Início Site Página 90

MAM Rio lança novo Clube dos Colecionadores em ação solidária

Anna Bella Geiger, “Burocracia – O Mundo”, 2019. Divulgação

O Museu de Arte Moderna do Rio – MAM Rio lançou o programa Clube dos Colecionadores em ação solidária. O projeto destina metade do montante arrecadado com a venda de obras para a manutenção do museu, para o apoio de ações de arte, educação e desenvolvimento comunitário. A outra metade será encaminhada a dois projetos de ação social importantes no Rio de Janeiro: Lanchonete<>Lanchonete (Pequena África – Gamboa, RJ) e Galpão Bela Maré (Maré, RJ).

O Clube de Colecionadores do MAM Rio foi criado em 2004, como uma forma de democratizar e popularizar a arte a partir do estímulo à formação de novas coleções. A cada edição, cinco artistas são convidados pela Curadora de Artes Visuais do museu a desenvolverem trabalhos em formato de múltiplos. O resultado é um conjunto que destaca as possibilidades artísticas da produção contemporânea brasileira.

Para a edição #6 do programa, realizada em 2019, foram convidados os artistas: Anna Bella Geiger, Daniel Senise, Marcelo Cidade, Maxwell Alexandre e Denilson Baniwa, cujo trabalho ilustra a capa da nossa edição #50. Os 50 conjuntos de múltiplos remanescentes dessa edição compõem a ação solidária do MAM Rio. Em reconhecimento ao apoio ao projeto, os compradores recebem um ano de adesão ao programa Amigos do MAM, que oferece benefícios exclusivos como entrada gratuita no MAM Rio e SP e uma série de descontos. Vale lembrar que o museu encontra-se em fase de revitalização institucional e vem adaptando suas atividades para a web durante a pandemia.

50% dos recursos arrecadados serão direcionados à Lanchonete<>Lanchonete (Pequena África – Gamboa, RJ) e ao Galpão Bela Maré (Maré, RJ). A Lanchonete<>Lanchonete é uma cozinha comunitária e trabalho coletivo mobilizado pela artista Thelma Vilas Boas desde 2015. Já o Galpão Bela Maré integra o Observatório de Favelas, organização que inclui a cultura como parte da superação das desigualdades sociais, com atuação na Maré desde 2001. Ambas atuam fortemente no desenvolvimento de suas comunidades e redes de artistas de regiões vulneráveis da capital carioca.

As obras

Cada autor enviou uma descrição de sua obra ao MAM Rio para contar suas inspirações e até explorar um detalhe do trabalho. Confira abaixo as obras e as palavras de cada artista:

Maxwell Alexandre, “Sem título”, série Reprovados, 2019. Foto: Divulgação

Maxwell Alexandre: “Me veio à cabeça algo relacionado a série Reprovados (2018), sobre a rede municipal de ensino do Rio de Janeiro. A ideia de múltiplos poderia se referir a quantidade de alunos de uma turma, um pátio, ou ônibus escolar … Então escolhi a camisa da escola pública e como suporte o papel pardo, sínteses das séries Reprovados e Pardo é Papel (2018), respectivamente. As camisas de escolas servem para uniformizar/padronizar, mas vestem indivíduos. Pintar 100 camisas uma a uma, a mão, era uma maneira honesta de cruzar essas duas premissas. A única matriz usada no processo foi minha memória, do objeto idealizado ao gesto”.

Denilson Baniwa, ‘Metrô-Pamuri-Mahsã’, 2019. Foto: Divulgação

Denilson Baniwa: “No início do mundo havia a grande Cobra-Canoa-da-Transformação e foi ela quem levou embarcados em seu ventre todos primeiros humanos aos seus lugares onde vivem atém hoje. Esta grande serpente que veio do céu em forma de raio e relâmpago chama-se Pamurĩ Yuhkusiru. Na cidade em meio ao concreto e ferro, transitando diariamente no subterrâneo e com seu ventre abarrotado com diversidade incontáveis de identidades leva os humanos atuais aos seus lugares, a esta grande serpente de metal e olhos de leds dou o nome de Metrô-Pamurĩ-Mahsã (Cobra – Canoa-da-Gente-Metrôpolitana)”.

Daniel Senise, “Sem título (nuvem)”, 2019. Foto: Foto: Divulgação

Daniel Senise: “Quando eu era criança, meu pai, aviador, costumava fotografar suas viagens. Seu acervo de negativos está guardado comigo e uma boa parte dele é de nuvens. O trabalho que propus para o Clube dos Colecionadores usa uma dessas nuvens como elemento central: um momento no céu do norte ou do nordeste do Brasil há 60 anos, reenquadrado agora por mim”.

Marcelo Cidade, “Alerta de gatilho”, 2019. Foto: Divulgação

Marcelo Cidade: “O que proponho é um trabalho colaborativo entre o museu e eu, resultante em um contrato social. evidenciando essa troca como parte do trabalho. No documento, o museu se compromete a usar sua importância institucional para negociar a retirada de circulação de 100 gatilhos de armas de fogo que foram apreendidas pela polícia carioca. Os gatilhos dessas armas seriam doados (adquiridos) ao museu, e integrariam, junto com o contrato, o múltiplo que os colecionadores vão receber. A chave do trabalho é o fato de que uma arma sem gatilho não funciona, e a intenção da obra vai ser tentar romper com a lógica armamentista a partir do desmonte literal de 100 armas”.

Anna Bella Geiger, “Burocracia – O Mundo”, 2019. Divulgação

Anna Bella Geiger: “A sequência das quatro mulheres pronunciando a palavra BU-RO-CRA-CIA surgiu em 1974 como um dos “assuntos” para uma das páginas do meu caderno de artista–cartilha intitulado Sobre a Arte . É uma referência a um anúncio dos anos 1930 de um produto de brilhantina em que quatro rostos de mulher pronunciam silabicamente o nome da marca. Nas outras seis páginas do pequeno caderno constam as palavras IDEOLOGIA, AVENTUREIRISMO, e CORRENTES Dependentes/Dominantes, entre outras questõe s polêmicas na época. Ainda em 1974, passei o desenho da ‘Burocracia’ para a gravura em metal e para a pintura, mantendo propositalmente certo estilo de cartaz popular em que as palavras não possuem um padrão gráfico de ‘qualidade'”.

A ação solidária vai até 30 de junho 2020.

 

FAMA intensifica atuação virtual e prepara lançamento de catálogos online

A Fábrica de Arte Marcos Amaro, em Itu. Foto: Patricia Rousseaux

* Por Maria Hirszman e Marcos Grinspum Ferraz

Assim como a maioria das instituições culturais do país, a Fábrica de Arte Marcos Amaro (FAMA) teve que se reinventar rapidamente – no ambiente virtual – para continuar em contato com o público durante a quarentena. Diferentemente de outros museus e centros culturais mais antigos, no entanto, a FAMA – aberta em 2018 em Itu e vinculada à Fundação Marcos Amaro – ainda não possuía um vasto material audiovisual produzido. “Museus e instituições com um tempo de vida maior já tinham registros em vídeos, áudios e imagens em maior quantidade, estavam mais preparados do que os museus mais jovens como nós”, afirma Raquel Fayad, diretora geral da FAMA.

A solução encontrada foi desenvolver uma série de materiais “alinhando os setores de comunicação e design, audiovisual, educativo, museologia e curadoria”, como explica Fayad, e marcar presença constante (com conteúdo disponibilizado diariamente) nas redes sociais e no site da instituição. Sediada em espaço que abrigou no passado uma indústria têxtil no centro de Itu, no interior de São Paulo, a FAMA abriga o acervo do colecionador e artista Marcos Amaro e promove exposições, cursos e editais. A instituição já organizou, entre outras, mostras de Bispo do Rosário e Louise Bourgeois e prepara, para um futuro próximo, uma grande exposição com desenhos, estudos e anotações de Tarsila do Amaral (leia aqui texto de Tadeu Chiarelli).

Seguindo a proposta de acompanhar as iniciativas de diversas instituições culturais do país neste momento de quarentena, recolhemos um depoimento de Fayad sobre o trabalho que a FAMA está realizando e as dificuldades enfrentadas durante a pandemia do coronavírus (leia abaixo). Em seguida, conversamos com Marcos Amaro sobre o trabalho de catalogação do acervo. 

Raquel Fayad – “Este momento de quarentena por conta da pandemia colocou os museus em uma situação que, por um lado, impossibilitou a presença física do público, mas por outro provocou um olhar para o que as instituições podem promover para um público virtual.

Museus e instituições culturais com um tempo de vida maior, com mais histórico, já tinham registros em vídeos, áudios e imagens em maior quantidade, estavam mais preparados do que os museus mais jovens como nós. Talvez porque o mundo globalizado sinalizava este caminho, ou talvez por conta de algum outro momento de impedimento ter despertado esta necessidade.

Mas então como preparar conteúdos construtivos e interativos em um momento em que a equipe do museu está em home office? Como pensar situações possíveis para a manutenção do quadro de funcionários, impedidos de estar presencialmente para atender, receber e desenvolver ações no espaço?

Mais do que querer fazer como este ou aquele museu, acreditamos que nossa riqueza está nessa realidade de instituição jovem, com um corpo de mediação jovem e criativo, orientado pelos profissionais competentes e experientes que compõem a FAMA. A estratégia foi essencial para começarmos a divulgar nas nossas plataformas, nas mídias digitais, o que comporia o histórico deste momento, a partir de registros que temos e do que era possível fazer. A escolha foi fazer um exercício de composição, de olhar para as partes e criar um todo que se complementa a cada dia, criando relações temáticas, curatoriais e de conteúdo.

O projeto ‘Quarentena – #FAMAonline’ foi composto por uma série de conteúdos, um para cada dia da semana, além de atividades extras como o curso de desenho e o podcast. O que nos move, como equipe, é o desafio e a crença na arte. E este momento é um grande desafio para a nossa vida. É viver uma programação sem data, sem saber o que e quando será. É aprender a usar a percepção em outro nível, de modo atento à todas as informações e notícias que surgem a cada segundo.

É estar atento também à equipe, à saúde física e mental em tempos de confinamento, aos nossos desejos, nossas capacidades e incapacidades, à situação financeira e jurídica. É o momento de sobrevivência. Algo que gera no ser humano uma força e criatividade imensas. Mais do que sobreviver, precisamos viver e agir.

O momento ficou ideal para focarmos na catalogação, organização e documentação do acervo da FAMA (leia abaixo). Momento ideal também para ampliarmos a capacitação do Educativo, sob orientação da coordenadora Carla Borba e dos curadores Ricardo Resende e Ana Carolina Ralston. Os curadores e os mediadores criaram, desenvolveram e gravaram vídeos sobre os artistas pesquisados, além de o Educativo estar produzindo atividades de oficinas de arte.

Com uma direção e produção executiva que alinha os setores de comunicação e design, audiovisual, educativo, museologia e curadoria, nosso resultado está sendo ótimo e tem nos ensinado mais, com detalhes e curiosidades, sobre o nosso acervo, equipe e público. 

A partir disto, promovemos uma série de ações e atividades culturais, artísticas e educativas nas nossas redes sociais – sob o título de #FAMAonline -, disponibilizadas no nosso site, no Facebook e Instagram todos os dias. Elas são o #ObrasComentadas, #FAMAéCultura, #QuizFAMA, #TBT, #EducativoFAMA, #AcervoFAMA e #FAMINHA vai até você (saiba mais aqui).

Em paralelo, divulgamos o “Curso Básico de desenho em tempos de confinamento”, com as artistas Adalgisa Campos e Marcia Pastore, em que selecionamos 15 participantes para dois encontros semanais de abril à junho. E os encontros do Edital Meios e Processos 2020, que começariam em abril na FAMA, tiveram início online para as apresentações iniciais. O grupo seguirá em contato virtual com a orientadora Katia Salvany e o curador Andrés Hernandéz.

Em junho inauguraremos o #PodcastsFAMA, sendo a primeira série sobre a História da Arte, ministrado pelo Prof. Luis Armando Bagolin, com 6 episódios. E em agosto ficará pronto o #aplicativoFAMA. Temos como objetivo, estreitar a relação e diálogo com o nosso público, mesmo estando distantes.”

                                                                      *

Por dentro do acervo – Impossibilitado de abrir suas portas a pesquisadores e visitantes, a FAMA (Fábrica de Artes Marcos Amaro) elaborou uma estratégia nova, que atende um duplo objetivo: facilita o acesso, mesmo que virtual, à sua coleção, e amplia o trabalho de organização interna de suas obras. A ideia é lançar, aos poucos, uma série de catálogos online que reproduzam na íntegra as obras de uma série de artistas com representação significativa no acervo. O primeiro trio já tem sua primeira edição pronta e contempla os trabalhos de Farnese de Andrade, Amadeo Luciano Lorenzato e Flávio de Carvalho, cada um deles com cerca de 15 obras.

Num primeiro momento, essas publicações virtuais contemplam sobretudo as obras, mas a intenção é agregar aos poucos textos analíticos sobre os artistas e os trabalhos, assinados pela equipe de curadoria do museu (Ricardo Resende e Ana Carolina Ralston), bem como por críticos convidados. Segundo Marcos Amaro, fundador do FAMA, a escolha de três autores importantes de meados do século 20 para iniciar a divulgação das publicações on-line foi apenas uma coincidência. A coleção da instituição, que abriga a maior parte das aquisições feitas por ele desde 2008, quando iniciou o acervo, é bastante eclética, indo desde uma Nossa Senhora das Dores, de Aleijadinho, até obras contemporâneas. No total, são cerca de 5 mil itens. Dentre os artistas mais bem representados no acervo, Amaro cita nomes como Goeldi, Nuno Ramos, Samico e Carmela Gross.

A opção por essas leituras monográficas, em que as imagens das obras ganham um forte destaque, nasce de uma pesquisa empírica. Durante semanas, Amaro observou as propostas de relação interativa veiculadas desde o início da pandemia por diferentes instituições e concluiu que a fotografia ainda é a forma que permite uma relação mais efetiva com a obra. “Essa ainda é a melhor maneira de dar força para a coleção e torná-la um centro de pesquisa”, conclui ele.

“Temos um governo que não gosta de cultura e vemos a chegada de um certo fascismo”, diz Ricardo Ohtake

Ricardo Ohtake, diretor do Instituto Tomie Ohtake. Foto: Divulgação

Uma das figuras mais atuantes no campo da gestão cultural no Brasil nas últimas décadas, Ricardo Ohtake vê com grande preocupação o atual momento do país. Não só por conta da pandemia do novo coronavírus, mas pelas crises econômica, política e cultural que já davam as caras nos últimos anos. “Temos um governo que não gosta de cultura e também não gosta das posições progressistas que a cultura costuma ter”, diz ele em entrevista à arte!brasileiros.

Diretor do Instituto Tomie Ohtake desde sua fundação, em 2001, Ricardo vê no governo de Jair Bolsonaro não só características que se assemelham ao período da ditadura militar brasileira (1964-1985) – o que é explícito nas palavras do próprio presidente -, mas também traços do fascismo e do nazismo que governaram países europeus na primeira metade do século passado. “É uma situação muito perigosa”, afirma. 

Ainda assim, Ricardo segue firme com as atividades – agora virtuais – do Tomie Ohtake. “Nós temos que achar caminhos né? Se não podemos agir no país inteiro, pelo menos instituição por instituição, exposição por exposição”, afirma. “Temos que voltar a construir um projeto de país”, complementa, pensando tanto neste fazer cotidiano das instituições quanto em uma escala macro. “E um projeto de país tem a ver com arte, com educação e cultura.”

Filho da artista nipo-brasileira Tomie Ohtake, Ricardo, hoje aos 77 anos, se formou em arquitetura na FAU USP, onde ingressou no movimento estudantil durante o regime militar. Além de atuar como designer gráfico, Ohtake se aproximou ainda nos anos 1970 de projetos culturais e urbanísticos da prefeitura de São Paulo, tornando-se o primeiro diretor do Centro Cultural São Paulo, em 1982. Nos anos seguintes, foi diretor do Museu da Imagem e do Som (MIS-SP), da Cinemateca Brasileira, secretário da Cultura de São Paulo e secretário Municipal do Verde e do Meio Ambiente. Recebeu ainda o Prêmio Ciccillo Matarazzo para Personalidade do Ano em 2013 e assumiu a Cátedra Olavo Setúbal de Arte, Cultura e Ciência em 2017.

Tamanho prestígio não tornou simples, no entanto, o trabalho de captação de recursos para as exposições e atividades do Tomie Ohtake, como conta Ricardo na entrevista. “Também porque não temos um padrinho, um patrono, como a maioria das grandes instituições têm”, explica. Ohtake falou também sobre as atividades virtuais promovidas pelo instituto durante a quarentena, sobre o programa educativo do instituto e sobre o mercado de arte. Leia abaixo. 

ARTE! – Estamos passando por uma enorme crise por conta da pandemia do coronavírus, então eu queria começar perguntando como você vê esse momento e como estão lidando com isso no Instituto Tomie Ohtake? Como estão agindo e que tipo de planejamento é possível fazer?

Ricardo Ohtake – Nós estamos vivendo várias crises ao mesmo tempo. Uma delas é a crise econômica do país. De alguns anos para cá estamos tendo dificuldade de fazer as coisas por falta de dinheiro mesmo. Aí temos um outro problema que é uma questão política, porque nós temos um governo que não gosta de cultura e também não gosta das posições progressistas que a cultura costuma ter. Esse governo não quer saber de nada progressista e faz de tudo para atrapalhar a vida. E a terceira coisa é a crise com a pandemia do coronavírus, que faz com que a gente tenha que fechar as instituições culturais e que e a gente não possa sair de casa nem para fazer reuniões. E, como consequência, nós também não conseguimos fazer um planejamento, porque não sabemos quando é que vão acontecer as coisas. Então você leva as ideias até certo ponto e a partir daí não consegue planejar mais nada, fica tudo meio no ar.

ARTE! – Ainda assim existe uma atuação do instituto que segue, com os cursos online, o podcast, com o #juntosdistantes no Instagram…

Sim, a gente teve que inventar coisas para esse período, para não ficar sem que nada acontecesse. Então estamos também fazendo atividades, inclusive relacionadas ao assunto do coronavírus. No #juntosdistantes tomamos alguns depoimentos de pessoas que pensam de modo muito interessante sobre esse assunto. Convidamos pessoas que são pensadores de coisas muito profundas, ensaístas, professores, artistas etc., e com eles fazemos esses vídeos mais curtos. Vídeos de cinco ou dez minutos que têm dado um resultado muito interessante. Então a gente tem conseguido fazer algumas coisas. E seguimos também com os cursos online.

ARTE! – Pensando nessas propostas e nos cursos, fica muito clara uma preocupação educativa da instituição, que vem desde a sua fundação. Queria que você falasse um pouco sobre isso. A missão de um museu ou instituição cultural atualmente deve ir para além apenas da parte expositiva?

Bom, a gente abriu o instituto em 2001, há quase 20 anos, e a partir do segundo ano começamos a organizar essa parte educativa. Nós chamamos a Stela Barbieri, uma excelente artista e educadora, com uma ação muito forte. E ela, com ajuda do Agnaldo Farias, nosso primeiro curador, organizou um trabalho educativo muito intenso. No primeiro momento a gente pensou que queria resolver o problema educativo brasileiro. Pensamos isso de manhã, mas à tarde já vimos que era impossível, porque o problema é grande. Então nós resolvemos fazer uma coisa um pouco menos ambiciosa, mas sempre quisemos trabalhar com bastante gente, de forma que tivéssemos muitos alunos, que muitas pessoas pudessem se formar em arte. E que a arte fosse o caminho para a pessoa receber uma educação mais completa. E começamos a trabalhar junto à Secretaria Municipal de Educação, primeiro com o Fernando José de Almeida, depois com a Eny Maia e com a Cida Perez.    

Fachada do Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo. Foto: Divulgação

ARTE! – Isso tem a ver com algo que você já falou outras vezes, que é um desejo de aproximar o instituto das periferias, das escolas públicas, mesmo que ele esteja localizado em um bairro nobre da cidade?

Sim, o fato de trabalhar com escolas públicas já aproxima de um tipo de público que não é dos colégios mais de elite próximos ao instituto. Então nós fomos atrás da escola pública, neste sentido de pegar um público que não é aquele considerado culturalmente sofisticado. Mas é um pessoal de muita ação e vontade. E decidimos também que queríamos trabalhar mais do que com os alunos, mas com os professores. Porque os professores é que vão multiplicar para os alunos. E aí nós trabalhamos, no primeiro momento, com 4 mil professoras. Isso significava chegar a milhares de alunos. E dos cursos curtos do início passamos para cursos mais longos, de formação mesmo, de um semestre. E a gente envolvia teatro, cinema, desenho, música. Sem contar um mergulho na parte mais teórica. Depois, com a mudança de gestão na prefeitura, o projeto foi encerrado. Mas mais para a frente conseguimos retomar outros cursos para professores, não exatamente como aquele, mas também de formação.

ARTE! – E tem os cursos abertos para o público…

Sim, tem dois tipos de cursos. O primeiro são cursos de desenho, de história da arte, de colagem, de assuntos mais ou menos fechados. E também damos outros cursos que são de preparação crítica para jovens artistas.

ARTE! Você falou sobre o trabalho com diferentes áreas artísticas e linguagens que existia no curso para professores. Existe esse aspecto do Instituto Tomie Ohtake, que acho que se relaciona também com a sua trajetória pessoal, que é a multidisciplinaridade. Qual é a importância, no instituto, de trabalhar com diferentes áreas do conhecimento?

Acho que à medida que você vai abrindo o campo do conhecimento, o campo da experimentação, fica tudo mais interessante. A pessoa vê artes visuais, mas vai ver música, ver dança. Acho que é da maior importância cobrir todas essas áreas. E a gente se preocupa em trazer pessoas de altíssimo nível. Por exemplo, o coro da Osesp e o Grupo Pau Brasil. De dança, a gente traz o Ismael Ivo e o Balé da Cidade, que acho que é dos maiores grupos de dança do Brasil. E ele inclusive faz espetáculos especiais para nós, em diálogo com as exposições que estamos fazendo. Por exemplo, na exposição do Takashi Murakami. Já fizemos coisas também com a Orquestra de Câmara da ECA/USP, do Gil Jardim. Quando a gente fez a exposição do Miró, por exemplo, eles fizeram um concerto com músicas da época em que o artista viveu e da terra em que ele nasceu. E também vamos começar a trabalhar com literatura, com a Cooperifa, que reúne um pessoal impressionante. Eles fazem semanalmente um encontro em um bar na zona sul, com declamação de poesias e textos. E reúne um monte de gente, é uma coisa incrível. E vamos fazer um projeto com eles, junto com uma exposição.

ARTE! – Para além disso, arquitetura, urbanismo e design ganham um destaque especial no instituto. Pode falar um pouco sobre isso?

São as áreas que a gente trabalha mais diretamente. A gente faz exposições não só de artes visuais, mas também de arquitetura e design. Já fizemos várias exposições com arquitetos vencedores do Prêmio Pritzker (espécie de Nobel da arquitetura), como o Oscar Niemeyer. Fizemos também exposição do Vilanova Artigas, entre outros. E a gente organiza exposições de design também, de brasileiros e estrangeiros. Temos ainda as premiações, tanto de design quanto de arquitetura, que são principalmente para incentivar a produção contemporânea e de jovens.

ARTE! – Mas para além das exposições, existe uma preocupação de se abrir e dialogar com a cidade…

Claro. Por exemplo, uma das premiações que fazemos chama-se Territórios, voltada para escolas e professores da rede pública. E a gente vê qual tipo de trabalho esses professores estão realizando junto com seus alunos, junto com a escola, de atuação na cidade, nas proximidades da escola. E seleciona dez projetos e faz uma exposição com vídeos sobre eles. E tem coisas incríveis, desde mobiliário feito para uma praça perto da escola até trabalhos sociais. Temos feito esse prêmio com muito entusiasmo, porque dá muito resultado. E esse vasto programa de cultura e participação, do qual o prêmio faz parte, foi criado pelo Felipe Arruda, que tem trazido muita gente para o instituto.

ARTE! – Falando um pouco mais das artes visuais, em uma homenagem que você recebeu no Instituto de Estudos Avançados da USP alguns anos atrás, você afirmou que a arte mais vinculada ao mercado e às galerias é em geral uma arte mais formalista. E disse que o trabalho no instituto procura sair um pouco dessa zona mais dominada pelo mercado. Poderia explicar?

Isso que eu falei cerca de três anos atrás é algo que já vinha mudando um pouco e que agora acho que mudou mais. Essa arte muito formal, “bem feitinha”, ainda existe bastante, mas acho que o mercado tem se voltado mais também para uma arte mais política. E eu acho que em tempos como os que estamos vivendo temos que mostrar essa arte política, fugir de coisas mais conservadoras.

ARTE! – Ao mesmo tempo é possível perceber na programação do instituto, nos últimos anos, um grande número de mostras de grandes nomes, bastante vinculados também ao mercado. Desde contemporâneos como Murakami e Yayoi Kusama até modernos como Picasso, Dalí, Frida Kahlo e Miró. De que modo essas mostras de grande apelo são importantes para o instituto e se adequam a esse objetivo de não ser excessivamente ligado ao mercado?

Evidentemente não fazemos mostras só de coisas que estão fora do mercado. A organização de exposições grandes, como essas, a gente começou a fazer no sentido de trazer um público maior, que não estava frequentando o instituto. E este público não é o público “chique”, digamos assim. É um público de classes sociais mais baixas. E era isso que a gente queria trazer. Porque trabalhar apenas com a arte contemporânea menos conhecida pode acabar sendo uma coisa muito fechada, para poucos. Acho que a gente tem que chegar neste público que não está acostumado a frequentar espaços artísticos. E aí o cara vê o Picasso e de repente se interessa em ver outras coisas menos conhecidas também. É um processo.

E para você ver… como essas exposições são muito caras de produzir, nós começamos a cobrar em um dado momento. Era R$ 12 a entrada inteira e R$ 6 a meia. E sabe que isso mudou a cara do público? Deixou de ter o público mais popular. E então decidimos voltar a fazer gratuito, porque nossa ideia é essa, todo mundo poder ver. Mas o fato é que nós temos tido dificuldade de fazer essas mostras, porque são muito caras.

ARTE! – Mas o Murakami, que estava em cartaz recentemente, não é uma dessas?

O Murakami, apesar do que pode parecer, não é tanto assim de grande público. Ele não é tão conhecido no Brasil quanto a gente imagina. Ele é muito conhecido em outros lugares do mundo, especialmente nos EUA, mas depois fiquei sabendo que mesmo no Japão ele não é tão bem recebido assim.

Área expositiva do Instituto Tomie Ohtake durante mostra de Murakami. Foto: Divulgação

ARTE! – Nesse sentido, lembro de uma entrevista em que você falou que cada exposição que o instituto planeja realizar demanda uma batalha para conseguir recursos.

Sim, porque não temos um padrinho, um patrono, como a maioria das grandes instituições têm. Então a gente pena para fazer as exposições, não só as grandes, mas também as menores. A captação é mesmo difícil. Inclusive pensamos em reduzir um pouco o número de mostras. Estávamos organizando cerca de 17 mostras por ano, o que é muito. Provavelmente teremos que reduzir esse número para cerca de 12. E essas mostras grandes só poderemos programar quando conseguirmos um patrocinador logo de cara.

ARTE! – Como você mesmo disse, independentemente da quarentena já existia no Brasil um quadro muito conturbado e ameaçador para a cultura nos últimos tempos. Como trabalhar nesse momento?

Acho que o fato de ter um governo como esse atual exige que a gente invente as coisas para fazer. Precisamos ser mais inventivos. E acho que todo mundo na área cultural está pensando isso.

ARTE! – E tratar de questões políticas se torna mais difícil? Ou talvez se torne mais urgente?

Olha, em 2018 a gente fez uma exposição forte sobre o AI-5, com curadoria do Paulo Miyada – que é nosso curador-chefe -, porque completava 50 anos da data. E a gente vai organizando algumas exposições como essa, ligadas diretamente à questões políticas, e outras que não são assim tão diretas, mas que tem um caráter político. Por exemplo, fizemos a exposição daquele menino de Minas Gerais, o Pedro Moraleida, que se suicidou com 22 anos e era um cara com uma produção muito forte. Ele já conhecia tudo, de pintura, de história da arte, de filosofia, era um cara impressionante. E é uma mostra que tem esse caráter político.    

ARTE! – Falando sobre o AI-5, você é uma pessoa que tem um histórico de luta contra a ditadura militar na sua juventude. Em 2014, foi também autor do projeto de um monumento em homenagem aos mortos e desaparecidos políticos. Nós temos nesse momento um presidente que repetidamente defende a ditadura militar, homenageia figuras como Brilhante Ustra ou, recentemente, o major Curió… enfim, queria saber como você enxerga esse momento político.

Eu acho que a questão desse presidente não é só uma questão ideológica, digamos assim. Parece que tem uma questão psicológica também, como muitas pessoas dizem. Porque ele fala tanta bobagem. Claro que tem a ver com a posição ideológica dele, mas ele vai falando qualquer coisa, briga com todo mundo, vê todo mundo como inimigo, provoca todo mundo. Chama um ministro e depois manda embora, mesmo que sejam pessoas que rezam da cartilha dele, que são da mesma linha. Além disso, ele fala mentira demais, sobre tudo. Responde qualquer coisa mentindo e encerra o assunto. Então acho que é uma situação muito complicada, que eu realmente não sei como se faz para ultrapassar. Mas acho que as instituições democráticas do país precisam saber lidar com essas coisas. Todo mundo reclama, mas a rigor ninguém chega e peita para valer o homem. Agora, nós temos que achar caminhos né? Se não podemos agir no país inteiro, pelo menos que seja instituição por instituição, exposição por exposição… 

ARTE! – Inclusive a censura voltou a ser um assunto, depois de muito tempo.

Sim, essa coisa da censura é muito forte, e mostra a chegada de um certo fascismo… É uma situação muito perigosa.

ARTE! – Você vê paralelos desse governo com o período da ditadura militar?

Acho que tem sim. E pior do que isso, acho que tem um paralelo muito grande com a época do Hitler. Algumas situações que ele provoca são muito parecidas.

ARTE! – E nesse momento conturbado, de que modo você acha que a arte e a cultura podem ajudar, podem propor caminhos?

Acho que está todo mundo procurando caminhos, procurando saídas para isso tudo. E é muito difícil saber o que deve ser feito. Se soubéssemos já estaríamos fazendo. Então eu acho que cada um vai fazendo seu trabalho, algo que consiga responder a essa situação do país. E nós temos que voltar a construir um projeto de país. Projetos como tivemos no fim dos anos 1950 e começo dos 1960, antes do golpe, ou como tivemos de uns 20 anos para cá. E um projeto de país tem a ver com arte, com educação, cultura. Isso pensando no grande. E no pequeno é o que cada um já vinha fazendo e que vai adaptando. Mas acho que se não tiver essa visão do grande, perseguir isso, acho que a gente não vai conseguir sair desse ponto em que nós estamos. Acho que é isso o que temos que procurar.    

Arte na quarentena: confira novidades entre as iniciativas virtuais das instituições

Candombe (circa 1930) de Pedro Figari. Foto: divulgação MASP

Até o momento, o isolamento social é necessário para ajudar a achatar a curva de contágio do novo coronavírus; no estado de São Paulo, por exemplo, permanecem autorizados a funcionar apenas serviços essenciais, e a quarentena foi ampliada até o dia 31 de maio devido ao aumento do número de casos e mortes. Enquanto este período de recolhimento permanece, algumas instituições culturais apostam em novos projetos na web para trazer um pouco dos seus acervos e conteúdos para os internautas. Confira algumas novidades entre essas iniciativas:

MASP: Diálogos no Acervo

Já eram conhecidos o MASP Aúdios e a parceria do MASP com o Google Arts & Culture, que resultou na exibição online de 1.000 dos 8.000 ítens do acervo permanente do museu. Como forma de contornar o isolamento, a instituição começou o MASP em Casa, que revisita esse acervo e traz o perfil das obras em postagens nas suas redes sociais. 

Continuando a investir em uma empreitada digital, o MASP lançou também o [Curadoria] em Casa e uma série de lives no Instagram. O primeiro convida a equipe curatorial do museu a escrever, a partir de uma perspectiva pessoal, sobre uma obra ou lembrança de alguma forma relacionada ao MASP. 

As tentações de Santo Antão (circa 1500), de Hieronymus Bosch. Foto: divulgação

Agora, o MASP está movendo seu projeto Diálogos no Acervo para o Instagram. Com isso, seguidores serão apresentados a obras do acervo do museu por meio de elementos que compõem cada trabalho, como biografia do artista, técnica e contexto histórico. O Diálogos no Acervo será realizado sempre às terças às 16h, como uma forma de trazer as visitas guiadas presencialmente para o ambiente virtual. A primeira edição do Diálogos aborda a obra Candombe (circa 1930) de Pedro Figari; no dia 19 de maio o programa segue com As tentações de Santo Antão (circa 1500), de Hieronymus Bosch; no dia 19/5, e em 26 de maio é a vez de Campo de ação/campo de visão (2017), de Daniel de Paula.

#PaçoEmTodoLugar continua a explorar virtualmente a história da instituição

Seguindo a proposta Cultura em Casa, da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo, o Paço das Artes lançou, em 22 de março, a campanha #PaçoEmTodoLugar, apresentando uma programação nas redes sociais com conteúdos sobre a história da instituição, ações artísticas, educativas e interativas que envolvem projetos de artistas e exposições que já passaram pelo Paço das Artes.

A história da instituição – com memórias e depoimentos de quem fez parte da construção do Paço – foi o tema das postagens da primeira semana do projeto, que agora chega em sua quinta rodada temática. A programação da próxima quinzena gira em torno de “Paradoxo(s) da Arte Contemporânea: diálogos entre os acervos do MAC USP e do Paço das Artes”, mostra que aconteceu em 2018 com curadoria de Priscila Arantes e Ana Magalhães. A questão do paradoxo surgiu de uma reflexão proposta por Regina Silveira na obra “Paradoxo do Santo”, instalação que nos chama a pensar os conflitos de dominação da América Latina, contrapondo a imagem popular de Santiago Apóstolo à sombra projetada do monumento dedicado a Duque de Caxias. Tal conceito de paradoxos e contradições percorreu todos os trabalhos da mostra que apresentou obras de Alex Flemming, Fabiano Gonper, Felipe Cama, Nazareno Rodrigues, Rosângela Rennó, entre outros.

Seguindo nessa mesma linha, a próxima quinzena do #PaçoEmTodoLugar – que será finalizada em 24 de maio – vai explorar os paradoxos entre o público e o privado, ressaltando artistas cujas produções lidam com ambos os espaços.

“Convivência” (2020), Ana Teixeira. Foto: divulgação

Entre as ações destacam-se Convivência, de Ana Teixeira, projeto que a artista começou a desenvolver no início de seu confinamento em função da pandemia do coronavírus, e conversas com Giselle Beiguelman e Thiago Honório, além da apresentação de alguns de seus trabalhos nas redes sociais do Paço.

Itaú Cultural traz gratuitamente festival de filmes etnográficos e documentários

Esta é a última semana para checar os filmes da Janela Forumdoc – mostra com seis produções brasileiras exibidas na 23ª edição do Forumdoc: Festival do Filme Documentário e Etnográfico, realizado anualmente em Belo Horizonte. Yãmiyhex – As mulheres-espírito; Antonio e Piti; Eleições; Banquete Coutinho; Enquanto Estamos Aqui; e Mãtãnãg, a Encantada estão disponíveis no site do Itaú Cultural até o dia 19 de maio. Embora façam parte de uma mesma seleção, o cerne das histórias é diverso e também seus formatos; Mãtãnãg, a Encantada (Dir.: Charles Bicalho e Shawara Maxakali), por exemplo, é um curta-metragem de animação falado na língua Maxakali sobre um conto de amor com viés transcendental, enquanto Eleições (Dir.: Alice Riff), é um documentário que retrata a rotina de uma escola estadual do centro de São Paulo, durante as eleições do grêmio estudantil. Vale checar cada um dos seis filme exibidos gratuitamente. 

Frame do filme “Enquanto Estamos Aqui”, de Clarissa Campolina e Luiz Pretti. Foto: divulgação

Além do festival de filmes, até dia 17 de maio o Itaú Cultural participa, no Twitter, da sétima edição do MuseumWeek, organizado pela Culture For Causes Network. O MuseumWeek é inteiramente dedicado às instituições culturais nas mídias sociais. Em 2020, as ações são desenvolvidas em torno do tema União, ainda mais relevante agora. Mesmo englobadas em um tema maior, as postagens das instituições seguem hashtags diferentes a cada dia, entre elas Clima, Tecnologia e Sonhos. 

Confira outras iniciativas virtuais do Itaú Cultural neste link.

 

Com novo site, Bienal de São Paulo reforça presença online

Alfredo Jaar, "I Can’t Go On, I’ll Go On", 2019. Imagem: Cortesia do artista

Nesta terça-feira, 12 de maio, a Fundação Bienal lança o site bilíngue para a 34ª Bienal de São Paulo. Sob o título Faz escuro mas eu canto, a edição teve seu pontapé inicial em 8 de fevereiro – antes do surto do coronavírus alcançar o status de pandemia e da necessidade de isolamento social -, com a abertura da exposição de Ximena Garrido-Lecca e a performance realizada por Neo Muyanga, assistida por um público de quase 1,8 mil pessoas. Com a chegada da pandemia, a dinâmica de exposições individuais foi interrompida e as futuras mostras estão sendo repensadas pela curadoria da Bienal. Mesmo assim, embora a mostra coletiva tenha sido adiada de setembro para o dia 3 de outubro, a equipe da Bienal segue ativa e acaba de lançar o site da edição.

Paulo Miyada, curador-adjunto, Carla Zaccagnini, curadora convidada, Jacopo Crivelli Visconti, curador-geral, Ruth Estévez, curadora convidada e Francesco Stocchi, curador convidado. Equipe curatorial da 34a Bienal de São Paulo.
Paulo Miyada, curador-adjunto, Carla Zaccagnini, curadora convidada, Jacopo Crivelli Visconti, curador-geral, Ruth Estévez, curadora convidada e Francesco Stocchi, curador convidado. Foto: Pedro Ivo Trasferetti / Fundação Bienal de São Paulo

Novo site, novas confirmações

A 34ª Bienal terá a participação de cerca de 90 artistas, cujos anúncios têm sido graduais. Enquanto a Fundação não divulga a lista completa, o perfil dos artistas confirmados pode ser checado na nova página virtual. Aos 28 nomes que já constam na plataforma somam-se três novos artistas que contribuíram com a publicação educativa da 34ª Bienal: Carmela Gross, Daniel de Paula e Gustavo Caboco.

Gross já participou de sete edições da mostra. Seus trabalhos em grande escala se inserem no espaço urbano e assinalam um olhar crítico sobre a arquitetura e a história. Daniel de Paula, brasileiro nascido nos EUA, propõe em sua obra reflexões acerca da produção do espaço enquanto reprodução de dinâmicas de poder, revelando assim investigações críticas sobre as estruturas que moldam lugares e relações. O curitibano Gustavo Caboco, filho de mãe Wapichana, apresenta uma obra marcada pelo desejo à memória dos povos indígenas, pela repercussão das vozes desses povos e sua religação com o imaginário de luta e vida presentes em suas raízes – foi apenas em 2001 que Caboco conseguiu visitar a aldeia Canuanim (Roraima), de sua família.

Acesso gratuito às publicações da mostra

Seguindo a proposta da 34ª Bienal de expandir-se no tempo, as publicações do evento também começaram a ser lançadas em fevereiro de 2020 e se estenderão até outubro de 2020, por ocasião da inauguração da mostra coletiva. Tais publicações podem ser encontradas no site desta edição, com destaque para uma série de correspondências, elaboradas pela equipe curatorial da Bienal, para compartilhar com o público as reflexões sobre o desenvolvimento da 34ª edição.

Deana Lawson, “Oath”, 2013. Imagem: Cortesia do artista

Jacopo Crivelli Visconti e Paulo Miyada, curador geral e curador adjunto respectivamente, abordam a escuridão imprevisível da pandemia. “Em setembro, quando a mostra principal da Bienal abrir, quão sombrio estará o horizonte? É impossível prever”, escreve Miyada em uma correspondência “pré-isolamento”. Ao que Crivelli Visconti complementa: “Não previmos que a escuridão de que falávamos ficaria mais impenetrável ainda. Que a ameaça política e social à qual nos referíamos, simbólica e metaforicamente, de um momento para outro se tornaria também física, apesar de invisível”.

Já a curadora convidada Carla Zaccagni caminha rapidamente pelo processo de definição do título da Bienal. Ela comenta: “Decidimos chamá-la Faz escuro mas eu canto. Porque estamos em tempos escuros. E o escuro em que estamos é feito. Porque queremos olhar para esse escuro, olhar nesse escuro. Deixar que as pupilas se dilatem para capturar a luz que ainda há e começar a delinear vultos nas sombras.”.

Acervo multimídia mostra o que já veio e o que está por vir

Performance do artista sul-africano Neo Muyanga, apresentada no Pavilhão da Bienal em parceria com o coletivo Legítima Defesa. Foto: Levi Fanan/ Divulgação

Vale também vasculhar a parte multimídia disponibilizada, que conta, por exemplo, com o documentário sobre a realização da performance A Maze in Grace, de Neo Muyanga com Legítima Defesa + Bianca Turner, apresentada no dia 8 de fevereiro de 2020.

Embora as obras presentes na mostra coletiva ainda não estejam confirmadas, para cada artista foi criada uma galeria com algumas imagens referenciais de seu trabalho.

Desde 1996 a Bienal tem seu site próprio, sendo que todos podem ser vistos ou revistos no portal da Bienal, que também reúne conteúdos exclusivos sobre as diversas iniciativas culturais da Fundação Bienal e inclui o Arquivo Histórico Wanda Svevo, com mais de um milhão de documentos em torno das realizações das Bienais de São Paulo e seus desdobramentos na história da arte.

Confira também:

Em entrevista recente Jacopo Crivelli Visconti, curador da mostra, e Paulo Miyada, curador-adjunto, explicaram os principais contornos de seu projeto. Leia aqui.

 

Pioneiro da arte cinética, Abraham Palatnik morre aos 92 anos

Abraham Palatnik
O artista Abraham Palatnik em frente a uma de suas obras. Foto: Divulgação.

Morreu neste sábado (9 de maio de 2020), aos 92 anos, o artista Abraham Palatnik, vítima de Covid-19. Ele foi internado no dia 29 de abril em estado grave, após testar positivo para o novo coronavírus. Segundo pessoas próximas, ele sofria de doença pulmonar e contraíra uma pneumonia há seis meses. Um dos pioneiros da arte cinética no Brasil, Palatinik se consagrou pela criação de obras marcadas pela fusão entre o movimento, o tempo e a luz. Em 2017 a arte!brasileiros publicou texto de Vivian Mocellin sobre a mostra A Reinvenção da Pintura, uma grande exposição do artista que circulou por instituições como CCBB Rio e MAM-SP. Leia abaixo:

 

Um dos pioneiros da arte cinética no País, Abraham Palatnik ganha uma exposição no Centro Cultural Banco do Brasil no Rio de Janeiro (CCBB Rio). A mostra reúne 85 trabalhos do artista, nascido em Natal em 1928, de pais russos, criado em Tel Aviv, na então Palestina, e desde 1947 – há 70 anos, portanto – residente no Rio.

São pinturas, aparelhos cinecromáticos, objetos cinéticos e lúdicos, mobiliário e desenhos de projetos, provenientes de acervos particulares e institucionais do País e, principalmente, da coleção do próprio artista. A mostra, com curadoria de Pieter Tjabbes e Felipe Scovino, ocupa todo o segundo andar do CCBB.

“A história da arte mundial considera Palatnik um pioneiro da pintura e da escultura em movimento”, destaca Scovino. Tanto ele quanto Tjabbes apontam “o diálogo preciso entre tecnologia e intuição” como um  dado fortemente significativo do lugar que Palatnik ocupa no panorama da arte. “Além disso, o experimentalismo e a organicidade sobrevoam a sua trajetória. Dois dados aparentemente ambíguos que encontram uma simbiose perfeita”, afirmam.

Também fazem parte da exposição pinturas dos pacientes psiquiátricos do hospital do Engenho de Dentro – Emydgio de Barros (1895-1986) e Raphael Domingues (1912-1979) –, que influenciaram uma mudança de rota na carreira do artista. Ele conheceu os dois em 1948, ao visitar o Museu de Imagens do Inconsciente, criado no manicômio pela psiquiatra Nise da Silveira.

Detalhe de obra de Abraham Palatnik. Foto: Agência Brasil

A partir de suas idas ao hospital, Palatnik abandonou tintas e pincéis e não voltou mais à pintura figurativa. “Eles não tinham aprendido nada na escola, não frequentavam ateliês e, de repente, surgem imagens tão preciosas. De onde veio essa força interior? Não vou mais pintar porque minha pintura não valia nada, era uma porcaria”, relata Palatnik sobre a decisão que tomou na época.

O resgate para a vida artística veio de um encontro com o crítico Mário Pedrosa e da leitura de um livro indicado por ele, sobre Gestalt, de Norbert Wiener. Em 1949, ele começou a pesquisar sobre luz e movimento até criar/fabricar os “aparelhos cinecromáticos” – caixa com lâmpadas cujo deslocamento era acionado por motor, criando imagens de luzes e cores em movimento.

Foi com o cinecromático Azul e roxo em seu primeiro movimento que Palatnik participou da 1ª Bienal Internacional de São Paulo, em 1951, ganhando menção honrosa do júri internacional. Ainda nos anos 50, ele desenvolveu pesquisa em pintura abstrato-geométrica e também em design de móveis.

Em 1964, o artista cria os “objetos cinéticos”, construídos por hastes ou fios metálicos que têm nas extremidades discos de madeira de várias cores e são movimentados por um motor. No mesmo ano, participa da Bienal de Veneza, o que estimula sua carreira no circuito internacional.

MAM Rio faz chamada internacional para cargo de direção artística

MAM Rio. Foto: Divulgação

No dia 3 de maio, o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM Rio) completou 72 anos. A celebração da data veio na forma de uma chamada internacional sul-americana para um cargo novo na instituição: diretor-artístico. Desde janeiro de 2020, o MAM Rio está sob nova liderança com o diretor-executivo Fabio Szwarcwald e essa iniciativa faz parte de um reposicionamento da instituição, que conta com um dos mais importantes acervos de arte moderna e contemporânea da América Latina, com cerca de 15 mil obras. A recente chamada marca a primeira vez que o MAM Rio faz um processo seletivo aberto para uma posição de destaque.

“É parte da transformação do MAM Rio atrair profissionais que, com suas experiências e conhecimentos, contribuam para a construção de novas formas de atuação, pautadas por valores inclusivos em favor de um pensamento coletivo. O objetivo é promover o trânsito entre as diversas expressões artísticas, eliminando fronteiras e gerando integração entre gêneros e programas poéticos”, afirma Szwarcwald em texto divulgado pelo museu.

MAM Rio
Da esq. para a dir., Jochen Volz, Fabio Szwarcwald e Eduardo Saron. No seminário “Gestão Cultural: Desafios Contemporâneos”, organizado pela ARTE!Brasileiros e pelo Itaú Cultural. Foto: Divulgação

Para o diretor, a proposta de uma chamada aberta é “divulgar a iniciativa a um número maior e mais diversificado de profissionais com a possibilidade de contribuir com a visão de um museu contemporâneo, aberto, sustentável e solidário”, complementando que essa é uma visão que o MAM Rio deseja construir junto com os artistas, a sociedade e os públicos do museu.

A direção artística será responsável pela curadoria de artes visuais e pela gestão das coleções, além de ser responsável por áreas que abrangem desde as exposições até iniciativas e eventos dos departamentos de cinema, documentação e educação; além da parceria com a residência artística internacional Capacete, que terá suas atividades, agenda e processos de pesquisa integrados ao MAM Rio.

O contrato de trabalho tem prazo mínimo de dois anos, com possibilidade de renovação, e podem se candidatar profissionais de nacionalidade brasileira ou estrangeira, desde que tenham visto de residência e trabalho no Brasil ou cidadania de um dos países do Mercosul (Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, Paraguai, Peru e Uruguai).

Como participar

Para participar, os candidatos deverão encaminhar suas propostas, de acordo com as regras e os critérios divulgados no site do museu (www.mam.rio). O prazo final de recebimento será 24 de maio. Um comitê formado por funcionários da instituição e artistas externos vão avaliar as candidaturas.

Passada a primeira etapa do processo seletivo, cinco candidatos serão entrevistados para a segunda parte da convocatória. O prazo final de análise para a última etapa da chamada internacional é o dia 24 de julho, com resultado divulgado no dia 27 do mesmo mês – o prazo pode ser alterado em razão da quarentena.

A movimentação do MAM Rio ilustra os esforços dos museus e instituições diante dos desafios postos pelo isolamento social devido à pandemia do coronavírus. Para a Veja SP, Szwarcwald comentou que “a cultura é uma válvula de escape nesses tempos difíceis. As pessoas estão percebendo que a arte é uma forma de ver o mundo de outra forma e de propor soluções. A arte, assim como a ciência, diz para onde a gente vai. Acredito que a arte passará a ser mais valorizada quando a pandemia terminar.”. 

Confira também o seminário “Gestão Cultural: desafios contemporâneos”, realizado em 2019 pela arte!brasileiros e pelo Itaú Cultural, no qual Fabio Szwarcwald foi um dos convidados. Neste link.

 

Diários Imagéticos: a contribuição de um retrato para o debate sobre HIV/AIDS nos anos 1990

A mãe de David Kirby, Kay, segura uma fotografia de seu filho - tirada pelo fotógrafo Art Smith, de Ohio - antes do desenvolvimento das doenças relacionadas à AIDS. Foto: Therese Frare/ LIFE Magazine
A mãe de David Kirby, Kay, segura uma fotografia de seu filho - tirada pelo fotógrafo Art Smith, de Ohio - antes do desenvolvimento das doenças relacionadas à AIDS. Foto: Therese Frare/ LIFE Magazine

Há 30 anos, em 5 de maio de 1990, faleceu, na Casa Pater Noster em Columbus, Ohio, o ativista David Lawrence Kirby. O retrato, no momento de sua morte, cercado pela família e seu cuidador, Peta, foi registrado pela fotógrafa Therese Frare. A foto rendeu a Therese, no ano seguinte, o principal prêmio do fotojornalismo mundial, o World Press Photo. Pouco mais de uma década depois, em 2003, a fotografia foi considerada pela LIFE Magazine “a foto que mudou a face da AIDS” e foi incluída em 2016 no livro TIME 100 photographs: the most influential images of all time, da TIME Magazine, a detentora da publicação anterior.

Therese Frare, no instante [e lugar] decisivo[s]

Em janeiro de 1990, Therese Frare estava interessada em retratar as questões que cercavam o HIV/AIDS. Entretanto, uma das barreiras a serem contornadas era a dificuldade de encontrar um grupo de pessoas vivendo com HIV/AIDS que estivesse disposto a ser fotografado. Com medo da exposição por si só, mas também impactadas pelo teor negativo marcante das reportagens publicadas até então sobre o vírus, as pessoas que viviam com HIV/AIDS tinham receio de serem representadas, ainda mais em imagens, cujo papel na personalização da notícia pode ter efeitos dialéticos.

A Pater Noster House, em Columbus, foi uma exceção à regra, porque sua criadora e diretora Barb Cordle acreditava na importância de divulgar a finalidade e os objetivos da instituição. Com isso, a permissão para fotografar foi concedida a Frare, que logo estabeleceu uma relação com Peta, um voluntário que cuidava de David e outros pacientes. David, por sua vez, permitiu que Frare o fotografasse com a condição de que ela não tivesse lucros pessoais com a venda das imagens. Foi a relação estabelecida com Peta que possibilitou a Frare fotografar o falecimento de David.

No mesmo ano em que a fotógrafa começou seu trabalho na Pater Noster, o Ryan White CARE Act foi promulgado pelo Congresso estadunidense, após alguns meses do falecimento de Ryan White, um adolescente hemofílico de Indiana que havia contraído HIV aos 13 anos por transfusões de sangue contaminado. White fora expulso da escola na década de 1980 por ser portador do vírus e iniciou, com a mãe Jeanne White Ginder, uma batalha jurídica que elevou seu nome a um símbolo da luta contra a AIDS. Segundo a HRSA (Administração de Recursos e Serviços de Saúde dos Estados Unidos), o CARE é o maior programa do país focado especificamente em fornecer serviços de tratamento para pessoas de baixa renda vivendo com HIV que não têm seguro e/ou são carentes.

A despedida

Em 5 de maio de 1990, Frare e Peta estavam juntos na Pater Noster House quando outros voluntários vieram buscá-lo para que pudesse estar com David nos seus momentos finais. Frare conta que, a princípio, permaneceu fora do quarto de Kirby, só entrando quando a mãe de David pediu que ela fotografasse as despedidas da família; “eu entrei e fiquei em silêncio no canto, mal me mexendo, observando e fotografando a cena”. O processo, com maior detalhamento, é contado por Frare no documentário de curta-metragem The Face of AIDS (realizado pela TIME para seu projeto 100 photographs), no qual a fotógrafa percorre a sucessão de eventos daquele dia. No mini-doc também é mostrado o rolo de filme, com imagens do mesmo dia, de antes e depois, nem todas publicadas.

Nos registros de 5 de maio vemos Peta consolando David sozinho antes da chegada da família; as mãos de uma enfermeira do lar Pater Noster colocadas sobre as de David, sobre seu peito; e dois registros da mesma cena, por ângulos diferentes – um deles que ganhou notoriedade.

Em outra imagem está Kay Kirby, mãe de David, segurando uma foto do filho sorrindo, vestido com terno e gravata, com a face mais preenchida, antes de ter desenvolvido as doenças relacionadas à AIDS. 

A imagem notória

Na imagem premiada, David – com uma expressão já esmaecida – está em seus momentos finais. Reunidos com ele estão Peta, com a mão sobre seu braço; seu pai Bill, que enlaça a cabeça do filho nos braços enquanto chora; e sua irmã Susan que conforta a sobrinha do ativista ao seu lado. O toque pelo pai questiona a crença, ainda presente na época, que o HIV poderia ser transmitido pelo tato. O apoio de uma família fora dos grupos marginalizados confere valor à figura de David e assim ajuda a enfraquecer o estigma simbólico direcionado ao homem gay. “Ao fazer da AIDS um problema de todos e, portanto, assunto sobre o qual todos precisam ser educados, é subvertido o nosso entendimento da diferença entre o ‘nós’ e o ‘eles'”, escreve Susan Sontag em AIDS como metáfora. A foto destaca em David a figura do filho, ação que tem impacto no encurtamento da distância entre o “nós” e o “eles” citada por Sontag, até mesmo em um tempo tão hostil com as pessoas que viviam com HIV. 

Foto de Therese Frare ajudou a intensificar o debate acerca do HIV/AIDS
David Kirby – cercado por Peta e sua família – em seu leito de morte, Ohio, 1990. Foto: Therese Frare/ LIFE Magazine

Mesmo que possa reforçar estereótipos de representação de pessoas em estado terminal, a imagem de Frare “permite reconhecer o medo paralisante ao mesmo tempo em que desencadeia um impulso de fazer algo a respeito”, como escrevem Robert Hariman e John Louis Lucaites.

O enlace de David por Bill, congelado na imagem de Therese, consegue conectar-se ainda com uma das representações artísticas mais sólidas nos corações e mentes da população ocidental: A Pietà de Michelangelo.

Cores reunidas: A controversa campanha da Benetton

Tibor Kalman – editor-chefe da revista Colors, da grife de moda italiana Benetton – havia visto o retrato de David Kirby na LIFE de 1990 e pediu permissão à família e à fotógrafa para seu uso, que foi concedido. Assim, em 1992, a Benetton coloriu a fotografia, originalmente em preto e branco, com intuito de amenizar o caráter fotojornalístico e deixá-la mais próxima de uma propaganda. O trabalho foi realizado pela colorista Ann Rhoney com tinta a óleo em menos de vinte e quatro horas: “Eu queria capturar a dignidade de David. O mesmo sentimento que Therese deve ter tido, eu penso”.

Foto de Therese Frare ajudou a intensificar o debate acerca do HIV/AIDS
Foto de Therese Frare colorizada por Ann Rhoney e apropriada para uma leva de publicidade feita pela grife de moda italiana Benetton

O título oficial da imagem, contrariando o esperado, não era “AIDS”; a propaganda, a princípio, recebeu o nome de “Família”. Apesar disso, foi pessoalmente batizada por Oliviero Toscani – diretor criativo da Colors e responsável pela leva de publicidades “United Colors of Benetton – de “La Pietà”, que com sua explicação para tal adicionou ainda mais furor à questão:

“Pessoalmente eu a chamo de ‘La Pietà’ porque é a Pietà que é real. A Pietà de Michelangelo, na Renascença, pode ser falsa, Jesus Cristo pode ter nunca existido. Mas nós sabemos que esta morte ocorreu. Isso é real, e quanto mais real algo é, menos pessoas querem vê-lo. Sempre me intrigou o porquê aquilo que é falso tem sido aceito e a realidade tem sido rejeitada. AIDS é hoje um dos maiores problemas no mundo, então penso  que deveríamos mostrar algo a respeito.”

O uso da foto colorizada gerou reações mistas; indivíduos e grupos, variando desde católicos a ativistas da AIDS, expressaram indignação: “Eu não vi uma mensagem de empoderamento, não vi nenhum tipo de mensagem vinda daquele anúncio que pudesse fornecer às pessoas uma maneira de se tornarem ativas, de agirem em seu próprio mundo”, argumenta Marlene McCarty, integrante do grupo de ativismo da AIDS, Gran Fury, no mini-doc The Face of AIDS. Ainda nos Estados Unidos, outro grupo militante, o ACT Up, talvez o principal relacionado à causa, fez uma contra-campanha à peça publicitária com outdoors escritos “Existe apenas um pullover que esta fotografia deveria ser usada para vender”, acompanhados da foto de um preservativo masculino.

Na Inglaterra, a instituição de caridade Terrence Higgins Trust convocou um boicote à peça publicitária enquanto o The Guardian foi forçado a lançar um editorial justificando sua decisão de manter a propaganda. As revistas de moda Vogue, Elle e Marie Claire, em sua edição britânica, recusaram colocar a publicidade em suas páginas. O caso mais extremo foi na Alemanha, onde a companhia foi levada aos tribunais.

Diante das demandas por boicote da publicidade e as acusações de estarem usando Kirby e sua família, a Benetton argumentou que “em alguns países como Paraguai, essa foi a primeira campanha a falar sobre AIDS, e em muitos países foi a primeira campanha a ir além das medidas puramente preventivas e abordar temas como solidariedade para com pacientes com AIDS”. A favor da Benetton, somou-se uma declaração de Therese Frare à TIME, sobre uma afirmação de Bill Kirby: “Benetton não nos usou ou explorou. Nós a usamos. Por causa deles, sua foto foi vista ao redor do mundo, e é exatamente isso que David gostaria”.

Por volta de 2010, no aniversário de duas décadas da fotografia de Therese Frare, foi estimado pela TIME Magazine que 1 bilhão de pessoas haviam visto o retrato.

 

300 Desenhos reúne artistas em torno de causas humanitárias

Detalhe de "Árvore" (2013), Manuella Karmann doado para o 300 desenhos

Com o objetivo de arrecadar recursos para apoiar três importantes organizações filantrópicas – que estão desenvolvendo ações diretas durante a pandemia do Covid-19 -, o projeto 300 Desenhos reuniu um grupo voluntário de profissionais das artes visuais que conta com artistas em diversos estágios de carreira. As únicas diretrizes foram que o trabalho doado fosse um desenho, inédito ou não, em folha A4, permitindo a interpretação livre de cada participante e resultando em um corpo de trabalho coletivo e diverso.

 

 

Entre os convidados estão artistas consagrados como Ernesto Neto, Artur Lescher, Guto Lacaz e Jac Leirner, além de nomes emergentes como Anna Costa e Silva, Mariana Palma, Mano Penalva e Manuela Costa Lima.

Como funciona?

Ao contribuir com uma cota única de R$ 1000, os apoiadores do projeto são direcionados para o site do projeto, onde poderão visualizar as obras doadas e descobrir qual será a sua. Um ponto interessante é que a obra não é escolhida pelo apoiador, mas sim por um algoritmo da própria iniciativa. Assim, cada desenho é, de certa forma, designado ao seu dono como se a obra escolhesse o apoiador. Não há limite de colaborações, no entanto.

A campanha vai até o dia 10 de maio e quando for finalizada os fundos recolhidos serão doados em partes iguais para as três organizações filantrópicas escolhidas: APIB, CUFA e Habitat.

As organizações apoiadas

A APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) é referência no movimento nacional indígena. Nasceu para defender os direitos indígenas, articulando e reunindo organizações de todas as regiões do país.

CUFA (Central Única das Favelas) é responsável pela criação e implementação de projetos culturais, artísticos, esportivos e educacionais nas favelas e periferias de todo o Brasil. Sua ação teve início há mais de 20 anos.

Habitat Brasil faz parte da mobilização internacional Habitat for Humanity. No país, a organização atua desde 1992 para propor e incidir em políticas públicas de acesso à moradia. Além disso, promove ações de capacitação e, através de ações de voluntariado e mobilização, busca envolver a sociedade na luta pelo direito à moradia adequada.

Organização

Os organizadores do 300 Desenhos são Amanda Rodrigues Alves, Alexandre Gabriel, Camilla Barella, Carolina Câmara, Efrain Almeida, Erika Verzutti, Fernanda Brenner, Magê Abatayguara, Mel Marcondes e Paula Signorelli.

A hora e a vez de os democratas agirem

Claudio Tozzi, "A Prisão", 1968. Foto: Divulgação.

* Por André Singer, Christian Dunker, Cicero Araújo, Felipe Loureiro, Laura Carvalho, Leda Paulani, Ruy Braga, Vladimir Safatle

 

I. O projeto bolsonarista e a pandemia

Nas comunidades antigas, costumava-se escolher chefes com poderes excepcionais em duas ocasiões: na guerra e na epidemia. Os romanos chamavam esse poder concentrado de “ditadura”. Na época contemporânea, ditadura passou a ser o nome, não de um instrumento de governo passível de ser implementado em contextos de crise, mas de um regime político autoritário, necessariamente resultado de uma usurpação. A coincidência do nome nos lembra uma distinção sutil que o século XX provou fazer toda a diferença, confirmando um velho adágio: “a ocasião faz o ladrão”. 

A tentativa do presidente Jair Bolsonaro de instrumentalizar a Polícia Federal, que ocasionou a demissão do Ministro da Justiça, é apenas o último elo de uma longa cadeia de um projeto autoritário.

Antes da explosão do coronavírus, o núcleo duro do bolsonarismo vinha lançando as bases de um regime antidemocrático assentado na submissão das práticas de governo à lógica da mobilização permanente – nas redes, nas ruas, nas igrejas e, perigosamente, nos quartéis. Tal mobilização parte do diagnóstico do esgotamento dos espaços de negociação próprios à democracia liberal, mas não no sentido de reformá-la, muito menos substituí-la por mecanismos de democracia direta. Trata-se de uma guinada autoritária que se centra em uma liderança de culto personalista, cujos atos e palavras pretendem simbolizar a verdade, sem qualquer abertura para o dissenso.

Vemos o modelo espalhar-se pelo mundo. Tendo o presidente norte-americano Donald Trump como líder, Bolsonaro e o primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán formam alguns dos principais integrantes dessa internacional autoritária de extrema-direita. Orbán usou a crise do coronavírus para obter poderes excepcionais, representando o experimento autoritário furtivo mais bem realizado até agora. Diz-se furtivo, nos termos de Adam Przeworski, porque não decorre de um golpe de Estado, mas implementa-se aos poucos, alicerçado na letra da lei, e conduzido por líderes democraticamente eleitos – semelhante, aliás, à maneira pela qual determinados regimes fascistas ascenderam ao poder, como o nazismo alemão.

Ainda candidato à presidência, Bolsonaro dera inúmeras provas de seu projeto autoritário, indo de declarações favoráveis à ditadura militar (1964-1985) ao encorajamento de execuções extrajudiciais pela polícia; da negativa à legitimidade de adversários políticos a ameaças de golpes de Estado. Uma vez presidente, os ataques ao Estado de Direito continuaram. No final de outubro de 2019, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, porta-voz informal do presidente, ameaçou editar, em caso de radicalização, um novo AI-5. Um mês depois, o ministro da Fazenda, Paulo Guedes, repetiu a ameaça. Em janeiro deste ano, o líder do governo na Câmara, major Vitor Hugo (GO), afirmou que a Constituição prevê a suspensão de garantias e liberdades individuais e coletivas em caso de necessidade. Em fevereiro, o motim de policiais militares no Ceará, apoiado indiretamente pelo presidente, representou uma ameaça ainda maior à democracia, com quebra de autoridade militar, esvaziamento do poder de governadores, e demonstração da fidelidade de lideranças dos amotinados a Bolsonaro.

No Brasil pré-pandemia, o pretexto que vinha se formando para o fechamento da democracia era a missão de vencer o inimigo interno, caracterizado como antinacional e anticristão. Aqui se amalgamam um conjunto de estereótipos e preconceitos que perpassam concepções sobre família, sexualidade, gênero, raça, drogas, segurança, educação, cultura, ciência, propriedade privada, relações internacionais e, unindo tudo , o papel do Estado na sociedade e no mundo. Assentado na construção do inimigo doméstico, o projeto bolsonarista de poder impõe uma dinâmica de contínua transformação do país, visando a consolidação de uma sociedade intolerante, violenta, e voltada à preservação e aprofundamento das estruturas historicamente desiguais de poder, status e riqueza.

O horizonte maior do bolsonarismo é a mutação ideológica de setores da sociedade, que passam a operar, sem recalque algum, a partir de profunda indiferença, aversão à solidariedade, e falta de respeito ao próximo. Estamos diante de uma tentativa de revolução conservadora. Essa revolução conta com uma base  altamente mobilizada – e, o mais dramático, parte dela armada –, disposta a seguir cegamente os passos do líder. Alicerçado em sindicalismo militar, culto à violência, e glorificação das Forças Armadas e das polícias, Bolsonaro mantém seguidores fiéis nas fileiras dessas corporações, além de nas milícias. Trata-se de um poder que não se pode subestimar.   

De que forma a pandemia afeta esse projeto? Na Hungria, a fim de empregar a Covid-19 como pretexto para fechar ainda mais a democracia, Orbán teve que reconhecer a gravidade das ameaças à saúde pública que se abatem sobre o mundo. A adoção urgente de medidas restritivas para frear a transmissão do vírus serviu para que o primeiro-ministro húngaro disfarçasse as ambições ditatoriais. No contexto pandêmico, o parlamento do país, controlado pelo partido de Orbán, aprovou a possibilidade de o primeiro-ministro governar por decreto, cancelar eleições e punir disseminadores daquilo que o próprio Executivo considerasse como informações falsas que pusessem em risco a saúde da população. Ficou claro, ali, que a pandemia pode se transformar em grande ameaça à democracia, por tratar-se de um álibi perfeito para a necessidade de estabelecer um regime de exceção.

Mas a posição de Jair Bolsonaro tem sido, ao contrário, a de negar e esconder os enormes riscos trazidos pela doença. Em um primeiro momento, até mesmo a profundidade do colapso econômico causado pela pandemia foi minimizada: em 16 de março, o ministro da Economia Paulo Guedes ainda declarava que a economia brasileira “poderia perfeitamente crescer 2,5% neste ano”. Num segundo momento, o Planalto passou a reconhecer o perigo econômico, porém apenas para atribuí-lo às medidas restritivas tomadas por prefeitos e governadores. Nesse sentido, ao minimizar a pandemia, Jair Bolsonaro abriu mão da possibilidade de tomar ele próprio as rédeas da situação, acumulando poderes excepcionais como Orbán; ao contrário, vem se apresentando como paladino das liberdades individuais, do direito de trabalhar, de ir e vir e, até mesmo, da privacidade dos dados.

Para a perplexidade geral, porém, os sinais de que o horizonte continuava a ser a concretização do projeto autoritário não cessaram em meio ao negacionismo. Em 15 de março, suspeito de portar o vírus, Bolsonaro decidiu misturar-se a manifestantes em Brasília que pediam o fechamento do Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF). Alguns dias depois, declarou que decretar tanto o estado de sítio quanto o estado de defesa seria algo “relativamente fácil”, coisa de “poucas horas”, por meio de “medida legislativa para o Congresso.” Se aprovadas pelo Congresso, isso permitiria restringir direitos de reunião, sigilo telefônico e liberdade de imprensa, além de viabilizar busca e apreensão em domicílio sem mandato judicial e até mesmo prisão por “crime contra o Estado”. Em 19 de abril, Dia do Exército, Bolsonaro discursou diante de manifestantes pró-intervenção militar em Brasília na frente do QG do Exército, dizendo que não haveria mais “negociação” possível com os patifes (leia-se: Rodrigo Maia e STF, principais alvos da manifestação), e que “agora é o povo no poder”.

A escalada contra o Estado de Direito, o negacionismo e a tática de esgarçamento das instituições vêm inflando a oposição ao presidente no Legislativo, no STF e dentro de seu próprio ministério, além de ter provocado perda de apoio ao governo em parte das elites econômicas do país. A garantia por parte do STF da autonomia de estados e municípios para determinarem políticas de isolamento social e as dificuldades para demitir o ex-Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, cujas políticas opunham-se diametralmente à retórica presidencial, sinalizam um contexto menos favorável ao projeto bolsonarista. Do mesmo modo, a saída do ministro Sérgio Moro representa um duro movimento de desconstituição da rede de apoios institucionais que sustentavam o presidente.

Ocorre que o isolamento político e institucional de Bolsonaro funciona para reforçar o mito do “salvador acorrentado”, refém de instituições corruptas e antinacionais, permitindo-lhe manter a prática de jogar nas costas de supostos inimigos internos – agora representados especialmente pelos governadores e pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia – a culpa por uma potencial perturbação da ordem pública, enquanto o presidente seria o único preocupado com a defesa do emprego e da renda da população. Com isso, Bolsonaro visa ampliar apoio junto às camadas populares desprotegidas e consolidar sua relação com setores empresariais – como o varejo, por exemplo –, que sofrerão impactos profundos do que deve ser a maior queda anual de PIB de nossa história.

Apesar de ser uma aposta de altíssimo risco, ela poderá prosperar a depender da longevidade e gravidade da crise. Somando-se o culto quase religioso à personalidade de Bolsonaro com o fato de parte significativa dos apoiadores estar armada, concentrando-se nas fileiras inferiores do Exército (cabos, sargentos, tenentes e capitães), nas polícias e nas milícias, temos uma combinação explosiva para contextos de instabilidade e incerteza, ainda mais em se tratando de uma figura cujo projeto é exatamente o de destruir a democracia. Trata-se, em suma, de um projeto de revolução conservadora que é capaz de colocar Jesus Cristo atrás de uma arma e de militarizar nossas escolas.

II. As contradições do bolsonarismo

Mas a pandemia também cria uma oportunidade para os opositores do presidente. Por constituir um inimigo literalmente invisível, o combate ao vírus precisa ser coletivo para ser eficaz. Agir em coletividade, no entanto, representa diluir as divisões com as quais o bolsonarismo opera, com sua desumanização de inimigos internos e sua permanente polarização do bem contra o mal. Daí também o porquê de Bolsonaro negar a existência de uma ameaça à saúde pública, recriando dicotomias que mantenham os adeptos permanentemente mobilizados. 

O ponto crucial de seu argumento é: como comparar a morte física de alguns à morte econômica do país, impedido de produzir, trabalhar e sustentar os filhos, que resultaria em número infinitamente maior de mortes? O Brasil está sendo colocado diante de uma escolha falsa: ou a morte física provável ou a morte econômica certa. A terceira e óbvia saída, que recusa o dilema entre a morte econômica e a morte física, envolve minimizar o quanto possível a letalidade do vírus, via isolamento social – este último coordenado com estados e municípios e amparado por amplo apoio emergencial ao sistema público de saúde –; e atenuar também, na magnitude e no tempo necessários, a perda de renda e emprego, a partir da aprovação de medidas de proteção e de apoio a setores econômicos em colapso.

A adoção do terceiro caminho exigiria o abandono de dois dos principais pilares do bolsonarismo. Para frear o contágio do vírus e evitar o colapso do sistema hospitalar, é necessário valorizar mais do que nunca a ciência e a universidade, deixando de lado o antiintelectualismo que está na essência, sobretudo, da ala olavista. Para preservar ao máximo a renda da população durante a fase de isolamento e impedir uma depressão da economia após o controle da pandemia, é preciso pôr fim ao fundamentalismo de mercado que ajudou a eleger Bolsonaro. Essa questão não precisou ser enfrentada, por exemplo, por Viktor Orbán na Hungria, que une à plataforma autoritária uma forte oposição ao neoliberalismo e à globalização. 

Para eleger-se presidente em 2018, ao invés de culpar estrangeiros pela perda de empregos, como fizeram líderes de extrema direita em países do Norte global, Bolsonaro aproveitou-se da frustração crescente da população com a piora das condições de vida desde 2014-16 para reforçar o senso comum de que a corrupção do establishment político – e da esquerda, em particular – teria sido a responsável pela recessão econômica. Para a economia voltar a crescer, seria necessário, portanto, livrar-se do próprio Estado em suas diversas esferas de atuação, exceto a da segurança e encarceramento.

Em meio à crise atual, que requer mais do que nunca a atuação do Estado, o governo se vê em uma encruzilhada. De um lado, se não abandonar o fundamentalismo de mercado, terá de lidar com a perda de popularidade entre os mais afetados pela crise. De outro, ao mudar radicalmente o discurso na economia, expõe contradições intestinas. Assim, o que estamos vendo são tentativas de fazer um pouco de cada.

Em uma mudança improvisada, mas substantiva, ao ser pressionado por projetos aprovados a toque de caixa pelo Congresso, o governo acabou implementando medidas radicalmente contrárias ao DNA neoliberal, entre as quais a concessão de vultosos recursos para o programa de renda básica emergencial, o pagamento de parte do seguro-desemprego para trabalhadores com redução de jornada, a desoneração de diversos setores econômicos, e a oferta de linhas de crédito subsidiado para empresas em dificuldade. No último dia 22 de abril, sem a presença de nenhum representante do Ministério da Economia, o Ministro da Casa Civil, Walter Braga Netto, anunciou um plano de recuperação econômica de R$ 30 bilhões em investimentos em infraestrutura até 2022. De outro lado, apesar das importantes mudanças, a equipe econômica mantém o discurso neoliberal de que serão necessárias reformas estruturais, cortes agressivos de despesas e privatizações no contexto pós-pandemia.

No caso do pilar antiintelectual, a resposta foi menos ambígua. O presidente recusou-se por completo a valorizar a ciência e a apoiar as medidas de isolamento, optando, em sua qualidade de chefe de Estado e de governo, por uma verdadeira sentença de morte aos grupos de risco. Ao mostrar-se indiferente à tarefa de proteger os cidadãos contra a ameaça da morte, Bolsonaro rompe com o princípio basilar do pacto social e com a justificativa da existência do próprio Estado: a garantia do direito à vida.

As informações que surgem a cada dia sobre a dinâmica de espraiamento da pandemia, a natureza da doença produzida pelo coronavírus e as terapias eficazes para tratá-la ou preveni-la ainda precisam ser submetidas ao método científico de verificação e refutação empíricas – algo que requer tempo e cautela. Entretanto, com base no que já aconteceu em outros países, acumulam-se evidências sobre o grau de letalidade da Covid-19 e a grande variedade dos grupos de risco. No contexto em que a realidade tende a se impor sobre teorias conspiratórias com a força persuasiva do número de mortos e doentes, o modus operandi típico do bolsonarismo arrisca-se a perder força.

Há também fortes evidências de que os mais pobres serão muito mais afetados, não só pelo maior número de contaminações (transporte público, número de pessoas no domicílio, falta de acesso a saneamento, dificuldade de manter o isolamento sem perda excessiva de renda ou emprego), mas também pela maior gravidade dos casos pela incidência de comorbidades. A desigualdade no acesso à saúde é abissal: quase cinco vezes mais leitos de UTI por 10 mil habitantes na rede privada do que no SUS. Ou seja, os mais vulneráveis à morte econômica também são os mais vulneráveis à morte física, o que pode fazer das pressões por menos desigualdade uma questão de sobrevivência. 

Nesse sentido, é na profunda indiferença do bolsonarismo ao direito à vida que jaz seu calcanhar de Aquiles em contexto de pandemia. Esta fraqueza merece toda a atenção dos setores democráticos, uma vez que pode ser convertida em fator poderoso para barrar o projeto autoritário e retirar seu chefe da presidência. A solidariedade e o espírito de comunidade que se formam em torno da experiência coletiva do adoecimento representam a antítese dos afetos típicos da onda neofascista.

A pandemia vem desencadeando uma coordenação de esforços de solidariedade que confronta diretamente o profundo descaso social do governo. Um caleidoscópio de movimentos com foco na assistência de áreas periféricas das grandes cidades ganhou força, especialmente na região metropolitana de São Paulo, a maior do país e a mais afetada pelo vírus até aqui em termos absolutos. Alguns desses grupos são antigos, outros nasceram do próprio acontecimento ou da união de movimentos populares pré-existentes. Todos, porém, do G10 Favelas ao UNAS Heliópolis e Região, do Movimentos Populares Contra o Covid-19 à Campanha Jd. Ângela Contra o Covid 19, articulam-se pelas redes sociais, com a ajuda de voluntários – religiosos e laicos – que atuam in loco nas periferias, formando uma linha de frente tão importante contra a crise quanto aquela constituída por profissionais de saúde em hospitais.

A constituição das experiências vinculadas à dependência mútua e à vulnerabilidade tem o potencial não somente de quebrar a polarização entre patriotas e inimigos da nação, mas também contêm, em seu germe, a própria negação da lógica de esvaziamento da capacidade estatal de atuação e de mobilização de recursos, indo ao encontro, a partir da base da sociedade, das políticas de cunho social recentemente aprovadas pelo Congresso Nacional e das novas formas de “governar” suscitadas pela pandemia. As iniciativas de solidariedade podem se constituir no embrião de uma nova agenda de combate político.

É fácil perceber o potencial de mobilização que há aí para tornar permanentes as medidas de proteção social adotadas durante a fase de combate à pandemia e para a criação de sistemas efetivos de tributação da renda e do patrimônio dos mais ricos, a fim de distribuir melhor os custos da crise e impedir o retorno das políticas de austeridade. A garantia de recursos para a saúde pública, pesquisa científica, saneamento básico e outras áreas que a pandemia torna prioritárias exigirá também a mobilização intensa da sociedade civil em torno da revisão do teto de gastos. Certamente essas demandas enfrentarão forte resistência dos adeptos do Estado mínimo, mas o contexto engendrado pela agressividade do novo coronavírus abriu espaço para a construção de uma agenda efetiva de transformação social, que deve servir como pilar na luta da sociedade contra o autoritarismo.

III. A hora da decisão

O problema é que ao provocar o que pode se tornar a maior crise econômica da história do capitalismo, em meio ao grande número de óbitos derivados diretamente do vírus, o coronavírus ameaça, também,  produzir um ambiente turbulento e propício aos ataques contra a democracia. Uma liderança autoritária, como a do atual presidente, vai se lançar a todo o tipo de aventuras, usando os piores estratagemas – desde doses cavalares de desinformação e cortinas de fumaça até a instigação de violência contra “inimigos”. Bolsonaro é o tipo de figura que não economiza no hábito de apontar o dedo e linchar “culpados”, insuflando seguidores a destruir os obstáculos que estariam mantendo o “mito” acorrentado e que o impediriam de governar para o bem da nação. Tudo em meio a uma malta armada e fanática. Alguém duvida de quão trágica poderá ser essa história se nada for feito para barrá-lo?

Dado que a pandemia abriu janelas de oportunidades para os setores democráticos, expondo as contradições desse projeto nefasto, é esta a hora de agir. Nunca estivemos tão próximos do precipício, como deixa evidente o discurso de Bolsonaro no Dia do Exército, quando nem se deu ao trabalho de disfarçar sua disposição para golpear mortalmente as instituições democráticas. Não há como imaginar que os fanáticos que o seguem se restringirão ao plano da retórica, furtando-se de sacar as armas caso sejam convocados a salvar aquele que cegamente idolatram. Editoriais de jornal, admoestações, “broncas”, sermões edificantes, mesmo as resoluções de contenção dos demais poderes constitucionais, nada disso terá o dom de os dissuadir. Aliás, quanto mais essas manifestações se repetem sem trazer consequências, mais perdem autoridade.

Só um gesto contundente e decisivo poderá alcançar aquilo que as palavras apenas não são mais capazes de obter. Sabemos que setores conservadores e liberais, predominantes no Congresso Nacional, e importantes em vários setores da sociedade civil, hesitam em dar esse passo e ainda buscam modos de evitar o confronto incontornável. A eles, lembremos o que disse o então parlamentar Winston Churchill sobre a estratégia dos governantes de seu país, à época liderados pelo também conservador Neville Chamberlain, a fim de apaziguar Hitler no contexto imediatamente anterior à eclosão da 2ª Guerra Mundial: “Preferem perder a honra a ter a guerra. No fim, perderão a honra e terão a guerra”. Só que com uma diferença: terão a guerra em condições piores.

Quando a pandemia mostra de modo cru a face desumana e violenta do bolsonarismo, é urgente que todas as forças democráticas do Brasil unam-se de vez para dar um basta à escalada do projeto autoritário, colocando o afastamento de Bolsonaro do poder como prioridade número um da agenda. Antes que seja tarde demais.


* André Singer, Professor Titular do Departamento de Ciência Política da USP
* Christian Dunker, Professor Titular do Instituto de Psicologia da USP
* Cicero Araújo, Professor Titular do Departamento de Ciência Política da USP
* Felipe Loureiro, Professor Associado do Instituto de Relações Internacionais da USP
* Laura Carvalho, Professora Associada do Departamento de Economia da USP
* Leda Paulani, Professora Titular do Departamento de Economia da USP
* Ruy Braga, Professor Titular do Departamento de Sociologia da USP
* Vladimir Safatle, Professor Titular do Departamento de Filosofia da USP