A artista e escritora Grada Kilomba. Foto: Ute Langkafel
Por Ana Teixeira Pinto*
No passado dia 11 de novembro de 2021 a DGARTES (Direção Geral das Artes) anunciou o resultado do concurso para a representação oficial portuguesa na 59ª Bienal de Veneza em 2022. A candidatura da artista Grada Kilomba e do comissário Bruno Leitão com o projeto A Ferida foi preterida pelo júri. Esta decisão é chocante não só porque Grada Kilomba seria, segundo critérios objetivos, a melhor escolha – é uma artista plástica cuja obra abre horizontes críticos, em diálogo com os mais importantes movimentos intelectuais contemporâneos, com um percurso e trabalho singular, duma complexidade que se estende a registos literários e performativos –, mas porque o seu pavilhão teria um enorme valor simbólico: Grada Kilomba é uma artista com ascendência em São Tomé e Príncipe e Angola, duas ex-colônias portuguesas, sendo que Portugal carrega um brutal legado colonial que permanece sub-teorizado e o qual a maioria branca se recusa ostensivamente a reconhecer. Claro que um pavilhão em Veneza não pode pagar a imensa dívida colonial do país, essa dívida é impagável, mas é justamente por isso que esta reparação simbólica assumiria uma tão grande importância. Que melhor opção em termos de representação nacional do que representar a sub-representação da sociedade portuguesa na figura duma artista brilhante, reconhecida e respeitada internacionalmente?
A artista e escritora Grada Kilomba. Foto: Ute Langkafel
Se o júri tivesse tomado a sua decisão, uma decisão que eu só posso classificar como racista e misógina, apenas por incapacidade de reconhecer o mérito da artista e a urgência do tema da sua candidatura, o caso seria grave. Questões de mérito e demérito não são questões subjetivas, são questões que revelam a dimensão racial das estruturas semióticas e semânticas. Mas esta história não é apenas uma história de negligência ou déficit intelectual. Esta história é uma história de manipulação maliciosa da pontuação atribuída de forma a impedir que Grada Kilomba fosse a artista escolhida: a sua candidatura foi literalmente boicotada por um dos elementos do júri, Nuno Crespo, professor da Universidade Católica Portuguesa.
Numa carta aberta, o comissário Bruno Leitão tornou público que esse jurado atribuiu uma pontuação aberrante à sua candidata, injustificável em termos de quaisquer parâmetros imparciais, atribuindo-lhe uma classificação de dez pontos (numa escala de zero a vinte) em diversas categorias, em flagrante discrepância não só com os outros elementos do júri mas também com as pontuações que atribui às demais candidaturas. O mesmo elemento do júri, justificou a sua pontuação dizendo:
“(…) a ideia de racismo como ferida aberta foi já objeto de inúmeras outras abordagens; de modo que a proposta apresentada não deixa perceber como numa exposição poderá rever, criticar ou prolongar, essa ideia tão já discutida e mesmo exibida de múltiplas formas (…).”
“(…) ainda que a equipe técnica e artística seja competente, o mérito artístico da artista Grada Kilomba (…) não é satisfatório.”
“Grada Kilomba é uma brilhante escritora e pensadora, e são inegáveis as suas competências em termos da famosa ‘narrativa oral’, contudo enquanto proposta expositiva, o projeto apresentado não possuí o alcance artístico que, a meu ver, a representação oficial tem obrigatoriamente de possuir (…).”
“(…) não está comprometido com a dinamização e internacionalização da ‘cena’ artística e cultural portuguesa.”
É difícil interpretar frases como “não está comprometido com a dinamização e internacionalização da ‘cena’ artística e cultural portuguesa” como não conotando uma ideia racial de cidadania: quem, exatamente, pode representar a cena artística portuguesa? Há portugueses mais portugueses do que outros? Ou numa bizarra inversão de causa e consequência, estará o jurado a usar o fato de Grada Kilomba nunca ter sido incluída na “cena” artística Portuguesa para justificar a sua exclusão do pavilhão nacional, ao invés de julgar a falta de inclusividade da dita “cena” artística um sintoma da assimetria e injustiça histórica que seria o seu dever retificar? Outro indício de disparidade sistêmica é o fato da artista Mónica de Miranda e a curadora Paula Nascimento terem tido a pontuação mais baixa do grupo de candidatos, tendo o júri mais uma vez selecionado uma representação branca.
Mais, é irônico que os argumentos avançados para rejeitar a candidatura de Grada Kilomba, A Ferida, cujo projeto tematiza as continuidades entre passado e presente, entre a colonialidade e a crise climática, entre a valorização de certas subjetividades e a desvalorização de outras, repitam o padrão sistemático de desvalorização, hierarquização, marginalização e trivialização que o projeto se dedica a questionar.
É também preciso sublinhar que esta história não é só uma história de preconceito individual: o restante do júri aceitou um resultado arbitrário sem se demitir ou questionar a decisão, embora a disparidade de votações fosse flagrante; a entidade tutelar, a DGARTES, declinou intervir demonstrando que a instituição é incapaz de reconhecer má-fé processual e não está equipada com os protocolos adequados para identificar dolo e prevenir que este tipo de problema recorra no futuro; o ministério da cultura não se pronunciou, num silêncio que grita que Portugal continua a investir na branquitude, no revisionismo histórico e no chauvinismo insular e isolacionista.
Talvez, como Djamila Ribeiro escreve na Folha de S.Paulo, Grada Kilomba seja grande demais para Portugal, ou talvez Portugal seja pequeno demais para Grada Kilomba, de qualquer forma, e para que Portugal cresça ao ponto de ter capacidade para representar de forma justa e equitativa, todos aqueles a quem continua a negar representação, é preciso lutar contra esta decisão tanto formalmente, exigindo uma intervenção da tutela, como informalmente, forçando o debate público que Portugal se recusa a ter.
✱ A autora publicou um artigo de opinião anterior no jornal Público sobre este assunto.
*Ana Teixeira Pinto é teórica e crítica de arte, professora no DAI (Dutch Art Institute) e AdBK Nürnberg. Edita a série On the Antipolical para a Sternberg Press, e está a organizar o projecto Whose Universal? na HKW em Berlin com Kader Attia e Anselm Franke. É membro da equipe artística que organiza a 12ª Bienal de Berlim, junto com o curador Kader Attia.
Vista de obras de Germana Monte Mór na mostra coletiva "De Terra e Gás", na Casa de Cultura do Parque. Foto: Divulgação
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Vista de obras de Germana Monte Mór na mostra coletiva "De Terra e Gás", na Casa de Cultura do Parque. Foto: Divulgação
Paulo Monteiro é um dos artistas da coletiva "De Terra e Gás", da Casa de Cultura do Parque. Foto: Divulgação
A obra de Solange Pessoa integra a coletiva "De Terra e Gás" na Casa de Cultura do Parque. Foto: Divulgação
Buscando estimular reflexões sobre a agenda contemporânea e ampliar a compreensão e a apreciação de arte, a Casa de Cultura do Parque oferece ampla programação gratuita durante o mês de dezembro. As atividades, voltadas para públicos de diferentes idades, trabalham a intersecção das artes com a educação no intuito de fomentar uma produção cultural plural e inclusiva.
No último dia 27 de novembro, a instituição deu início ao II Ciclo Expositivo 2021, com direção artística de Claudio Cretti. Quem visita o espaço, em frente ao Parque Villa-Lobos, em São Paulo, tem agora a oportunidade de ver a coletiva De Terra e Gás, com trabalhos de Germana Monte-Mór, Paulo Monteiro e Solange Pessoa; uma individual de Luís Teixeira; e a exibição de Pepinos, Sad & Brazilian, uma série de 27 pinturas de Estela Sokol. Em paralelo, a Casa de Cultura oferece oficinas presenciais e virtuais.
As exposições
A coletiva De Terra e Gás propõe um diálogo entre as obras de Germana Monte-Mór, Paulo Monteiro e Solange Pessoa – artistas que se estabeleceram na cena de arte nacional entre o início da década de 1980 e 1990, com ênfase na pesquisa tridimensional e pictórica. Com trajetórias semelhantes, o trio apresenta produções artísticas repletas de referências ao pós-minimalismo, à arte povera italiana, ao neoconcretismo brasileiro e à arte popular nacional. Tendendo quase sempre à abstração, em desenhos e na escultura, os trabalhos oferecem um diálogo poético, revelando um embate entre matéria e forma. “São furos, buracos, casulos, linhas e massas informes, como se fosse revelar algo que não está ali, exalar um gás, fazer uma surpresa”, comenta Cretti.
Por sua vez, Gargalo evidencia uma vontade cinética de objetos e imagens estáticos. Reunindo 10 obras, a individual de Luís Teixeira cria uma noção de “gargalo”, como propõe o título, ao que aspectos estáticos da obra aparentam se mover por um espaço estreito. “As pinturas de Luis Teixeira aludem a uma dicotomia: sua condição estática em contraste com seu desejo cinético, esse gargalo em si é um trajeto, é movimento”, aponta o escritor e curador Tiago de Abreu Pinto no texto crítico.
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"Perdigoto", Luís Teixeira. Foto: Divulgação
"Tocos conjunto", de Luís Teixeira. Foto: Divulgação
Obra da exposição "Pepinos, Sad & Brazilian", individual de Estela Sokol na Casa de Cultura do Parque. Foto: Gui Gomes
Obra da exposição "Pepinos, Sad & Brazilian", individual de Estela Sokol na Casa de Cultura do Parque. Foto: Gui Gomes
O Projeto 280 x 1020 – parede localizada entre espaço interno e externo da Casa de Cultura do Parque – apresenta Pepinos, Sad & Brazilian, mostra de pinturas de Estela Sokol. Realizadas sem o uso de tinta, as obras elaboradas com feltros coloridos sobre chassis de madeira se apropriam de toda a paleta de cores de feltros disponível na indústria para criar um policromático jogo entre figura e fundo. O título da série faz alusão direta ao meme Sad & Brazilian, que viralizou na Internet durante o ano de 2020, e a escolha do pepino como personagem principal não é em nada aleatória, faz referência ao significado popular da palavra: problema – relacionando o vegetal à situação econômica, política e social do país.
Oficinas
Durante 2020 e 2021, em decorrência da pandemia de Covid-19, as oficinas da Casa de Cultura do Parque foram ministradas de forma online, no programa #NoQuintal. Neste final de ano, a equipe educativa selecionou duas dessas atividades para serem ministradas presencialmente.
A primeira, intitulada mo.du.lar, é inspirada nas obras da Lenora de Barros expostas em AR, mostra do ciclo de exposições anterior. A proposta é investigar as palavras como módulo, decompondo-as em prefixos, sufixos, radicais, invertendo a ordem e até virando do avesso. O encontro acontece sábado, 11 de dezembro, às 15h. Já no dia 18, os participantes são convidados a desenvolver e estudar sobre bandeiras na oficina Dando bandeira. A atividade foi desenvolvida com base na exposição Pátria amada?, de Edgar Racy, exibida em 2020. Para participar, é necessária inscrição prévia (clique aqui). Porém, para quem não está em São Paulo, ou não consegue visitar a Casa de Cultura nessas datas, é possível aproveitar essas e outras oficinas de forma virtual, através do canal de Youtube da instituição.
As atividades são intergeracionais, e buscam convidar toda a família à experiência. “Dessa forma, cada participante tem a possibilidade de investigação sobre a proposta de acordo com seu repertório e seus recursos”, explica a instituição.
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Oficina "mo.du.lar". Foto: Reprodução canal de Youtube da Casa de Cultura do Parque
Educadora Mayra Oi ministrando a oficina "Dando Bandeira". Foto: Reprodução canal de Youtube da Casa de Cultura do Parque
SERVIÇO
II Ciclo expositivo 2021 Local: Casa de Cultura do Parque – Av. Prof. Fonseca Rodrigues, 1300 – Alto de Pinheiros
Período expositivo: 27 de novembro de 2021 a 13 de março de 2022 Horário: de quarta a domingo, das 11h às 18h
Entrada gratuita
Oficina educativa modular
Local: Casa de Cultura do Parque – Av. Prof. Fonseca Rodrigues, 1300 – Alto de Pinheiros Data: 11 de dezembro, das 15h às 16h Inscrições gratuitas
Oficina educativa Dando bandeira Local: Casa de Cultura do Parque – Av. Prof. Fonseca Rodrigues, 1300 – Alto de Pinheiros
Data: 18 de dezembro, das 15h às 16h Inscrições gratuitas
À esquerda, Cartema de Aloísio Magalhães; à direita, obra de Wolfgang Heike. Foto: Divulgação
Ao priorizar combinações espontâneas de pensar arte, a exposição CKD – Completely Knocked Down – Recife Bremen Connection, em cartaz até 11 de dezembro no Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães (MAMAM), coloca em pauta atitudes experimentais no uso do espaço. Com curadoria dos jovens Francisco Valença Vaz e Rebekka Kronsteiner, o evento colaborativo entre as duas cidades portuárias conta com cinco artistas brasileiros e quatro artistas alemães. Com o enigmático título CKD, que em tradução livre quer dizer “completamente desmontado”, a exposição tem a maioria das obras executada diretamente dentro das próprias embalagens em que foram transportadas, que se transformam em arte. “Um dos conceitos da mostra”, explica Francisco Vaz, “era trazer ao Brasil pedaços de alguma coisa, não uma obra pronta”. O grupo prioriza a alegria do fazer, e sua primeira ação ao chegar foi colocar o contêiner que transportava os materiais no Marco Zero do Recife. Dentro dele encaixaram um barco onde realizaram a primeira reunião de trabalho. Francisco Vaz comenta que a partir daquele momento, “todas as decisões foram tomadas em conjunto e todos éramos curadores”.
Cada artista recebeu uma caixa de madeira que representa a vigésima parte do contêiner marítimo. Um processo intenso e de curto tempo de realização das obras potencializou um clima de cooperação, onde resíduos e objetos coexistiram, gerando proposições que sublinham o aspecto sensorial dos materiais. O público pode acompanhar tudo de perto e entender o conceito de montagem ou desmontagem dos trabalhos de Paulo Bruscky, Marcio Almeida, Maria do Carmo Nino, Silvio Hansen e Francisco Valença Vaz, de Recife; e Christian Haake, Wolfgang Hainke, Tobias Heine e Rebekka Kronsteiner, de Bremen (Alemanha). A exposição, prevista para 2020, com 21 dias para a realização das obras, teve o cronograma alterado por conta da pandemia. Os alemães ficaram uma semana, fizeram os trabalhos e voltaram com a chegada da Covid-19. A mostra, que foi retomada em 2021, tem texto de apresentação assinado por Moacir dos Anjos, que toca no tema da impermanência.
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"Patuá Platz", de Marcio Almeida. Em meio à exposição, as fotógrafas Roberta Guimarães (Brasil) e Hannah Wolf (Alemanha) foram incorporadas à "CKD" como artistas a partir do trabalho desenvolvido no registro das imagens realizadas no Brasil. Foto: Roberta Guimarães
Performance/Reunião no Marco Zero de Recife. Foto: Roberta Guimarães
O que move a coletiva, tão heterogênea quanto experimental, é o cruzamento entre as narrativas e as utopias. Os trabalhos, de modo geral, são híbridos e têm uma estreita relação com os materiais. Arte em Vão, de Paulo Bruscky, um tapete vermelho com a frase citada, colocado entre batentes de uma porta, conflui para o espaço estético interpenetrando ilusoriamente o interno/externo. A instalação, de linguagem aparentemente simples, é complexa e se abre a outras problemáticas críticas já contidas na obra do artista. Quase todos os trabalhos têm dimensões variáveis e, portanto, são facilmente adaptáveis a outros espaços. Depois do Recife todas seguem para Bremen, como obras ou fragmentos delas, e se transformam em novos experimentos.
Entre os alemães destaca-se Wolfgang Hainke, 76 anos, com muito a contar de suas militâncias na arte, algumas delas vividas no grupo Fluxus. Um de seus trabalhos sugere uma espécie de coluna que dialoga com os Cartemas (composições visuais modulares, no caso feitas de cerâmica) do designer Aloísio Magalhães, que ocupa uma das paredes do MAMAM. Ainda há uma caixa na qual Hainke trabalha desde 1991 e que acaba de doar ao museu, com trabalhos do poeta Emmett Williams (do Fluxus) e de Richard Hamilton. Completam a instalação objetos como imagens do 11 de Setembro e da queda do Muro de Berlim, episódios em que ele esteve presente. Entre os livros se encontra Os Sertões, de Euclides da Cunha, com tradução de Bertholt Zilly – premiada na Alemanha e no Brasil -, que ensinou literatura brasileira na Universidade Livre de Berlim. Ainda está na mostra a pintura superdimensionada de um peixe, restaurado por Hainke que pertenceu à prefeitura de Bremen por quase cem anos.
Contemporâneo dele, o brasileiro Silvio Hansen, que militou na arte postal, preso político durante a ditadura militar, trabalhou para a exposição, mas morreu antes que ela fosse concretizada. Alguns de seus trabalhos denunciam episódios da violência imposta à democracia brasileira.
A arte de hoje capta a violência produzida pela sociedade, não importa o país. Sobre o mesmo chão de estrelas, de Marcio Almeida, pertence à matriz dos trabalhos políticos do artista e exibe placas de alvos retirados de um Clube de Tiro. A dramática origem desse material ativa a imaginação do espectador preocupado com a truculência das cidades. Ainda dele, Patuá Platz nasce dentro da arquitetura de sua caixa, que sustenta uma rede vermelha, símbolo do ócio experimental impregnado de impermanências territoriais, políticas e amorosas. A instalação se alimenta de plantas de proteção como espada de São Jorge e arruda. Ao alcance da mão ostenta a jureminha, bebida indígena feita de jurema, raiz alucinógena.
O imaginário às vezes é mais forte que a realidade: o jovem Tobias Heine, mesmo antes de viajar ao Brasil, antecipou o que encontraria por aqui. Leu A Hora da Estrela, de Clarice Lispector, pesquisou imagens do Recife e, ao chegar, fez um vídeo registrando o trajeto entre Olinda e Recife, que projetou em sua sala. Heine se inteirou das magias do candomblé, se deixou influenciar pelas cores de Exu e as introduziu em sua instalação ao colocar camisas branca e preta sobre cadeiras vermelha e preta.
Obra de Tobias Haine em “CKD – Completely Knocked Down”, no MAMAM. Foto: Roberta Guimarães
Mesmo sendo o idealizador e curador da Completely Knocked Down, Francisco Vaz, que se formou na Universidade de Bremen e hoje vive em Viena, não sabia o que fazer quando chegou ao museu. Dentro de seu conceito, criou em cima da hora Tramontana, um mural realizado com placas de isopor reciclado, retiradas do correio da cidade. Foram dezenas de peças que subiram pelas paredes. “Depois de fixadas fiz uma pintura com tinta spray que contém acetona e encolhe o isopor.” O resultado da obra são gestos minimalistas, quase uma caligrafia grafada em amarelo e preto. “Quando esses pedaços forem para Bremen quero jogá-los numa piscina de acetona e diminuí-los até chegar a uma chapa de dois centímetros”.
Ainda em Recife, Maria do Carmo Nino comprimiu tudo o que pôde de seu imaginário em sua caixa, transformada em porto seguro para suas referências de vida, uma espécie de memorial de sua história acadêmica. Ligada à literatura, “grafitou” textos em diferentes ritmos existenciais. Numa outra ponta de pensamento, a enigmática obra de Rebekka Kronsteiner, de apenas 25 anos, parece premonitória da pandemia. Seu inventário é composto por imagens de luvas cirúrgicas e camisinhas impressas sobre tela, objetos que impedem o contato físico, sobre as quais derramou látex exportado do Brasil, se reportando às possíveis imobilidades impostas ao ser humano. A obra foi realizada dias antes do lockdown ser decretado no país e, talvez, seja a primeira a se aproximar do tema, mesmo que por acaso.
SERVIÇO
CKD – Completely Knocked Down – Recife Bremen Connection ONDE: MAMAM | R. da Aurora, 265 – Boa Vista, Recife – PE QUANDO: Em cartaz até 11 de dezembro de 2021, de terça a sábado, das 12h às 17h
Entrada gratuita
Julio Villani left Brazil a long time ago, always in search of images, forms, ideas that would bring him food for his curiosity. She left Marília, in the interior of São Paulo, to England, where she studied at Watford School of Art; and settled in Paris, where he attended the École Nationale des Beaux-Arts, and stayed there since the 1980s.
It is as if he had built a vessel of himself and in it was putting brushes, lines, words, algorithms, indigenous geometry, indignations and loves. He is a prospector and, with his luggage, is always crossing borders. That gives samba.
Thus, he has painted and embroidered linens, worked and reworked ancient iconographic images bringing up traces of artistic movements, from modernism to avant-garde. Villani had the opportunity to follow closely one of the richest moments in the history of art of the 20th century, both European and Brazilian avant-garde.
His sculptures, playful and irreverent, bring traces of the readymade, but also of the concrete poets, of the works of Harold and Augusto de Campos, who built them laying words thin a nonlinear way, in order to find a shape in the support of the page. In this case, Villani builds them in a collage that uses the material of his mining: a triangular kettle that inspires the body of a bird and whose body he completes with the lightness of wire; a snake mounted from a tape measure; a turtle created from a steel shovel; a pot, a portrait. Everything is experimental and the result is an original and poetic work.
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"Birds", Julio Villani, 2012. Photo: Courtesy of the artist
"Clarice Lispector", Julio Villani, 2013. Photo: Courtesy of the artist
"Baldo", Julio Villani, 2013. Photo: Courtesy of the artist
"Mme Seurat", Julio Villani, 2011. Photo: Courtesy of the artist
Producing for exhibitions from the 1980s until today, Villani went through MAC-USP, MAM-SP, Oscar Niemeyer Museum of Curitiba, Museo del Barrio de New York, Habitat Center of New Delhi, Maison de l’Amérique Latine in Paris; and made several individuals in institutions such as Sesc-SP and in the galleries that represent him, Galerie 1900-2000 and Galerie RX, both from Paris, and the Brazilian galleries Estação and Raquel Arnaud. Villani never stopped working.
Currently, he launches his new website, Julio Villani, D’ICI, DE LÀ (julio-villani.com), and sets up his next exhibition at the GALLERY RX & Slag Galleries, Paris, with a new branch in Chelsea, New York, where he presents, from December 9 to January 22, 2022, the show Julio Villani, Conflicting Perspectives. There are about 20 works, where the line and color are permanently in tension. “If only one were to be missing, he says, the whole building could collapse,” says the text of the catalogue. “There is a conflict between escape lines and perspectives that I think is symptomatic of what I am – are we all? – living today”, confesses the artist, thus revealing the choice of the title of the exhibition.
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"À flor da pele", Julio Villani, 2020. Photo: Courtesy of the artist
"L’idée du néant", Julio Villani, 2021. Photo: Courtesy of the artist
"De l’exil", Julio Villani, 2021. Photo: Courtesy of the artist
Julio Villani saiu do Brasil há muito tempo, sempre em busca das imagens, das formas, das ideias que lhe trouxessem alimento para sua curiosidade. Saiu de Marília, no interior de São Paulo, para a Inglaterra, onde estudou na Watford School of Art, de Londres; e se estabeleceu em Paris, onde frequentou a École Nationale des Beaux-Arts, e lá ficou desde os anos 1980.
É como se tivesse construído uma embarcação de si mesmo e nela fosse colocando pincéis, linhas, palavras, algoritmos, geometria indígena, indignações e amores. Eleé um garimpeiro e, com sua bagagem, está sempre atravessando fronteiras. Isso dá samba.
Assim, já pintou e bordou linhos, trabalhou e retrabalhou imagens iconográficas antigas trazendo à tona traços de movimentos artísticos, do modernismo às vanguardas. Villani teve a oportunidade de acompanhar de perto um dos momentos mais ricos da história da arte do século 20, tanto das vanguardas europeias quanto das brasileiras.
Suas esculturas, lúdicas e irreverentes, trazem vestígios do readymade, mas também dos poetas concretos, das obras de Haroldo e Augusto de Campos, que as construíam com palavras que iam dispondo não linearmente, de modo a encontrar uma forma no suporte da página. No caso, Villani as constrói numa colagem que se utiliza do material da sua garimpagem: uma chaleira triangular que lhe inspira o corpo de um pássaro e cujo corpo completa com a leveza de arames; uma cobra montada a partir de uma trena de madeira; uma tartaruga criada a partir de uma pá de aço; uma panela, um retrato. Tudo é experimental e o resultado é uma obra original e poética.
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"Pássaros", Julio Villani, 2012. Foto: Cortesia do artista
"Clarice Lispector", Julio Villani, 2013. Foto: Cortesia do artista
"Baldo", Julio Villani, 2013. Foto: Cortesia do artista
"Mme Seurat", Julio Villani, 2011. Foto: Cortesia do artista
Produzindo para exposições desde os anos 1980 até hoje, Villani passou pelo MAC-USP, MAM-SP, Museu Oscar Niemeyer de Curitiba,Museo del Barrio de Nova York, Habitat Center de Nova Delhi, Maison de l’Amérique Latine em Paris; e fez diversas individuais em instituições como o Sesc-SP e nas galerias que o representam – a Galerie 1900-2000 e a Galerie RX, ambas de Paris, e as brasileirasEstação e Raquel Arnaud. Villani nunca parou de trabalhar.
Atualmente, lança seu novo site, Julio Villani, D’ICI, DE LÀ (“daqui e dali”, em tradução livre), emonta sua próxima exposição na RX & Slag Galleries, de Paris, com nova sucursal no Chelsea, em Nova York, onde apresenta, do dia 9 de dezembro a 22 de janeiro de 2022, a mostra Julio Villani. Perspectiva em conflito. São cerca de 20 obras, nas quais a linha e a cor estão permanentemente em tensão. “Se apenas uma viesse a faltar, costuma ele dizer, todo o edifício poderia ruir”, diz o texto do catálogo. “Há um conflito entre linhas de fuga e perspectivas que eu acho sintomático do que estou – estamos todos? – vivendo atualmente”, confessa o artista, revelando assim a escolha do título da exposição.
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"De l’exil (Sobre o exílio)", Julio Villani, 2021. Foto: Cortesia do artista
"À flor da pele", Julio Villani, 2020. Foto: Cortesia do artista
"L’idée du néant (A noção do vazio)", Julio Villani, 2021. Foto: Cortesia do artista
O Festival Varilux de Cinema Francês segue até quarta-feira, dia 8 de dezembro, incluindo 50 cidades brasileiras em sua itinerância. Um local especial de exibição será a tenda Varilux no Parque Lage, com projeção ao ar livre, sendo esse o único lugar em que será possível assistir Titane, de Julia Ducournau, vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2021. Para a sessão do longa, no sábado, 4, às 22h25, o ingresso pode ser comprado na bilheteria da tenda ou com antecedência no site do festival (clique aqui).
Na programação do Festival Varilux 2021 – considerado o evento mais consolidado de filmes franceses fora da França – há uma variedade de gêneros, do drama à comédia, da animação ao documentário, e ainda a exibição de dois clássicos e uma mostra especial em homenagem ao ator Jena Paul-Belmondo, falecido em setembro deste ano.
A arte!brasileiros destaca algumas obras para não perder. Confira nossa lista:
Still de “Travessia”. Foto: Divulgação.
A Travessia
Dir.: Florence Miailhe
Sinopse: Uma aldeia saqueada, uma família em fuga e duas crianças perdidas nos caminhos do exílio… Kyona e Adriel tentam escapar daqueles que os perseguem para chegar a um país com um regime mais brando. Durante uma jornada que os levará da infância à adolescência, eles passarão por muitas provações envoltas em um misto de fantasia e realidade para chegar ao seu destino.
Sinopse: Um homem condenado cedo demais por uma doença. O sofrimento de uma mãe diante do inaceitável. A dedicação de um médico e de uma enfermeira para acompanhá-los num caminho impossível. Ao longo das quatro estações de um ano eles terão que lidar com a doença, domesticá-la, e compreender o que significa morrer enquanto vive.
Sinopse: Paris, 13º arrondissement, bairro de Olympiades. Emilie encontra Camille, que se sente atraído por Nora, que acaba cruzando caminhos com Amber. Três garotas e um garoto. Eles são amigos, às vezes amantes, frequentemente os dois.
Sinopse: Pierre (Michel Piccoli), arquiteto na faixa dos 40 anos, sofre um grave acidente de carro. Arremessado para fora de seu veículo, em estado de coma à beira da estrada, tem flashbacks do passado e das duas mulheres de sua vida: a ex-mulher Catherine (Léa Massari), com quem tem um filho, e Hélène (Romy Schneider), com quem vive um conturbado relacionamento.
Foto do elenco de “Está tudo bem”. Foto: Divulgação.
Está tudo bem
Dir.: François Ozon
Sinopse: Emmanuèle, romancista realizada na sua vida privada e profissional, se dirige ao hospital onde o seu pai, André, acaba de sofrer um AVC. Fantasque, apaixonado pela vida, porém cansado, pede à sua filha para ajudá-lo a acabar com isso. Com a ajuda de sua irmã Pascale, ela terá que escolher: aceitar a vontade de seu pai ou convencê-lo a mudar de ideia.
Gülsün Karamustafa, "Mermaid", 1986. Foto: Cortesia da artista
León Ferrari nasceu em 1920 em Buenos Aires, Argentina. Gülsün Karamustafa, em 1946 em Ankara, Turquia. Apesar de virem de diferentes cantos do mundo e apresentarem histórias e linguagens expressivas distintas, é possível encontrar pontos de diálogo entre os dois artistas. Inaugurada no último dia 27 de novembro no Van Abbemuseum (Eindhoven, Holanda), a exposiçãoParallel Lives, Parallel Aesthetics (Vidas paralelas, estéticas paralelas, em tradução livre) traz à tona essas convergências e cruzamentos entre o trabalho e a vida de Ferrari e Karamustafa.
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Em frente à “La civilización occidental y cristiana”, de León Ferrari, Andrea Wain (curadora da exposição), Gabriela Baldomá (curadora e restauradora da FALFAA), Carlota Álvarez Basso (responsável de Projetos especiais no Museo Reina Sofia), Charles Esche (Diretor do Van Abbemuseum), Arianne Vanrell (restauradora no Museo Reina Sofia), Teresa Cos Rebollo (Assistente de Gestão e Exposições no Van Abbemuseum) e Anna Ferrari (diretora da FALFAA)
"La civilización occidental y cristiana", de León Ferrari, na exposição "A Kind Cruelty" no Museo Reina Sofía. Foto: Joaquín Cortés / Román Lores. Photographic archive of the Reina Sofía Museum
Vista da exposição "A Kind Cruelty. León Ferrari 100 years" no Museo Reina Sofía. Foto: Joaquín Cortés / Román Lores. Photographic archive of the Reina Sofía Museum
Exposição "A Kind Cruelty. León Ferrari 100 years" no Museo Reina Sofía. Foto: Joaquín Cortés / Román Lores. Photographic archive of the Reina Sofía Museum
Vista da exposição "A Kind Cruelty. León Ferrari 100 years" no Museo Reina Sofía. Foto: Joaquín Cortés / Román Lores. Photographic archive of the Reina Sofía Museum
Ambos ficaram conhecidos por suas posturas contra governos autoritários, que dificultam a liberdade de expressão. Karamustafa se debruça até hoje sobre as relações homem-mulher em uma Turquia em transformação e reflete sobre a perda do clima multicultural de Istambul. Ferrari, falecido em 2013, respondia à influência da civilização cristã ocidental na América do Sul e na ditadura na Argentina.
Para estabelecer os diálogos e ao mesmo tempo revelar as particularidades, Parallel Lives, Parallel Aesthetics combina duas exposições solo. After the Cosmopolis (Depois da Cosmópolis, em tradução livre) traz uma visão geral da obra da artista turca, contando também com trabalhos feitos especialmente para a individual. Em 2022, após o fim da temporada no Van Abbemuseum, a mostra deve ser exibida no Lundskonsthall, em Lund (Suécia). Já Kind Cruelty (Crueldade bondosa, em tradução livre) é uma retrospectiva que abrange a vida e a obra de Ferrari, em comemoração ao centenário do artista argentino. Incluindo peças inéditas, a exposição esteve em cartaz no Museo Reina Sofia, em Madri (Espanha) em 2021, e seguirá para o Centre Pompidou, em Paris (França) no verão de 2022.
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Gülsün Karamustafa, "The Students", 1978. Foto: Cortesia da artista
Vista da exposição "Chronographia", de Gülsün Karamustafa
no Museum für Gegenwart, em Berlijn (2016). Foto: Staatliche Museen zu Berlin / Thomas Bruns
Gülsün Karamustafa, "Mermaid", 1986. Foto: Cortesia da artista
"Etiquette", Gülsün Karamustafa, 2011. Vista da exposição "A Promised Exhibition", 2014, SALT Ulus, Istanbul. Foto: Mustafa Hazneci
Com curadoria de Charles Esche, Andrea Wain e Julieta Zamorano, Parallel Lives, Parallel Aesthetics fica em cartaz até 13 de março de 2022. As mostras que a compõem são as primeiras grandes individuais dos artistas na Holanda e fazem parte de um projeto do Van Abbemuseum que busca levar ao país figuras de renome internacional.
Da esquerda para a direita: Itamar Vieira Junior, Ailton Krenak e Alice Walker. Foto: Divulgação Flip.
Na sua 19ª edição este ano, a Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) traz dezenove encontros que serão transmitidos pelo YouTube da Festa, como também parte de sua programação – as mesas dos finais de semana – será exibida pelo canal Arte1. Todo o eixo temático da Festa de 2021 foi delineado pelo coletivo curatorial no texto “Nhe’éry, Plantas e Literatura” que pode ser lido na íntegra aqui. A cargo da organização do evento estão Hermano Vianna, antropólogo e coordenador desta edição; Anna Dantes, colaboradora da Escola Viva Huni Kuin há mais de dez anos e uma das fundadoras do Selvagem – Ciclo de estudos sobre a vida; Evando Nascimento, escritor e filósofo, pioneiro na reflexão sobre literatura e plantas no Brasil; João Paulo Lima Barreto, Tukano do Alto Rio Negro, doutor em antropologia social pela Universidade Federal do Amazonas e fundador do Centro de Medicina Indígena em Manaus; e Pedro Meira Monteiro, professor da Princeton University e um dos organizadores da oficina Poéticas Amazônicas, no Brazil LAB da Universidade.
Confira a seguir alguns destaques na programação da Flip 2021:
Sábado, 27 de novembro
16h | MESA 1: Nhe’éry Jerá (Abertura)
Cerimônia Guarani, Carlos Papá e Cristine Takuá
Nhe’éry (pronuncia-se nheeri) é como o povo Guarani chama a Mata Atlântica, uma denominação que revela a pluralidade da floresta. Segundo o ensinamento do cineasta e liderança do povo Guarani Mbya, Carlos Papá, Nhe’éry quer dizer “onde as almas se banham”. E se purificam. “Jerá” quer dizer, neste contexto, desabrochar. A Flip 2021 fala da relação entre literatura e plantas a partir de Nhe’éry. Em sua abertura, representantes do povo Guarani da região fazem uma cerimônia, com rezas e cantos, abrindo e protegendo os caminhos da Nhe’éry e dando permissão para a entrada da Flip em seu território sagrado. Tudo realizado na Praça da Matriz, onde havia uma aldeia indígena antes da fundação da cidade. Os povos originários que ali habitavam, e hoje resistem na região, voltam a ocupar, com suas palavras e rituais, o Centro Histórico.
Domingo, 28 de novembro
16h | Mesa 3: Naturalismo e violência
David Diop e Micheliny Verunschk
Mediação: Milena Brittoé professora no Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia
Há muito em comum entre os mundos criados por Micheliny Verunschk e David Diop em seus romances mais recentes. Em O som do rugido da onça, a escritora pernambucana evita a historiografia hegemônica e parte da vida curta de Iñe-e e Juri, crianças indígenas arrancadas de suas terras por um naturalista europeu, para meditar sobre os vazios deixados pelo desterro e pela violência colonial. A porta da viagem sem retorno, do francês de ascendência senegalesa David Diop, faz a operação oposta. Em referência à Ilha de Gorée, um dos pontos centrais do comércio de escravizados no continente africano, o escritor reimagina a vida do botânico Michel Adanson, um homem do Iluminismo movido pelo projeto de formular uma grande enciclopédia dos seres vivos. Em ambos os livros, o leitor se vê diante de vidas ameaçadas pelo sonho de um progresso sem fim, que dilacera os corpos, rasga a memória e ameaça fazer com que as pessoas se esqueçam de si mesmas e de quem são.
Segunda, 29 de novembro
20h | Mesa 6: Árvores e escrita
Itamar Vieira Junior. Foto: Divulgação Flip.
Paulina Chiziane. Foto: Divulgação Flip.
Paulina Chiziane e Itamar Vieira Junior.
Mediação: Ligia Ferreira é pesquisadora e professora do programa de pós-graduação em Letras da Unifesp
Uma das mais importantes escritoras de língua portuguesa da atualidade, Paulina Chiziane recebeu há pouco o Prêmio Camões. Ela conta ter aprendido a escrever “debaixo de uma árvore”. No Brasil, apenas dois de seus romances foram publicados: O canto alegra da perdiz (2008), e Niketche (2002), sua obra mais conhecida. Na literatura de Paulina, gerações de mulheres se afirmam em meio às estruturas de uma sociedade tradicional marcada pelo colonialismo. Neste encontro, ela conversa com Itamar Vieira Junior, cujo Torto Arado é grande sucesso internacional e arrebatou leitores de todas as idades. Assim como em alguns relatos da escritora moçambicana, a história em diferentes tempos de Bibiana e Belonísia se passa em meio à violência de uma sociedade marcada pela herança da escravidão, mas sempre em volta de quintais e ervas que guardam segredos, memórias e experiências compartilhadas.
Quarta, 01 de dezembro
18h | Mesa 9: Fios de palavras
Cecilia Vicuña, Júlia de Carvalho Hansen e Leonardo Fróes
Mediação: Ludmilla Lisé escritora e mestre em estudos étnico-raciais
Nos anos 1970, o poeta carioca Leonardo Fróes foi morar num sítio na região de Petrópolis, onde se dedicou a cultivar e a refletir sobre plantas, e a escrever poemas relacionados à temática ambiental, tanto quanto a problemas demasiado humanos, como se pode atestar em sua Poesia reunida. O interesse sobre as plantas, animais e afins também comparece na obra de Júlia de Carvalho Hansen, poeta de uma geração mais jovem, em livros como Romã e Seiva veneno ou fruto. Nesta mesa, a escritora e o escritor brasileiro encontram-se com Cecilia Vicuña, artista e também poeta chilena que fez de seu trabalho uma plataforma de luta, na defesa aos direitos humanos ou na denúncia da destruição ambiental. Seu trabalho ganhou o Premio Velázquez e foi exposto na mais recente Documenta de Kassel. Uma de suas propostas se inspira nos quipus andinos, objetos feitos com fios e nós, que serviam para a contabilidade e para contar histórias. O encontro dos três ajudará a deslocar o antropocentrismo que relega os viventes não humanos, em particular os vegetais, a segundo plano. Nesse sentido, os “fios de palavra” (expressão de Carlos Papá, cineasta e liderança guarani no litoral de São Paulo) da poesia se entrelaçam aos fios das instalações da artista, num emaranhado que remete também aos cipós e lianas das florestas. Forma-se assim uma tessitura verbal-vegetal para cuidar da saúde planetária.
20h | Mesa 10 – Utopia e distopia
Margaret Atwood. Foto: Divulgação Flip.
Antonio Nobre. Foto: Divulgação Flip.
Margaret Atwood e Antonio Nobre
Mediação: Anabela Mota Ribeiroé escritora, jornalista e programadora cultural; pesquisa a obra de Machado de Assis
Margaret Atwood, autora de O Conto da Aia, já escreveu: “Ustopia é um mundo que criei combinando utopia e distopia – a sociedade perfeita imaginada e seu oposto – porque, a meu ver, cada uma contém uma versão latente da outra.” Como então diferenciar o distópico do utópico? Para responder a essa pergunta, nesta mesa Margaret Atwood conversa com Antonio Nobre, cientista que desenvolveu alguns dos principais estudos sobre as ameaças contra as florestas brasileiras e que, apesar dos dados assustadores, continua a lutar por uma “Matrix Utópica”. O que o melhor da imaginação literária pode aprender com os ensinamentos das plantas para manter a “latência distópica” sob controle?
Quinta, 02 de Dezembro
18h | Mesa 11: Botânicas migrantes
Djaimilia Pereira de Almeida e Elif Shafak
Mediação: Mirna Queirozé jornalista, editora e curadora; fundou e é editora executiva da revista Pessoa
Em seu pequeno e denso romance A visão das plantas, um dos vencedores do prêmio Oceanos de 2020, Djaimilia Pereira de Almeida reescreve o final da vida do luso Capitão Celestino. O personagem foi um cruel pirata e traficante negreiro que, ao se aposentar, retornou a sua cidade natal, vivendo sozinho na casa da família e cuidando do jardim antes abandonado. É na tensão entre a crueldade de Celestino e o modo delicado como trata as plantas que a história propõe uma revisão das ações humanas ambivalentes. Já a turca Elif Shafak, em The Island of Missing Trees [A ilha das árvores desaparecidas], conta a história de amor proibido entre Kostas e Defne Kazantzakis, o primeiro cristão grego, a segunda muçulmana turca, e os conflitos que surgem daí. Um dos capítulos é narrado na perspectiva de uma figueira, expondo a violência colonial e os preconceitos veiculados e criticados no texto. Tanto no romance da angolana Almeida quanto no da turco-britânica Shafak estão em jogo os conflitos e os traumas que o colonialismo acarreta, tendo como uma de suas motivações narrativas o elemento vegetal: no primeiro caso um jardim português, no segundo uma figueira de origem cipriota.
20h | Mesa 12: Políticas vegetais
Kim Stanley Robinson e Eliane Brum
Mediação: Lucia Sáé professora de estudos brasileiros na Manchester University, na Inglaterra
Kim Stanley Robinson foi convidado pela organização da COP26 para acompanhar, com passe totalmente livre, as negociações que tentaram estabelecer um novo acordo internacional para evitar a catástrofe climática. Pode parecer tarefa estranha para um consagrado escritor de ficção científica, mas sua última obra literária, The ministry for the future (o “livro da década” segundo o músico/pensador Brian Eno), já é referência incontornável para muitas pessoas que decidem política ambiental no mundo todo. Na Flip, Kim Stanley Robinson conversa com Eliane Brum, que acaba de publicar Banzeiro òkòtó: Uma viagem à Amazônia Centro do Mundo, seu relato sobre a batalha contra a catástrofe climática em curso na Amazônia. Como as políticas vegetais do presente podem nos guiar para a invenção de outros futuros possíveis?
Sábado, 04 de dezembro
18h | Mesa 16: Em busca do jardim
Alice Walker. Foto: Divulgação Flip.
Conceição Evaristo. Foto: Divulgação Flip.
Alice Walker e Conceição Evaristo
Mediação: Djamila Ribeiroé filósofa, escritora e uma das principais vozes em defesa das mulheres e negros
Neste encontro histórico mediado pela filósofa Djamila Ribeiro, a escritora estadunidense Alice Walker dialoga com a mineira Conceição Evaristo. Uma das mais importantes vozes da literatura brasileira contemporânea, a autora de Ponciá Vicêncio se recolheu durante a pandemia num sítio em que acompanha o lento desenvolvimento das plantas. Grande admiradora de Walker, Conceição encontra agora a autora de A cor púrpura para uma conversa sobre literatura, política e jardins. O último livro de Alice Walker publicado no Brasil é Em busca dos jardins de nossas mães: Prosa mulherista.
20h | Mesa 17: Ouvir o verde
Alejandro Zambra e Ana Martins Marques
Mediação: Rita Palmeira é crítica literária, editora e curadora literária
Dois livros iniciais do consagrado escritor chileno Alejandro Zambra têm as plantas como catalisadoras ficcionais: Bonsai e A vida privada das árvores. Em ambos, os vegetais se associam metaforicamente a histórias de relacionamentos afetivos, que contam também sobre a ditadura de Pinochet. Em seu último livro, Poeta chileno, Zambra volta aos temas que marcaram sua escrita, incluindo-se aí a metáfora vegetal e um mapa de todas as babosas plantadas no bairro Maipú, em Santiago. Ana Martins Marques tem se notabilizado como autora de alguns dos mais belos poemas envolvendo plantas no cenário da poesia brasileira contemporânea. Um de seus títulos refere explicitamente essa temática: O livro dos jardins, dividido em duas partes. Na parte I, os textos descrevem e refletem poeticamente sobre cacto, dente-de-leão, rosa e girassol, entre outros assuntos. Já a parte II oferece “jardins textuais” a mulheres poetas, como a brasileira Orides Fontela, a norte-americana Sylvia Plath e a polonesa Wislawa Szymborska. Na literatura de Zambra e na de Marques, ouvir o verde se torna uma urgência politicamente existencial.
Domingo, 05 de dezembro
18h | MESA 19 – Cartografias para adiar o fim do mundo
Muniz Sodré. Foto: Divulgação Flip.
Ailton Krenak. Foto: Divulgação Flip.
Ailton Krenak e Muniz Sodré
Mediação: Vagner Amaro é editor e fundador da Malê, especializada em literatura brasileira; é também escritor e bibliotecário
Para encerrar esta edição da Flip, o encontro inédito entre Muniz Sodré e Ailton Krenak, que ao mesmo tempo produzem e comentam os mapas que vão nos orientar no enfrentamento dos cada vez maiores desafios brasileiros e mundiais. De um lado o autor de Pensar nagô e A sociedade incivil, do outro o autor de Ideias para adiar o fim do mundo e O amanhã não está à venda. No Brasil temos também o encontro entre os xamanismos indígenas e as religiões afro-brasileiras, com as plantas como principais mediadoras para suas respectivas tecnologias do êxtase, da cura, do conhecimento sobre o mundo. Sem folhas não há festa, não há vida, não há nada. Como fortalecer o aprendizado com o reino vegetal? Como construir uma rede de florestas e escolas? Acompanhando a conversa, trazendo também respostas, na videografia, haverá a apresentação dos mapas criados nas oficinas de cartografia dos povos indígenas Maxakali e Guarani. Novos mapas para novos mundos.
Vídeos com curadoria Flip na plataforma de streaming Tamanduá
Na plataforma de streaming Tamanduá, a Flip disponibiliza uma lista de documentários, filmes e séries que dialogam com sua programação. A lista completa contém 67 títulos e a Tamanduá disponibiliza 7 dias grátis para novos assinantes conhecerem o acervo. Clique para assistir.
Abdias Nascimento, "Eternidade", 1972. Coleção Museu de Arte Negra - IPEAFRO.
Ao marco dos dez anos do falecimento do artista plástico, ator, diretor, escritor e dramaturgo Abdias Nascimento, o Inhotim e o IPEAFRO (Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros), instituição fundada por Abdias e que zela pelo seu legado, o homenageiam com uma ação de longa duração, o Museu de Arte Negra (MAN), aberto a partir de 4 de dezembro de 2021 até o final de 2023. Sediado dentro do próprio museu mineiro – localizado em Brumadinho – pelo período descrito, o MAN foi idealizado originalmente pelo Teatro Experimental do Negro sob a liderança de Abdias no início dos anos 1950. Ele nasceu com o objetivo de “recolher e divulgar a obra de artistas negros, sem distinção de gênero, escola ou tendência estética, promovendo-se, assim, a documentação de sua criatividade”, como explicou Abdias em entrevista para o Correio da Manhã.
“Invocação Noturna ao Poeta Gerardo Mello Mourão: Oxóssi” (1972). Cortesia Inhotim.
A exposição será dividida em quatro atos, cada um com duração de cerca de cinco meses. O primeiro, exibido a partir de 4 de dezembro, traz o diálogo entre a obra de Abdias, Tunga e o acervo do MAN em um espaço que remete às origens do Inhotim: a Galeria Mata, situada próximo à Galeria True Rouge, uma das primeiras da instituição e que expõe de forma permanente a instalação homônima de Tunga. Seu pai, Gerardo Mello Mourão, foi um poeta que participou, na década de 1930, da Santa Hermandad Orquídea ao lado de Abdias e de outros escritores. Foi Gerardo, inclusive, que o indicou pela primeira vez ao prêmio Nobel da Paz, em 1978 – Abdias seria indicado novamente, em 2004, pela sociedade civil e autoridades brasileiras e, de forma oficial, em 2009. Assim, desde pequeno Tunga já convivia com o artista e era influenciado por sua obra.
Entre as cerca de 90 obras que serão apresentadas estão o quadro pintado por Tunga em 1967, aos 15 anos, para o acervo do MAN; Invocação Noturna ao Poeta Gerardo Mello Mourão: Oxóssi (1972), pintura que Abdias fez em homenagem ao amigo Gerardo e à memória dos poetas da Santa Hermandad Orquídea; e e a instalação Toro Condensed; Toro Expanded (1983-2012).
Tunga, “Toro Condensed, 1983; Toro Expanded”, 2012. Foto: Daniel Mansur.
Sobre a idealização do Museu de Arte Negra
Desde os anos 1940, Abdias Nascimento e seus companheiros do Teatro Experimental do Negro (TEN) trabalhavam com a proposta de valorização social do negro por meio da arte e da educação. Ao delinear um novo estilo estético e dramatúrgico, o TEN lançava as bases para a fundação do Museu de Arte Negra. Foi o TEN que, em 1950, no Rio de Janeiro, organizou o 1º Congresso do Negro Brasileiro, cuja plenária aprovou uma resolução sobre a necessidade de um museu de arte negra. O projeto foi assumido pelo grupo e assim nasceu o MAN.
“Naquela altura, a representação do negro nos museus tradicionais aparecia em segundo plano e, em sua maioria, mediada pelo olhar do branco. Assim, era preciso romper com esse sistema representacional e tornar visível ao mundo a riqueza da cultura negra para o campo da arte”, explica Deri Andrade, curador assistente do Inhotim e pesquisador do Projeto Afro.
A exposição inaugural da coleção Museu de Arte Negra foi realizada em 6 de maio de 1968, no Museu da Imagem e do Som, no Rio de Janeiro. Após a abertura, Abdias ganhou uma bolsa de intercâmbio cultural para os Estados Unidos. Com a promulgação do Ato Institucional 5, em dezembro de 1968, na fase mais dura da ditadura civil-militar, Abdias se viu impedido de retornar ao país.
“Esse infortúnio foi um obstáculo para o retorno de Abdias ao Brasil. Limitou as atividades do Museu de Arte Negra, mas não as do artista, que continuou produzindo e coletando obras durante o seu exílio”, comenta Elisa Larkin Nascimento, viúva de Abdias Nascimento e co-fundadora do IPEAFRO. “Assim, atualmente uma profusão de artistas nacionais e internacionais integram o acervo do MAN-IPEAFRO, contribuindo para o enriquecimento das narrativas curatoriais sobre a produção artística negra”, acrescenta.
Funcionamento
O Inhotim está funcionando de quinta-feira a domingo e em feriados, com capacidade para mil visitantes por dia. A entrada é gratuita em toda última sexta-feira do mês, exceto em feriados, com o mesmo limite de público. A compra e retirada de ingresso é realizada exclusivamente online e com antecedência pela Sympla. Em função dos protocolos de saúde, vale lembrar que não está sendo feita operação de venda de entradas na bilheteria do museu.
O uso obrigatório de máscara, por funcionários e visitantes, displays de álcool em gel distribuídos pelo parque e distanciamento entre as mesas nos pontos de alimentação seguem em vigência.
Todas as orientações sobre compra de ingressos, os protocolos adotados e regras de visitação estão disponíveis no site da instituição.
"A índia escondida por um grande peixe", 1947-1948, de Brecheret, pedra rolada pelo mar. Foto: Reprodução
Às vésperas das comemorações dos 100 anos da Semana de Arte Moderna, é importante refletir sobre a figura do escultor ítalo-brasileiro Victor Brecheret (1894-1955), profissional cuja obra aguarda reavaliações. Este texto atenta para o fato de que sua produção, de início, se estabeleceu entre as franjas da tradição e da modernidade e, já no final da vida, entre a modernidade e o contemporâneo.
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Nathalie Heinich, socióloga francesa especializada em arte, no livro El paradigma del arte contemporâneo. Estrucuturas de uma revolución artística [1], afirma que a arte tradicional, ou “clássica”, seria “uma representação figurativa ajustada aos cânones herdados da tradição”. Já a arte moderna, “a expressão da interioridade do artista, às custas da transgressão dos cânones clássicos e, portanto, a favor de um valor aprioristicamente dado à personalização, à inovação, à originalidade”. Por último, Heinich define a arte contemporânea como sendo aquela produção engajada na “transgressão dos critérios que delimitam aquela noção”, ou seja, a noção de arte moderna antes formulada[2].
Apesar do esquematismo das definições[3], elas proporcionam uma entrada para as questões que pretendo discutir. É certo, no entanto, que elas precisam de complementações e eu me encarregarei de realizá-las.
Quando nos referimos à arte tradicional, (ou à arte “clássica”, como prefere Heinich), falamos sobre a tradição da arte europeia que iria, grosso modo, de meados do século 14 até o final do século 19. Durante esses séculos, ali se desenvolveu um conceito de arte como uma espécie de duplo do real, pautado em prescritivas nas quais qualquer transformação somente era aceita enquanto acréscimo e nunca como ruptura[4]. A arte, então, assumiu uma função de exemplaridade e, pautada sobretudo na representação da figura humana – mais ou menos idealizada, (dependendo da época) –, seu papel era acionar no espectador certos sentimentos e reflexões que transcendessem sua própria materialidade. A arte era assim instrumentalizada para transmitir ensinamentos religiosos, morais, éticos e, para tanto, era comum que o artista lançasse mão de elementos retóricos para enfatizar suas proposições, dentre eles a alegoria. Nesse contexto não eram incomuns obras que, apresentando ao público representações humanas idealizadas, buscassem traduzir conceitos abstratos, tais como amor, ódio, justiça e outros assuntos.
Teria sido contra esses códigos estabelecidos pela tradição que a arte moderna se insurgiu, estabelecendo novos paradigmas.
Se até então a obra de arte era produzida a partir da manutenção/disseminação de valores e práticas previamente estipuladas – e que deveriam, por certo, transcender suas respectivas materialidades para provocar no espectador sentimentos também previamente estipulados –, a partir do século 19 essa situação começou a mudar: contra as prescritivas mais estritas, contra as normas que impediam, em última análise, a própria manifestação da individualidade do produtor, começa a ganhar força, como novos elementos para valoração da obra de arte, a fuga a qualquer ordenação prévia, a ênfase à originalidade, a negação de qualquer impessoalidade para que a obra de arte passasse a se tornar uma manifestação da interioridade do artista.
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"Pietá", 1499, Michelangelo Buonarotti, mármore, 174 cm × 195 cm, Basílica de São Pedro, Vaticano. Foto: Reprodução
Antonio Canova, "Alegoria da Paz", 1811 -1814, gesso, cm 190 × 74 cm. Russia/ Mosca/ Collezione Romanzow. Foto: Divulgação
Auguste Rodin, "Monumento a Balzac", 1898, bronze, 270 x 120 x 128 cm, Jardin du Musée, Paris, France. Foto: Reprodução
"Flora", Aristides Maillol, 1911, Paris, jardin des Tuileries. Foto: Reprodução
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Até aqui estive circunscrito às definições de Heinich sobre “arte clássica” e “arte moderna”. Porém, um elemento que a autora exclui de sua definição de “arte moderna”, mas que também servirá ao seu surgimento, é a ênfase que vários artistas começaram a conferir à materialidade da obra e à exploração de seus elementos constitutivos; ou seja, dos elementos intrínsecos a cada linguagem artística. Em texto dos anos 1960, o crítico norte-americano Clement Greenberg sintetizou esse processo ao afirmar que, se até o início da modernidade a arte usara de artifícios (ou da arte) para esconder a sua materialidade, a partir de então os artistas empenham-se em deixar evidente em cada trabalho a matéria da qual o mesmo era constituído e os elementos que estruturavam cada uma delas[5].
Nesta nova situação em que a obra de arte não mais seria vista como representação do mundo real ou ideal, mas como uma nova realidade, é que se entende um dado importante e que também ajudou a forjar o conceito de arte moderna: o suposto banimento, na constituição da obra, de qualquer alusão a algo que estivesse fora de sua realidade concreta. Daí a proscrição dos elementos tradicionais da retórica, dentre eles, a alegoria[6].
No entanto, como veremos, tal exclusão não foi absoluta. Mas, é importante sublinhar que essa postura mais radical foi se tornando hegemônica, não propriamente nas produções dos artistas, mas nas interpretações de críticos, espalhados pelo mundo (inclusive no Brasil), que retiravam da corrente principal da arte moderna os artistas que continuaram lidando com questões outras, que não apenas as especificidades de suas respectivas linguagens.
É claro, portanto, que a narrativa criada por esses estudiosos concentrou seu interesse nas questões específicas da arte, deixando de lado outros problemas que também tiveram seu papel na passagem da arte tradicional para a arte moderna e que relativizam parte das diferenças entre as duas.
Dentro dessa situação, pontuaria um fenômeno que até o presente não foi encarado pelos estudiosos: a passagem da arte tradicional para a arte moderna não se estabeleceu de maneira abrupta, como querem nos fazer crer os textos canônicos sobre arte moderna. Houve um razoável período de entranhamento entre modernidade e tradição, em que valores desta tentavam se impor aos valores daquela, estabelecendo uma produção híbrida e, diga-se de passagem, interessante sob vários aspectos. Se no âmbito da escultura francesa, por exemplo, as experiências de Rodin e Maioll podem ser relembradas como casos exemplares, no Brasil a produção de Victor Brecheret me parece emblemática.
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“Ídolo”, c.1919, Victor Brecheret, bronze, 20 x 46 x 16 cm. Foto: Reprodução
Ídolo, Cabeça de mulher e as duas versões de Soror dolorosa (em mármore e em bronze) – todas as quatro produzidas por volta de 1919 – nos apresentam Brecheret recém-chegado de seu primeiro estágio europeu, período de seis anos que passou em Roma no ateliê do escultor italiano Arturo Dazzi.
Se a “presença” de Dazzi é perceptível no domínio da forma, é nítido, porém, que já naquele período Brecheret buscava outros parâmetros: enquanto estuda com Dazzi, ele se mostra atento às produções dos também italianos Adolpho Wildt e Arturo Martini, mas são sobretudo as produções de Ivan Mestrovic, escultor croata com penetração na cena internacional, aquelas que mais aguçam seu talento. De fato, Mestrovic parece ter sido a principal referência tomada por Brecheret nesse seu estágio romano e na curta temporada que passaria no Brasil (1920/21), antes de transferir-se para Paris.
Ídolo ainda testemunha a formação primeira do artista: nela persiste a sujeição à anatomia observada na escultura tradicional com forte presença na Itália, embora nela já se perceba– sobretudo na torsão do corpo e nos sulcos produzidos pela ênfase nos detalhes – certa sofreguidão no intuito de fugir às convenções então mais aceitas. Em Cabeça de mulher, por outro lado, tal ansiedade se materializa de maneira plena, na medida em que Brecheret – mais atento a Mestrovic do que a Dazzi – submete a obediência às convenções da anatomia artística à deformação da figura, agigantando-lhe o pescoço e transformando os planos em áreas repletas de sulcos, lugares onde as sombras formam linhas veementes.
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"Soror dolorosa", c.1919, Victor Brecheret, mármore, 57 x 15 x 40 cm. Foto: Reprodução
"Cabeça de mulher", c.1919, Victor Brecheret. pedra da França, 48 x 26,5 x 20 cm. Foto: Reprodução
Já nas duas versões de Soror dolorosa, constata-se, a exemplo da produção de Mestrovic, um pendor a uma figuração arcaizante, como uma espécie de repúdio ao realismo verista ainda tão presente na escultura centro-europeia de então, assim como a um gosto de derivação neoclássica, também ainda hegemônica naquele período. Nesse momento, as referências para o jovem Brecheret – sobretudo em Soror dolorosa – é a escultura pré-renascentista, eivada, no entanto, por um vigoroso pathos expressivo. Tais referências buscam recuperar/recriar com dramaticidade aquela tradição tão antiga, enfatizando, por um lado, o rigor hierático das formas, e, por outro, tensionando as superfícies onduladas, concluídas em linhas de sombras profundas, indecisas entre o ornamental e o obsessivo.
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Se as esculturas do segmento precedente possuem como característica uma espécie de frêmito interior que tende a ondear os planos, a sulcá-los de sombras trágicas, Virgem e o menino, explicita mudanças sensíveis na maneira como o artista passava a se posicionar frente ao fazer escultórico. Longe da dramaticidade de antes, nessa peça percebe-se o escultor encontrando uma maneira de substituir a teatralidade que caracterizava sua produção anterior por um hieratismo despido de qualquer dramaticidade. Pelo contrário: ali os planos se abrem serenos à luz e os volumes são concatenados uns aos outros por delicados sulcos na matéria, linhas sutis que demarcam as fronteiras entre as formas anatômicas e os limites entre os corpos. Mesmo a sugestão do panejamento, dos dedos dos pés e das mãos, e do ondular dos cabelos da figura principal, sujeitam-se ao ritmo manso de uma ordem que aspira ao atemporal, sempre em busca daquilo que, para o pensador alemão Johann Joachin Winckelmann, distinguia a arte grega: “[…] uma nobre simplicidade e uma grandeza serena tanto na atitude como na expressão […]”[7].
Victor Brecheret, “Virgem e o menino”, década de 1920, bronze, 75 x 15 x 15 cm. Foto: Reprodução
Porém, se em sua fase “arcaica” Brecheret investia na dimensão planar de sua escultura – quase que totalmente “em relevo” –, a partir dos anos 1920 tal característica passa por uma sutil, mas poderosa transformação, ao agregar àquele caráter uma volumetria elíptica, manifestando-se por meio de módulos[8].
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A pesquisadora Daisy Peccinini, tratando do estágio francês de Brecheret[9], atenta que, em 1924, em férias na fronteira entre a França e a Suíça, o artista se interessará pelas formas naturais encontradas naquelas paragens, sobretudo:
“… pelas formas dos seixos rolados, erodidos pela força das águas há milhares de anos. Para um artista que tinha forte inclinação a fazer apologia da natureza, foi um período decisivo na evolução de sua plástica, em direção às formas puras, orgânicas e naturais que vai explorar, uma vez no Brasil, na fase das “pedras” e da arte indígena, a partir de meados da década de 1940…”[10].
Como atesta a estudiosa, o interesse de Brecheret por aquelas formas ganhará papel preponderante na sua última produção. No entanto, já nos anos 1920 nota-se que aquelas formas oblongas que elas tornam visíveis, traduzidas para o mármore ou para o bronze. São essas formas – que ele pode ter percebido na natureza a partir de sugestões captadas na obra do escultor romeno Constantin Brancusi -, que caracterizam parte de sua escultura, entre meados daquela década e a seguinte. Virgem e o menino, já comentada, assim como Diana caçadora (dec.1920) e O beijo, 1932, exemplificam o interesse de Brecheret por essas formas que remetem a pedras roladas dos leitos dos rios e dos mares.
Por outro lado, a atenção que a obra de Brancusi despertou em Brecheret não parece ter se estancado no fascínio pela forma oblonga, mas, indo mais além, ela se desenvolveu também por meio da analogia que o brasileiro estabeleceu entre aquela forma – quando trabalhada em modelos encadeados –, e a configuração do corpo humano. Essa espécie de ponte que Brecheret estabelece entre módulos elipticos concatenados e o corpo humano pode ser inferida em diversas de suas obras do período, entre elas a já comentada Virgem e o menino, e na parte superior de Portadora de perfume, 1924, pertencente ao acervo da Pinacoteca do Estado.
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Victor Brecheret, "Portadora de perfume", 1924, gesso dourado, 331 x 104 cm. Pinacoteca do Estado de São Paulo, Brasil. Foto: Reprodução
Victor Brecheret, "Grande torso feminino", ca. 1939, bronze, 185 x 48 x 50 cm. Foto: Reprodução
Quando, a partir de meados dos anos 1930, o artista se estabelece em definitivo no Brasil, nota-se que, paulatinamente, os elementos que caracterizavam a escultura por ele produzida nos anos 1920 se aprimoram ainda mais, logo no início daquela década para, na sequência, e aos poucos, irem sendo substituídos por outras demandas e outras soluções formais.
Se os anos 1930 terminam com Brecheret revisando a grande tradição da escultura ocidental a partir dos exemplos mais recentes de Bourdelle, Maioll e outros – e Torso feminino, de 1939, é um exemplo desse esforço –, a década seguinte aos poucos imprimirá novas orientações em sua trajetória que revelarão uma originalidade até então inaudita no ambiente do tridimensional do Brasil.
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Está certa Peccinini ao enfatizar os anos 1940 como o período em que Brecheret passará a explorar as pedras roladas, e isso por uma questão crucial: tal ação não se dará mais por meio de uma abstração em que, como nos anos 1920/30, o escultor traduzia a forma original daquelas pedras para o mármore ou o bronze, transformando-a em corpos de deusas, ninfas ou santas. A operação por ele realizada a partir dos anos 1940 é de uma radicalidade ímpar no campo da arte moderna no Brasil: ao invés de representar em materiais preciosos a nobre simplicidade e a serena grandeza das pedras roladas, o artista agora delas se apropria, indo busca-las na natureza para nelas interferir.
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A historiografia artística brasileira ainda não se dedicou à reflexão sobre o significado dessa atitude de Brecheret, ação de alta radicalidade, mesmo se tomarmos como base não apenas a cena brasileira de meados dos anos 1940, mas também o ambiente artístico internacional do período. Afinal, como situar essa atitude do artista? O que pode ter possibilitado a ele, se não abandonar o mármore e o bronze, pelo menos acoplar a esses meios expressivos devidamente reconhecidos, a apropriação de pedras roladas, transformando-as também em meios de expressão? Por que ainda não foi dada a devida atenção ao fato de um artista como Brecheret ter colocado no mesmo patamar de sua produção já devidamente institucionalizada, um objeto tão comezinho – e, portanto, tão estranho à “grande arte” –, como as pedras roladas?
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"A luta da onça com o tamanduá", Victor Brecheret, 1947-1948, pedra rolada pelo mar, 19 x 55 x 24 cm.
"A índia escondida por um grande peixe", 1947-1948, de Brecheret, pedra rolada pelo mar. Foto: Reprodução
A partir da apropriação dessas pedras, desses objetos que não mais traduzem, mas que são a própria forma criada por milênios pela natureza, Brecheret irá nelas intervir a partir de incisões que podem apenas desvelar desenhos sugeridos pelo tempo na própria matéria (A índia escondida por um grande peixe, 1947-48), ou então, mesclando a esses estímulos já existentes a incisões voluntariosas, criar obras como A luta da onça com o tamanduá, 1947-48.
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A obra de Brecheret foi forjada no âmbito da modernidade do século 20, mas sempre entre franjas; primeiro em muito se confundindo com a tradição; e já no final da vida apontando para uma compreensão contemporânea da arte. Talvez tenha sido justamente se movimentar dentro dessas fronteiras difusas o que lhe permitiu produzir em concomitância obras devedoras da tradição europeia, em suas formulações mais discutíveis, em paralelo a outras peças em que se nota concepções que colocam o interesse sobre Brecheret em outro patamar.
Justamente por essa variedade na produção do escultor, com procedimentos e concepções vindos de diversas tradições, é que ele vem sendo colocado, por parte da crítica especializada, como um artista menor, um “eclético”. Como se essa característica, vista de forma negativa, fosse encontrada apenas nele.
Não só no Brasil, mas em toda cena internacional, é possível encontrar exemplos de artistas que desenvolveram concomitantemente suas respectivas obras em diversas direções. E mesmo que seus biógrafos ou especialistas “editem” esse suposto ecletismo na hora da produção de uma retrospectiva ou publicação, isso não faz com que ele desapareça e mantenha sua importância para a compreensão da obra como um todo. Como é o caso da obra de Brecheret.
[3] – No decorrer do livro, a autora irá matizar essas definições.
[4] – Para uma introdução a esta questão, consultar: GRAMMONT, Guiomar de. Aleijadinho e o aeroplano. O paraíso barroco e a construção do herói colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. Fundamental também é a leitura do Prefácio desta obra, realizado por João Adolfo Jansen.
[5] – “Pintura Modernista”, de Clement Greenberg. IN FERREIRA, Glória e COTRIM, Cecilia (org.). Clement Greenberg e o debate crítico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, pág. 101,
[6] – Para uma introdução ao assunto, ler, de Craig Owens, “The allegorical impulse: toward a theory of postmodernism”, IN WALLIS, Brian (ed.). Art After Modernism: rethinking representation. New York/The New Museum of Contemporary Arte; Boston, David R. Godine, Publisher, Inc.
[7] – WINCKELMANN, J.J. Reflexões sobre a arte antiga. Porto Alegre: Editora Movimento/Un. Fed. Rio Grande do Sul, 1975, pág. 53.
[8] – Embora este não seja o espaço apropriado para análises sobre as estruturas do pensamento plástico de Victor Brecheret, registro aqui que, se durante os anos 1910, o artista trabalhou o objeto escultórico sempre confinado entre dois planos – dentro de padrões teorizados pelo escultor e teórico alemão Adolf Von Hildebrand –, parece que durante os anos 1920, ao lado da continuidade desse modelo, Brecheret, em várias de suas produções, colocará um cilindro entre esses dois planos. Ou seja, em muitas de suas obras será perceptível o objeto escultórico surgir de um cilindro fechado entre dois planos. Tal cilindro normalmente será seccionado em algumas partes pelo artista para criar a sucessão de volumes ovoides.
[9] – O “estágio francês de Brecheret” ocorre entre os 1921 e 1932, período em que o artista viverá em Paris com eventuais visitas a São Paulo.
[10] – PECCININI, Daisy. Op. cit. Pág. 67/68. Em nota (pág.68), a autora cita um depoimento do escultor ao jornalista Luis Martins, de 1939, em que ele afirma ter levado para Paris alguns exemplares de pedras encontradas em suas férias. Mais à frente, no mesmo texto, Peccinini voltará a salientar o interesse de Brecheret por pedras e rochedos, relatando – segundo depoimento de Simone Bordat (então companheira do escultor) – as viagens que o artista e amigos faziam para o litoral da Córsega e da Bretanha, locais em que o escultor também se dedicava a admirar as formações rochosas das regiões (op. cit. pág 115 e seg.).