabalho conversar com quem não é Baniwa.

Pode exemplificar?

DB – Recentemente eu estava num congresso falando sobre decolonialidade e sobre apropriações históricas e alguém me provocou falando: “Você está falando de descolonização mas está falando em português, está articulando os pensamentos de uma maneira ocidental que não é Baniwa. Como você quer falar de descolonização se você não utiliza a linguagem indígena, já que você quer quebrar com esse processo histórico?”. Eu respondi em Baniwa para ela e ela não entendeu. E eu disse: “Esse é o motivo que a gente utiliza de linguagens não indígenas”. Se formos, de cara, falar num código que só indígenas entendem, essa comunicação vai ficar com ruídos muito grandes. O que os artistas indígenas têm feito nesse momento é conversar em código que seja entendível pela maioria das pessoas, indígenas ou não. Acho que em determinado ponto nesse caminho a gente vai começar a falar em códigos indígenas. Mas vai ser um grande processo ainda.

Já que apontou a questão da descolonização/decolonização, queria saber como você acha que isso tem avançado aqui.

O discurso de decolonização é cheio de controvérsias e equívocos, porque até onde a gente sabe tudo isso começou com uma mulher latino-americana que começou a falar e publicar sobre isso. Ninguém deu ouvidos a ela, primeiro porque ela é mulher e segundo porque é da América Latina. Tudo o que ela já falava e publicava acabou sendo absorvido por um grupo de homens da academia europeia. A partir daí, começaram a olhar para esses temas. É tudo muito complexo nesse discurso, a começar pela academia só ter levado em consideração quando um homem, hétero, branco e europeu falou sobre. E também é uma questão que ainda é discutida por pessoas que não são desses lugares “descolonizados”. Acho que, inclusive, nós indígenas quando assinamos “decolonize” ao invés de “descolonize” é um modo de nos colocarmos em um lugar diferente do que a academia ocidental discute. É um modo de colocar que é um pensamento diferente, talvez não o pensamento, mas uma posição diferente dentro da discussão. Mas no Brasil isso é muito recente. Em outros lugares da América Latina a discussão é mais antiga.

Metrô-Pamurĩ-Mahsã (Cobra Metrô).
Metrô-Pamurĩ-Mahsã (Cobra Metrô).

E por que só agora?

O Brasil é muito tardio e também não se entende como colônia. A maior ficção colonizadora que a gente tem é que o Brasil foi independente ou é independente. Aqui é o único lugar das Américas que a independência veio por parte do rei e não do povo. Copiamos muito o estilo de vida de outros lugares porque não nos aceitamos brasileiros, ao contrário de outros lugares na América Latina. Na Bolívia, Equador, Chile, você vê que existe um sentimento no qual as pessoas se consideram filhos daquele território.

Você foi um dos fundadores da rádio Yandê, a primeira rádio indígena do país. Tem outros projetos nos quais está envolvido hoje?
A rádio Yandê é um dos projetos mais importantes que eu já consegui realizar. Hoje ele é copiado por vários indígenas, é tido como uma referência em comunicação, escutado acho que em 40 países. É um marco no Brasil. Rádios desse tipo já existiam na América do Norte e do Sul há muito tempo. A gente fez isso em 2013, distante do que já era produzido na América Latina. Hoje é um marco no que é comunicação, no que é acesso à comunicação, no que é estratégia. Quando eu decidi que ia me dedicar ao trabalho artístico, não consegui mais dar conta da Yandê. Eu saí da coordenação e das ações. Então é um projeto muito importante, que eu tenho muito orgulho, que eu participo ainda, mas que eu não faço mais parte da linha de frente porque precisaria de uma dedicação maior. Fora isso, eu tenho estado no movimento indígena, como sempre, e dentro de discussões sobre acesso à informação e acesso à universidade. Participo das reuniões em universidades onde têm grupos indígenas, tenho participado de reuniões de ações de retomada de território. Tudo o que eu faço agora é ligado a um trabalho artístico, a uma pesquisa artística.

Diabetes
Diabetes

Quando você decidiu se focar quase inteiramente ao trabalho como artista?

Eu nunca tive um pensamento sobre trabalhar enquanto artista ou viver uma vida de artista. Em 2015 fui convidado para fazer a identidade visual, junto com uma arquiteta do Nordeste, da mostra DjaGuata Porã, que ficou no Museu de Arte do Rio (MAR) em 2016/2017. E acabou que conheci os curadores Clarissa Diniz, José Ribamar Bessa, Pablo Lafuente e a Sandra Benites, que eu já conhecia. Tive um contato grande com esse grupo que trabalhava no MAR. Por acidente, eles conheceram alguns trabalhos meus e comecei a conversar com esses curadores sobre a presença indígena dentro desses espaços. Eu já tinha algumas discussões sobre comunicação, sobre acesso à informação e à mídia. E começamos a falar sobre isso a partir de uma perspectiva da história da arte. Acabou que me envolvi bastante com esse grupo e começamos a levar essa discussão a outros lugares, para algumas galerias e para as universidades. Aos poucos, as pessoas foram conhecendo alguns trabalhos meus. Na verdade, eu sempre trabalhei com visualidade. Não sei dizer uma data exata em que eu passei a me considerar artista, só sei que quando vi estava com meu tempo todo dedicado a isso e não conseguia mais sair. Foi quando notei que não conseguia dar conta de mais nada além de ser artista.

Você ganhou o PIPA Online no ano passado. Como foi para você?

O PIPA foi uma grande surpresa pra mim. Eu tinha noção do que era por conta do Jaider Esbell, da Arissana Pataxó e do Ibã Huni Kuin que já tinham participado. Mas eu não entendia direito o que era o PIPA ainda, ou a importância dele e o alcance que tinha. Foi uma surpresa quando me mandaram um e-mail falando que eu tinha sido indicado. Primeiro porque sou um artista que não tem formação em arte, não frequentei a escola de Belas Artes e nem esse círculo de pessoas que têm uma tradição na arte. Sou bem recente nesse mundo, então fiquei muito surpreso com a indicação. Passado isso, foi muito recompensador para mim em vários sentidos. Primeiro que para a população indígena no geral, na aldeia (falando pelo meu povo, que está lá no Rio Negro), a arte não significa nada, não quer dizer nada esse trabalho de exposições, de galerias. Foi uma surpresa porque eu não fazia ideia de que eles me acompanhavam. Quando teve o PIPA e começamos a compartilhar o link, várias pessoas lá da minha comunidade, dos Baniwa e de outros povos da minha região, mandaram uma mensagem dizendo que estavam torcendo por mim. Foi a primeira vez que eu tive noção de que o meu trabalho estava alcançando esse lugar, que eles sabiam o que eu estava fazendo e que entendiam o que eu estava fazendo. Em segundo lugar, foi bem legal porque eles se mobilizaram para votar em mim. Isso me deixou muito feliz. Fez eu entender a importância de eu estar aqui, que eles confiavam em mim.

Cunhatain antropofagia musical
Cunhatain antropofagia musical

E depois do prêmio?

Foram três momentos: de entender que os indígenas da aldeia sabiam do meu trabalho; depois de ver um monte de gente que conhecia meu trabalho e que me acompanhava; e, no final, de perceber o alcance que o prêmio tinha para fora de tudo o que eu conhecia. O PIPA foi um divisor para mim, porque acho que ele me fez ver um pouco mais de como eu podia trabalhar, de até onde eu chegava e como eu poderia me comunicar com o mundo pelo meu trabalho.

Você falou agora sobre sua relação com seu povo. Você tem um cuidado muito grande para transpor elementos da sua cultura para seus trabalhos, como questões religiosas...
Eu tenho esse cuidado porque dentro da cosmogonia Baniwa, da criação, tem uma ética, digamos assim, que tem vários conselhos que a gente tem que seguir durante a vida. Um deles, com o PIPA, eu meio que “quebrei”, que é ter que andar de maneira discreta pelo mundo, que suas ações têm que ser maiores que a sua imagem, a sua presença. As ações e o trabalho têm que ser maiores que a nossa vaidade, talvez essa fosse a melhor tradução. E outra coisa que me faz pensar sobre o que quero falar e o que posso falar, não que seja uma obrigação – mas é como eu entendo –, é você viver nesse mundo sem envergonhar o seu povo. E acho que isso é uma coisa que eu quero levar. Eu quero viver nesse mundo em que meu povo possa se orgulhar sabendo que não vou prejudicá-los, porque sei que o único lugar que eu posso voltar é para o meu povo. Eu posso fazer muito sucesso aqui, posso viajar muito, posso ganhar mil coisas onde estou neste momento. Mas, se um dia algo der errado, o único lugar que vai me aceitar é junto do meu povo.

Infogravura feita por Baniwa
Antropofagia musical, 2016, infogravura, tamanhos variaveis

É uma questão de apropriação?

Não sei se apropriação… Às vezes são coisas que as pessoas não têm autoridade para fazer. Por exemplo, as cestarias Baniwa têm todo um símbolo, todo um código. É um objeto que ativa conexões entre vários mundos. Se eu utilizo uma cestaria eu tenho que entender que ativações esse objeto realiza. Então são coisas sobre as quais não se tem controle. É um descuido, ou um não entendimento, de como funciona o mundo indígena, onde a arte não se desliga da vida e o espiritual não se desliga do mundo natural, digamos assim.

E as discussões em torno da apropriação cultural por parte de outros?

Eu acho que roubo é roubo. Se você é um ladrão, tem que assumir o seu roubo. O que me incomoda na apropriação na arte não é o roubo em si, mas a ficção criada em cima do roubo. Quando alguém passa uma semana em uma aldeia e volta se achando o pajé. Essa ficção criada para justificar o roubo é o que me incomoda. É como uma desculpa. Eu vejo muito isso em alguns lugares que vou e tem artistas que se utilizam de padrões, de discursos indígenas, de medicinas. Tem sempre uma história mirabolante em torno de tudo. Isso me deixa fatigado. As pessoas precisam assumir “eu roubei e vou utilizar isso aqui”, porque aí as coisas ficam mais claras. É como se utilizar dos grafismos indígenas para criar uma coleção de roupas e falar que está valorizando a floresta e os povos indígenas. Não. Criou-se uma estampa a partir de um grafismo indígena porque quer vender. 

2016 | 32a Bienal de São Paulo: “A arte que surge do diálogo”

Takuma
O diretor indígena Takumã Kuikuro, do Vídeo nas Aldeias, em filmagem no Parque do Xingu. Foto Vincent Carelli

Foi no ano de 1986 que o indigenista e cineasta Vincent Carelli realizou sua primeira experiência de produção audiovisual com os índios nambikwara, em Mato Grosso. Ao filmar a vida daquela população, ele poderia fazer apenas o que já era prática corrente no País havia décadas, ou seja, registrar os costumes de povos considerados “exóticos” e apresentar o resultado na TV, cinema ou em ambientes acadêmicos. O interesse do documentarista, no entanto, era outro. “A ideia era ver como os índios reagiriam ao se confrontar com a própria imagem, e ao se apropriar dela”, conta Carelli, que passou a exibir e debater o que filmava com os habitantes locais, e não com os “homens brancos”. Mais do que isso, a vontade era que a prática se tornasse coletiva, e o cineasta logo passou a câmera para as mãos dos próprios índios.

Hoje, 30 anos depois e consagrado, o projeto Vídeo nas Aldeias (VNA) já ajudou a formar dezenas de diretores indígenas pelo País e, junto a isso, a criar uma nova gramática cinematográfica. Um tanto surpreendente para o circuito da arte contemporânea – por ser visto por alguns como um projeto mais ligado ao meio acadêmico do que artístico –, o VNA é um dos escolhidos para expor na 32ª edição da Bienal Internacional de São Paulo, intitulada Incerteza Viva, dentro de uma proposta da curadoria de apresentar produções criadas em diálogo estreito com comunidades, povos e grupos culturais populares de diversos cantos do mundo.

Não se trata de arte política e engajada, no sentido tradicional, nem de trabalhos que procurem documentar a realidade, mas de práticas colaborativas que revelam outros modos de fazer arte, como explica o curador Jochen Volz. “Se alguns anos atrás existia a tendência do ‘artista antropólogo’, que queria mostrar outras culturas, acho que hoje é forte essa ideia de realmente participar. Não mostrar, mas estar junto, fazer junto”, diz Volz, referindo-se a uma série de trabalhos que estarão na Bienal – como os dos artistas Bárbara Wagner, Felipe Mujica e Cecilia Bengolea, entrevistados pela ARTE!Brasileiros.

Nesse sentido, o Vídeo nas Aldeias é um dos casos mais radicais, já que, mesmo que coordenado por Carelli e uma equipe, foi apropriado pelos índios e se tornou um cinema feito por eles mesmos. Segundo Carelli, a entrega da câmera subverteu a lógica tradicional, na qual o homem branco é quem vai estudar e falar sobre “o outro”. E ao mudar o ponto de vista, mudam também simbologias e temáticas: “No começo, eu fui com a ideia de fazer um trabalho de denúncia, político, mas os índios demonstraram um outro interesse, e se entusiasmaram em apresentar o que interessa a eles, as belas coisas, os seus tesouros culturais. Imediatamente eu entendi que a grande questão política de toda minoria é a questão identitária, que é cultural, de afirmação”.

Cena de “Estás vendo coisas”, de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca. Foto: Divulgação

Ao se apropriar da câmera e criar narrativas próprias, em geral construídas coletivamente nas aldeias, os índios passaram a desenvolver linguagens – de modo principalmente intuitivo, apesar das oficinas de formação comandadas por Carelli – e a fazer sua própria arte. “Mesmo que esses vídeos sejam peças de interesse etnográfico, acho que são essencialmente cinematográficas, no plano artístico. Não é um vídeo relatório, de panfleto. É cinema”, diz Carelli. “E, quando eles assistem aos próprios filmes, superam finalmente aquela decepção que todo povo indígena enfrenta com o audiovisual, que é o da expropriação, da manipulação, da TV que omite o que era o mais importante para eles”.

DO BREGA AO DANCEHALL
Também discutindo processos de apropriação, colaboração, documentação e experimentação, a fotógrafa e artista visual Bárbara Wagner tem chamado a atenção por suas pesquisas centradas em grupos e manifestações culturais aparentemente marginalizadas e em suas estratégias de visibilidade e subversão dentro da indústria cultural e de consumo. Em séries de fotos como Brasília Teimosa (2005-2007) – que adentra o universo “cafona” e “vulgar” dos frequentadores de uma praia recifense – e Estrela Brilhante (2008-2010) – que investiga o mundo do maracatu em Nazaré da Mata (PE) –, Wagner transita em ambientes e estabelece diálogos na busca de não folclorizar ou exotizar “o outro”. Mostra, também, que muitas dessas culturas ditas “periféricas” não buscam mais a aprovação dos “centros” e que, subvertendo velhas dicotomias, chegam sem pedir passagem.

Competicao internacional Dancehall Queen
Competição internacional Dancehall Queen (2013), em Montego Bay (Jamaica), que será tema do trabalho de Cecilia Bengolea e Jeremy Deller

Para a 32ª Bienal, a artista deve aprofundar sua pesquisa mais recente, em torno dos MCs de brega do Recife, e apresentar o inédito Estás Vendo Coisas, feito em parceria com Benjamin de Burca. Assim como no caso do Vídeo nas Aldeias, a ideia não é apenas documentar ou se apropriar de uma cultura alheia: “O que eu quero é estar dentro, conversar, entrar em acordos. Não se trata de ir lá, tirar um produto deles e deslocar para a Bienal”, diz Wagner. Nesse sentido, a artista relativiza uma ideia presente em diversos campos do conhecimento – das artes à antropologia, da arquitetura à política – de que se deve “dar voz aos marginalizados” e às suas manifestações culturais. “Eles têm controle da própria imagem e da própria voz, então para nós deve haver um processo de escuta e observação. E eu sempre me pergunto que contribuição eu posso dar para a documentação da produção cultural desses grupos, mas que seja de forma colaborativa”, conclui a artista.

“É melhor dar voz do que esconder”, brinca Volz. “Mas acho que já podemos partir de outro patamar de discussão, sem essa ideia da cultura central ou periférica. É muito mais interessante pensar em uma rede que é horizontal, que permite que as coisas aconteçam em algum lugar e reverberem para toda a rede. Então se trata mais de ouvir, interagir e entender que a cultura engloba tudo isso”. Engloba, por exemplo, as competições de dancehall queen, na Jamaica, onde a dançarina argentina Cecilia Bengolea e o artista Jeremy Deller produzirão um vídeo para a Bienal. Coreógrafa e bailarina, Bengolea pesquisa e participa há anos da popular competição de dança jamaicana. Este ano, além de competir, produzirá com Deller um vídeo sobre o evento, uma mistura de documentário e ficção feita em diálogo com os dançarinos e outros personagens locais.

CORTINAS E COSTURAS
Ao apresentar projetos produzidos em diálogo estreito com comunidades e com questões da realidade concreta, a 32ª Bienal de São Paulo, que acontece entre 10 de setembro e 11 de dezembro, busca também – “através da poética da arte”, segundo Volz – contribuir para discussões globais sobre economia, política, condições sociais e climáticas, entre outras. O título, Incerteza Viva, surge nesta linha, partindo da constatação de que “a incerteza é a condição em que todos nós vivemos”. Quem melhor do que os índios, por exemplo, para falar de incerteza? “Eles vivem a incerteza permanente”, diz Carelli. “A cada década há um redimensionamento de suas terras. É um ciclo neocolonial perpétuo.”

Com a proposta de se aproximar dessas questões contemporâneas, a mostra procura também trazer o público para perto do pavilhão da Bienal. “Essa arte feita em diálogo com as populações aproxima as pessoas da arte contemporânea, muitas vezes vista como algo tão longínquo”, diz o artista chileno Felipe Mujica, que participa da edição com uma série de cortinas que serão produzidas com as bordadeiras do Jardim Conceição, de Osasco, e os designers e estilistas Alex Cassimiro e Valentina Soares, de São Paulo. Assim como fez na Bienal de Cuenca (Equador) de 2014, quando criou seus trabalhos com as bordadeiras de uma oficina familiar de costura da cidade, Mujica quer, aqui, produzir em diálogo com agentes locais. Apesar de conhecido por suas cortinas – feitas com diferentes tecidos e desenhos geométricos –, o chileno não domina todo o processo de produção de sua obra, e faz disso não uma falta, mas uma possibilidade. “Eu não costuro, então me interessa também aprender com a pessoa que costura as cortinas. E aí sempre se produz um diálogo entre o que eu pretendo fazer e o que a pessoa propõe e diz que é possível”, explica.

Em São Paulo serão cerca de 30 cortinas penduradas no pavilhão que, segundo Mujica, estarão posicionadas de modo a criar novos espaços e relações com a arquitetura do local. Ao dialogar com comunidades e ao chamar seus trabalhos artísticos de “cortinas”, o chileno procura, justamente, se aproximar da vida real: “Tem gente que quer chamar de banners ou bandeiras, mas eu prefiro chamar de cortinas, porque me interessa que se mantenha essa noção doméstica, que se relaciona com a vida das pessoas”. Para se relacionar mais concretamente com a realidade que pretende debater, a 32ª Bienal está promovendo também os Dias de Estudo – em Cuiabá (Brasil), Santiago (Chile), Acra (Gana) e na Amazônia Peruana – nos quais curadores, artistas e outros envolvidos na produção do evento visitam comunidades locais, reservas ecológicas, centros culturais e estúdios de artistas.

Comissionando os trabalhos criados em diálogo com grupos culturais diversos, a Bienal mostra também coerência com o conceito que a norteia, de “incerteza viva”, não só nos debates e temáticas que promove, mas nos próprios processos de produção das obras. Um trabalho feito em constante negociação com terceiros é também fruto do improviso e da experimentação, e não pode ter um resultado final preestabelecido, como explica Mujica. “Ao se trabalhar nesse diálogo com as pessoas, o resultado também é sempre incerto”, afirma. Incerto, segundo Volz, pois criado em relação com a vida concreta, ela mesma imprevisível: “A arte nos permite criar narrativas, provocar questionamentos e reflexões, mas na verdade são reflexões que partem da vida real em suas várias dimensões”. E ele conclui: “Isso tem a ver com entender que os níveis de conhecimento e abstração são múltiplos. E a polifonia entre comunidades indígenas, jamaicanas de dancehall, de artesãos e bordadeiras, de MCs de bregas e assim por diante, isso é o que nos interessa muito”.

2015 | 56a Bienal de Veneza: “Transgressão em Veneza”

Detalhe da obra Sem “Sem Título”, da série “Torção” (2015), de Sonia Gomes
Detalhe da obra Sem “Sem Título”, da série “Torção” (2015), de Sonia Gomes, presente na 56ª Bienal de Veneza
Por Ligia Braslauskas

“Edição histórica”“genial”, “corajosa”. A curadora Solange Farkas não mede elogios para All the World’s Futures (Todos os Futuros do Mundo), a 56a edição da Bienal de Arte de Veneza, sob a direção do curador nigeriano Okwui Enwezor.

Não é para menos. Grande parte dos artistas e projetos apresentados por Okwui coincide com a pesquisa que Farkas desenvolve na Associação Cultural Videobrasil. Desde 1996, com a 11a edição do Festival Internacional de Arte Contemporânea SESC_Videobrasil, a criadora e diretora se dedica a apresentar obras produzidas fora do eixo tradicional formado pelos EUA e pela Europa. América do Sul, Oriente Médio e África, seus destinos constantes, e, segundo ela, “o mundo tem uma urgência desse reposicionamento geopolítico” e Enwezor “foi corajoso ao fazer isso justo na Bienal de Veneza”.

Na 19a edição do Festival, que começa no dia 5 de outubro, dois artistas coincidem com a mostra italiana: a brasileira Sonia Gomes, convidada especial, e o sueco radicado em São Paulo, Runo Lagomarsino. Ele apresenta, a propósito, a mesma obra em cartaz em Veneza, Seguindo a Luz do Sol eu Apenas Descobri a Causa, uma história verídica sobre a dificuldade de destino para um monumento em homenagem a Cristóvão Colombo.

Leia, a seguir, por que Farkas considera “histórica” a edição em cartaz da Bienal de Veneza.

ARTE!Brasileiros — A Bienal de Veneza tem uma maioria de artistas de regiões como África e Oriente Médio, até agora com pouca visibilidade, mas com as quais você trabalha há pelo menos duas décadas. Você esperava isso de Enwezor?
Solange Farkas – Eu esperava, claro. Se tem alguém que poderia reposicionar o cenário das artes com essa perspectiva de olhar o mundo com a sua abrangência, e não apenas pela ótica ocidental, da Europa e dos EUA, esse cara é Enwezor. Isso a gente sabe pela pesquisa dele, que já foi vista na Documenta de Kassel (2002), na Bienal de Joanesburgo (1997), na Bienal de Gwanjiu (2008). Afinal, ele vem desse lugar do mundo, é um nigeriano que transita muito na África e nesses outros lugares. O fato de ele já ter realizado as mostras mais importantes em artes visuais fez com que essa fosse uma síntese da pesquisa dele e será seu legado, porque ele assumiu que não vai mais fazer grandes mostras. Agora, o mundo tem uma urgência desse reposicionamento geopolítico e isso está ocorrendo de forma evidente, então ele foi corajoso ao fazer isso justo na Bienal de Veneza, que é das mais tradicionais.

Mas ele também aborda a história da própria Bienal na mostra…
Isso é genial. Por ser a Bienal mais antiga, ela atravessou todos os eventos importantes do século XX. Eu não sabia, por exemplo, que a Bienal se manifestou contra o Golpe do Pinochet, no Chile, em 1974, como ele aborda na exposição atual. De certa forma, com isso, Veneza se redimiu por ter passado por duas guerras mundiais sem tomar posição, diferentemente da Documenta de Kassel, que nasce com uma perspectiva de revalorizar a arte moderna após o colapso do nazismo. Isso se insere ainda dentro dessas outras narrativas que o Enwezor apresenta. Nós vivemos em um momento histórico crítico, como ele mesmo fala, que é de crise financeira e social. Usar O Capital como fio condutor da Bienal é, sem dúvida, de uma coragem extraordinária e não foi aleatório. Acho que essa Bienal tem várias questões importantes e uma delas é mostrar o mundo nessa dimensão crítica, dando voz a artistas que tratam disso. Mas também não se trata de uma oposição ao mainstream, porque muitos artistas desse circuito participam com obras muito boas. Acho importante também ele ter encomendado trabalhos, há muita obra produzida para a Bienal, o que é sensacional.

Mas a recepção a essa Bienal no circuito das artes é bem negativa. Você acha que é preconceito?
Tenho certeza de que é preconceito. É aquela coisa simplista de quem olha e não sabe lidar porque não tem repertório, e a reação é negativa. Isso é tosco. Eu nunca vi uma Bienal com tanta gente desconhecida do circuito, mas que me é familiar porque eu transito na África e no Oriente Médio, por exemplo. São artistas que conheço em seu lugar de origem e nunca os vi em Veneza e nem vi Veneza com uma vibração tão incrível com as pessoas percebendo a importância desse gesto. E o que me chama a atenção é que muitos desses artistas abordam o silêncio em seus trabalhos, como a forma de comentar a rejeição.

Obra de Steve McQueen na Bienal de Veneza. Foto: Divulgação

Sonia Gomes se insere nesse tipo de pensamento?
Totalmente. Se você pensar quem é ela no contexto da arte brasileira, que ninguém conhece, que é sem voz, e que as pessoas estão começando a descobrir. Eu me surpreendi com o trabalho dela lá, esperava algo maior, e ela fez algo discreto, que foi entrando nas frestas das colunas, onde ela achava espaço, contaminando aquele espaço de forma linda e com uma organicidade impressionante. Tem muito trabalho assim, em especial o da senegalesa Fatou Kandé Senghor. É um documentário, até bastante convencional, de uma artesã que mora em aldeia e esculpe corpos de mulher. O nome dela é Seni Awa Camara. Ver isso em Veneza, em um local por onde todo mundo tem de passar, é incrível. Vi o filme inteiro e quase chorei. É dar voz para aquele lugar, é um deslocamento de tempo muito grande. Com isso, ele chancela algo que ainda não foi colonizado.

É interessante ver como o Enwezor não só alterou quem costuma estar ali representado, como de que forma apresentar, mudando radicalmente tanto o Pavilhão Central como o Arsenale.
Totalmente. Eu não me reconhecia naquele lugar. Frequento a Bienal há décadas e desta vez me perdi. É genial, e creio ser uma conquista ver essas mudanças.

No catálogo, ele afirma que a arte não precisa ser política, mas uma exposição nesse momento em Veneza precisa.
É claro. É óbvio. Existe uma urgência e os artistas vivem esse contexto e os trabalhos deles são contaminados por esse contexto, não tem como não chegar ali. Mesmo que não seja um trabalho claramente militante, e muitos não são, o mundo está de ponta-cabeça, é impossível não comentar.

O trabalho do Steve McQueen vai nesse sentido, não?
Sim. Ele é lindo e poético. Para mim, é o trabalho mais lindo da Bienal. É um susto. Eu conhecia uma das partes, o menino balançando na ponta do barco, que vi em Londres. Mas a segunda parte, sobre a morte dele, quando a gente vê a sepultura sendo construída, é triste demais. Todo o ritual, não tem palavras. E tem muitos trabalhos ali também que são claramente militantes, como o Invisible Borders, um coletivo de fotógrafos, escritores e cineastas da Nigéria, altamente articulados, que apresentaram o The Trans-African Project, e que pouquíssima gente conhece. Eles são extremamente importantes, para mim um dos trabalhos de ponta da arte contemporânea. E outro coletivo, o Abounaddara, que foi o próprio Enwezor que me apresentou anos atrás, de cineastas na Síria, anônimos por questão de segurança, senão eles morrem. Eles dão câmeras para as pessoas e registram todo esse massacre que acontece na Síria, é bem um trabalho de mídia tática. São curtas disponíveis na rede e que documentam o que acontece hoje e as vítimas da guerra. Durante a Bienal, os filmes são exibidos na Arena. Eles inventaram um novo gênero no cinema que se chama filme de urgência.

Tem um diálogo bem grande com a Bienal de São Paulo passada, não é?
Totalmente. O Charles Esche tem essa pesquisa, é verdade. Mas pela importância da Bienal de Veneza e por ela nunca ter transgredido de fato, esta é uma edição histórica.

2016 | 32a Bienal de São Paulo: “Bienal é fuga à monotonia”

"Dois pesos, duas medidas"
"Dois pesos, duas medidas" (2016), Lais Myrrha

As duas edições recentes da Bienal de São Paulo, tanto Como (…) Coisas que Não Existem, de 2014, quanto Incerteza Viva, que segue no pavilhão do Ibirapuera, possuem várias coincidências conceituais, entre elas o incentivo à criação de novas obras, realizadas especificamente no contexto das exposições.

O fomento à produção, portanto, parece ser uma característica fundamental que a Bienal de São Paulo passou a incorporar diante de uma situação de certa instabilidade no circuito das artes. Claramente, o setor mais organizado e com mais visibilidade é o mercado, com as galerias e feiras, que se tornaram locais de encontro ao mimetizarem, nos últimos tempos, algumas atividades que o próprio sistema de bienais criou como forma de repensar esse sistema.

Seminários, performances, ciclos de filmes e mostras com curadoria se tornaram comuns em feiras, como estratégia para dar consistência e glamour a um evento basicamente mercantil, que interessaria apenas a quem vende e compra. Foi com a Art Basel Miami Beach, em 2002, tendo à frente Samuel Keller, que feiras se renovaram e buscaram criar um novo perfil, não só com conteúdo, mas também em festas com celebridades, o que virou tendência nas feiras do mundo todo.

Em São Paulo, os museus não têm dado conta de fomentar a produção artística. O Museu de Arte Moderna de São Paulo, por exemplo, tem basicamente exposto seu acervo como estratégia de economizar em suas mostras, e algo semelhante vem ocorrendo no MAC-USP e na Pinacoteca do Estado, que raramente, aliás, exibem novos trabalhos de artistas. Muitas vezes, quando o fazem é graças a artistas que conseguem apoio em editais públicos independente das instituições.

Esse cenário torna-se mais lúgubre quando se recorda o papel que o MAC assumia nos anos 1970 e 1980, como local frequentado por jovens artistas, sob o estímulo de Walter Zanini, com as JACs (Jovem Arte Contemporânea), mostras organizadas anualmente no museu entre 1967 e 1974. A precariedade institucional da segunda metade do século XX, que garantia a muitos artistas ocuparem museus já que o faziam por iniciativa própria – Zanini chamava o MAC de museu-casa –, foi trocada por um significativo aporte de leis de incentivo que, contudo, não revertem a artistas, mas a produtores culturais, especialmente aqueles patrocinados por corporações financeiras.

“White Museum”, Rosa Barba. A instalação é uma é uma projeção de luz branca sobre a rampa de entrada do Pavilhão da Bienal
“White Museum”, Rosa Barba. A instalação é uma é uma projeção de luz branca sobre a rampa de entrada do Pavilhão da Bienal, cujo enquadramento, comum à fotografia e ao cinema, se torna uma presença física.

Com isso, a Bienal acabou por se tornar um dos poucos espaços para a produção de novas obras que podem ser de fato consideradas experimentais. Afinal, raras são as galerias que não apresentam objetos decorativos que possam ir direto para as paredes de colecionadores.

Nesse sentido, é significativo constatar que essa estratégia de abertura para o experimental partiu de times curatoriais com profissionais vinculados a instituições museológicas sólidas: Jochen Volz, o curador da edição atual, nos últimos anos trabalhou na Serpentine Galleries, de Londres, além de manter-se ligado a Inhotim, enquanto Charles Esche, um dos curadores da edição passada, era diretor do Museu Van Abbe, na Holanda, ao qual segue filiado.

Com isso, pode-se perceber como os responsáveis pelo sistema institucional deram conta de que o local de risco de fato é a Bienal, e parte das críticas atribuídas a essa edição se deve à constatação desse tipo de estratégia. No caso de Incerteza Viva, em que a maioria das obras foi feita por comissionamento dos curadores, não há como garantir um resultado totalmente de sucesso. Mas deve se cobrar isso em arte contemporânea? Erika Verzutti nunca havia feito trabalhos murais de grandes dimensões, assim como Lais Myrrha nunca havia construído estruturas monumentais, e nem Cristiano Lenhardt havia realizado uma performance de grande escala. Só a possibilidade de experimentação desses artistas já vale sua participação, uma vez que não é pelo critério de satisfação de uma ou outra personalidade ou de atenção do público que uma obra contemporânea deve ser avaliada.

A dificuldade, contudo, seria em como conciliar a vontade de um público amplo, portanto não acostumado à arte contemporânea, que a Fundação Bienal almeja, com ênfase em uma produção que poderia ser menos acessível. Quem visita a mostra agora percebe que não há uma má vontade aparente do público. Quem de fato tem reclamado são figuras com acesso aos meios de comunicação, que parecem querer na Bienal o mesmo tipo de arte comportada das feiras.

Se fosse assim, a cidade só teria um tipo de produção e a monotonia seria a tônica dominante. Em sua edição de 1910, o organizador da Bienal de Veneza retirou a única obra de Picasso do pavilhão espanhol com medo de que seu arrojo chocasse o público e, só em 1948, Picasso foi visto de fato na mãe das Bienais. Três anos depois, em 1951, Picasso seria visto na primeira edição da Bienal de São Paulo, que em sua segunda edição apresentou não só sua obra-prima, Guernica, como um conjunto de 74 obras do artista espanhol.

O arrojo é marca da Bienal de São Paulo, e o que as atuais edições estão apresentando segue apenas a tradição da mostra em se ocupar do presente acima de tudo. Se certas obras questionam a figura do artista e do próprio curador em detrimento de produções culturais mais complexas, é preciso buscar compreender o que isso significa em vez de ficar buscando fórmulas simples que determinem o que é arte e que se baseiem em gostos meramente pessoais.

2017 | 57a Bienal de Veneza: “Edição do evento italiano perde ousadia”

"Um Sagrado Lugar", Ernesto Neto. Foto: Divulgação
"Um Sagrado Lugar", Ernesto Neto. Foto: Divulgação
Por Vivian Mocellin

Viva Arte Viva, a mostra central da 57ª edição da Bienal de Veneza, é uma exposição politicamente correta ao limite. Ela reúne 120 artistas de todos os continentes, com obras representativas, desde grandes nomes, como Philippe Parreno, Olafur Eliasson, Ernesto Neto e Gabriel Orozco, até apostas jovens como a chinesa Guan Xiao, de 33 anos, e o marroquino Achraf Toulob, de 30 anos.

Há muitos artistas que nunca participaram da mostra, o que faz a seleção dar a impressão de correção na historiografia da arte vista a partir de Veneza, como ao incluir o holandês Bas Jan Ader (1942 – 1975), o brasileiro Paulo Bruscky e o chileno Juan Downey.

Contudo, o resultado do conjunto não é potente, possivelmente porque a mostra tem uma temperatura mais museológica, o que pode ter a ver com a curadoria estar a cargo da francesa Christine Macel, do Centro Pompidou, em Paris. A edição passada, a cargo de Okwui Enwezor, tinha uma voltagem muito mais alta, com o Manifesto Comunista no centro da exposição e obras que se relacionavam com leituras críticas da sociedade contemporânea.

O que motivaria essa atual frieza justamente durante os meses mais quentes da icônica cidade italiana? Por um lado, é patente que a mostra se constrói com poucos trabalhos comissionados, portanto ela parte de uma perspectiva mais histórica – mesmo que alguns trabalhos sejam recentes.

Por outro lado, é muito recorrente a apresentação de artistas com trabalhos significativos dos anos 1960 e 1970, quando tinha início a performance. Várias obras da mostra estão conectadas com esse momento. É caso da italiana Maria Lai (1919 – 2013), do húngaro Tibor Hajas, do holandês Ader, e do brasileiro Bruscky, entre tantos outros. Contudo, são artistas com produções que carregam o sentimento de déjà vu, apesar da originalidade de cada um em seu lugar.

As diversas caixas de madeira que Bruscky espalhou à frente do Pavilhão Central, por exemplo, fruto de uma performance, é uma obra com marca de datada, já que a referência à arte postal, com a ironia do que significa o transporte de uma obra de arte, perde um tanto o sentido com a falta de importância do correio na sociedade atual.

Aliás, Viva Arte Viva dá mesmo a impressão de que pior que cair nas radicalizações polarizadas que o mundo vive hoje é buscar agradar a todos com um consenso inclusivo. A exposição se divide em nove capítulos, dois deles no Pavilhão Central e outros nove no Arsenale. Cada capítulo ou pavilhão, o nome que acaba se contrapondo aos tradicionais pavilhões nacionais da mostra, é visto em um tema amplo e genérico, que vai desde questões específicas da arte, como o Pavilhão das Cores e o Pavilhão dos Artistas e Livros, passando por outros de temática social, como o Pavilhão do Comum e o da Terra, até temas exotéricos, como dos Xamãs, e do Tempo e do Infinito.

O Pavilhão do Comum, por exemplo, reúne artistas como a italiana Maria Lai, figura até o momento bastante à margem do sistema de arte, mas resgatada em 2017 em duas grandes mostras, já que além de Veneza, ela participa da Documenta de Kassel e Atenas. Na Bienal, Lai é vista de forma ampla, em obras de vários períodos de sua carreira, das intervenções performáticas em sua cidade natal, Ulassai, nos anos 1970, à esplêndida série Lenzuolo, de 1991, composta por textos costurados em tecidos, um trabalho manual impressionante.

Se há um eixo a ser notado na seleção de Macel, é o que trata de obras, com pouquíssimas exceções, que evitam qualquer sofisticação tecnológica e são constituídas por uma fatura manual, como na produção de Lai. Em certo sentido, com o excesso de conectividade do mundo contemporâneo e dependência absoluta das telas digitais, isso até representa um certo alívio, uma espécie de fuga para o essencial.

Nesse contexto, a instalação de Ernesto Neto se sobressai. Primeiro pela magnitude que suas obras vêm assumindo nos últimos anos, mas especialmente pelas relações que o artista vem desenvolvendo com os Huni Kuin, do Acre, e que acabam vinculando ao seu trabalho um caráter político, em defesa da dignidade dos povos indígenas.

A instalação de Neto chegou a ser muito criticada em jornais estrangeiros por apresentar uma faceta exótica do Brasil, como se a performance com os índios na abertura da exposição fosse semelhante aos índios expostos em jaulas no século XIX. De fato, foi um tanto chocante ver a elite globalizada do circuito da arte dançando ao lado dos Huni Kuin, como se estivessem no Carnaval. Contudo, isso não desautoriza a relação constante que Neto vem desenvolvendo com os índios, e como seu trabalho vem crescendo com essa parceria, especialmente em um momento que, no Brasil, se tornou política governamental o genocídio das populações indígenas.

Esse caráter quase artesanal da mostra é visto também nas obras da mexicana Cynthia Gutierrez, nos desenhos enlouquecidos e deslumbrantes do checo Lubos Plny, uma das revelações da Bienal, na produção de Sheila Hicks, com seus grandes novelos de lá, a obra mais fotografada desta edição, e em Abdoulaye Konaté, com seu painel Guarani, criado para o Festival Sesc_Videobrasil, em 2015. São alguns exemplos entre muitos possíveis de um procedimento que de fato se repete ao longo da mostra.

No entanto, a impressão final é que Macel olhou muito para trás, mas não deu conta de falar do agora. Com tantas tensões explodindo e crescendo por toda parte, evitar as crises atuais soa descabido.

Pavilhões Nacionais retratam presente obscuro

Se a mostra central evita os conflitos, os Pavilhões Nacionais trazem um retrato mais sombrio do mundo atual, a começar pelo norte-americano, a cargo de Mark Bradford. Tomorrow is another Day, o título de sua participação na mostra, apresenta um pavilhão sombrio, onde a parte exterior do edifício parece em ruínas e a primeira sala do circuito tem o teto praticamente no chão, uma alusão clara ao declínio dos EUA na era Trump.

Também o pavilhão da Inglaterra, a cargo de Phyllida Barlow, ganha uma atmosfera surreal, que mescla abandono e decadência, na arquitetura destruída do prédio, com bolas de concreto coloridas, uma espécie de delírio enlouquecido em tempos de Brexit.

Contudo, impacto mesmo consegue Cinthia Marcelle que, no pavilhão brasileiro, faz uma crítica contundente da situação do País. O acerto da escolha de apenas um artista para ocupar o espaço merece crédito a Jochen Volz. O curador se contrapôs às edições recentes que reuniram artistas e obras um tanto díspares.

Sozinha, Marcelle pode não só ocupar o espaço, como transformá-lo de maneira impressionante, ao mesmo tempo que simples. No chão, ela instalou grades, mimetizando as que existem no jardim da Bienal, mas alterando o nível, fazendo com que haja uma certa situação de irregularidade. Pedras estão encaixadas nessas grades, criando uma visão minimalista e de aparente estabilidade, mas que escondem ovos negros em uma lata, os ovos de uma serpente que sai das profundezas do pavilhão brasileiro e prevê obscuridade em alta intensidade. No vídeo realizado com Tiago Mata Machado, vê-se ainda uma situação de presidiários em motim. O caos é aqui e agora.

Sala de Estar — Sesc São Caetano

Já pensou em ver o acervo de arte brasileira do Sesc reunido em um só lugar? As obras que ficam permanentemente expostas nas unidades do Sesc em todo o estado de São Paulo foram são reunidas, com curadoria de Valquiria Prates, na mostra Sala de Estar, que acontece desde janeiro no Sesc São Caetano. São três momentos da mostra.

Devido à pandemia do novo coronavírus, as unidades do Sesc permanecem fechadas até que as autoridades de saúde responsáveis indiquem que há segurança o suficiente para as atividades serem continuadas. Fique de olho nas redes sociais do Sesc São Paulo para se informar sobre datas.

Assista ao vídeo acima.

Aproveite para conferir todos os registros de exposições do Sesc São Paulo que a ARTE!Brasileiros realiza desde 2018. Veja em nosso canal do Youtube.

Penitência segundo Guy Veloso

 

“Nem doença, nem faca, nem bala … Entre quarta e sexta-feira nenhum de nós morre”, confiam alguns dos devotos acompanhados pelo fotógrafo belenense Guy Veloso na Semana Santa. Esses, em específico, são vindos de Oriximiná, cidade no coração da Amazônia. Ao longo de 17 anos, Veloso registrou 203 grupos como esse, também chamados de confrarias, em 13 estados, nas cinco regiões do país. Parte de sua vasta pesquisa, composta por dados e fotos, é lançada agora em formato de livro, intitulado Penitentes – dos ritos de sangue à fascinação do fim do mundo, sendo esse o primeiro volume brasileiro de fotografias que aborda o tema dos penitentes com abrangência nacional. A publicação foi contemplada pelo Rumos Itaú Cultural de 2017-2018 e está disponível online. A curadoria do fotolivro é de Rosely Nakagawa, com epílogo escrito por ela, pelo filósofo Guilherme Ghisoni Da Silva, e pelo próprio Guy Veloso. 

Quem são os penitentes 

Os penitentes são grupos espontâneos, místicos, muitas vezes secretos, que saem noite adentro rezando pelos “espíritos sofredores”. Sua origem data do período medieval na Itália, quando os homens faziam um voto para expurgar os pecados individuais e coletivos. Para isso eles se açoitavam, recebendo o nome de “flagelantes”. No século 13, o voto propagou-se pelo Velho Mundo, particularmente durante a peste negra, perpassando séculos e encontrando campo fértil na Península Ibérica. Interpretando o texto “A Vontade de Saber”, de Michel Foucault, Rosely Nakagawa aponta que “muito além da confissão, o penitente deve ‘produzir a verdade’ concretamente, deixando marcas, provas deste flagelo”.

Hoje, a flagelação acontece apenas em 4% das congregações, em casos raros e dramáticos nas sociedades estritamente masculinas da Bahia, Ceará e Sergipe, praticantes do autoflagelo em formato semelhante ao de séculos atrás na Europa. São chamados aqui de Rito de Sangue, uma forma dos devotos de imitarem a Jesus. O voto é acompanhado de certas cobranças que precisam ser respeitadas rigorosamente, caso contrário, danos podem ser provocados à saúde pelos espíritos, crêem. Entre as obrigações estão abstinência de álcool, dança, jogatina e sexo; a este último, acreditam que o desrespeito possa levar ao sangramento excessivo durante a penitência e possivelmente à morte. O voto perdura um período de sete anos e a cerimônia do Rito de Sangue termina somente quando o capuz e a túnica vestidos estão completamente tingidos de rubro.

De forma geral, a penitência é praticada durante a Quaresma e a Semana Santa, com homens e mulheres realizando desfiles noturnos começando à meia noite: “Eles num momento morrem; e até à meia-noite os povos são perturbados, e passam, e os poderosos serão tomados não por mão humana” (Jó, 34:20). Os rituais, embora vestidos de teatralidade e mistério, são reservados, por vezes até sigilosos, algo justificado pelo preconceito sofrido pelos Recomendadores de Almas (como também são chamados) por parte da população local, além da discriminação da igreja e das perseguições policiais. Nesse sentido, o trabalho de Veloso  funciona para validar esses ritos que fazem parte da nossa cultura imaterial. Como afirma Guilherme Ghisoni da Silva no epílogo do livro: “Não devemos negar a cultura que temos, mas olhá-la nos olhos, como faz o fotógrafo, e compreender que o que lá é visível somos nós mesmos.” 

Nas influências europeia e africana, Veloso procura o sincretismo brasileiro que o leva a aprofundar a questão da penitência. Ela é inserida no Brasil pela colonização e passa por transformações à medida que entra em contato com um país multicultural, multiétnico, com fé diversa – demonstrada em múltiplas religiões como espiritismo, umbanda, pajelança -, e costumes, superstições e crenças locais coexistentes. Tanto que são organizações de base familiar que possuem autoridade; não existem lideranças centrais, nem dogmas, a penitência em si não se trata de uma religião, embora a maioria de seus praticantes se mostre católico, segundo Veloso. O sincretismo, que molda essas diferentes práticas, também acaba por fundir a cultura contemporânea regional brasileira ao culto de origem medieval europeia de maneira única. Algumas das imagens contidas no livro – como uma penitente com um celular na mão e a presença de carros e motocicletas – parecem um lembrete da contemporaneidade das imagens, nos tirando de uma paisagem que invoca tempos medievais e encarando algo que subsiste nos rincões do Brasil atual.

De nada pedem

De nada pedem os Encomendadores de Almas, pelo menos não para si mesmos. As cerimônias da penitência são imbuídas por forte altruísmo: são solicitados favores para as almas necessitadas, em outro plano; no nosso, as famílias que se encontram em luto são consoladas enquanto assistem seus entes queridos serem recordados. Quando saem noite adentro, os penitentes estão cobertos por vestuário incomum, não raro escondendo todo o corpo em tecidos brancos com cruzes bordadas. Sua chegada é anunciada pelo som soturno dos benditos, jaculatórias e ladainhas. Nunca devem eles olhar para trás, as comitivas marcham em fila indiana justamente por conta disso, pois a pena de quem se voltar para o caminho já andado é vislumbrar as almas que os acompanham nas procissões, pelo menos é o que reside na crença dos Irmãos de Almas. Uma regra com um núcleo quase filosófico. 

Documentando os Encomendadores de Almas

Várias dessas confrarias jamais tinham sido documentadas antes desse projeto. Veloso começou a pensá-lo ainda em 1998, quando viu na romaria de Juazeiro do Norte (CE) 15 pessoas com mantos azuis e cruzes bordadas nas costas. Aquele foi o primeiro grupo penitente que o fotógrafo teve contato, os chamados Aves de Jesus, embora tenha sido apenas em 2002 que esse “penitente iniciado” estruturou seu projeto de pesquisa e buscou organizações similares em outros estados do nordeste, expandindo para o território nacional a partir de 2009. 

Uma das ordens visitadas por ele, a dos penitentes de Juazeiro, na Bahia, o reconheceu como um de seus membros, permitindo sua participação nos cultos fechados. No livro, Veloso se refere a eles como “o meu grupo”, e é à líder dos De Trás da Banca, Dona Nenezinha, que ele dedica seu trabalho. Ao ser aceito e chegar mais perto em sua fotografia, física e metaforicamente, o belenense salvaguarda uma parte dessa tradição com a proeza de registrar tanto de algo tão escondido e tão passageiro. 

Junto com a arte e a religiosidade, há em sua obra um forte valor antropológico. Para Ghisoni da Silva: “A descoberta do fotógrafo, de que há Recomendadores das Almas nas cinco regiões do país, é uma prova de importante valor acadêmico”. Uma fascinante parcela desse mundo teria sido levada pelo vento caso Veloso não tivesse abordado a questão de tal maneira, colecionando entrevistas em vídeo e registros sonoros, peças originais dos votos, matracas e mantos – talvez o maior acervo do tema no Brasil. Esse aspecto é encontrado nos registros visuais pelo caráter documental que se firma em sua obra e coexiste com a forte expressão artística da qual as imagens são dotadas. Há a intimidade e o comprometimento com os fotografados, e o olhar de um pesquisador que se dedica há anos a documentar suas histórias. Um observador disposto a nos ceder o benefício de não ser despossuído de julgamento diante da imagem, mas de estender o convite a uma reflexão mais aprofundada. 

Dupla religiosidade

Em certo ponto do livro, Ghisoni da Silva questiona: “É a ascese espiritual do indivíduo retratado que dá força expressiva às imagens ou é a ascese espiritual do próprio fotógrafo?”. Ao que ele mesmo responde, afirmando que “é na união dessa dupla religiosidade, do que é visto e de que vê, que a documentação dos rituais religiosos alcança o estatuto de arte em Guy Veloso. É por vermos o mundo através de um olhar genuinamente espiritual que vultos na noite, encobertos em tecidos translúcidos, se tornam a porta de entrada para a dimensão inefável do divino”. Desde criança, quando assistia à passagem do Círio de Nazaré em frente à casa de sua avó, Veloso tem a busca pelo sagrado como parte de sua vida. 

O olhar espiritual referido acima é notável nas fotografias através dos borrões – vindos da baixa velocidade do diafragma para fotografar à noite sem flash e pouquíssima iluminação -, das distorções nas cores, nos fotogramas expostos mais de uma vez, pelas luzes “vazadas” no dispositivo e até pelos problemas na revelação, mantidos por Veloso da mesma forma como uma de sua fotos “resolvidas”. Tal estética foi tomando corpo no projeto e criou uma assinatura para Veloso. Afinal, a sua obra também é fotografia-expressão em que a maneira, o estilo, produz sentido, há o elogio da forma e a necessidade de um formato assumido pelo autor, como conceitua o teórico André Rouillé. Há muitos níveis de percepção nas imagens de Veloso, de um lado o da informação explícita e de outro lado o que é implícito, o indizível que toma forma e é subscrito na atmosfera criada pelo fotógrafo dentro de sua narrativa junto aos penitentes. Elas, as imagens, fascinam seja pelo desconforto que nos causam, pelo medo, excitação, curiosidade ou aflição, cumprindo a função da fotografia como um detonador de emoções.

A foto mostra o teto de um quarto de hotel, em Carmópolis, pintado como se fosse o céu
Quarto de hotel, Carmópolis-SE, 2018. Digital. Legenda do livro.

No começo do epílogo, o observador é indagado com algo que é cerne desse projeto e lhe é respondido ao ponto em que os registros se findam e começam as palavras: “Qual sentido a religiosidade pode ainda ter em um mundo no qual os filósofos já declararam a superação de Deus como o fundamento da realidade e os psicólogos, as patologias que acometem as superstições?”.


Guy Veloso: Penitentes
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Bienal de São Paulo adia mostra principal para outubro

Deana Lawson, "Mama Goma", 2014. Foto: Cortesia da artista

Em decorrência da pandemia do coronavírus que assola o Brasil e o mundo, a 34a Bienal de São Paulo divulgou hoje uma série de alterações em seu calendário oficial. “Com o objetivo de garantir a segurança de seus visitantes, artistas e colaboradores”, segundo comunicado assinado por José Olympio da Veiga Pereira (presidente da Fundação Bienal), a abertura da exposição coletiva passa do dia 5 de setembro para o dia 3 de outubro de 2020. A visitação será estendida até 13 de dezembro.

Além disso, as exposições de Clara Ianni e Deana Lawson, assim como as performances de autoria de León Ferrari e Hélio Oiticica, que aconteceriam entre abril e agosto, serão incorporadas à mostra coletiva. Em uma edição que propõe se espalhar por diversos espaços da cidade, “a diretoria da Fundação Bienal e a curadoria estão em diálogo com as instituições parceiras, a fim de tentar manter ao máximo a rede de exposições paralelas planejadas em conjunto com esses espaços”.

Clara Ianni, “Do Figurativismo ao Abstracionismo”. Foto: Coretesia da artista

O comunicado salienta, ainda, que mais informações sobre o calendário serão divulgadas nos momentos oportunos. “As atividades de programação pública, em curso desde o final do ano passado, serão retomadas assim que possível. Enquanto isso, conteúdos da 34ª Bienal serão compartilhados no site da instituição, em suas redes sociais e por meio de newsletters.”

Leia em nosso site, a partir da próxima semana, entrevista realizada por Maria Hirszman com os curadores Jacopo Crivelli Visconti e Paulo Miyada.