Jaider Esbell em performance na exposição "Apresentação : Ruku" na Galeria Millan, em São Paulo. Foto: Renata Chebel / Galeria Millan

Como pode uma árvore ser uma pajé? Essa é uma das reflexões que o artista e curador Jaider Esbell busca suscitar em Apresentação : Ruku. Reunindo cerca de 60 obras – entre pinturas, objetos e desenhos- na Galeria Millan, a exposição individual coloca o jenipapo em foco, convida o público a dialogar com os saberes que envolvem a planta e as culturas indígenas que os disseminam, e vai além de uma proposta meramente etnográfica.

Apresentação : Ruku parte da mais recente pesquisa do indígena da etnia Makuxi. “Eu e minha mestre estávamos pesquisando o jenipapo [também conhecido como ruku], antes dela falecer em decorrência do Covid-19. A árvore é comum em grande parte do território brasileiro e tem propriedades medicinais. Além disso, é ela que gera a tinta mais popularmente usada para pintura corporal”, conta. A partir desses estudos, Jaider decidiu experimentar outros suportes para essa tinta: não mais o corpo, mas a tela e o tecido.

O artista acredita que a mostra pode ser um ponto de partida para estabelecer diálogos com o nosso agora, falando de território, identidade e da tradição dentro do contexto contemporâneo, criando também uma conexão entre as diferentes realidades que convivem nesse mundo atual. 

Vista da exposição individual de Jaider Esbell “Apresentação : Ruku”, em cartaz na Galeria Millan. Foto: Felipe Berndt / Galeria Millan

Apresentando tradições 

Como propõe o título da mostra, a coleção de obras exposta no Anexo Millan busca apresentar o ruku. A planta é vista por diversas etnias indígenas como uma árvore-pajé, por seu potencial medicinal, de proteção e cura – física e espiritual. “Ela é uma pajé em si mesma, mas precisa de um mediador para criar conexão conosco, precisa do artista para conectá-la a esses mundos aparentemente apartados”, conta Jaider. E brinca: “A árvore não vai levantar, sair andando e dizer ‘eu sou pajé, tenho conteúdo’, ela precisa das pessoas que conhecem minimamente a sua trajetória para apresentá-la”. 

Porém, para muitos ainda é difícil compreender como uma planta pode ser vista dessa forma. “Para essas pessoas, ela é só uma árvore, que pode dar no máximo frutos, sombra e lenha. Acredito que falar que ruku é uma pajé seja uma forma de convidar as pessoas a ir além das paredes brancas cheias de obras que temos na galeria.” Assim, sugere uma abertura aos saberes dos povos originários.  

A proposta de compartilhar esses conhecimentos aparece em continuidade aos recentes estudos do artista sobre o txaísmo. “Txái, a grosso modo, é uma saudação para acolher uma pessoa em sua família. Ao acolher, você abre seu mundo para ela, partilha seu espaço, sua vida, suas dores e alegrias. Essas partilhas muitas vezes se fazem em volta do trabalho e no feitio das medicinas. Apresentação : Ruku não deixa de ser um txaísmo também, porque é a abertura de uma medicina, e é um convite para o outro – o branco – dialogar com a gente e a gente dialogar com eles”, explica. 

Apresentando identidades

Isso nos leva a uma segunda camada de compreensão da mostra. O jenipapo é popularmente conhecido por fornecer uma tinta usada em pinturas corporais, como forma de expressão e proteção. “Quando a gente aplica nos nossos próprios corpos, está também corporificando uma mensagem: seja de que estamos em luto, em guerra, ou em festa – e se estamos em festa informa se estamos solteiros, casados, a região em que a gente vive etc.”, explica. Se através da arte Jaider apresenta a árvore, é através da tinta gerada por seu fruto que o jenipapo apresenta o artista e algumas das facetas de sua cultura. 

O título da mostra, então, refere-se também à uma outra apresentação, ligada à “nossa necessidade de nos auto apresentarmos enquanto povos originários, usufruindo e ocupando esses lugares de destaque das artes, circulando por esses espaços de potências centrais”, compartilha o artista. 

“A conversa das entidades intergalácticas para decidir o futuro universal da humanidade”, Jaider Esbell, 2021. Foto: Cortesia Galeria Millan e artista

Para reforçar essa ideia, Jaider assina também a curadoria da mostra, contando com assistência da antropóloga Paula Berbert, com quem desenvolve trabalhos há anos. “O fato de eu assumir a curadoria acaba sendo uma questão também política, para edificar um protagonismo. É muito importante que os povos indígenas protagonizem esses espaços da arte que antes eram impensados e impensáveis para nós – e ainda o são, porque ainda há uma indagação preconceituosa sobre a possibilidade de um índio fazer obra e não só artefato”, afirma. E acrescenta: “Essa é uma forma, no campo da pesquisa prática, de construir evidências midiáticas e gerar precedentes para que nos encorajemos como povos e como artistas, para que saibamos que podemos usufruir plenamente das estruturas de mundo”.

Através da curadoria, Jaider consegue melhor expor ao público os diferentes conceitos que permeiam as obras. Um cuidado essencial, a seu ver, pois “é inegável que esteja havendo uma exposição muito maior da diversidade indígena atualmente, e ela é positiva, mas não deixa também de ser delicada e até perigosa”. Para ele, ainda existe um risco de os artistas indígenas serem tirados de cena pelo sistema da arte dominante. “Por isso temos trabalhado com muito cuidado para não deixar o assunto cair no modismo, não deixar que as instituições de arte continuem com uma função meramente etnográfica, que é simplesmente ir nas aldeias, pegar um cocar e expor sem dizer o que é esse cocar, pra que ele serve, como foi feito, em que ocasião deve ser usado. Pois com essa visão você desconecta mais uma vez as realidades e torna novamente um fetiche que reproduz estereótipos.”

Assim, Apresentação : Ruku busca ser mais do que uma introdução, configurando-se como um convite para o diálogo e para uma nova forma de enxergar o mundo e se relacionar com ele, em especial durante e após esse momento crítico. Como finaliza Jaider Esbell: “Desde antes do tempo vir a ser tempo, as plantas partilham entre si a maestria da vida: são portas para portais de mais mistérios. Hoje em crise, humanos, que nos achamos, ainda temos, talvez, as últimas chances de nos conectarmos ao todo. Uma moita de mato, por menor que seja o ramo, contém ali todo o antídoto para o veneno que é a megalópole. Isso nem deveria ser segredo, embora ainda seja – segregação.”

SERVIÇO
Apresentação : Ruku
Anexo Millan: Rua Fradique Coutinho, 1416, São Paulo, SP
A exposição ficará em cartaz até 10 de abril de 2021*
Segunda a sexta, 10h às 19h, sábado, 11h às 15h

*A exposição está temporariamente fechada, seguindo os protocolos sanitários estabelecidos pelo Governo de São Paulo em decorrência da pandemia de coronavírus.

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