Início Site Página 90

Diários imagéticos: Covid-19

Thomas Dworzak. Paris. 20 de março. Legenda do autor: Uma família dentro e ao redor de Nova York celebra a primeira festa de aniversário de uma criança em uma chamada de Zoom.

Mesmo com as particularidades de cada nação no enfrentamento à Covid-19, é possível que estabeleçamos uma comunicação com o restante do mundo, que adentrou as medidas de quarentena há um tempo considerável, mesmo que psicologicamente estagnado.

Neste período, alguns fotógrafos continuam saindo à trabalho, se esgueirando pelas alas permitidas dos hospitais na tentativa de fornecer registros imagéticos do aqui/agora. No “por trás da cena”, eles estão cobertos da cabeça aos pés, usando máscaras, luvas e óculos protetores, tal qual Andrea Frazzetta, cujo trabalho será abordado abaixo.

Outros já viram seus movimentos inevitavelmente restritos ao lar, o que faz com que sua hiper-sensitividade se volte para suas próprias casas e, em uma realidade estendida, seus bairros e vizinhos – a uma distância recomendada. Tendo isso em vista, a Agência Magnum iniciou o projeto “Diários de uma Pandemia”, concentrando em uma página constantemente atualizada os novos trabalhos feitos pelos fotógrafos nesse tempo onde a consciência se altera, inquieta, entre expansão e repouso. A cada semana é apresentada uma edição dessas imagens, selecionadas pelo coordenador do projeto Peter van Agtmael, ao lado de notas e reflexões pessoais dos fotógrafos sobre como eles estão enfrentando a situação à medida que ela se desenrola.

Na Normandia (França), avós fazem uma surpresa no meio da aula de violoncelo de sua neta, mediados por uma janela de vidro; em Thokoza (África do Sul), com o retrato de sua mãe repousando só, o filho lamenta a distância social necessária e reflete sobre as famílias com cinco ou dez pessoas que vivem em um barraco – o quão difícil deve ser para elas manter a distância necessária; em Delhi (Índia), a moradora de um Barsati (apartamento pequeno na cobertura de prédios, geralmente de apenas um quarto) olha para seus vizinhos com curiosidade voyeurística à medida que as idas ao terraço tornam-se rotineiras.

Robert Adams volta para casa

No período em que nós nos agarramos aos interiores e exploramos o exterior por janelas indiscretas, a Aperture lançou seu novo volume sob o mote “Casa & Lar”, por “previsão do futuro” ou timing inexplicável. Nele, um artigo por Lena Fritsch caminha pelas diferentes expressões na língua japonesa que poderiam ser equivalentes, em momentos distintos, ao nosso “lar” – palavra inexistente em japonês. Fritsch faz isso relacionando as expressões com trabalhos fotográficos de Daido Moriyama, Kazuo Kitai e Ishiuchi Miyako. Um lembrete da potência da fotografia japonesa. Já Pico Iyer traz de volta os lares de Robert Adams, fotógrafo estadunidense que começou a fotografar no meio da década de 1960, chegando à proeminência na década seguinte com sua série “As Planícies” (The Plains) onde retratava a vastidão do oeste estadunidense.

Seu trabalho o colocou como uma das figuras centrais no movimento dos “Novos Topógrafos” (New Topographers), um termo cunhado por William Jenkins para descrever a documentação visual de paisagens alteradas pelo homem. Nos registros selecionados por Iyer, ao invés de destacar os efeitos da industrialização sobre o que antes era um imponente deserto, o ensaísta se volta às fotos de interiores capturados por Adams. “Eu queria apenas mostrar o que havia nas casas que faziam parte do meu assunto principal, a nova paisagem do oeste. Eu também esperava, no entanto, encontrar evidências do cuidado humano”, relata Adams à Aperture.

Em seu texto, Iyer aponta para uma “fragilidade corajosa” que entra no lugar da “majestade da natureza” nesses trabalhos raramente vistos. “Um olho cruel pode ver as coisas que colecionamos como tolas, impróprias; um olho compreensivo vê que é tudo o que temos”, complementa o autor do texto. À parte da ótica “mais transcendental” escolhida por Iyer, o espírito do trabalho pode vir também de uma questão muito mais simples que abre espaço para identificação: é difícil enclausurar esses lares em um tempo-espaço muito específico. As casas de muitas pessoas podem estar espelhadas nessa série, se não as suas, então dos seus amigos, de suas avós, de um parente distante ou ex-namorado.

A escolha estética de Adams, seu estilo quase imposto como assinatura, entrega, junto com a ternura dos lares, uma melancolia, um sentimento de solidão que podemos tão bem identificar no nosso cotidiano atual. Contudo, o “nós” nessa sentença é um “nós” seletivo: pessoas com casa; casas razoavelmente espaçosas. Quando escolhemos o lar como uma imagem, fotográfica e mental, simbólica da quarentena, um filtro já é colocado em quais pessoas são representadas por essas imagens. Enquanto decidimos passatempos na quarentena, os ansiosos por um refúgio não veem tão longe. O isolamento recomendado para uma população sem casa é um limbo entre dois países, onde um arde, o outro tem sede, e ambos precisam de água, como escreveria Warsan Shire.

Existe um rosto para a pandemia?

Em uma pandemia, é comum a busca por um “rosto”, uma imagem simbolizante, uma foto que represente o zeitgeist. Com isso, há o risco de cair em uma representação achatada e ignorar outros múltiplos protagonistas nessa narrativa, ao designar uma face para um acontecimento de tamanha proporção. Antes de nos voltarmos para a figura do lar surgiram as cidades fantasma, por exemplo, e precedendo as imagens de comprimidos e vacinas, temos a figura dos médicos.

Ao contrário de outras pandemias nas quais o termo peste foi empregado – com infortúnio – como metáfora, na construção incipiente das imagens desta crise a figura dos doentes não aparece ainda em volume considerável, talvez como uma lição aprendida em relação ao respeito aos retratados. Talvez porque, pelo que se observa até o momento, o Covid-19 não deixa sinais físicos suficientes para ter valor notícia pelo choque pela deformação; de todo modo, a busca por imagens mais dramáticas é “parte da normalidade de uma cultura em que o choque se tornou um estímulo de consumo e fonte de valor”, como escreveu Susan Sontag. Neste momento da crise, nós temos as pessoas que trabalham no front das epidemias nacionais, principalmente médicas e enfermeiros.

Na capa da revista dominical do The New York Times está Monica Falocchi, enfermeira chefe da Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital Civil de Brescia. Para Andrea Frazzeta, ela posou com os olhos de alguém “que acabou de sair do campo de batalha”. Frazzeta foi o responsável pelos perfis fotográficos contidos na revista. Ele decidiu documentar o trabalho desses profissionais nas cidades de Brescia, Bergamo e Milão depois de ver as selfies tiradas por médicos e enfermeiras com os rostos machucados pelo uso da máscara por tanto tempo.

Muitos deles foram fotografados no final de seus turnos, capturando um momento em que o desgaste e a fadiga são evidentes em seus rostos. No processo, o fotógrafo ficava a um metro e meio de distância, vestido com roupa protetora, óculos, luvas e máscara.

No meio da reportagem, Anna Maria Mentuni, a mãe de Frazzeta, ficou doente com Covid-19 e acabou falecendo no dia 26 de março. O NYT Magazine publicou a última foto que ele tirou da mãe, logo após ter deixado suas compras de supermercado na porta dela; naquele dia, eles conversaram pelo telefone, embora estivessem no mesmo lugar, um atrás de sua máscara e a outra através da janela da frente, a alguns metros de distância.

Com bandeiras hasteadas na fachada, Galeria Jaqueline Martins estreia o Four Flags São Paulo

Projeto do artista Thomaz Rosa, que inaugura o Four Flags São Paulo. Foto: Divulgação

Em uma iniciativa pensada para os tempos de isolamento social por conta da pandemia do novo coronavírus, a Galeria Jaqueline Martins apresenta a partir desta quarta-feira, 22 de abril, o projeto Four Flags 2020 São Paulo. Duas vezes por semana, bandeiras concebidas por artistas convidados serão hasteadas na fachada da galeria paulistana. Todas as bandeiras são produzidas em edição de 4 + 1 P.A e o valor de venda (R$ 800) será integralmente destinado aos artistas participantes.

Já em atividade em Amsterdam – em projeto capitaneado pelos curadores Julia Mullié e Nick Terra -, o Four Flags parte do desejo de desenvolver meios de estímulo à prática artística durante a quarentena, sendo também “uma oportunidade de gerar receita para que artistas do nosso circuito continuem produzindo”, segundo texto de apresentação do projeto.

Primeira bandeira hasteada na fachada da galeria. Foto: Divulgação.

O primeiro artista a expor sua bandeira na Jaqueline Martins é o paulista Thomaz Rosa. Os próximos confirmados são Ana Mazzei, Pedro França e Cibelle Cavalli Bastos. “Esperamos que iniciativas como esta possam ser encaradas não como soluções temporárias em decorrência do momento atual, mas como oportunidades para refletirmos mais profundamente sobre a maneira com que exposições e projetos culturais ocupam os espaços institucionais ao redor do mundo”, diz o texto.

2015 | Desvio para o político

O artista plástico Cildo Meireles
O artista plástico Cildo Meireles em seu ateliê, no Rio de Janeiro/Marcos Pinto

A expressão “uma agulha perdida em um palheiro” está em mais de 17 mil páginas da internet, utilizada de forma comum para designar algo impossível de se encontrar. Foi a partir dessa expressão que Cildo Meireles criou Fio, fardos de palha envoltos por cem metros de fios de ouro, com uma agulha também de ouro na ponta. “Gosto quando as coisas são fundadas no imaginário do maior número de pessoas”, explica Cildo, em seu espaçoso ateliê, em Botafogo, no Rio.

Um dos artistas contemporâneos brasileiros de maior visibilidade no exterior, com retrospectivas recentes na Inglaterra, Espanha, Dinamarca, Itália e em Portugal, Cildo Meireles, 67 anos, é hoje também um dos mais populares no País, graças às suas instalações permanentes em Inhotim: Através e Desvio para o Vermelho. Versões de ambas, a propósito, estarão também em exibição permanente nos EUA, em Glenstone, um museu próximo a Washington, com características semelhantes às de Brumadinho.

Fio é uma das obras de Meireles em exibição no 34º Panorama da Arte Brasileira do Museu de Arte Moderna, na sala menor, em uma seção denominada Imersão, que busca contextualizar as obras da mostra.

“Criei essa obra a partir de uma mostra chamada Ouro e Paus, em 1990, quando eu usava dois materiais comuns, mas com valores muito distintos, como a madeira e o ouro”, conta. A exposição reunia desde uma cama de faquir com pregos de ouro a caixas montadas com o mesmo elemento nobre. “Em 1999, quando mostrei Fio no New Museum, em Nova York, ela foi roubada, mas não acho isso grave”, afirma, desprendido, num estilo que parece acompanhar sua vida. Afinal, apesar de ser um dos mais badalados artistas nacionais, ele se veste sempre de forma casual e com um boné surrado, que chama de “minha peruca”.

Uma das obras mais recentes de Meireles, Aquarum, dois copos, um cheio de água com tensão superficial, ou seja, com o líquido um pouco acima das bordas, e outro cheio de ouro, está em exibição em sua galeria italiana, a Continua, até janeiro de 2016. “O ouro é tão denso que, para encher um copo, foram precisos 8,5 kg”, diz, como se o material não tivesse muito valor, quando na verdade só o custo da obra ultrapassou R$ 1 milhão. “Mas o copo com ouro é o brinde para quem levar o copo com água”, ironiza.

Por que usar materiais como ouro? “Primeiro, porque desde os anos 1970 realizei trabalhos que tinham tanto o material mais barato quanto o mais caro. Depois, o que me interessa como artista é quando o tema passa a ser matéria-prima”, afirma.
De fato, muitas de suas obras partem da matéria como primeiro produtor de significado, caso de Missão/Missões (Como Construir Catedrais), de 1987, exibida na antológica Magiciens de la Terre, em Paris. Nela, um chão de 600 mil moedas se une por um fio de 800 hóstias a um céu de dois mil ossos, uma obra com leitura marcadamente crítica sobre a ação dos missionários no Sul do País.

A política, contudo, entrou na poética do artista por motivos alheios às suas primeiras intensões. Meireles nunca estudou arte formalmente. Aos 15 anos, em 1963, em Brasília, ele frequentou o Ateliê Livre da Fundação Cultural do Distrito Federal, coordenado pelo peruano Barreneschea, com quem seguiu estudando, mesmo após seu fechamento, pelos militares, no ano seguinte. Já em 1968, Meireles entrou na Escola Nacional de Belas Artes, no Rio, mas desistiu dois meses depois: “Eles ensinavam o que eu já sabia, não tinha sentido”.

“Fio”, uma das obras de Cildo Meireles em exibição no 34º Panorama da Arte Brasileira
“Fio”, uma das obras de Cildo Meireles em exibição no 34º Panorama da Arte Brasileira, do Museu de Arte Moderna de São Paulo/Foto: Divulgação

A essa altura, no entanto, o artista já estava trabalhando em duas séries cujos projetos ele até hoje continua a realizar: os Volumes Virtuais e os Cantos. Esses últimos, quinas que desafiavam o sistema euclidiano, podiam ser adentrados pelos espectadores. Seria uma forma de criar penetráveis, como as propostas de Hélio Oiticica? “Naquele momento, era um caminho quase inverso. Ele buscava algo mais telúrico e ao mesmo tempo com participação popular, já eu queria simplificar o espaço, estava no caminho da abstração”, recorda-se.

Tanto os Volumes Virtuais como os Cantos acabaram selecionados para uma mostra no Museu de Arte Moderna do Rio, em 1969, a pré-Bienal de Paris, de onde sairiam representantes do País para a mostra francesa. Contudo, por conta da ditadura, a exposição foi fechada pelos militares antes mesmo de ser aberta, forçando Cildo a um desvio para um caráter político.
Sua primeira obra com tal faceta, logo em seguida, foi nada menos que Tiradentes: Totem Monumento ao Preso Político ou Introdução a uma Nova Crítica, em que queimava galinhas vivas no dia 21 de abril de 1970, parte da mostra Do Corpo à Terra, organizada por Frederico Morais, em Belo Horizonte.

Naquela época, com apenas 22 anos, Cildo já havia sido convidado pelo curador Kynaston McShine para a mostra Information, que seria realizada no MoMA, também em 1970, que teria ainda Artur Barrio, Hélio Oiticica e Guilherme Vaz. O convite veio por sua participação no Salão da Bússola, no MAM carioca, no ano anterior, quando McShine viu os Espaços Virtuais.
Foi no trem Vera Cruz, que fazia o trajeto BH-RJ, que o artista escreveu Cruzeiro do Sul, o manifesto que explicaria sua participação na mostra norte-americana, que começa com a frase clássica “Não estou aqui nesta exposição para defender uma carreira e nem uma nacionalidade.”

Contudo, a obra para Information, que veio a se tornar um de seus ícones, saiu de forma mais espontânea, no fim de semana seguinte. Após ir a uma praia afastada com amigos, no caminho de volta o grupo parou para almoçar em um boteco. Foi onde um dos amigos jogou um caroço de azeitona dentro de uma garrafa de Coca-Cola e contou que, por conta do processo de lavagem industrial, seria impossível tirar o caroço. Foi aí o Eureka! do artista: “Eu achava o texto Inserções um tanto obscuro e, com a possibilidade de intervir em uma garrafa, eu punha em prática minhas ideias. A partir daí também imprimi textos em notas, usando serigrafias em ambas”. Foi Oiticica quem acabou levando as garrafas de Coca-Cola, para a mostra no MoMA, todas impressas com a ajuda do artista Dionísio del Santo.

Naquele período, no Rio, Meireles vivia em Santa Teresa, pagando algo em torno de cem cruzeiros, por um pequeno quarto. Foi lá, há quase 50 anos, que a então jovem curadora Aracy Amaral o visitou pela primeira vez, e desde então acompanha seu trabalho de perto.

Encarregada do 34º Panorama da Arte Brasileira, Da Pedra Da Terra Daqui, Aracy resgatou um projeto do artista, que ela deve ter conhecido em 1969, a série Arte Física, composta por várias proposições, uma delas retirar do ponto mais alto do pico mais alto do Brasil cerca de um centímetro de matéria e, em seu lugar, colocar algo de dois centímetros do subsolo do País.
Para o Panorama, não foi o próprio artista que realizou o projeto, mas Edouard Fraipont e seu assistente Miguel Escobar, usando um pedaço do mineral kimberlito para aumentar em um centímetro a altura do País, colocando em prática outra regra da poética de Meireles, em sua própria definição: “A partir do mínimo possível, alterar o máximo possível”.

A função da cultura na saúde mental

A performance "Homo", de Melania Olcina Yuguero. Foto: Juan Carlos Toledo

Há quarenta anos começamos a popularizar uma nova concepção sobre os transtornos mentais entendidos como síndromes (signos patológicos sobrepostos), que perturbam as funções psíquicas (como cognição, memória ou vontade), associados com disfuncionamentos sociais (prejuízos a esfera amor, trabalho e aprendizagem). Reações em acordo com expectativas culturais, por exemplo, diante de acontecimentos como perda e luto, assim como comportamentos políticos, religiosos e sexuais não são considerados transtornos mentais. O leitor deve ter notado que esta definição não faz nenhuma alusão à causalidade nem ao sofrimento como critérios para dizer que estamos diante de um transtorno. Esta ideia de que os transtornos são convenções estatísticas ajuda a entender por que entre 1968 e 2015 descobrimos 115 novos transtornos mentais. Tacitamente se infiltrou no discurso popular a ideia de que as doenças mentais são no fundo doenças cerebrais, derivadas da ausência ou redução de neurotransmissores, como a serotonina ou a dopamina, que podem ser repostos com a medicação correta. Gradualmente nos acostumamos com esta teoria do transtorno mental como uma espécie de diabete cerebral, uma doença crônica, que exige medicação permanente, que tem uma origem genética, que requer controle e uma certa educação ou disciplina alimentar ou corporal. Uma teoria irmã dizia que a dependência química requer uma guerra às drogas e a disciplina da abstinência, pois as substâncias psicoativas ilegais geram uma dependência cerebral.   

Os achados das neurociências são incríveis e avançam no entendimento de determinações de comportamento e emoção. Não há nada de errado com eles e nenhuma teoria psicoterapêutica que se queria justificável deveria lhes ser indiferente. Ocorre que junto com a teoria da diabete mental veio um efeito colateral tremendamente pernicioso: a concepção de que o transtorno mental é indiferente ao modo como falamos sobre ele. Para esta teoria a forma como interpretamos e ligamos a aparição de sintomas com nossa vida, pregressa ou futura, não passa de um epifenômeno sem valor etiológico. A teoria das causas cerebrais, ideologicamente exagerada, passou gradualmente a ironizar tudo o que se relacionava com a forma de vida do sujeito, compreendida como unidade entre linguagem, desejo e trabalho, como uma herança freudiana, anti-científica, dependente da crença em conflitos interiores e outras disposições morais baseadas na boa fé e na força de vontade. O discurso que interpretava de forma diferencial certos sintomas em detrimento de outros (a depressão em vez da mania, por exemplo), as narrativas de sofrimento da comunidade ou dos familiares com quem se vive, a própria versão do paciente, o seu “lugar de fala” diante do transtorno, tornaram-se epifenômenos que não alteram a rota do que devemos fazer: correção educacional de pensamentos distorcidos e medicação exata.

Quarenta anos depois acordamos em meio a uma crise global de saúde mental, com elevação de índices de suicídio, medicalização massiva, receitadas por não psiquiatras e insuficiência de recursos humanos ou equipamentos teóricos e clínicos para enfrentar o problema. Este é o custo de desprezar a cultura como instância geradora de mediações de linguagem necessárias para enfrentemos o sofrimento antes que ele evolua para a formação de sintomas. Este é o desserviço dos que imaginam que teatro, literatura, cinema e dança são pelas de entretenimento ideológico e acessório, como a ampliação e diversidade de nossa experiência cultural não fosse o ponto central para desenvolver capacidade de escuta e habilidades protetivas em saúde mental. Como se eles não nos ensinassem como sofrer e reciprocamente como tratar o sofrimento no contexto coletivo e individual do cuidado de si. O empobrecimento da capacidade de contar sua própria história, de entender a lógica de seus conflitos, de nomear a recorrência de seu mal-estar não é apenas uma perda para a riqueza do espírito ou para a formação de personalidades mais sensíveis, é um desprezo arrogante e um desperdício descabido com os meios elementares de profilaxia básica em saúde mental.

2016 | O universo em três tons de cinza

Iran do Espírito Santo em frente à sua obra “Recuo Hexagonal” (2006).
Iran do Espírito Santo em frente à sua obra “Recuo Hexagonal” (2006). Foto: Luiza Sigulem

Duas pinturas em lona de 1985, ambas produzidas para uma disciplina de Nelson Leirner na Faap, foram as primeiras obras de Iran do Espírito Santo adquiridas por uma instituição. Foi Aracy Amaral, quando de sua gestão à frente do Museu de Arte Contemporânea da USP, entre 1982 e 1985, a responsável pela compra, e os dois trabalhos, os desenhos de um sofá e uma vitrola, encontram-se agora em cartaz na mostra A Casa, no próprio MAC, até 31 de julho.

Nos trabalhos de 30 anos atrás, ao representar objetos cotidianos, o artista já apontava para uma poética que segue até hoje. “Vejo meus desenhos de adolescente e percebo que sempre trabalhei com esse tema, assim como com referência à arquitetura”, afirma Espírito Santo, em seu amplo ateliê, recentemente inaugurado, e que mais parece uma galeria de arte. “De repente eu inverto meu papel e passo a vender arte”, brinca, sem de fato parecer sequer estar pensando nessa possibilidade.

Apesar da pintura em lona das obras no MAC, a técnica da moda em sua geração nos anos 1980 – Leonilson e Leda Catunda, por exemplo, contemporâneos da Faap, também usavam esse material –, esses primeiros trabalhos do artista estão mais próximos da geração de seus professores, como Leirner e Regina Silveira, do que de seus colegas. “Eu realmente nunca me identifiquei com a celebração da pintura daquela época”, afirma. A simplicidade nas linhas, que busca quase o desenho ideal dos objetos retratados – o que será uma constante em sua carreira – , tem a ver com a identificação com a arte conceitual a partir de um dado de personalidade: “Tenho uma cabeça mais analítica”, define-se. Essa simplicidade tem ainda muito a ver também com o desenho, uma prática constante, que no ano passado ganhou uma publicação exclusiva dedicada a ele, Desenhos, editada pela Cobogó.

“Extension/Fade Horizontal” (2007). Crédito: Giorgio Benni
“Extension/Fade Horizontal” (2007). Crédito: Giorgio Benni

Seu desenho alcançou uma dimensão muralista, em 1997, quando ele ocupou nada menos que 110 metros quadrados de uma área de passagem do Museu de Arte Contemporânea de São Francisco, nos EUA, simulando paredes de tijolos, em três tons de cinza. “As pessoas passavam por lá e perguntavam onde estava o trabalho”, relembra. Duas versões dele foram vistas em 2007: uma na principal sessão da Bienal de Veneza, outra na retrospectiva do artista na Estação Pinacoteca, em São Paulo.

A “invisibilidade” desses trabalhos murais pode ocorrer por conta da proximidade de seu trabalho com o design, área que serviu como forma de subsistência em agências de propaganda até os anos 80 e, ainda como freelancer, nos anos 1990, fazendo ilustrações e projetos gráficos. “Eu lembro quando trabalhei, entre 1986 e 1988, em um escritório em Londres e tinha que ficar desenhando garrafas rosinhas, o que me irritava profundamente, e acho que isso me motivou a fazer uma série de desenhos onde as garrafas eram apenas pretas”, conta. Contudo, enquanto a propaganda sempre visa idealizar o objeto de consumo, para assim convencer o consumidor de sua necessidade, Espírito Santo realiza uma operação contrária, que é buscar a forma ideal, como se chegasse ao mundo das essências, das formas puras, portanto inalcançável, como defendia Platão.

“Abat-Jour” (1996)
“Abat-Jour” (1996). Crédito: Everton Ballardin

Foi buscando, por exemplo, o “abajur essencial”, que ele criou sua primeira obra tridimensional, Abat-jour, a partir de um modelo simples do designer francês Philip Stark, convertendo todo seu volume em aço inoxidável, mantendo o formato do objeto. “Foi aí que eu cheguei a algo que buscava há muito tempo, que é quando a imagem forma uma dimensão arquitetônica e se relaciona com o corpo”, explica.

Desde então, copos, latas ou lâmpadas, entre outros objetos, ganham na obra do artista uma dignidade inédita, através do uso de materiais típicos da história da escultura clássica, especialmente o mármore. A série de caixas de sapato é um bom exemplo desse procedimento: realizada em paralelepípedos de mármore, uma saliência de apenas três milímetros transforma o elemento nobre na representação da embalagem. “É mágico”, admira-se Espírito Santo.

“Base fixa” (2016).
“Base fixa” (2016). Crédito: Gui Gomes

Essa valorização de objetos banais, muitos deles sempre em processo de descarte, ganhou o ápice em sua mostra mais recente na Fortes Vilaça, Fuso, na qual a maior sala da galeria foi ocupada por apenas quatro conjuntos de porcas e parafusos, só que 18 vezes maior que o modelo original e pesando mais de uma tonelada. Com o título Base Fixa, a obra cria “uma espécie de praça/chão de fábrica”, segundo o texto escrito pelo artista na primeira vez que ele torna pública a análise de sua própria obra.

Se sobre seu trabalho ele costuma ser discreto, sobre a situação do País, Iran do Espírito Santo é bastante eloquente. Ao contrário de muitos artistas que usam as redes para propagandear suas obras, para ele, esse é um espaço de militância política. Sua vida pessoal tampouco é exposta no Facebook. “Não é todo artista que sabe fazer arte política, eu faço o trabalho que tenho que fazer, mas é a opinião política que acho importante, assim como a maneira de se relacionar com o mundo da arte”, defende.

Por isso, ele conta que entrou no Facebook, em 2014, para se manifestar a favor de Dilma no segundo turno das eleições, o que acabou lhe rendendo o convite para participar do último ato da campanha, em São Paulo, no palco do Tuca, sentando-se ao lado do escritor Raduan Nassar. “Só não fiz foto ao lado dela porque sou tímido, mas senti uma profundidade em seu olhar que admiro”, conta.

Iran do Espírito Santo em frente à sua obra “Recuo Hexagonal” (2006).
Iran do Espírito Santo em frente à sua obra “Recuo Hexagonal” (2006). Crédito: Luiza Sigulem

Depois da reeleição, o artista deixou as redes sociais, mas voltou novamente agora em 2016 por conta do impeachment e para protestar contra o golpe. Em meados de junho, seus posts, mais de uma dezena por dia, compartilhavam críticas às posturas reacionárias do governo interino, como a promessa de fechamento da TV Brasil. “Por conta de tudo isso, me dá vontade de fazer uma arte política, mas eu não sei como. A postura que admiro é a de artistas como Jenny Holzer e Barbara Kruger”, explica.

Apesar de realmente não estar próximo da contundência de Kruger, é difícil não perceber que expor porcas e parafusos em uma galeria de arte seja um ato político. Afinal, enquanto se engendrava o golpe, de caráter claramente elitista, que visa brecar os avanços sociais da última década, criar um monumento a partir de objetos manipulados por trabalhadores braçais é dar visibilidade aos instrumentos de uma classe que não costuma estar aparente no circuito da arte.

2016 | Guto Lacaz, um maior abandonado

O artista em seu ateliê.
O artista em seu ateliê. Foto: Luiza Sigulem

Aos 68 anos e com mais de 40 de carreira, Guto Lacaz vendeu apenas agora, em 2016, uma obra a uma instituição de arte. Criada há quase 30 anos, Eletro Esfero Espaço, em cartaz na exposição Situações: a Instalação no Acervo da Pinacoteca do Estado até 20 de fevereiro de 2017, integra desde o início do ano o acervo da instituição.

“Em janeiro já ganhei meu ano, com a carta do José Augusto Ribeiro, pela Pinacoteca, confirmando a compra dessa obra”, conta Lacaz em sua residência e ateliê nas imediações do Parque Ibirapuera.

Foi exatamente no parque, aliás, no Pavilhão da Bienal, que Eletro Esfero Espaço foi vista pela primeira vez, na exposição A Trama do Gosto, em 1987, organizada pela Fundação Bienal, entre a 18ª e a 19ª bienais de São Paulo. “Eu participei da 18a edição, em 1985, a convite da Sheila Leirner para realizar a Eletroperformance”, recorda Lacaz, que então pediu à curadora um espaço para apresentar um novo trabalho. Contudo, reação nada anormal diante da grande responsabilidade e visibilidade que a Bienal propicia, “me deu um branco e acabei fazendo uma sala careta”, admite agora.

Foi na próxima ocupação no prédio projetado por Oscar Niemeyer que Lacaz conseguiu compensar a participação morna no evento.  A Trama do Gosto – Um Outro Olhar sobre o Cotidiano, com mais de cem artistas, entre eles Regina Silveira, Nelson Leirner, Bené Fonteles e Leon Ferrari (1920-2013), organizava-se como uma cidade, com módulos como Diversões Eletrônicas, Arranha Céu e Livraria, entre outros.

Vistas da instalação “Eletro Esfero Espaço” (1986-2015), Guto Lacaz
Vistas da instalação “Eletro Esfero Espaço” (1986-2015), Guto Lacaz

“O Antenor Lago, um dos curadores, pediu que eu fizesse uma loja de eletrodomésticos”, lembra Lacaz. O tema não era estranho a ele. Sua já conhecida Eletroperformance era realizada com eletrodomésticos, uma paixão que teve início quando estudou eletrônica no segundo grau, mas que de fato ganhou proporção nas lojas de departamento da cidade. “A Sears era minha biblioteca, era como o MoMA para mim. Lá tinha de tudo, de brinquedos bárbaros a tecnologia de ponta”, relembra com admiração.

Foi da Sears, justamente, que ele copiou a ideia para a obra de A Trama do Gosto. “Eu me recordo de ver na vitrine um aspirador de pó que sustentava uma bola plástica no ar; então eu simplesmente criei um corredor por onde o visitante passava, como se fosse saudado por várias espadas, mas eram 26 aparelhos”, explica.

Por sorte, naquela época, alguém na Fundação Bienal tinha um parente que trabalhava na Black & Decker, fabricante do eletrodoméstico, e conseguiu o empréstimo dos aparelhos. “Eu mesmo me surpreendi com a facilidade”, conta. Para disfarçar o som ensurdecedor do conjunto, ele cedia ao público um Walkman com um trecho de Thannhäuser, de Richard Wagner (1813-1883), o que dava um ar solene à visita.

Eletro Esfero Espaço foi um sucesso de crítica e público: a instalação tinha filas permanentes na mostra no pavilhão da Bienal e a curadora Aracy Amaral a selecionou para a mostra Modernidade – Arte Brasileira no Século 20, em Paris, em 1988, apresentada também no Museu de Arte Moderna de São Paulo no mesmo ano. “Cheguei na França achando que ia conquistar o mundo, mas não saiu uma linha sobre minha obra”, lembra-se da frustração. Depois de Modernidade, a instalação nunca mais foi vista pelo público, o que revela uma notável pesquisa da curadoria da Pinacoteca, já que nem galeria que o represente Lacaz possui. “Eu sou um maior abandonado”, ironiza.

Por trás da afirmação sarcástica, ele aponta, contudo, que não é através de lobby que sua obra é conhecida. Tem sido assim, de fato, desde o princípio. Ele estudou na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de São José dos Campos, em 1974, e conseguiu se graduar na única turma que a instituição experimental formou, por conta da dificuldade em sobreviver durante a ditadura. Trabalhou com arquitetura até 1978, quando foi demitido em meio a uma das crises que o País atravessou.

Vistas da instalação “Eletro Esfero Espaço” (1986-2015), Guto Lacaz
Vistas da instalação “Eletro Esfero Espaço” (1986-2015), Guto Lacaz

Guto Lacaz não tinha formação em arte, mas criava pequenas traquitanas. Um dia ele mostrou à sua prima Raquel Arnaud, que lhe explicou: “Você está fazendo objetos”, recorda. Foi então que decidiu enviar 14 deles para a Primeira Mostra do Móvel e do Objeto Inusitado, organizada em 1978, no Paço das Artes, quando a instituição funcionava no MIS – o que voltou a ocorrer este ano –, entre eles Crushfixo, uma garrafa do refrigerante presa em uma caixa.

“Além de ganhar um prêmio, meus trabalhos ilustravam a matéria de várias páginas da revista Veja”, conta Lacaz, sobre a época em que a publicação merecia respeito.

Assim, aos 27 anos, ele foi comparado a Duchamp, sem “ter ideia de quem ele era” e decidiu que era hora de estudar arte, mesmo sem “nunca ter pensado em ser artista”. O começo foi no ateliê de Dudi Maia Rosa, com quem ele tinha aulas na companhia de Carlos Fajardo e Luiz Paulo Baravelli, entre outros.

A performance teve início em 1982, quando Ivaldo Granato convidou Lacaz junto a outros 59 artistas para, no Centro Cultural São Paulo, cada um realizar uma ação de um minuto. “Usei um toca-discos, meu primeiro aparelho doméstico. Para mim foi incrível estar no palco, com frio na barriga e adrenalina bombando.” Desde então, não parou mais. A mais recente ação, denominada Ludo-voo, é uma performance composta por 20 cenas com objetos voadores, uma das obsessões do artista.

Na prática, contudo, apesar de já ter exposto em muitas galerias importantes da cidade – Subdistrito, São Paulo, Luisa Strina e Marília Razuk – e ter participado de muitas mostras, além de ter ganho a Bolsa Guggenheim, em 1989, foi com o trabalho gráfico que ele sobreviveu de fato.

“Nunca vendi uma exposição inteira, sempre volto para casa com quase tudo. O retorno em artes plásticas é muito lento. Imagina, vendi minha primeira instalação agora, quase 30 anos depois dela montada”, resigna-se, sem perder o foco no trabalho. “Tenho três exposições prontas aqui no andar de cima de casa, mas vou esperar o vento soprar e a hora que chegar, chegou.”

2016 | Instabilidade sob controle

Nuno Ramos.
Nuno Ramos. Foto: Manoel Marques

Cerca de 20 mil tijolos caindo de uma carroceria de caminhão recebem os visitantes da mostra de longa duração Migrar: Experiências, Memórias e Identidades, no segundo andar do Museu da Imigração, na zona leste de São Paulo.

Os tijolos e a carroceria são parte da instalação É Isto um Homem?, de Nuno Ramos, artista acostumado a provocar o espectador como na histórica Bandeira Branca, a obra que mobilizou a opinião pública em torno da presença de urubus durante a 29ª Bienal de São Paulo, há seis anos.

A única obra de arte contemporânea no Museu da Imigração foi escolhida a partir de uma concorrência com duas artistas – Rosângela Rennó e Carmela Gross – e criada por inspiração do livro É Isto um Homem?, de Primo Levi (1919-1987), judeu e italiano sobrevivente de um campo de concentração. “Sou muito fã desse livro porque ele apresenta um debate ético sobre os limites da vida em uma situação hedionda”, conta Ramos à ARTE!Brasileiros durante a montagem de uma grande mostra no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) de Belo Horizonte, intitulada O Direito à Preguiça.

Reinaugurado há dois anos, o Museu da Imigração aborda os diversos fluxos migratórios que São Paulo recebeu desde o século XIX e, com a obra de Nuno Ramos, evita logo na entrada uma narrativa que mitifique a temática. “É sobre a carga que destrói”, resume Ramos. Compõe ainda a instalação uma vitrine de vidro contendo uma cadeira com um tijolo sobre seu assento de frente para uma caixa de som. Dela se ouve um trecho do livro de Levi em sete idiomas na voz do próprio artista – o som tem sido elemento recorrente nas obras de Ramos.

Para a execução da obra, o edifício histórico onde ele se encontra, construído a partir de 1886 para servir de hospedaria a imigrantes europeus, precisou passar por reforços estruturais. Não é incomum que obras do artista se tornem desafios de produção, já que faz parte de seu conceito trabalhar nos limites da matéria. Tem sido assim, aliás, desde os anos 1980, quando Ramos começou a pintar, acumulando tinta de forma tão exagerada nas telas que muitas dessas obras precisam de manutenção constante.

Seria essa poética uma forma de deixar o acaso agir na obra? “Acho que não. Basicamente eu tento liberar o material, mas sempre com certo controle”, explica Ramos. No caso de É Isto um Homem?, os tijolos caíram do caminhão por conta de uma torção provocada por macacos hidráulicos, operação que o artista já havia testado em outro lugar antes.

Ramos é desses artistas que reinventam seus procedimentos de forma constante. Aliás, poucos artistas visuais são tão multifacetados como ele. Escritor de vários livros – o premiado ÓJunco e O Pão do Corvo, entre eles; compositor – Mariana Aydar lançou no ano passado um disco só de composições suas; e ensaísta, Nuno Ramos se destaca por sua versatilidade.

“É isto um homem?”
“É isto um homem?”, vista da exposição no Museu da Imigração, São Paulo, 2014

A passagem de telas abstratas da década de 80 para obras com temática política é outro dos diferenciais de Ramos entre os artistas de sua geração, especialmente aqueles com quem dividia o ateliê da Casa 7  – Paulo Monteiro, Rodrigo Andrade, Carlito Carvalhosa e Fabio Miguez –, que, em 1983, passou a sediar a pintura paulista inspirada no neoexpressionismo alemão.

Nesse sentido, 111, instalação de 1992, criada logo após o massacre no Carandiru, representa a entrada de Ramos na arte que aborda questões da realidade sociopolítica do País.  Nela, cada vítima era representada por um paralelepípedo coberto por asfalto e breu e, em cada, uma impressão em clichê de chumbo informava o nome do morto, além de uma cópia de notícia de jornal sobre o episódio e cinzas de páginas queimadas da Bíblia. “Eu me impressionei muito com a fisicalidade da violência e busquei criar um memorial dela que não fosse literal”, explica.

Já Bandeira Branca, aquela feita para a 29ª Bienal, em 2010, foi criada em um período de euforia econômica brasileira, muito distinto do momento atual. A imensa instalação, selecionada pelo curador Moacir dos Anjos, colocava no centro do pavilhão da Bienal um cenário pós-apocalíptico, com volumes escuros e sombrios e os urubus ao redor, como se estivessem em meio a ruínas. Seria uma imagem perfeita para representar a tristeza dos dias de hoje. “Eu me orgulho de ter feito aquilo em um momento de otimismo histérico. Pena que o debate com os urubus tenha levado o trabalho para um discurso ecológico”, comenta.

Em abril, Ramos inaugurou no CCBB mineiro a mostra O Direito à Preguiça, tendo como peça central uma imensa instalação no pátio do edifício centenário  com andaimes metálicos que são usados como instrumentos de sopro. “O trabalho é a música”, diz ele.

Como em vários de seus trabalhos, Nuno Ramos parte do pensamento de outros intelectuais, e no caso agora é do genro de Karl Marx, Paul Lafargue (1842 – 1911), que escreveu o panfleto “O Direito à Preguiça”, em 1880, quando as jornadas de trabalho na França ultrapassavam 12 horas diárias. Hoje, por conta da internet e da constante troca de e-mails, novamente os horários de trabalho se estendem de forma abusiva, comentário inerente e irônico na nova instalação do artista.

Assim, os andaimes, típicos do ambiente de trabalho de construção civil, se tornam um objeto lúdico: um instrumento musical  – graças a um compressor que assopra ar nos tubos e toca de forma lenta O Samba de Uma Nota Só, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Aqui, novamente, Ramos parte de elementos cotidianos, como os tijolos e a carreta, para transformar seu significado. “O meu lugar é onde a matéria vira sentido e o sentido vira matéria”, define.

Sem correr o risco da ilustração, O Direito à Preguiça se revela como um bom exemplo da estratégia poética de Nuno Ramos: “Não quero chegar no real como um valor, quero buscar aquilo que está escondido, onde nasce o que é essencial.”

2016 | Quando a lógica é não ter lógica

Antonio Malta Campos.
Antonio Malta Campos. Crédito: Luiza Sigulem

O ano de 2016 será o 1985 de Antonio Malta Campos. Trinta e um anos atrás, o artista não participou da Bienal de São Paulo por um desses desvios que podem ocorrer em qualquer carreira e que representam um caminho mais longo para se chegar ao mesmo lugar, só que muito tempo depois.

Em seu caso, o que atrasou sua entrada no Olimpo da arte brasileira foi o fato de ele ter abandonado o ateliê Casa 7, em 1983, um ano após ter fundado o espaço com Carlito Carvalhosa, Paulo Monteiro, Fábio Miguez e Rodrigo Andrade. Depois de sua saída, os quatro se destacaram em meia à onda do retorno à pintura da década de 1980 e todos acabaram selecionados para a 18ª Bienal de São Paulo, em 1985. Menos ele.

“Capacete”, Antonio Malta Campos e Antonia Baudouin.
“Capacete”, Antonio Malta Campos e Antonia Baudouin. Crédito: Luiza Sigulem

“Eu me apaixonei e fui dividir ateliê com minha namorada, Maina Junqueira, com quem tive minha filha. Acabei não sendo escolhido para a Bienal, deixei de pintar por cinco anos e retornar depois disso é mais difícil”, contou Malta Campos, em seu ateliê no bairro de Santa Cecília, na véspera da retirada das obras que vai apresentar na 32ª Bienal de São Paulo. Entre 1990 e 1995, ele trabalhou em um grande escritório de arquitetura, sua área de formação. “Foi aí que percebi que não tinha futuro como arquiteto e voltei a pintar no fundo da casa de meus pais”, recorda-se.

Em Incerteza Viva, ele comparece com duas séries: quatro dípticos de grande dimensão e cerca de 200 Misturinhas, que tiveram início em 2000. Essa série tem apenas um princípio: é sempre feita no mesmo formato, em papel Holler, uma espécie de papel-cartão de pequeno tamanho, com apenas 20 x 25 cm. “A lógica é não ter lógica. A proposta é não racionalizar muito, o que tem a ver com as colagens cubistas que admiro muito”, resume. Nelas, pode-se usar qualquer tipo de tinta, desenhar e mesmo fazer colagens, técnica que foi adicionada em 2003.

“Dimensão”, Antonio Malta Campos
“Dimensão”, Antonio Malta Campos

“Comecei a fazer essa série por sugestão do Marcelo Cipis, esse trabalho foi uma ideia dele. Cada um fazia um e mostrava para o outro”, explicou, ao lado de duas caixas repletas de Misturinhas.

Elas são caracterizadas por ele como “um exercício experimental”, em geral realizadas após o almoço, e sempre produzidas em quantidade. Enquanto para terminar uma pintura convencional Malta Campos leva cerca de um mês, em poucas horas ele realiza cinco ou seis Misturinhas. “Na minha cabeça, elas não eram um trabalho importante, e só mostrei em uma exposição na galeria Virgílio, em 2004, e depois no Centro Cultural São Paulo, em 2012, por insistência da minha filha e da minha mulher”, conta.

O artista em frente aos dois trabalhos.
O artista em frente aos dois trabalhos. Crédito: Luiza Sigulem

A mostra em 2012, realizada com Erika Verzutti, também selecionada para a 32ª Bienal, com curadoria de José Augusto Ribeiro, é considerada por ele sua volta ao circuito de fato. “Foi esta exposição que me recolocou. Após ver a mostra, a Philly Adams, diretora da Saatchi Gallery, comprou quatro trabalhos e os expôs em Londres na sequência”, diz Malta Campos.

A Saatchi Gallery, do publicitário inglês Charles Saatchi, que nos últimos tempos frequentou as páginas policiais dos jornais por ter sido pego apertando, em público, a garganta da ex-mulher Nigela Lawson, é uma incubadora de novas promessas, graças ao estilo do colecionador. Menos um amante da arte, Saatchi é conhecido por investir em novos talentos, como fez nos anos 1990 com a chamada Nova Geração Britânica (Young British Artists), tendo Damien Hirst à frente. “Ele chegou determinando o preço, que era abaixo do comum, mas era aceitar ou não”, conta Malta Campos, que vendeu quatro telas a ele.

Foi ainda no Centro Cultural São Paulo que o curador da 32ª Bienal, Jochen Volz, viu, em 2012, a obra do artista. “Eu mesmo nem me lembrava, mas ele me recordou, quando esteve aqui no ateliê, que a Erika nos apresentou na mostra”, diz.

Nessa visita ao ateliê, junto com a curadora-adjunta Júlia Rebouças, Volz selecionou os trabalhos de grandes dimensões e também o grande conjunto de Misturinhas. Para uma bienal que trata de questões um tanto concretas, mesmo que parte delas passe por um sentido meio exotérico, a seleção de Malta Campos pode ser vista com certa surpresa. “Eu sou um estranho no ninho, mas acredito que meu trabalho tenha sido escolhido por ter uma entrada mais visual”, especula.

“Mapa Mundi” (2015), Antonio Malta e Antonia Baudouin
“Mapa Mundi” (2015), Antonio Malta e Antonia Baudouin

De fato, tanto as pinturas quanto as Misturinhas são obras de um forte apelo visual, construídas com formas bastante estranhas, longe da pintura certinha, bem acabada e de efeito que hoje é valorizada, com Beatriz Milhazes à frente dessa tendência.

Para o artista, contudo, sua obra está em diálogo direto com modernistas como Picasso ou mesmo Burle Marx. Em muitas de suas telas, seria possível ver algo das vistas aéreas dos jardins projetados pelo alemão radicado no Rio de Janeiro, mas para Malta Campos isso é apenas coincidência. “Bebemos todos na mesma fonte, que é a manipulação das formas”, defende. Como típico membro da chamada Geração 80, ele lembra que a pintura daquela época era uma reação à arte conceitual da geração anterior e que as maiores referências eram justamente os modernistas. “O curioso, no meu caso, é que agora estou sendo incluído em meio a uma turma que volta à arte conceitual”, espanta-se.

Desde que iniciou as Misturinhas, Malta Campos produziu cerca de 550 peças e algumas viraram esboços para as pinturas de grande formato. Na 32ª Bienal, as pinturas que ele vai expor foram realizadas com assistência de Antonia Baudouin, estudante de cinema, e que ganha crédito no trabalho por ir além de apenas pintar conforme sua orientação. “Em um dos trabalhos, há um verdadeiro diálogo; eu pintava uma imagem e ela respondia com outra”, conta. Outro aporte da assistente é que, pela primeira vez em sua carreira, as telas ganham título.

Com esse método colaborativo na pintura e experimental nas Misturinhas, Malta Campos, afinal, parece fazer todo sentido em Incerteza Viva. Há 30 anos, ele seria apenas mais um pintor em meio a dezenas de tantos outros. Agora, é um pintor com procedimentos contemporâneos. Nem sempre os caminhos mais curtos são os melhores.

Muitos usos para o JA.CA

Kombi de JA.CA
A Kombi utilizada para o projeto Dispositivo Móvel para Ações Compartilhadas no JA.CA (2015). Foto: Divulgação

Procurar uma definição única que explique o que é o JA.CA – Centro de Arte e Tecnologia é uma tarefa ingrata. Espaço independente de arte; coletivo artístico; organização sem fins lucrativos; espaço de residências; centro de educação e pesquisa; associação voltada à gestão cultural; e várias outras definições poderiam ser usadas. E nenhuma estaria errada. Oficialmente, é possível afirmar que o JA.CA – com nome derivado de Jardim Canadá, bairro de Nova Lima (MG) onde nasceu – surgiu como uma proposta de projeto de pós-graduação sobre práticas coletivas e é hoje uma Organização da Sociedade Civil. Mas isso diz muito pouco sobre a sua atuação, que será expandida com a inauguração de um espaço em Belo Horizonte, o Arrudas, em parceria com a galeria Periscópio.

“As pessoas ficaram muito tempo para entender  o que era o JA.CA. A gente queria que fosse um laboratório, lugar de pesquisa, mas no começo acabava funcionando mais como galeria. Demoramos para nos colocar exatamente como queríamos”

Francisca Caporali

“De modo amplo, entendemos o JA.CA como um espaço de formação. Mas a beleza de participar de um projeto como esse é que podemos ter poucas certezas e trabalhar com mais duvidas. Ou seja, hoje nos entendemos e praticamos um modo que pode ser drasticamente alterado em outro momento”, afirma Caporali. De fato, o JA.CA já mudou de endereço, diminuiu ou cresceu seu tamanho diversas vezes e desenvolveu variadas estratégias de sobrevivência ao longo dos anos, por vezes de modo mais experimental, por outras em diálogo mais próximo a um universo de prestação de serviços.    

Para entender tamanha pluralidade e elasticidade, é preciso percorrer brevemente a história do espaço. Concebido por Francisca Caporali quando cursava o mestrado em Nova York, o JA.CA foi inaugurado em 2010, quando a artista voltou à Belo Horizonte e se juntou aos amigos Pedro Mendes e Xandro Gontijo. Com verbas captadas pela Lei Rouanet, o trio abriu o espaço no Jardim Canadá, bairro de história bastante peculiar na cidade de Nova Lima, parte da Região Metropolitana de Belo Horizonte, e iniciou suas atividades que incluíam principalmente residências e exposições. “As pessoas ficaram muito tempo para entender o que era o JA.CA. A gente queria que fosse um laboratório, um lugar de pesquisa, mas no começo acabava funcionando mais como uma galeria. Até porque os artistas quando entram em um espaço assim logo pensam em montar uma exposição. E demoramos para nos colocar exatamente do modo que queríamos”, explica Caporali.

A equipe do JA.CA em sua sede no Jardim Canadá, na Região Metropolitana de Belo Horizonte.
A equipe do JA.CA em sua sede no Jardim Canadá, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Foto: Divulgação

A escolha do Jardim Canadá se deu por conta das relações de origem familiar que os três fundadores possuíam com o local. A história do bairro remonta aos anos 1950, quando foi lançado o loteamento, mas por falta de infraestrutura a região só passou a ter uma ocupação intensa nos anos 1980. Mais próximo da zona sul de Belo Horizonte do que do centro de Nova Lima, o Jardim Canadá encontra-se incrustrado entre as margens de um parque natural, uma área de mineração, condomínios de luxo e uma rodovia federal. A ocupação inicial, com moradias de empregados dos condomínios, galpões industriais e serviços ligados à rodovia se diversificou com o tempo. “É um lugar estranho, que viveu um processo de especulação intenso, mas que nunca acontece totalmente. Hoje é muito mais urbanizado do que há dez anos, sendo um bairro que encontrou também uma vocação da cerveja artesanal e da gastronomia. Mas é um local com muita desigualdade interna e cheio de paradoxos”, conta Caporali.

Novos caminhos

A partir de uma compreensão melhor do entorno, o JA.CA percebeu que a enorme quantidade de resíduos gerados pelas empresas, mineradoras e condomínios poderiam se tornar material de trabalho, tanto para os artistas residentes quanto para os projetos próprios do espaço. Nesse cenário, a criação da marcenaria, em 2012, e a entrada de Mateus Mesquita – Pedro e Xandro acabaram se afastando, o primeiro para tocar a galeria Mendes Wood –, além de parcerias com estudantes de arquitetura da UFMG, abriram novos caminhos de experimentação para o JA.CA. São dessa época projetos como o Ponto de Ônibus Expandido, realizado com madeira descartada no bairro, e o DESEJA.CA, que utilizou materiais para projetos de marcenaria, tecelagem, estamparia e design.

A mudança do JA.CA para a sede atual, após aumento exorbitante no aluguel do antigo espaço com o asfaltamento da rua na qual se localizava, ocorreu em 2014, a partir da construção em novo terreno do mesmo bairro de um espaço dividido em seis containers. Pensada de maneira transportável ou desmontável, a sede se torna menos vulnerável à especulação imobiliária que já fez o JA.CA mudar de lugar duas vezes. Marcenaria, biblioteca, área de convivência, cozinha e todos os espaços poderão ser transportados com relativa facilidade caso haja necessidade.

Kombi de JA.CA
A Kombi utilizada para o projeto Dispositivo Móvel para Ações Compartilhadas (2015). Foto: Divulgação

A aproximação de Caporali com Samantha Moreira – fundadora do Ateliê Aberto (1997) em Campinas, um dos mais longevos espaços autônomos do país – se deu mais intensamente a partir do Indie. Gestão, criado em conjunto pelos dois espaços e realizado em 2014. O projeto, financiado através de uma premiação da Funarte, se propôs a mapear espaços de gestão independente – em uma época em que existiam muitos deles, antes da crise e do desmonte cultural no país – em diferentes cidades e colocá-los em diálogo em uma “residência artística”. Ou seja, ao invés de fazer uma residência de artistas, foi organizada uma residência com representantes destes “espaços intencionais”, como foram chamados à época.

“Uma coisa muito forte nos espaços independentes são as festas, a cozinha, esse lugar afetivo que toda casa tem. É nesse fazer junto, no cozinhar, nas conversas informais, que acontecem muitas aproximações, muitas parcerias”, explica Moreira. Desse modo, toda a residência foi pensada a partir da comida, “da digestão e da indigestão”, para, na verdade, discutir a gestão de espaços independentes – suas potências, estrutura, formação de equipes, projetos, sustentabilidade etc. “E como ter um espaço destes é ter que fazer de tudo, se desdobrar, o subtítulo do projeto era ‘como assobiar e chupar cana ao mesmo tempo’.”

Peças de marcenaria produzidas para o projeto DESEJA.CA, em 2011.
Peças de marcenaria produzidas para o projeto DESEJA.CA, em 2011. Foto: Divulgação

Outros projetos marcantes do JA.CA ao longo dos anos seguintes foram o Dispositivo Móvel para Ações Compartilhadas (2015) e o Praça Viva (2016). No primeiro, a partir da compra de uma Kombi e da aprovação no edital Rumos Itaú Cultural, seis artistas (ligados também à gastronomia, arquitetura e outras áreas) foram selecionados para uma residência de 60 dias para desenvolver ações itinerantes com a Kombi. “Fizemos projeções de filmes, performances, uma escola portátil, cozinha. Isso permitia sair da sede e amplificar as ações: não a comunidade indo até o JA.CA, mas nós e os artistas indo até a comunidade”, diz Moreira.

Já em Praça Viva (2016), o JA.CA se associou a professores e alunos da Escola Municipal Benvinda Pinto Rocha para ocupar uma área pública que deveria ser uma praça – segundo o planejamento urbano do bairro – mas que era utilizada como estacionamento de caminhões. Após negociar com empresas, o JA.CA se utilizou de materiais descartados no bairro para, ao lado das crianças,  finalmente transformar o espaço em uma praça pública.

Grandes passos

Ao longo dos anos, além dos projetos no bairro, o JA.CA expandiu suas atividades para fora do Jardim Canadá, seja em Belo Horizonte ou em parcerias com instituições de outras cidades. Houve, por exemplo, a criação de um espaço para ateliês de artistas no centro da capital mineira, além da organização de debates, palestras ou mostras de audiovisual em diferentes locais. Todo o processo e o aprendizado de anos culminou, no final de 2017, na aprovação de um projeto do JA.CA para realizar o projeto educativo dos quatro espaços do CCBB, em Belo Horizonte, Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo. “Passamos de menos de 10 pessoas para cerca de 100”, conta Caporali, reafirmando mais uma vez a necessidade do JA.CA de se adaptar a novas circunstancias.

“Nós duas temos essa formação artística e já tivemos nossos trabalhos autorais. Nesse momento queremos estar mais em projetos coletivos do que individuais, mas não deixamos de pensar isso tudo como nossos trabalhos de arte”

Samantha Moreira

Para o trabalho com o CCBB, o JA.CA aprofundou sua atuação na área pedagógica e, por mais que vinculado a uma grande instituição com regras e diretrizes próprias, não deixou de carregar sua bagagem como um espaço independente e experimental de arte – inclusive levando artistas e curadores para os processos no CCBB. “Temos que entender como atuar em cada lugar, mas sempre mantendo uma coerência e uma autonomia de trabalho. E acreditamos muito nesse lugar do encontro, da convivência, que rege todos os nosso projetos”, diz Moreira.

Ainda em 2018, outra novidade foi a escolha do JA.CA, a partir de um edital da prefeitura de Belo Horizonte, para coordenar a 7a edição da Bolsa Pampulha, vinculado ao Museu de Arte da Pampulha. Com a seleção de dez artistas participantes, o JA.CA coordenou os seis meses de atuação dos artistas ao lado dos curadoras Julia Rebouças, Beatriz Lemos e Monica Hoff.

Visita de crianças com o Educativo do CCBB
Visita de crianças com o Educativo do CCBB. Foto: Divulgação

Em todos esses projetos, seja em um trabalho com a comunidade, em uma residência no Jardim Canadá, no CCBB ou na Bolsa Pampulha, Moreira e Caporali ressaltam o desejo de acompanhar de perto e participar de modo criativo de todos os processo. “Pois entendemos tudo isso também como nossos trabalhos artísticos. Nós duas temos essa formação artística e já tivemos nossos trabalhos autorais. Nesse momento queremos estar mais em projetos coletivos do que individuais, mas não deixamos de pensar isso tudo como nossos trabalhos de arte. São nossas experimentações, necessidades, desejos”, diz Moreira.

Caporali afirma, também, que apesar deste foco atual em trabalhos de administração e gestão, o JA.CA nunca teve um funcionamento tão forte no sentido de ser uma espécie de coletivo artístico. Ela e Moreira ressaltam, neste ponto, a necessidade de citar nesta matéria o nome dos outros integrantes do grupo, para além delas duas e de Mateus: Marcio Gabrich, Artur Souza, Sarah Matos, Daniel Toledo, além dos diversos parceiros que se juntaram ao longo dos anos. “Por vivermos nesses tempos de gangorra política e econômica, entendemos que é esse lugar afetivo que nos segura nesses momentos de esvaziamento de grana, por exemplo”, diz Caporali. “E se existe hoje um momento sombrio, é hora de reforçar os encontros, pensar nos projetos possíveis. Fica claro que nesse contexto passa a ser ainda mais importante resistir.” E é neste sentido que o JA.CA inaugura o Arrudas, seu novo espaço para ateliês, debates, exposições e encontros no centro de Belo Horizonte. 

Manual da Arquitetura Kamayurá resgata sabedoria milenar

A aldeia Ipawu em foto de Gabriela Rudge.

O Xingu se transforma rapidamente. Lideranças indígenas do território estão preocupadas com o destino do saber acumulado por eles em centenas de anos. O Parque Indígena do Xingu, situado ao norte do estado de Mato Grosso, entre o Cerrado e a Amazônia, abriga cerca de 14 etnias diferentes, entre elas os Kamayurá. No ano passado eles decidiram criar uma publicação com as técnicas de edificação de ocas. Desse desejo nasceu o Manual da Arquitetura Kamayurá, uma síntese de sua construção tradicional.

A ideia partiu de Kanawayuri L. Marcello Kamayurá, liderança local, ao conhecer no Xingu a arquiteta Clarissa Morgenroth, ótima desenhista que viajava pela região por nove meses. Ele a convidou para o projeto e ela envolveu a Escola da Cidade, através da plataforma Habita-Cidade com a oficina Modos de Habitar: Arquiteturas Tradicionais. Formou-se um grupo de estudantes e professores que viajou para a Aldeia Ypawu, em território Kamayurá no Alto Xingu, para dar apoio a essa empreitada especialmente na elaboração e armazenamento dos desenhos no computador.

Outra vista da Aldeia Ipawu, em foto de Sabrina Carvalho Dias.

“Quando chegamos ao Xingu constatamos que alguns indígenas já tinham conhecimentos preliminares de desenhos técnicos. Lançamos então a questão: como é o território Kamayurá? Ajoelhados sobre um grande papel branco eles desenharam a aldeia com suas ocas, rio, pássaros, árvores… A oca era uma representação tradicional deles e serviu de base para o início de trabalho”, diz Luis Octavio de Faria e Silva, arquiteto, professor e coordenador da plataforma. “Embora haja diferenças entre algumas etnias, os sistemas construtivos do Xingu têm muito em comum. A unidade arquitetônica é a oca, cuja quantidade na aldeia pode variar de acordo com a população residente”. Com formas ovaladas elas são distribuídas em círculo e é ali que fazem algumas atividades domésticas, menos acender o fogo para cozinhar.

No interior das ocas, em suas extremidades eles penduram as redes e a parte central é reservada para o comércio e rituais. “O chefe da família se ocupa da construção de sua casa junto com os parentes, onde cada membro tem saberes diferentes e múltiplos que funcionam em conjunto”. As construções são feitas com materiais retirados da floresta e executadas com as técnicas tradicionais, com tetos de palha que se estendem até o chão. Esses elementos combinam economia de materiais e a elegância formal. “Caso fique um pouco irregular eles não se importam, o que vale é a coesão do conjunto”, garante Luis Octavio. Segundo ele, os Kamayurá mantêm uma relação de olhar curioso sobre o que está fora de sua cultura. Hoje eles também fazem casas de quatro águas cobertas com palha. As ocas medem em torno de 30 por 10 metros e podem chegar a 10 metros de altura, com aberturas baixas, por onde se dá o acesso.

Como entrar no Xingu com a ideia de colaborar com os indígenas em um projeto de compreensão e representação da habitação tradicional deles sem encontrar a resistência de etnólogos, antropólogos, sertanistas? Luis Octavio comenta que um antropólogo fez parte do projeto e com ele tiveram reuniões preliminares nas quais ele apresentou as exigências formais de convivência no Parque Indígena e as etiquetas no modo de tratar os Kamayurá. Tiveram que seguir um protocolo inicialmente rígido e que depois ficou mais relaxado, segundo o arquiteto.

 

 

Durante a oficina foram feitos levantamentos de medidas e materiais utilizados nas construções Kamayurá. A partir desses levantamentos foram realizados desenhos de representação (plantas, elevações) e tabelas. Segundo o arquiteto, esses indígenas têm orgulho de construir suas casas. “O objetivo deles, por meio do Manual, é o recenseamento do saber construir e a equalização do saber entre eles. A ideia é a de envolver os jovens na construção das moradias e as lideranças acreditam que este manual com as técnicas tradicionais vai ajudá-los.”

Os primeiros elementos a serem colocados na construção de uma casa Kamayurá são os pilares centrais, seguidos dos mourões que formam o perímetro. A oca é composta por duas estruturas leves conectadas como se fossem duas cestas sobrepostas. Estas cestas são presas por amarrações verticais e horizontais. A palha é colocada por último de baixo para cima. Construir uma casa, para os Kamayurá, é também diversão.

 

Crianças Kamayurá brincando em oca em construção. FOTO: Sabrina Carvalho Dias

As ocas constituem um espaço de meia escuridão e de privacidade, mas ao mesmo tempo são um lugar aberto. Em cada uma delas vivem cerca de 20 pessoas, de famílias aparentadas. Essas casas, em geral duram de oito a 10 anos. “Eles costumam fazer manutenção se a construção estiver muita velha, mas os Kamayurá preferem construir uma oca nova. E, quando isso ocorre, todo o material da construção antiga é reutilizado ou queimado, eles não acumulam resíduos na aldeia. De uma maneira geral, eles têm compreensão da cultura deles, percebem a interação harmônica com o bioma, mas não são deslumbrados.”

No momento, o que existe em circulação pela internet é uma versão do Manual impresso na aldeia, que já foi revisado pela Escola da Cidade e enviado ao Xingu. Os arquitetos aguardam as observações ou possíveis correções dos Kamayurá. A intenção é fazer, depois de tudo revisado, uma versão em inglês para que possa circular em vários países.