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Uma visita ao Sesc Pompeia em tempos de pandemia

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"Caos + Reparo = Universo", 2014, obra de Kader Attia em cartaz no Sesc Pompeia. Foto: Gui Gomes/ Divulgação

Sábado, 14 de novembro. Exatamente oito meses após um confinamento levado muito a sério, visito a primeira exposição de arte. Escolho o Sesc Pompeia por ser um dos locais mais acolhedores da cidade, pela arquitetura de Lina Bo Bardi, pelas mostras em cartaz. Exposições costumam ser o lugar da surpresa, do espanto, da pesquisa, do questionamento, é onde se pode rever o cotidiano, repensar o real, propor novos mundos, e também a possibilidade de fantasia e ativismo.

Mas em um mundo em pandemia, que no Brasil se tornou uma política de morte, o que significa retornar a uma exposição de arte contemporânea? Dá para olhar arte com máscara, medo de se aproximar de outras pessoas e a impossibilidade de tocar na obra? Ou a experiência de uma exposição está comprometida e sua arquitetura e organização não podem mais seguir parâmetros pré-11 de março de 2020, quando a OMS anunciou a pandemia?

Desde os anos 1980, com a Aids, o mundo da arte incorporou a ideia de “contaminação” como uma afirmação positiva e a palavra inundou textos curatoriais, críticos e mesmo de descrição de mostras. Talvez seja agora o momento de se rever o uso dessa palavra, especialmente porque está claro que a contaminação está em todo lugar, mesmo levando-se em conta as medidas sanitárias necessárias, e ela segue mortal.

Na visita ao Sesc, as medidas são dadas pelo número limitado de visitantes, que só podem entrar com inscrição prévia, e pela medição de temperatura na entrada. O local, além do mais, é um lugar amplo, com muita ventilação, outro aspecto importante que dificulta a contaminação.

O Sesc Pompeia tem duas mostras em cartaz, que seguem até o fim de janeiro: Farsa. Língua, Fratura, Ficção: Brasil–Portugal e Kader Attia – Irreparáveis Reparos. Como experiência, e creio que isso é importante agora mais do que nunca, a exposição do artista franco-argelino me pareceu mais adequada ao tempo presente, apesar de ambas terem sido concebidas e desenhadas no mundo pré-pandêmico.

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Esculturas de Kader Attia expostas na mostra Irreparáveis Reparos. Foto: Gui Gomes/ Divulgação

É muito atual uma exposição que fale sobre reparo, como a de Attia, a partir de sua poética em abordar os legados coloniais, especialmente suas repercussões na África, e as possíveis ressignificações de objetos e ações de violência. É o caso do vídeo Mimeses como resistência, onde pássaros reproduzem os sons de motosserras, as máquinas de destruição da natureza, uma ironia sobre como vítimas assumem o discurso do poder.

Os trabalhos de Attia, além do mais, costumam criar ambientes que fazem referência a uma situação pós-apocalíptica, o que em 2020, parece muito próxima com os alarmes cada vez mais intensos de catástrofe climática e a escalada da devastação na Amazônia. Esse cenário é uma referência explícita na instalação com máscaras e esculturas de madeira chamuscadas e queimadas, originalmente vendidas a turistas na África, e que fazem referência ao incêndio no Museu Nacional no Rio de Janeiro, em 2018. A potência da obra do artista está em ser uma síntese de diversos problemas expostos de um mundo à beira do abismo.

Parte do poder da mostra, com curadoria da alemã Carolin Köchling, está justamente em trazer as histórias de grupos vulneráveis, sejam povos colonizados por outros países, sejam coletivos de mulheres trans, sejam sobreviventes da 1ª Guerra Mundial, em um ano que todo o planeta se tornou vulnerável à catástrofe.

E é muito comovente ouvir, no vídeo Refletindo a memória (2016), sobre a necessidade de se viver o luto, a partir de depoimentos sobre a Síndrome do Membro Fantasma, quando pessoas que tiveram partes do seu corpo amputadas seguem sentindo esses membros. Quando o mundo já ultrapassou 1,5 milhão de mortos por conta da COVID-19, o trabalho de Attia se torna uma reflexão sobre a própria pandemia e mostra o terror como uma construção cotidiana na história humana. Mas há também esperança, como na escultura Caos + Reparo, um globo construído por pedaços de espelhos quebrados costurados por fios de metal, um pouco a sensação de quem atravessou 2020.

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Vista da exposição “Farsa – Língua, Fratura, Ficção: Brasil-Portugal”. Foto: Ilana Bessler/ Divulgação

A mostra conta com poucos trabalhos espalhados por sete salas e uma arquitetura generosa, o que transmite um sentimento de segurança, por um lado, e a possibilidade de apreensão total, por outro. É especialmente sob essa ótica que Farsa se torna uma espécie de antítese do que poderia ser uma mostra nos dias atuais. Teria sido uma ótima mostra em “condições normais”, mas já que elas não existem, a questão é porque a curadoria, a cargo de Marta Mestre e Pollyana Quintella, não a repensou para o momento.

Há desde trabalhos interativos a muitos monitores que obrigam o uso de fones dispostos no espaço, mas sem condições de higiene adequadas. Para que se aventurar a pegar um objeto que outras pessoas podem ter tocado sem limpar?

O conceito da mostra gira em torno dos limites da linguagem e da comunicação, focando artistas que trabalham no Brasil e em Portugal, em dois tempos: nos anos 1960/70 e no século 21. Há um sentido nessa escolha, o primeiro é o momento da busca de expansão da arte para novos campos além do próprio circuito, atitude que perde espaço nas décadas seguintes, para retornar nos anos recentes. São períodos importantes de renovação, transformação e transgressão.

O problema é que a mostra ambiciosa chega a ter um caráter enciclopédico: mais de cem obras de 68 artistas, a dimensão de uma bienal. Isso tudo demanda um tempo e uma concentração um tanto difíceis no novo contexto, com limitação na visita, quando não dá para ver vídeos em pequenas salas, quando não se pode manipular obras.

Farsa é um exercício de linguagem muito bem elaborado, mas creio que o momento agora é de síntese, não de dispersão. Por isso, Irreparáveis Reparos ganha potência. Consegue expressar com contundência questões relevantes, que se já mereciam atenção antes de 2020, agora são urgentes.

Tempos sombrios e férteis

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Na página ao lado, Aqui é mais do que o Vírus, de Rosana Palazyan, uma série de pequenas máscaras nas quais a artista borda frases com os próprios fios de cabelo
“Aqui é mais do que o Vírus”, de Rosana Palazyan, uma série de pequenas máscaras nas quais a artista borda frases com os próprios fios de cabelo

Vivemos nos últimos tempos uma falsa impressão de normalidade, muitas vezes acompanhada de uma esperança de que tudo poderia retornar ao que era antes. No entanto, mesmo que fosse possível resgatar velhos hábitos, apenas acrescidos (e não por todos) do cumprimento de protocolos como uso de máscara e álcool em gel – o que parece bastante improvável com o crescimento exponencial dos índices de contágio –, há algo de amargo nessa ilusão de que se pode recuperar o tempo perdido. Em primeiro lugar, porque o período da quarentena não foi um parêntese, um momento em suspenso. Este isolamento, o mergulho íntimo num cotidiano que ora se revela idêntico ora parece ser de um outro mundo, revelou-se muito mais complexo e desafiador. Acabou também gerando uma tal profusão de camadas de interpretação, reflexão, engajamento ou negação que custaremos a digerir e que nos coloca diante de um mundo muito mais complexo, paradoxal e contraditório do que aquele anterior a março de 2020.

São muitas as perguntas sem resposta que se acumularam de lá para cá e muitos são os pontos de vista desses questionamentos, gerando uma enormidade de interpretações, desejos, reflexões capazes de alimentar uma forte – e muitas vezes angustiante – dúvida sobre os impasses do momento atual e o que assistiremos no futuro próximo. Ao longo dos últimos nove meses (não por acaso tempo equivalente ao de uma gestação), muito foi produzido e começa aos poucos a chegar às nossas mãos.

Um desses conjuntos, que traz uma ampla gama de análises desenvolvidas por pessoas das mais diferentes áreas do conhecimento, é No Tremor do Mundo, coletânea de ensaios e entrevistas publicadas recentemente pela editora Cobogó. São ao todo 25 autores que procuram destrinchar não apenas os efeitos da pandemia sobre o mundo, os indivíduos e a sociedade, mas também entender de que forma essa situação excepcional ajuda a iluminar, transformar ou acentuar a crise atual, seja ela política, econômica, ambiental ou humana. Os textos oscilam entre um otimismo quase redentor e um pessimismo ácido em relação aos desafios gigantescos a serem enfrentados para, nas palavras de Ailton Krenak (um dos vários entrevistados pelos organizadores da publicação, Luisa Duarte e Victor Gorgulho), “adiar o fim do mundo”.

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Capa do livro. Foto: Divulgação

Nada mais terrível do que uma doença – até o momento incontrolável – que nos lembra que “o amanhã pode simplesmente não existir”, como alerta Sidarta Ribeiro. Ou, nas palavras de Guilherme Wisnik, um vírus que revela “um mundo dominado por sentimentos crescentes de paranoia e angústia”. A variedade de respostas ensaiadas pelos diferentes autores não esconde uma certeza em comum: que o momento atual funciona como uma espécie de alerta, revela a necessidade de uma mudança radical. “O Covid expôs a extensão e a profundidade da ruptura necessária”, sintetiza Heloisa Starling.

O enfrentamento pode se dar pela ação concreta, real, de movimentos como o das Marés ou do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), cujas estratégias de combate ganham visibilidade nas entrevistas feitas com Eliana Souza Silva, fundadora da ONG Redes da Maré, e com os coordenadores do MLB. Mas também se revelam a partir de reflexões filosóficas de amplo alcance, que na maioria das vezes retomam instrumentais que já vinham sendo elaborados pelos pensadores, como demonstra Pedro Duarte numa bela síntese sobre os principais lances dados pelos filósofos nesses tempos turvos.

No campo mais específico da cultura e da arte, uma questão parece ricochetear em praticamente todos os comentários, interpretações e questionamentos aventados: como pensar a questão da experiência da troca, do intercâmbio – porque não do contágio – da prática artística se o contato entre as pessoas foi limitado? A própria criação artística parece oferecer essa ponte, propor uma aproximação, poética ou reflexiva, afetiva ou simbólica, como podemos perceber em várias ações que vêm sendo compartilhadas ao longo desse período de “isolamento”. É o caso, por exemplo, do diário que a escritora Noemi Jaffe – uma das autoras convidadas de No Tremor do Mundo – se propôs a escrever como um “ato de elaboração em meio a um grande luto”.

Rosana Palazyan, cuja obra é marcada por uma delicadeza cortante e pela capacidade de combinar o universal e o particular (sua instalação Uma História que eu nunca Esqueci ajudou a Armênia a conquistar o Leão de Ouro de Melhor Pavilhão Nacional, na 56a Bienal de Veneza), também mergulhou nesse período de quarentena num rico processo de elaboração simbólica do drama coletivo vivenciado por todo o globo nesse 2020, e que em países como o Brasil – submetidos a governos de índole totalitária e negacionista e marcados por uma profunda desigualdade – é vivido de forma ainda mais intensa. Desde abril ela vem desenvolvendo a série Aqui é mais do que o Vírus, um conjunto de pequenas máscaras que cabem nas palmas das mãos e foram realizadas a partir do único retalho de que dispunha (desde o início da pandemia resolveu instalar-se na casa da mãe, ficando longe de seu ateliê). Sobre essas delicadas miniaturas, Rosana borda frases, palavras, desenhos das mais diferentes origens (apropriadas de conversas, pensamentos, reportagens…) utilizando como linha seus próprios fios de cabelo, material que utiliza desde um trabalho com meninos de rua desenvolvido em 1998. “São como as palavras e pensamentos que saem das bocas que passaram a ficar escondidas. Espaço para nossas falas, relacionando os acontecimentos diários que aqui precisamos resistir para vencer muito além de um vírus mortal, dentro de uma realidade desigual e injusta”, sintetiza.

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Capa do livro. Foto: Divulgação

Alfredo Nicolaiewsky, artista e professor gaúcho, também sentiu-se estimulado pelo isolamento da pandemia e desenvolveu um interessante processo de criação e troca. Com a agenda mais livre, resolveu retomar seu trabalho com pintura, técnica que havia abandonado há 20 anos. Começou a pesquisar diariamente novas composições, usando como suporte caixas de papelão de descarte. Contrariamente ao usual silêncio do ateliê (normalmente os artistas preferem exibir suas obras quando já prontas ou encaminhadas), passou a enviar imagens desses trabalhos e conversar sobre eles com um grupo de amigos por Whatsapp, estimulando assim um diálogo e uma proximidade que mostra, na prática, como a cultura é algo coletivo. O resultado desse processo acabou sendo transformado em livro digital, cujo título Alfredo em Processo; Nicolaiewsky em quarentena ironiza esse duplo nível de relação, entre o autor público e o indivíduo que enfrenta as adversidades do cotidiano.

Outros vários livros, virtuais ou não, tem vindo à tona nos últimos tempos, com diferentes enfoques e abordagens, tornando mais rica essa reflexão. É possível citar, por exemplo, a antologia Histórias da Pandemia, organizada pela editora Alameda, que reúne dez contos de autores que trazem pontos de vista históricos, pessoais e narrativos distintos, porém complementares, em que se sucedem momentos de delicada comédia (Ciúmes, de Luiz Kignel), revisão histórica (As Mortes de Antônio Valle, de Marcelo Godoy) ou uma narrativa que mescla memórias de infância, o despertar da sexualidade homoerótica e a dureza das perdas pelo coronavirus numa sociedade que se recusa a enxergar o óbvio (Supernova, de Felipe Cruz).

Essa enorme oferta e a diversidade de caminhos adotados só mostra que, em meio à ansiedade pela retomada, é preciso parar para pensar, manter olhos e ouvidos abertos para murmúrios menos espetaculosos, mas talvez mais organizadamente conectados com a traumática experiência dos últimos meses, observar atentamente processos, reflexões, escritas, criações que nasceram desse período de quarentena, ameaça e isolamento.

A Bíblia, o inferno de León Ferrari

Divindade fálica oriental Go-Shintai
Divindade fálica oriental Go-Shintai

 

Sem título (série “Bíblia”). Desenho do Duomo de Pisa sobreposto por gravura da escola moderna de Ukiyo-e e Jeová de Rafael Sanzio. Fotos: Cortesia Fundación Augusto y León Ferrari

No ano em que León Ferrari completaria 100 anos, escolho a série Bíblia, de 1989, como objeto de reflexão. Com essas obras ele conclui sua ponte para o inferno, iniciada em 1965 com a obra seminal La Civilización occidental y Cristiana, estopim do seu embate com a igreja católica. Mais de vinte anos depois Ferrari retomou o tema religioso com mais de cem colagens realizadas com variantes híbridas, misturando textos e imagens da escritura sagrada com obras de Michelangelo, Dürer, Goya, Da Vinci, Rafael, notícias de jornais e gravuras orientais, de elegância formal e erotismo à flor da pele. Bíblia é o balizamento da arte total de Ferrari e com ela desencadeia vários comentários verticais sobre a Escritura Sagrada, que vão de Deus a moradores da periferia fuzilados pelo esquadrão da morte na ditadura dos anos de 1970.

Dezenas dessas colagens estão reunidas no livro Bíblia, considerado um dos marcos de pensamento transgressor, com apresentação do poeta Regis Bonvicino. As imagens xerocadas, opacas, trabalhadas em branco e preto lembram o processo gráfico dos jornais sindicais ativistas. Max Ernst define colagem como “o encontro de duas realidades distantes em um plano estranho a ambas”. Usando apenas a imagem de um pênis, que representa a Divindade fálica oriental Go-Shintai, do século 17, e uma gravura de anjo com espada, retirado da Bíblia Shnorr, de 1860, Ferrari reitera o pensamento de Max Ernst e cria uma obra de poética iluminada pelo contrassenso. Ele não se constrange com a moral comum dos preceitos seguidos pela maioria. Utilizar os textos da Bíblia é parte de seu pensamento anárquico, com a intenção de libertar a iconografia presa em livros e lhes dar vida justapondo e superpondo-a em trabalhos próximos à fotomontagem. O oriente e o ocidente coexistem no provérbio visual de Ferrari, um inventário encadeado por uma narrativa de textos e imagens que anunciam contrariedades. Ao confrontar diferenças de sexualidade em outras culturas ele chega a um trabalho desafiador. Apropria-se do desenho do Duomo de Pisa e o contrapõe à gravura Ukiyo-e, de 1910, e a Jeová, de Rafael Sanzio, século XVI, precedida do comentário bíblico: “Se a filha de um sacerdote for apanhada em estupro e desonrar o nome do pai, será entregue às chamas (Levítio21,9)”. A contra leitura que se instala em torno das obras dessa série se compõe de camadas de interpretações.

Sem título (série Bíblia)
Sem título (série “Bíblia”), xilogravura de Hishikawa Moronobu sobreposta à “Última Ceia”, de Dürer.

Com o desaparecimento de seu filho pela ditadura militar, em 1976, Ferrari deixa a Argentina e se fixa em São Paulo. Presença/ausência é o espectro que o acompanha no exílio e o atormenta até o fim de sua vida. Ferrari opera no vazio que existe entre a arte e a vida, desarruma o sistema, escancara a lógica da dominação com personagens coletivos que contestam, interrompem e colocam em xeque a história.

As indagações constantes sobre as Escrituras não se refletem apenas na arte, mas contaminam toda sua forma de viver. Em uma carta à sua irmã Suzana escrita em 1984 ele comenta: tirar do inferno o “pecado” ou, melhor, converter o inferno em um jardim cheio de flores, como o é em realidade, pode ser um bom caminho para limpar ou começar a limpar nossas cabeças dos versículos da Bíblia e seus congêneres.

Ferrari desobedece e rejeita todo projeto genocida do poder. Na década de 1980, vi alguns rascunhos dessa série em seu ateliê paulistano e me chamou a atenção que os personagens bíblicos flutuavam no alto das lâminas/folhas. Deus, santos, anjos pareciam denunciar o céu religioso como um lugar de vigilância da ordem, que se remete a Michel Foucault, em seu livro Vigiar e Punir.

Divindade fálica oriental Go-Shintai
À dir., Divindade fálica oriental Go-Shintai com anjo com espada, retirado da Bíblia Shnorr. Foto: Cortesia Fundación Augusto y Leon Ferrari

Em 2004 ele sofre uma nova investida da igreja e do sistema quando sua exposição Infernos e idolatrias, no Centro Cultural Recoleta, em Buenos Aires, é invadida por fanáticos católicos que incendiaram algumas obras. Na ocasião, o então cardeal Jorge Mario Bergoglio, hoje Papa Francisco, entrou em confronto com ele chamando-o de “blasfemo”. Ferrari nunca negociou sua liberdade de expressão com nenhum poder estabelecido, seja da Igreja ou do Estado. Ao contrário, deu continuidade e alargou seu repertório de concepção catártica, ao desenvolver novos processos simbólicos contra os arbítrios.

Ferrari incomodou e muito pela forma livre com que sempre trabalhou, na contramão do circuito de arte, que costuma se alinhar ao sistema. Em 1989, depois de ser convidado a participar da coletiva Art in Latin América, na galeria Hayward de Londres pela curadora Dawn Ades, sua obra foi censurada e cortada da coletiva. Em 2013, como uma resposta a todas as censuras que sofreu ao longo dos anos, ele faz um pronunciamento definitivo: “A liberdade de consciência, o direito de crer em qualquer deus, ou em nenhum, implica também, para alguns, o direito de cada um estudar, defender, criticar, fazer arte, humor, cinema, teatro, literatura, com qualquer das crenças”.

Luta contra o vento

Wind, de Joan Jonas, 1968, no Pavilhão da Bienal
"Wind", de Joan Jonas, 1968, no Pavilhão da Bienal. Foto: Cortesia Bienal de São Paulo

Adentrar o Pavilhão Ciccillo Matarazzo para visitar Vento, na primeira saída de casa desde meados de março, provocou dois estranhamentos: um, de voltar, em pessoa, ao circuito das artes; outro, de procurar – em um costume programático – uma imensidão de obras e ser recebido por peças selecionadas, dispostas entre os silêncios arquitetônicos do pavilhão, a casa da Bienal de São Paulo desde 1957. Ora, Vento conta com apenas 21 artistas da 34ª edição, em uma exposição que não estava prevista.

No ano infernal, a organização do evento teve que dançar a dança de 2020 e fazer alterações no que fora inicialmente imaginado. Mesmo assim, a 34ª Bienal já havia sido concebida como uma espécie de ensaio aberto, uma exposição em processo; dessa forma, Vento não é um corpo alienígena dentro do conceito de uma mostra constantemente em construção, que “reflete sobre si mesma publicamente”. Aliás, após o curto período de estranhamento com os vazios, o esquema da exposição se revela orgânico e despista a suspeita do provisório.

Em Vento é proposta a ocupação do edifício sem o uso de nenhuma divisória construída, sem a inserção de espaços intermediários, mas em contato direto com a amplitude, monumentalidade e transparência do Pavilhão. As obras – quase dois terços delas sendo instalações sonoras e vídeos – “criam âncoras no espaço que nos convidam a ressignificar a ideia de espera, distância, vazio e perda, que está ao nosso redor. Elas crescem neste espaço criando caminhadas de reflexão, caminhadas de digestão das provocações trazidas pelos artistas”, como afirma o curador adjunto da Bienal, Paulo Miyada.

Nessa superfície indivisível, os sons acompanham o visitante pelas obras desmaterializadas, anunciam a chegada de algumas delas e, às vezes, também brigam entre si, se sobrepõem e disputam a concentração do visitante. São eles que ajudam a combater a melancolia das vacâncias e do distanciamento social necessário. Em um momento em que a segunda onda de Covid-19 era negada pela prefeitura e o status da crise, do dia para a noite, tinha sua gravidade alterada, de amarelo para verde e vice-versa, foi tranquilizante perceber que a Bienal havia respeitado as recomendações sanitárias; afinal o medo do invisível não vai embora tão cedo, mesmo inserto na contemplação das obras apresentadas em Vento.

O título da mostra vem do filme Wind, de Joan Jonas, que tenta fazer desse invisível, visível. Nele, a artista estadunidense registrou os esforços de um grupo de dançarinos para executar uma coreografia na praia de Long Island, em Nova York, em um dos dias mais frios de 1968. Ao mesmo tempo que executam seus movimentos, eles também resistem ao vento forte que se impõe contra seus corpos. Assim, o filme de Jonas mostra o invisível pelo contraste, colocando algo no vazio para revelá-lo.

Still de "Wind" (1968), de Joan Jonas. Cortesia da Bienal de São Paulo
Still de “Wind” (1968), de Joan Jonas. Cortesia da Bienal de São Paulo

“O vento carrega o eco, que é ao mesmo tempo a lembrança do que foi dito e sua reverberação futuro adentro. Vento, analogamente, funciona como o índice desta edição da bienal, no sentido de que aponta alguns dos temas que voltarão expandidos na exposição de setembro do ano que vem, e ao mesmo tempo se refere ao que já aconteceu”, escreveu Jacopo Crivelli Visconti, curador geral da edição, em uma das correspondências publicadas no site da 34ª Bienal.

A exemplo das palavras de Visconti, a obra Insurgencias botánicas, de Ximena Garrido-Lecca, que está em Vento, foi mostrada pela primeira vez na abertura da 34ª Bienal, em fevereiro, inaugurada com uma performance do sul-africano Neo Muyanga. Nela, a elaboração de um sistema de cultivo hidropônico que permite que as plantas cresçam ao longo do ano oferece ao público a oportunidade de acompanhar os diferentes momentos da transformação da instalação e confere longevidade ao trabalho.

“Insurgências Botánicas” (2017-2020), de Ximena Garrido-Lecca. Foto: Cortesia Bienal de São Paulo.

O trabalho de Garrido-Lecca é feito com sementes de feijão que eram utilizadas pela civilização pré-incaica moche em seu sistema de comunicação escrita (algo registrado nas cerâmicas deste povo). Essa mesma civilização desenvolveu entre os anos 100 e 850 um avançado sistema de irrigação ao qual a obra também se relaciona. O desenvolvimento ininterrupto da obra enfatiza o esforço curatorial da bienal de ser concebida como um processo: “A luz de novembro não é a mesma de fevereiro; agora cantos tikmũ’ũn ressoam ao redor das plantas, que cresceram, murcharam e voltaram a crescer”, afirma a organização.

A repetição e a recombinação não são por acaso. Ambas foram incorporadas desde os primeiros estágios do evento como uma estratégia conceitual para demonstrar que o  significado de uma obra se transforma, se multiplica, conforme são alterados os contextos sensíveis e sociais. Isso fica latente tendo em vista da revisitação à série Dilatáveis, de Regina Silveira, produzida durante a ditadura civil-militar brasileira, e à gravação de Palabras Ajenas, de León Ferrari, que se comunica, agora, com a manipulação de informações na era da internet das coisas.

Já a obra de Deana Lawson apresentada em Vento fará o percurso oposto, seguindo esse esquema de reincidências. Apresentada pela primeira vez agora, ela retornará para a mostra da artista no evento principal da bienal, programado para 2021. Neste trabalho em vídeo, a artista evidencia âmbitos distintos da cultura negra ao intercalar e sobrepor imagens de rituais religiosos no continente africano e registros de grandes eventos esportivos e musicais nos Estados Unidos. Como em suas fotografias, a observação da artista tem, ao mesmo tempo, o olhar de um insider e de um voyeur. Da mesma forma, ela também caminha entre o registro documental e uma perspectiva mística ou onírica, na qual o tempo pode até mesmo retroceder.

De modo geral, os trabalhos dentro da curadoria de Vento reforçam uma resistência não opcional refletida no título da 34ª Bienal: Faz escuro mas eu canto. Além da pandemia, para os brasileiros 2020 contou com incêndios criminosos no Pantanal, um apagão de 22 dias no Amapá e os desastres políticos intensificados pela caminhada das guerras culturais. Perto desse escuro, as adaptações da bienal não parecem trágicas. Como diria Joan Didion, “em um mundo perfeito, podemos ter escolhas perfeitas; no mundo real, temos escolhas reais, e as tomamos, e medimos as perdas contra o que poderiam ter sido os ganhos”.

No ano infernal, o artista que aboliu o purgatório completaria 100 anos

Sem título (série Nunca Mais), 1995. Videla, Masseray Agosti com Monsenhor Tortolo, Vigário das Forças Armadas (Foto: A. Kacero) e Julgamento Final de Giotto, Capella degli Scrovegni, Pádua 1306. Ilustração da edição dos fascículos do livro Nunca Mais da CONADEP. Foto: Cortesia Fundación Augusto y León Ferrari

“Inquieto, navegou em todas as águas e experimentou técnicas e suportes diversos como a xerox, o videotexto, a arte postal, microfichas, livros de artista, heliografia, uso da letra-set e instalações sonoras”, escreveu a crítica Leonor Amarante sobre o emblemático artista León Ferrari (1920-2013), cujo centenário foi celebrado no dia 3 de setembro.

Sem título (série Nunca Mais), 1995. Videla, Masseray Agosti com Monsenhor Tortolo, Vigário das Forças Armadas (Foto: A. Kacero) e Julgamento Final de Giotto, Capella degli Scrovegni, Pádua 1306. Ilustração da edição dos fascículos do livro Nunca Mais da CONADEP. Foto: Cortesia Fundación Augusto y León Ferrari

A propósito da data, a exposição retrospectiva La Bondadosa Crueldad percorrerá dois anos pela Europa. Sua inauguração acontece neste 15 de dezembro de 2020 no Museu Reina Sofía, em Madrid (Espanha) – onde sete salas serão dedicadas à obra de Ferrari -, com sequência no Museu Van Abbe, em Eindhoven (Holanda), onde permanece de 8 de maio a 26 de setembro do próximo ano. O percurso da mostra, na Europa, termina em agosto de 2022, no Centro Georges Pompidou, em Paris (França).

Nesta itinerância, circulam trabalhos que “desmontam as sequências naturalizadas de violência propagadas pela guerra, religião e outros sistemas de poder” e que “convidam quem os olha a parar, refletir e se posicionar”, segundo a Fundación Augusto y León Ferrari-Arte y Acervo. Entre eles, um dos que geram maior inquietação e anseio é La Civilización Occidental y Cristiana, que crucifica uma imagem de Jesus Cristo, comprada no varejo, no topo da recriação de um jato estadunidense de combate.

Hongo nuclear, 2007, León Ferrari
Hongo nuclear, 2007, León Ferrari. Foto: Cortesia Fundación Augusto y León Ferrari

A peça foi criada sob comissão pela premiação argentina do Instituto Di Tella, em meados da década de 1960. Na ocasião, Ferrari produziu uma série de obras que denunciavam a Guerra do Vietnã. Entre elas, vários objetos que ofereciam representações de bombardeios a aldeias vietnamitas, figurando La Civilización Occidental y Cristiana como seu alferes mais visível. A peça central, ou sua reputação, efervesceu o debate público, provocando as já esperadas reações enfáticas que a fizeram ser recolhida antes mesmo da sua exibição oficial.

Em resposta a um artigo assinado pelo crítico Ernesto Ramallo sobre o episódio, o artista escreveu: “Ignoro o valor formal das peças. A única coisa que peço à arte é que me ajude a dizer o que penso da forma mais clara possível, a inventar signos plásticos e críticos que me permitam condenar com a maior eficiência a barbárie do Ocidente; é possível que alguém me mostre que isso não é arte (…) Eu não mudaria meu caminho, me limitaria a mudar seu nome ”.

No final, Ferrari concordou com a retirada para que seus outros trabalhos pudessem permanecer à vista. O momento de seu feitio se encaixa cronologicamente em um período de radicalização do pop art na Argentina; o que é notado pelo amigo de Ferrari, o poeta Rafael Alberti, em uma correspondência ácida e espirituosa enviada de Roma: “Meu caro Leon: eu realmente gosto de seus projetos de pop art anti [Lyndon] Johnson. Avise-me quando o levarem a Martín García para iniciar uma grande campanha internacional por sua libertação”.

A troca entre o poeta e o artista se deu nos meses que antecederam o primeiro de dois regimes militares opressores que assumiram o país – o último resultando, no final dos anos 1970, no refúgio de Ferrari no Brasil e no desaparecimento de seu filho, Ariel. Antes disso, Ferrari sistematizou sua colaboração com Alberti na publicação Escrito en el aire, de 1964, em que cada desenho abstrato de León dialoga com um poema de Rafael, todos dispostos de várias formas no espaço da página, que gera uma continuidade visual entre texto e imagem. “Essa continuidade não é apenas formal, mas temática: os poemas aludem à musicalidade e ao silêncio, sinais, riscados, emaranhados; qualidades que ressoam na abstração de Ferrari”, nota sua fundação sobre a parceria dos dois.

Sem título (série Nunca Mais)
Sem título (série Nunca Mais), 1995. Dilúvio de Doré, 1860 e Junta Militar (Foto: Secretaria de Informação Pública). Ilustração da edição de fascículos do livro Nunca Mais da CONADEP. Foto: Cortesia Fundación Augusto y León Ferrari

Hoje, La Civilización Occidental y Cristiana é resguardada pelo Museo Nacional de Bellas Artes, na Argentina, tendo partido de lá apenas para a primeira parada na itinerância de La Bondadosa Crueldad. A obra, no entanto, retorna para o museu ao fim da exposição, representando de forma prática e simbólica o último segmento da retrospectiva, na terra natal do artista. No site do Bellas Artes também pode ser conferido, na íntegra, o filme Civilización, premiado no Festival de Cinema Independente de Buenos Aires em 2012, um ano antes do falecimento de Ferrari. Dirigido por Rubén Guzmán, o documentário registra entrevistas exclusivas e mostra o feitio de uma obra original especialmente para o filme.

Além de obras já emblemáticas, como a citada acima, La Bondadosa Crueldad agrega ainda um número significativo de documentos inéditos disponibilizados pela Fundación Augusto y León Ferrari para apresentar outros pontos de vista sobre sua produção e as várias ações que desenvolveu ao longo da vida. Tal proposta feita pela fundação, de fornecer uma visão alargada acerca da vida de León, foi transportada para suas redes sociais durante o mês de setembro, contando com ciclos de publicações, registros e histórias enviados por amigos e familiares que compartilharam suas experiências com León e seu trabalho.

La Civilización Occidental y Cristiana, 1965, León Ferrari. Foto: Cortesia Fundación Augusto y León Ferrari

Embora a mostra comemorativa não venha para o Brasil, o centenário do artista foi celebrado pela 34ª Bienal de São Paulo, com uma montagem da obra Palabras Ajenas, a primeira colagem literária de Ferrari, que compartilha da temática anti-guerra e foi elaborada no apogeu da invasão estadunidense ao Vietnã, entre 1965 e 1967. Sua criação parte da seleção e remontagem de citações textuais de fontes diversas, incluindo agências de notícias, livros de história, a Bíblia – e Deus, como retratado nela – e discursos de figuras políticas e religiosas como o presidente Lyndon B. Johnson, Robert McNamara, o Papa Paulo VI e Adolph Hitler. A partir desse coro reunido por Ferrari, ele pretende expor a relação discursiva belicosa das atrocidades da invasão ao Vietnã e do nazismo com as narrativas de redenção e punição contidas nos textos sagrados, refletindo, em uma camada mais profunda, sobre a violência exercida pelo Ocidente camuflada pela cumplicidade entre o poder político e religioso.

Palabras Ajenas chegou a ser performada parcialmente em público duas vezes (em 1968, no Arts Lab, Londres, e, em 1972, no Teatro Larrañaga, Buenos Aires), e apenas recentemente passou a ser apresentada em sua versão integral (desde sua leitura em inglês em 2017, no REDCAT, Los Angeles, somente uma performance completa foi realizada no Museo Jumex, na Cidade do México, em 2018), tendo em vista que seu texto original se espalha por 250 páginas e requer, em média, um elenco de 30 leitores. Na Bienal de São Paulo, seria realizada a primeira leitura integral de Palabras Ajenas no Brasil; com as restrições sanitárias impostas pela pandemia, no entanto, a organização teve que adaptar o formato de exposição da obra, optando pela exibição de um trecho, apenas, gravado na ocasião da leitura da colagem literária no REDCAT. Dois documentos, dispostos ao lado do monitor que exibe o vídeo, dão um vislumbre do intrincado processo de transposição da colagem para a leitura, são instruções para os performistas e uma impressão do roteiro técnico, “Ato I: Quem ganha ganha”.

Do que falamos quando falamos de arte afro-brasileira?

Obra de Heitor dos Prazeres, artista importante para os estudos de arte afro-brasileira
Pintura sem título de Heitor dos Prazeres, 1962. Foto: Sérgio Guerini/Cortesia Almeida e Dale Galeria de Arte

Num Brasil profundamente comprometido com seu passado escravagista e, portanto, com o racismo estrutural e as práticas que ele entroniza, do que falamos quando falamos de arte afro-brasileira? Dos circuitos formais de arte que exibiram em suas galerias coleções que confirmavam a opção de certa elite pela perenização das desigualdades de raça e gênero que são a marca indelével da nossa sociedade. Falamos, quem sabe, da necessidade de construção de um novo desenho de história, inclusive de arte, que na sua constituição se alicerce no antirracismo e imponha um debate sobre a branquitude e a responsabilidade de brancas e brancos no processo histórico que alijou pretos e pretas do circuito de arte (e de outros) onde eles são sistematicamente subalternizados e sub-representados. Em nosso país, o avanço civilizatório que vai significar a admissão da produção artística e intelectual de grupos excluídos não pode dispensar a solidariedade, a alteridade e a empatia dos não negros comprometidos, não apenas retoricamente, com o aprofundamento da nossa democracia.

Sem título, Arjan Martins, 2018. Foto: Cortesia FAMA e artista
Sem título, Arjan Martins, 2018. Foto: Cortesia FAMA e artista

Apesar do déficit democrático expresso em várias dimensões da nossa sociedade, os grupos oprimidos recusam e resistem historicamente ao genocídio e ao epistemicídio que lhes é imposto, e mesmo vivendo em territórios vulnerabilizados pela ausência do Estado vão viabilizando e tornando visíveis as suas produções simbólicas. Aquelas frações das academias e dos museus comprimidos e sensíveis às demandas sociais do nosso momento procuram assimilar as realizações antes preteridas pelos preconceitos que modulam os discursos hegemônicos. Desse modo, é possível divisar paulatinamente a complexidade da realização artística de pretos e pretas de agora e antes e constatar que sim, há uma história de arte que remonta há séculos e que foi obliterada, tornada invisível, já que admiti-la exigiria reconhecer a humanidade dos escravizados e dos seus descendentes e também dos crimes que contra eles foram e continuam sendo cometidos.

Se a história, a memória, a arte e a ciência dos excluídos, dos divergentes e periféricos, são convocadas a depor sobre o momento de agora, isso denuncia a emergência via insurgência dos atores que exigem protagonismo, mas também aponta a exaustão de um modelo político e econômico que nos seus estertores ameaça a vida no planeta.

As periferias, numa concepção policêntrica e multicultural do mundo, constituem-se em novos centros irradiantes de tudo que as instituições que avalizam a arte só muito lentamente percebem como potência. Mas essa mesma população historicamente abandonada é o vetor da competência e da habilidade que foram capazes de legar ao país as festas que tornaram possível a manutenção das subjetividades dos que as produziram.

Obra de Heitor dos Prazeres, artista importante para os estudos de arte afro-brasileira
Pintura sem título de Heitor dos Prazeres, 1962. Foto: Sérgio Guerini/Cortesia Almeida e Dale Galeria de Arte

Historicamente a festa tem cumprido um papel central na estruturação das comunidades periféricas e na subjetividade dos sujeitos que pertencem a elas. A festa foi uma conquista dos escravizados e o carnaval é um legado extraordinário deles. Não é sem propósito que ela, a festa, seja frequentemente demonizada pela elite branca e econômica – as festas populares elaboradas aqui e ali na obra desses artistas e que deveriam ser incorporadas aos currículos e programações que se pretendam decoloniais. A festa é uma estratégia de sobrevivência dos asfixiados, se exerce nas frestas de uma sociedade opressiva e têm múltiplas dimensões, inclusive religiosa. Ela esta sugerida na obra de um Heitor dos Prazeres (1898-1966), espécie de polímata que certa narrativa em vias de se tornar obsoleta reduziu a “pintor primitivo”, espécie de patriarca daquele mesmo partido que convencionamos chamar “popular” e que hoje acolhe artistas negros e negras como o pintor paulista André Ricardo, a gravadora baiana Eneida Sanches, a multiartista paranaense Lídia Lisboa e o poderoso xilogravador piauiense Santidio Pereira – artistas que embaralham e tornam bastante mais complexa esta categoria. Na realidade, essas e outras produções contestam as dicotomias que contrapõem o erudito ao popular, o centro à periferia e, em alguns casos, até noções de gênero fossilizadas.

Através de suas ações e de rituais cotidianos, a pintora paulista Heloisa Hariadne parece pretender um resgate dos usos e sentidos originais dos alimentos e de seu consumo. Os vegetais que a artista consome são assunto central de suas ações e de sua pintura de extração fauve, algo matissiana e africana. Nas composições diretas de acento pop, corpos negros trabalhados com massa de tinta extraídas de bastões de óleo são contrapostos a essa botânica feérica que ela cultiva, oferece em ritual e consome.

No caso das famílias brancas, as genealogias de arte e as suas famílias artísticas se estabelecem de modo mais ou menos pacifico; já as famílias artísticas negras perdem seus registros, são impedidas de retê-los e são convocadas em nome de toda a comunidade a inventar suas histórias a cada obra e exposição realizada. Moisés Patrício batizou como Álbum de família a série de retratos realizados em plena pandemia que apresenta os membros de sua família espiritual, isto é, os membros da casa de candomblé frequentada pelo artista. Existe um apelo, aliás, legítimo, que realça no discurso sobre a arte afro-brasileira os aspectos sobre a religiosidade dos seus autores, já que essa religiosidade é pauta frequente e em muitos casos central das suas biografias. Vide os baianos Deoscóredes Maximiliano dos Santos (1917-2013), o mestre Didi, escultor seminal, escritor e sacerdote e o também escultor, pintor, gravador, professor Rubem Valentim (1922-1991) – e o notável artista e professor baiano de Macaúbas, Ayrson Heráclito. No entanto, deve-se admitir que a ascensão desses e de outros artistas foi construída no campo da arte e através do conhecimento adquirido por eles no exercício desse ofício. O que é intrínseco a arte deve interessar tanto quanto o que é externa a ela.

Frame de Sacudimentos, vídeo-instalação de Ayrson Heráclito | Fotos: Reprodução/Videobrasil Online

Essa recorrência à realização de retratos explícita na série de Patrício e tão marcante nas obras de artistas como Sidney Amaral (1970-2017), o performático e acidamente irônico Peter de Brito, o pintor No Martins, todos de São Paulo, e o carioca Arjan Martins, participa da construção de identidades que expressam suas individualidades, mas que também contribuem para a construção de uma autoestima coletiva, pois eles refutam a ideia de coisificação do corpo negro e organizam suas memórias. Além disso, esses retratos mitigam um déficit nas galerias reservadas à exibição desse gênero de pinturas. Pode ser que exista uma ideia qualquer que sugira a ausência de tradições artísticas negras brasileiras, o que não é de modo algum verdadeiro, e isto explicaria a falta de reconhecimento das autorias que fundamentam a construção de uma história de arte e justificaria o espanto de alguns diante do que chamam “moda”, “voga” ou “onda” de arte afro-brasileira. Não é por outro motivo que leva artistas afro-brasileiros como Aline Motta, Heráclito, Janaina Barros, Juliana dos Santos, Rosana Paulino, Marcelo D´Salete e Wagner Viana a serem também profundamente comprometidos com pesquisas nos campos da história e da antropologia.

Então, do que falamos quando falamos de arte afro-brasileira? Discorremos sobre eventos que estão aquém e além das obras que os artistas realizam e que, no entanto, estão contidos nelas. Discorremos sobre aquilo que é interno às obras e sobre aquilo que lhes é externo, do que é intrínseco e do que é extrínseco numa abordagem cujas referências serão também possivelmente iluminadas pela sociologia. Essas referências estão sendo prospectadas e coligidas dentro das academias e fora delas, por instituições de cultura formais e não formais, através da admissão da oralidade e dos conhecimentos construídos em organizações sociais as mais variadas. Elas são necessárias para que nos aproximemos com mais propriedade de produções que nos desafiam a escapar de um cânone exausto.

O pintor, desenhista, escultor e performer Luiz 83, que nasceu e reside na capital do Estado de São Paulo, teve, como vários artistas negros, como No Martins, sua origem nas ruas, praticando a pichação e o grafite. Parece ser daí que tanto o pintor quanto o escultor extraem a noção do espaço que orienta suas composições bi ou tridimensionais de caráter abstrato e concreto. Se as soluções formais de Luiz 83 remetem ao concretismo, essa associação deve ser mediada pela ideia de que há mais de uma matriz do concretismo a ser consagrada, para além daquela que usualmente é mencionada. E essa ideia solicita de nós um deslocamento que a descolonização do olhar obriga – seria possível mencionar referências desse concretismo nas obras de Almandrade, Almir Mavignier (1925-2018), Rubem Valentim e Emanoel Araujo. São matrizes diversas daquelas prospectadas naquele território que conhecíamos como o “centro”, mas mesmo elas não explicariam o projeto desenvolvido por artistas com Luiz 83, pois, nas suas biografias o contato com o saber livresco e acadêmico, não sendo desprezível, é de menor monta.

O sociólogo e jornalista Clovis Moura (1925-2003) em seu Rebeliões da Senzala: quilombos, insurreições e guerrilhas, de 1959, comprova que a luta pela emancipação do escravizado teve em negras e negros os seus protagonistas e essa luta é muito anterior a Lei que entre nós aboliu a escravidão. Segundo Moura, foram muitas as estratégias empregadas por homens e mulheres negros desde sempre inconformados com a sua escravização, que no limite apelavam ao suicídio, à interrupção da própria vida pela autoimolação que punha fim ao suplicio; é lícito e justo imaginar que outras estratégias, incluso a já mencionada festa, implicavam na manutenção das subjetividades pelo reforço do poder de Eros, ou de Exu, invocados a contaminar o cotidiano com o erotismo que faculta a vida contra as pulsões de morte orquestrada por Thanatos, o deus grego da morte que saúda e orienta as necropoliticas de ontem e de hoje.


*Claudinei Roberto da Silva é artista visual, curador e professor de Educação Artística na USP. Foi coordenador do Núcleo de Educação no Museu Afro, cocurador da 13ª edição da Bienal Naïfs do Brasil e curador de diversas mostras, entre elas PretAtitude.

Um olhar antidisciplinar para um ano que começa pelo fim

"De amanhã para o ontem", de Mônica Ventura, na exposição "Abre-Caminhos" do Centro Cultural São Paulo. Foto: Divulgação/CCSP
"De amanhã para o ontem", de Mônica Ventura, na exposição "Abre-Caminhos" do Centro Cultural São Paulo. Foto: Divulgação/CCSP

Quem anda pela Avenida Vergueiro, na capital paulista, se depara com uma série de lambe-lambes coloridos pelos postes próximos ao Centro Cultural São Paulo (CCSP), nos quais se pode ler “Magia Negra” e “Jexus”. Se engana quem pensa que estão ali por acaso. Aplicados por Alex Igbo, eles são parte de Abre-Caminhos, uma das novas mostras em cartaz no Centro Cultural

Voltando-se para a instituição, uma escultura vertical construída por Yhuri Cruz, com bandeiras brancas flamulando no jardim suspenso, chama o olhar, bem como a colorida instalação de Mônica Ventura, que ocupa o jardim do térreo. Porém, é ao entrar no CCSP que se pode ver de perto as obras de 6 artistas que compõem Abre-Caminhos. Dividindo o espaço com elas, mas localizado dentro do complexo das bibliotecas, está a 30ª edição do Programa de Exposições – Mostra 2020. Com 18 mostras individuais, a edição põe em foco a diversidade, refletindo seu próprio edital de inscrições, que viveu um recorde com 874 projetos enviados, em sua maioria elaborados por mulheres, artistas não brancas e LGBTQ+.  

"De amanhã para o ontem", de Mônica Ventura, na exposição "Abre-Caminhos" do Centro Cultural São Paulo. Foto: Divulgação/CCSP
“De amanhã para o ontem”, de Mônica Ventura, na exposição “Abre-Caminhos” do Centro Cultural São Paulo. Foto: Divulgação/CCSP

Para Hélio Menezes, curador de arte contemporânea do CCSP, essa mudança quantitativa e qualitativa nas inscrições tem porquês: a busca constante da instituição em se tornar um ambiente diverso e o trabalho árduo dos últimos dois anos em implementar um programa curatorial que se interessa especialmente por expressões artísticas dissidentes. “Essa mudança de chave, que prefiro chamar de uma curadoria antidisciplinar, não toma as normas e a subordinação como guias, mas justamente o questionamento aos disciplinamentos como modos de operação”, explica. 

Esse olhar pode ser percebido no formato das obras. Tanto Abre-Caminhos, quanto a Mostra 2020 tem predominância de obras instalativas. “Era um desejo nosso – de ocupar o prédio de maneira fluida, acabar com essa ideia de que a arte só pode ser exposta em um local específico, com uma legenda, um segurança na porta e um jeito de corpo controlado -, e, ao mesmo tempo, um belo encontro com o desejo dos artistas de sair do confinamento e ganhar volume no espaço, de um modo mais livre”, pontua Menezes.

É esse olhar antidisciplinar e anticanônico que guia a reabertura, aliado a uma reflexão sobre o período pandêmico. Se 2020 nos parece um ano que começa pelo fim, os curadores do Centro Cultural buscaram pensar esse momento. “Entendendo que de fato o ano está começando pelo fim, e que aqui nada se acaba, temos essa ideia de ciclicidade, de que o fim é um começo, de que a morte é uma etapa do renascimento”, explica Menezes; e complementa: “Nos interessava emanar mesmo essa energia, esse entendimento de que não estamos abrindo em um momento festivo, que não se trata de uma celebração, mas tampouco se trata de um fim. Acho que é um processo cíclico de fato.” 

Essa caráter cíclico e esse movimento, a que Hélio se refere, são características significativas de Exu, orixá iorubano. Isso nos leva à primeira exposição.

Lambe-lambes de Alex Igbo para a exposição Abre-Caminhos. Foto: Divulgação/CCSP
Lambe-lambes de Alex Igbo para a exposição Abre-Caminhos. Foto: Divulgação/CCSP

Exu como eixo

Para Menezes, fazia muito sentido retomar as atividades no CCSP com Abre-Caminhos. “É uma exposição que toma Exu como um conceito, mais do que como uma divindade propriamente religiosa. Não é uma mostra sobre religião, mas que toma as dimensões de comunicação, de circulação, de abertura e de linguagem como características dessa deidade de origem iorubana, que inspira esses trabalhos de seis artistas que foram convidados a intervir no prédio.” 

Os lambes de Alex Igbo, com os quais nos deparamos antes mesmo de chegar ao Centro Cultural São Paulo, são um exemplo. Eles buscam questionar a construção simbólica das palavras. “‘Magia Negra’ é uma expressão que é tomada quase sempre no sentido pejorativo, e Alex as apresenta com cores vibrantes, quase fofas, numa reversão do sentido”, explica o curador. 

A exposição buscou ocupar espaços alternativos, evitando salas fechadas e se distribuindo pelos espaços abertos da instituição, para que pudessem ser usufruídas fora de aglomeração. Com isso, parte das obras pode ser vista de fora do CCSP, e a bandeira BRASIL NEGRO SALVE, do coletivo Frente 3 de Fevereiro, só pode ser vista de fora. Voltada à Av. 23 de Maio e com as cores de Exu, propõe à cidade uma saudação às negritudes e uma intervenção direta no debate público sobre o racismo estrutural da sociedade brasileira. 

De amanhã para ontem, de Mônica Ventura, ocupa o Jardim Central. Na instalação, a artista retoma estéticas e elementos culturais, artísticos e religiosos dos povos iorubá e emana Zangbeto, uma entidade que não foi trasladada ao Brasil. Ao seu lado, Como prever com o imprevisível? de Maré de Matos, traz essa frase como uma pergunta aberta, que conversa muito com o momento atual.

Todas as obras comissionadas para essa mostra são inéditas, ao menos em São Paulo. É o caso de O Cavalo é Levante (Monumento a Oxalá e axs trabalhadorxs), de Yhuri Cruz, montada uma primeira vez no Rio de Janeiro e agora adaptada para o jardim suspenso do CCSP, criando um diálogo (e uma disputa) com os altos prédios ao seu redor. “É um anti-monumento. Monumentaliza algo que não é tangível, que não está no interesse imediato dos monumentos de pedra, de concreto, de bronze, que em sua maior parte homenageiam homens brancos. Ao revés, vai homenagear os e as trabalhadoras e o próprio Oxalá, como uma deidade de criação, do vento, da sabedoria, do etéreo”, diz Hélio Menezes. 

Ao entrarmos então nos espaços fechados do Centro Cultural, vemos uma encruzilhada no coração das bibliotecas. É a instalação Aqui nada se acaba, de Castiel Vitorino Brasileiro, que talvez seja o retrato da arte antidisciplinar e anticanônica que Hélio busca com sua curadoria. “Penso que essa instalação da Castiel é um belo exemplo de como conversar com o ambiente livresco, de um conhecimento controlado em livros, biblioteca, silêncio, em falar baixo, ter uma postura e um jeito de corpo controlado. Ela abre um espaço, nesse sentido, se não de descontrole, de liberdade, repouso, pausa e reflexão”.

Uma conversa para além do cubo branco

É essa obra de Castiel que nos prepara para a subida à sequência de mostras individuais que constroem o Programa de Exposições. Dos 18 artistas participantes, 14 foram selecionados por edital público, do qual participaram como membros da comissão julgadora Diane Lima, Marcelo Campos, Márcio Harum e os curadores de artes visuais do CCSP Maria Adelaide Pontes e Hélio Menezes.

Dentre os projetos inscritos, houve um grande contingente de artistas dissidentes (não brancos e não masculinos) fora do eixo Rio-São Paulo. “Outras instituições muitas vezes têm problemas, você vê programas muito fracos, um pouco pálidos, de tentar colocar um artista indígena, um artista trans, como uma espécie de cota de representatividade”, conta Menezes. Para ele, o cenário no CCSP foi praticamente inverso: “É um excesso de projetos de excelente qualidade de artistas que até ontem estavam à margem desse sistema mais central das artes, e que hoje me parecem definir o que é interessante, não só do ponto de vista artístico, mas também do ponto de vista mercadológico.”

Assim, a mostra está repleta de propostas antidisciplinares, seja por Amador e Jr. Segurança Patrimonial Ltda. e Charlene Bicalho, com a exposição Água, não dorme, que se viram a um outro público: os trabalhadores terceirizados do próprio centro cultural, trazendo em foco narrativas invisibilizadas; ou por artistas que colocam suas vivências familiares em foco, como Moara Brasil, com o Museu da Silva – no qual traz a história de sua família, um retrato de nosso país, com as tradições indígenas atravessadas pela colonização cristã -, e Luana Vitra, com Três Guerras no Peito – contando os impactos da mineração, nos corpos e nas histórias daqueles que vem de sua cidade, marcada pela extração de ferro. 

As discussões raciais, tão presentes em Abre-Caminhos, também ganham corpo na Mostra 2020 do CCSP. Peter de Brito faz retratos e os subverte em Eugenia, ao “pintá-los” com água sanitária, descolorindo o algodão preto. Os usos da raiva, escultura de Ana Clara Tito, compõe a exposição Fígado e carrega as ideias de Audre Lorde, de transformar a raiva do racismo e da misoginia em algo produtivo para si. Já Rafael Bqueer, com a performance e a instalação Picumã, propõe uma inversão tanto no olhar colonial, quanto patriarcal. “A partir da força do próprio cabelo – de um artista negro, amazônico, LGBTQ+ -, ele sustenta um lustre, que no imaginário social brasileiro remete imediatamente às Casas Grandes”, explica Hélio Menezes. 

Ao lado dessas obras, vemos exposições dos artistas: Alice Lara, Bruno Novaes, Denise Alves-Rodrigues, Elilson, Helô Sanvoy, Iagor Peres e Lídia Lisboa. Das formas mais plurais, elas conversam com o espaço arquitetônico, com o mundo e dispensam o cubo branco e as disciplinas da arte, questionando as normas coloniais, patriarcais e brancas e expandindo as possibilidades de identidade e de conhecimento. 

Em diálogo, quatro artistas, convidados pelos curadores de artes visuais do CCSP – Hélio Menezes e Maria Adelaide Pontes -, participam do conjunto de exposições com projetos inéditos. “A escolha desses artistas é uma mistura de dois desejos: reconhecimento de carreiras consolidadas e importantes para entendermos a produção contemporânea presente, assim como uma seleção dessa mesma produção contemporânea do hoje que anuncia um cheiro do que virá”, conta Menezes. 

Ventura Profana, edifica no CCSP suas Plantações de traveco, para a eternidade. Negando por completo as paredes brancas do museu, ela construiu – com auxílio de pedreiros LGBTQ+ – quatro paredes para seu próprio espaço expositivo, no qual criou sua própria Igreja. No capacho de entrada, lê-se “Nem eu, nem minha casa servimos ao Senhor”, dando o tom de sua exposição, que aponta a intersecção cristã colonial do senhor com a imagem escravista colonial do senhor. 

Já Daiara Tukano, Genilson Soares e Rômmulo Vieira Conceição investigam um ponto em comum: “Exploram as dimensões do olhar, como pode ser enganador, deslocador; como o que a gente vê não está previamente colocado no objeto, mas algo que se dá a ver a partir da relação com aquele que olha, aquela que olha”, explica Menezes. Daiara com obras que trazem a tridimensionalidade de uma experiência com ayahuasca, ao lado de pinturas, desenhos e uma fotografia que carregam história e ensinamentos do povo Tukano. Rômmulo, com uma instalação que envolve várias camadas de vidro e a partir de diferentes ângulos de visão cria cristaleiras tridimensionais improváveis, que chocam objetos que são marcadores estéticos e de classe. Já Genilson, participa com a reprodução de uma obra instalada no MAM Rio nos anos 70. “É um projeto que usa sobretudo uma ilusão ótica, uma transformação de como seu olhar pode ser enganador, isso em plena ditadura militar nos anos 70. Se naquela época já era disruptora, nos pareceu ter ecos muito fortes com o momento presente”, diz Hélio Menezes.

Dessa forma, a reabertura do Centro Cultural São Paulo, lança um novo olhar para o mundo atual, não apenas pandêmico (ou pós-pandêmico), mas antidisciplinar e aberto a descobrir as novas formas de arte e conhecimento que estão por vir.

Quais são nossas ideias para adiar o fim da arte?

Rimaro
"Povos unidos e acolhedor", de Rimaro. Foto: Isabella Matheus

Entre obras que retratam festas e tradições populares, pinturas que expõem a violência policial, expressões de um feminismo crescente, cenas cotidianas dos interiores do Brasil e retratos da degradação ambiental brasileira, a Bienal Naïfs do Brasil 2020 abriu as portas de sua exposição presencial. A mostra teria início em agosto no Sesc Piracicaba, mas foi adiada por causa da pandemia, e agora segue em paralelo com a programação digital até julho de 2021.

Com curadoria de Ana Avelar e Renata Felinto, esta edição da Bienal (saiba mais) é intitulada Ideias para adiar o fim da arte e busca reunir as ideias contidas nos livros de dois pensadores que são fundamentais no campo da cultura: Ailton Krenak – com Ideias para adiar o fim do mundo – e Arthur Danto – com Após o fim da arte. A arte contemporânea e os limites da história.  

“Acredito que a quantidade de pessoas diferentes na exposição já anuncia a nossa intenção de esgarçar os limites que categorizam as produções de artes visuais no hoje. Então, basta que pensemos um pouco em como é que as pautas de grupos não brancos ou grupos não masculinos têm sido pautadas ao longo da história e notadamente no início do séc XXI. Elas têm sido chamadas de pautas de grupos identitários, como se ser homem branco não fosse também uma identidade”, conta a curadora Renata Felinto.

A Bienal Naïfs deste ano buscou sair desse lugar, explica ela: “Se pensarmos na ‘pauta negra’; eu sou uma mulher negra, mas eu não sou minha própria pauta, entende? Então, com a exposição nós estamos tentando de certa forma humanizar e trazer essas várias abordagens para o campo da existência, que também é uma resistência na medida em que essas pessoas todas continuam a produzir a partir de seus próprios critérios independente do que o sistema da arte contemporânea dirá que elas devem ou não fazer”.

A agente de cultura e lazer do Sesc Piracicaba, Margarete Regina Chiarella, vai de acordo. Ela explica que muito se tem a ideia de artistas naïf como pessoas ingênuas, mas não é esse o caso: “São artistas que narram suas histórias, seu entorno, o que está acontecendo na sua cidade, no país e no mundo. Hoje, podemos considerá-los como os grandes delatores de tudo que está acontecendo no Brasil.”

Como explica Ana Candida Avelar, esta edição da Bienal Naïfs também busca homenagear as mulheres (artistas e teóricas). Por isso, parte de Ana Mae Barbosa e Lélia Coelho Frota como referências na curadoria, e convida Carmela Pereira, Leda Catunda, Raquel Trindade e Sonia Gomes para dialogar com a exposição. “Olhar para o trabalho delas nos faz perceber como saíram das realidades mais diversas para estar nos lugares onde estão, nos faz notar que esses e essas outras artistas estão percorrendo caminhos semelhantes e possuem esse espaço já aberto tanto por iniciativas como a do Sesc, quanto por figuras como essas artistas”, diz Ana Barbosa

A arte!brasileiros visitou a exposição e conversou com suas curadoras e com a agente de Cultura e Lazer do Sesc Piracicaba Margarete Regina Chiarella. Assista ao vídeo completo:

Além da exposição presencial, a organização da Bienal Naïfs promoveu uma série de iniciativas digitais, como rodas de conversa e conteúdos educativos, que permitem ao público que se aproxime deste universo mesmo cumprindo isolamento social e que se estenderão até julho de 2021. Dentre as atividades, desenvolveram oficinas artistas autodidatas, para que aprendessem a fotografar suas obras – e assim acessar outros espaços expositivos mais facilmente – e a elaborar portfólios – necessários às seleções de mostras nacionais e internacionais. Dado o feedback positivo, as oficinas devem ser retomadas no próximo ano, com grupos maiores, ainda no formato digital, afirma Margarete Chiarella. 

Esse tipo de iniciativa visa uma ação maior do que a realização de um evento. Por isso, o trabalho com os artistas populares vai muito além do período da Bienal Naïfs. Como pontua Margarete, a secretaria funciona de forma permanente, mantendo contato com os artistas ao longo do ano por email. “Existe um canal de muita proximidade com esses artistas, onde eles relatam onde estão expondo, o tipo de trabalho que estão fazendo, os espaços que conquistaram, as dificuldades que vem enfrentando etc.”, explica. “Essa proximidade para o Sesc é bem importante, porque conseguimos perceber que não podemos generalizar, como um artista naïf, na realidade é ‘o’ artista naïf – que tem uma identidade própria, está inserido num espaço, fala de uma determinada cultura local, então eles tem individualidades e especificidades que a gente busca valorizar”, explica. Assim, veem o evento do Sesc Piracicaba não como um fim, mas um caminho, que permita a esses artistas ampliar suas vozes e criar novas conexões, oportunidades e caminhos.  

Serviço

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Entre em contato com a secretaria da Bienal Naïfs: bienalnaifs@piracicaba.sescsp.org.br

Revisitando a obra de Claudio Tozzi

Claudio Tozzi em seu estúdio, ao lado da obra "Chuva"
Claudio Tozzi em seu estúdio, ao lado da obra "Chuva". Foto: Cortesia Blombô

A obra de Claudio Tozzi está sendo revisitada em exposição ao mesmo tempo presencial e virtual, em cartaz na galeria e no site da Blombô. Com curadoria de Rafael Vogt Maia Rosa, a mostra adota como principal fio condutor a relação do artista com a cor, mas também contempla de maneira bastante ampla outras questões importantes na trajetória de Tozzi, como os trabalhos de caráter mais militante dos anos 1960 e 1970 e a relação permanente que ele estabelece com o espaço (urbano ou íntimo) como elemento estruturador da composição.

Tem destaque na seleção aquela série em que o artista cria um jogo cromático extremamente sedutor, que ganha corpo ao longo dos anos 1980 e torna-se – diferentemente de outros artistas em ação no período – uma forma inovadora e um tanto otimista de manipular os tons, criando uma espécie de pontilhismo particular e desafiante (já que feito a partir de tinta acrílica, que tem um tempo de secagem muito mais rápido que o da tinta a óleo), fazendo com que emane da tela um certo brilho, uma certa iridescência, como sintetiza Maia Rosa no titulo adotado na exposição: O Percurso Iridescente: Claudio Tozzi

O curador também procura iluminar aspectos como o uso constante que o artista faz das imagens reprodutíveis, advindas da fotografia e do cinema, bem como o aspecto crítico presente em sua obra. Além disso procura estabelecer interessantes relações temporais entre os trabalhos, disponíveis apenas nas versões virtuais da mostra, já que a seleção que pode ser vista presencialmente (com hora marcada) inclui apenas seis criações.

É interessante ver por exemplo a sintonia evidente entre as obras Multidão, de 1968, e Maio 68/Maio 98, uma homenagem feita por Tozzi em rememoração aos movimentos estudantis que sacudiram o mundo no final dos anos 1960, na qual se vêem incorporadas uma série de soluções formais e estruturais depuradas pelo artista ao longo desse intervalo de três décadas. Sintonia que revela que por trás do contraste aparente entre os trabalhos de diferentes épocas desenvolvidos pelo artista, há preocupações e soluções espaciais que são uma constante em seu pensamento plástico, mesmo em suas composições mais abstratas. “Sempre penso em construir a imagem dentro de uma organização, de um campo, de uma estrutura”, explica Tozzi, sublinhando que o mesmo fenômeno se dá na produção mais recente, que vem desenvolvido nesses tempos de quarentena e que deverão dar corpo a uma nova exposição em breve.

Nessas produções, ao contrário daqueles destacados por Maia Rosa, a cor praticamente desaparece. Ao invés dos tons iridescentes, surgem os pigmentos metálicos, monocromáticos em uma trama fortemente geométrica. Com relação a essas transformações radicais no rumo de suas pesquisas plásticas, Tozzi afirma que é uma necessidade quase natural de mudança. “É como se o próprio trabalho pedisse”, brinca.

Ele não se espanta em ver um crescente interesse pela sua produção mais engajada, dos anos 1960. “Há uma semelhança na opressão, no pensamento fascista. São trabalhos que ficaram vivos”, destaca. Ele celebra ainda o surgimento de vozes coletivas, que se opõem ao pensamento totalitário, recorrendo a elementos de caráter muito mais simbólico, diferentemente de sua geração, mais vinculada a uma apropriação direta das imagens. Tozzi tampouco se preocupa com os efeitos negativos da quarentena sobre a produção de arte. E traça um paralelo entre o momento atual e aquele que sucedeu o decreto do Ato Institucional nº. 5. Foi, segundo ele, um momento de interrupção muito grande, de suspensão dos encontros entre artistas, do diálogo intenso que havia com a crítica, um momento de fechamento do artista no atelier, que acabou rendendo trabalhos mais reflexivos – mas não menos contundentes – para artistas como ele, Rubens Gerchman e Antonio Dias. No caso de Claudio Tozzi, desenvolve-se a partir daí seu trabalho com a imagem do parafuso, uma metáfora da repressão e também da resistência.

 

“Vocês acham os portugueses brancos?” A arte “afro-brasileira” como construção

 

Capa de “Arte afro-brasileira: Altos e baixos de um conceito”, de Renato Araújo da Silva

Já avançado no texto, a certa altura, o escritor conta-nos um episódio hilário e interessantíssimo, de quando trabalhava como mediador no Museu Afro Brasil, em São Paulo. Certo dia coube-lhe acompanhar um senhor finlandês durante sua visita ao museu. Percebendo-o como um sujeito inteligente, mas destituído de qualquer conhecimento sobre a história do Brasil, das questões relativas à escravidão e ao preconceito racial entre nós, o então mediador do Afro Brasil se desdobrou para colocar o visitante a par de todos esses processos tão complexos, dos quais se destacava a questão da arte afro-brasileira.

Ao final de sua fala, já cansado, nosso escritor ouviu do finlandês a pergunta: “Mas vocês acham os portugueses brancos?”

O leitor e a leitora por certo perceberam que foi justamente da pergunta do visitante que tirei o título deste artigo – uma resenha “mesmo que tardia” de Arte afro-brasileira: Altos e baixos de um conceito, publicado em pdf, em 2016, pelo curador em arte africana e historiador da filosofia, Renato Araújo da Silva.

O trecho citado está no meio das inimagináveis 726 páginas do texto de Renato, justamente no momento escolhido por ele para introduzir no debate ali instituído sobre o conceito de arte “afro-brasileira,” a problemática da mestiçagem – um dos pontos mais interessantes de todo o trabalho. E, de fato, esse é um dos inúmeros pontos de interesse do texto, mas não o único. Levando-se em conta o nível de seu alcance historiográfico e crítico, entendi, logo na leitura de suas primeiras páginas, estar frente a um dos principais acontecimentos no campo da história da arte no Brasil dos últimos anos: um documento, um monumento.

Arte afro-brasileira: Altos e baixos de um conceito reflete sobre praticamente todos aqueles e aquelas que se debruçaram sobre o conceito “arte afro-brasileira” – assunto crucial dentro dos estudos sobre arte no Brasil –, desenvolvendo uma cronologia das diversas contribuições. Porém, seu trabalho não se resume a apenas narrar essa cronologia. Ao fazê-la, Renato premia com comentários críticos cada autor e autora que cita, observações quase sempre profundas, mas todas repletas de humor e ironia. Renato narra desconfiando da própria narração e do objeto narrado, e tal estratégia tonifica os textos sobre os quais se debruça, possibilitando aos leitores e leitoras que também se posicionem sobre a narrativa que se constitui sob seus olhos.

Mas não pensem vocês, leitor ou leitora, que Arte afro-brasileira: Altos e baixos de um conceito pode ser confundido com qualquer outro livro sobre a história da arte “afro-brasileira” ou, no limite, com qualquer outro livro convencional sobre qualquer assunto. O texto de Renato nem deveria ser caracterizado como um livro, e as razões para tal conclusão vêm a seguir.

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Segundo Renato, a ideia de produção de Arte afro-brasileira: Altos e baixos de um conceito surgiu do incentivo de alguns amigos que achavam que ele deveria publicar os anais de um ciclo de palestras que levara adiante com sua amiga e colega, Juliana Ribeiro, na Pinacoteca de São Paulo, em 2016, a convite da instituição. De início, o título que ambos pensaram conceder ao encontro era, justamente, “Arte afro-brasileira. Altos e baixos de um conceito”. Porém, uma série de contratempos (entre eles, financeiros) fez com que o projeto original precisasse ser diminuído e a dupla de especialistas acabou propondo e realizando um seminário menos abrangente, mas do mais alto nível, dedicado à questão da arte afro-brasileira: “Olhares sobre a arte afro-brasileira”.

Mesmo mais modesto, o encontro reuniu alguns dos especialistas mais significativos da área – Marta Heloisa Leuba Salun, entre outras e outros –, e artistas que então despontavam no campo da arte brasileira: Janaina Barros, Rommulo Vieira Conceição e Tiago Gualberto[1].

Finalizado o seminário, ao invés de publicar apenas seus anais – o que já seria algo importante para a área – Renato parece ter desejado resgatar o projeto original do encontro, que era esquadrinhar os altos e baixos do conceito “arte afro-brasileira”, e foi justamente daí que começou a surgir o “livro” que agora apresento.

Alguém poderá estranhar o fato de eu ter usado no parágrafo acima a palavra “livro” entre aspas. De início pode parecer estranha, mas atesto que tal forma foi a única que encontrei para me aproximar de Arte afro-brasileira: Altos e baixos de um conceito, com o intuito de apresentá-lo aos leitores e leitoras.

Lendo esse trabalho de Renato logo me veio à cabeça a distinção que Roland Barthes – já faz tanto anos! – fazia entre o conceito de “obra” e aquele de “texto”. Para o pensador francês, ao conceito tradicional de “obra” – um trabalho com começo, meio e fim – estava atrelado o conceito de “autor” – aquele ser todo-poderoso, orquestrador único, onipresente e onipotente. Barthes desconfiava desse binômio (autor + obra) e contra ele opunha, por um lado, a morte do autor tradicional – ou sua substituição pelo scriptor –e, por outro, a transformação da “obra” em “texto”. Do Autor para o scriptor:

[…] O Autor, quando se acredita nele, é sempre concebido como o passado do seu próprio livro: o livro e o autor colocam-se a si próprios numa mesma linha, distribuída como um antes e um depois: supõe-se que o Autor alimenta o livro, quer dizer que existe antes dele, pensa, sofre, vive com ele; tem com ele a mesma relação de antecedência que um pai mantém com o seu filho. Exatamente o scriptor moderno nasce ao mesmo tempo que o seu texto; não está de modo algum provido de um ser que precederia ou excederia a sua escrita, não é de modo algum o sujeito de que o seu livro seria o predicado; não existe outro tempo para além do da enunciação, e todo o texto é escrito eternamente aqui e agora […][2].

Da obra ao texto:

[…] Sabemos agora que um texto não é feito de uma linha de palavras, libertando um sentido único, de certo modo teológico (que seria a “mensagem do Autor-Deus), mas um espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se contestam escritas variadas, nenhuma das quais é original: o texto é um tecido de citações, saídas dos mil focos da cultura […][3].

Nada definiria melhor Arte afro-brasileira. Altos e baixos de um conceito enquanto texto, assim como o papel de Renato Araújo como seu scriptor, categorias que nos aproximam das características tão singulares que o trabalho apresenta.

Embora Renato tenha dividido seu escrito em nove partes (e não capítulos, como era de se esperar)[4], creio que, para este comentário, é possível dividi-lo em dois grandes segmentos: o primeiro reuniria da primeira à sétima partes, formando um texto que, como poucos, exemplifica bem as propostas de Barthes. Nele, Renato desfia uma série de textos fundamentais para se pensar a questão da produção artística chamada “afro-brasileira”, mas não apenas.

São vários os autores citados que se dedicaram ao estudo do que é ou do que pode ser entendido como “arte afro-brasileira”, não apenas os autores canônicos – desde Nina Rodrigues até Kabengelê e Leuba Salun – mas também jovens pesquisadores que vêm trazendo novas contribuições para a ampliação da complexidade do tema. No entanto, como mencionado, Renato não se contenta em trazer para o leitor e leitoras apenas trechos desses estudiosos todos. Nesse longo trecho de Arte afro-brasileira: Altos e baixos de um conceito (quase 400 páginas), o scriptor também nos contempla com uma série de citações de autores e autoras que igualmente pensaram a questão racial no país, embora não especificamente a questão da “arte afro-brasileira” (dentre eles, a se destacar os nomes de Gilberto Freyre e Vilém Flusser).

Mas não pensem o leitor e a leitora que o papel de Renato na escritura do “livro“, tenha sido apenas aquela de coletor de trechos de livros, ensaios, conferências etc., dos grandes nomes que trataram da questão da arte “afro-brasileira” e/ou de assuntos correlatos. O que torna esta primeira parte do escrito ainda mais saborosa – e instrutiva! – é a série de comentários que Renato agrega aos textos que cita. Ele coleta, mas também comenta, vai ao encontro dos pensamentos de alguns dos autores[5], e de encontro a outros, dinamizando a leitura e obrigando o leitor e a leitora a se posicionarem perante a inteligência e o sarcasmo de muitas das suas observações.

Outro dado importante: se numa resenha sobre uma “obra” convencional a possível referência às notas de rodapé estaria, normalmente, em uma nota, no caso do texto de Renato a situação muda por completo. E isto pelo fato de que, ao lermos as notas de rodapé na medida em que elas aparecem comentando, não apenas os textos que Renato cita, mas, sobretudo seus próprios comentários, veremos surgir, se não uma “contranarrativa”, pelo menos uma outra escrita que se entrelaça – e às vezes esgarça – o texto que ele tece.

A segunda parte de Arte afro-brasileira: Altos e baixos de um conceito, dá continuidade à escritura da primeira, porém concentrada agora nos resumos das falas dos especialistas e dos artistas convidados a participar do seminário “Olhares sobre a arte afro-brasileira”, já citado. Não apenas os resumos das falas estão ali registradas, mas também as perguntas feitas pelo público e as respectivas respostas, acompanhadas de comentários do próprio Renato, feitos em notas de rodapé – procedimento que enriquece muito essa segunda parte do trabalho.

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É claro que não posso falar por todos os leitores e leitoras de Arte afro-brasileira: Altos e baixos de um conceito, porém, creio que caberiam mais algumas palavras sobre o “livro”: em primeiro lugar, não tenho dúvida de que ele simplesmente não existiria se tivesse sido enviado para ser produzido dentro dos padrões de um livro tradicional. Configurando-se como um documento em pdf e ligado à Creative Commons, Arte afro-brasileira: Altos e baixos de um conceito apenas pode manter sua imensa primeira parte porque não dependia de uma editora e, portanto, não precisava obedecer à “lógica” do mercado livreiro. Livre dessas amarras, o texto conseguiu se apresentar em toda a sua generosidade e potência criativa, assumindo uma liberdade de produção e divulgação de conhecimento de fato acessível a todos[6].

Estou convencido de que, caso os originais fossem para qualquer editora para serem publicados dentro das normas existentes, toda aquela primeira parte seria suprimida e o que teríamos seria uma versão resumida dos anais do evento ocorrido da Pinacoteca. Ou seja, a parte mais fraternal do escrito – aquela em que Renato abre seu arquivo de notas e comentários, explicitando seu processo de estudo e compreensão do fenômeno “arte afro-brasileira” – simplesmente sumiria.

Podendo abrir a guarda que encerra o processo de formulação de suas concepções, Renato, felizmente, não escreveu uma “Obra” porque nunca se viu como “Autor”. Todo seu objetivo foi demonstrar, a meu ver, que, tanto a experiência dos estudos e comentários sobre a questão “arte afro-brasileira” assim como o próprio seminário, são partes de um único processo para avançar no conhecimento sobre a complexidade da produção artística levada a cabo no país, sem almejar chegar a uma única “verdade”.

Saio da leitura de Arte afro-brasileira: Altos e baixos de um conceito com algumas posturas mais sedimentadas, embora repletas de novas perspectivas. Ou seja, saio transformado pela leitura, o que me faz voltar ao que escreveu Barthes sobre a morte do autor e o fim do conceito tradicional de “obra”:

[…] Assim se revela o ser total da escrita: um texto é feito de escritas múltiplas, saídas de várias culturas e que entram uma com as outras em diálogo, em paródia, em contestação; mas há um lugar em que essa multiplicidade se reúne, e esse lugar não é o autor, […], é o leitor: o leitor é o espaço exacto em que se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que uma escrita é feita: a unidade de um texto não está em sua origem, mas no seu destino […][7]

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[1] – Em tempo: o Seminário “Olhares sobre a arte afro-brasileira” (ocorrido entre 5 de novembro e 3 de dezembro de 2016, dava continuidade às atividades levadas a cabo pela Pinacoteca de São Paulo a partir da mostra “Territórios: artistas afrodescendentes no acervo da Pinacoteca. Pinacoteca de São Paulo (Pina Estação), ocorrida entre dezembro de 2015 e abril de 2016.
[2] – “A morte do autor”, in BARTHES, Roland. O rumor da língua. Lisboa: Edições 70 Ltda., 1987. Pág.51.
[3] – Idem. Pág. 51/52.
[4] – Aqui vão as partes de Arte afro-brasileira: Altos e baixos de um conceito: 1.0 As ondas de valorização Institucionais do negro [com duas subdivisões]; 2.0 Arte afro-brasileira e o problema de sua definição [quatro subdivisões]; 3.0 A arte afro-brasileira e seus artistas [cinco subdivisões]; 4.0 Arte afro-brasileira: esboços teóricos e estudos de caso [quatro subdivisões]; 5.0 Miscelânia [três subdivisões]; 6.0 E agora, José?; 7.0 Referências; 8.0 Apêndices: um evento sobre arte afro-brasileira [onze subdivisões]; 9.0 Anexos [três subdivisões].
[5] – Sim, a maioria deles pode ser descrita como Autor, no sentido que Barthes deu ao termo. E isso não é responsabilidade de Renato Araújo.
[6] – A falta de uma editora convencional por trás da escrita de Renato Araújo só é sentida, na verdade, pela ausência de uma edição que retirasse alguns poucos problemas de revisão do texto, algo, no entanto, facilmente corrigível.
[7] – BARTHES, Rolando. Op.cit. Pág. 53.