Vista da 3ª Bienal de São Paulo
Vista da 3ª Bienal de São Paulo. Foto: Fundação Bienal de São Paulo

A arte pode ser um capricho individual, mas seu poder de contágio, como dizia Lima Barreto, é o traço de ligação entre os homens. Apesar do estranhamento com que foi recebida em 1951, a 1ª Bienal de São Paulo se impôs e tornou-se a manifestação artística brasileira mais conhecida no exterior. Ao criá-la, Francisco Matarazzo, conhecido como Ciccillo, apostou no projeto cultural mais ousado já realizado nos trópicos. A 1ª edição foi montada provisoriamente no Belvedere Trianon, onde hoje está o Masp (Museu de Arte de São Paulo). De dois em dois anos a Bienal participa de uma espécie de “Grand Slam” das artes, ao lado da Bienal de Veneza e da Documenta de Kassel.

Um dos desafios desse esforço, de grande carga utópica, era refletir sobre o papel da produção nacional, a pertinência de sua atualidade e inserção no plano internacional. Temos que admitir que a contribuição de suas 34 edições, nesses 70 anos, nem sempre se deu de forma explícita, às vezes por tentativas de um pensamento inusitado, outras vezes por uma montagem perturbadora.

Inspirada na Bienal de Veneza, realizada desde 1895, o evento paulistano provocou em sua edição inaugural forte impacto nos artistas brasileiros. A escultura Unidade Tripartida, de Max Bill, artista suíço laureado com o prêmio máximo da Bienal, abriria as portas para o abstracionismo geométrico e influenciou escultores brasileiros como Franz Weissmann. Outros artistas também deixaram suas marcas, como René Magritte, Alberto Giacometti, Di Cavalcanti, Candido Portinari e Lasar Segall. Eles sinalizaram a arte desenvolvida naqueles anos de 1950.

Em 1954 São Paulo se preparava para a festa de seu o quarto centenário quando Ciccillo surpreende a todos ao trazer para a segunda edição a Guernica e mais 65 obras de Picasso, com curadoria do artista espanhol realizada diretamente de Paris. Os locais determinados para mostrar arte, a partir de então se expandem com a mobilidade da vida. Na segunda edição, a Bienal ganhou lugar definitivo no complexo do Parque do Ibirapuera, projetado por Oscar Niemeyer. Além da retrospectiva de Picasso, exibiu o futurismo italiano, o cubismo, os geométricos argentinos e as salas de Mondrian, Paul Klee e Edvard Munch. Uma aula sobre a excepcionalidade da arte do século 20.

Guernica de Pablo Picasso
“Guernica”, de Pablo Picasso, foi exposta da 2ª Bienal de São Paulo, em 1954, com mais 65 obras do artista. Hoje ela se encontra no Museu Reina Sofia, protegida por vidro a prova de bala, detector de metais. No Ibirapuera chegou num dia de chuva, em cima de um caminhão de madeira, dentro de um tubo de metal com uma lona por cima. Foto: Reprodução

A criação da Bienal estava relacionada às mudanças político-econômicas da cidade de São Paulo e às estratégias culturais da elite local para transformá-la em pista de pouso das vanguardas internacionais. A arte começa a mudar rapidamente e, com o tempo, elas se agigantam e ganham peso. Já em sua 4ª edição, de 1957, a Bienal teve que ser transferida para o antigo pavilhão das Indústrias, também no Ibirapuera, onde está até hoje. O prazer de estar nas multidões, segundo Walter Benjamin, “é uma expressão misteriosa do prazer sensual da multiplicação do número. O numeroso está em tudo”. Os jornais noticiavam que o evento atraia centenas de pessoas para admirar o prédio transparente com as belas curvas arquitetônicas de Niemeyer e obras de arte ininteligíveis. Uma delas era a pintura de Jackson Pollock que chegou à Bienal um ano após sua morte. Os trabalhos de Tapiès e Josef Albers provocam intercâmbio silencioso com as obras de Frans Krajcberg, Lygia Clark e Hélio Oiticica. Essa edição foi marcada pelo corte de 84% dos artistas inscritos e causou a fúria de muitos deles, como Flávio de Carvalho – uma das figuras mais polêmicas da arte brasileira, personalidade dionisíaca e nietzschiana – que se dirigindo a Ciccillo denunciou: ”Você influencia o júri e ele elege quem o MAM quer. O que acabam de fazer foi um crime contra a arte brasileira. Antes, malandro era só o júri, agora é o museu também”.

O ano de 1961 constitui-se num marco na história da Fundação Bienal, que se desvincula do Museu de Arte Moderna de São Paulo e se transforma em instituição autônoma. As obras premiadas na Bienal até então foram doadas ao Museu de Arte Contemporânea da USP. Também no mesmo ano, a capital do Brasil deixa de ser o Rio de Janeiro, é transferida para Brasília e materializa uma ideologia estética lançada por Le Corbusier. Era apenas o começo de uma era explosiva. Mario Pedrosa, o crítico brasileiro mais conhecido internacionalmente, é escolhido como curador da edição, que exibiu retrospectiva consistente do alemão Kurt Schwitters, um revolucionário nas assemblagens que influenciou o pop Robert Rauschenberg. Pedrosa expôs obras de Maria Helena da Silva, que saiu vencedora da premiação, e ainda mostrou o realismo socialista do italiano Renato Guttuso e as pinturas de Clemente Orozco, Paul Devaux, René Magritte e Marc Chagall. Porém, por motivos burocráticos, não conseguiu trazer o melhor da vanguarda russa. Pedrosa há alguns anos queria mostrar o suprematismo, movimento revolucionário criado por Malevich em 1915 e consolidado nos primeiros anos da Revolução Russa, mas acabou trazendo artistas jovens não significativos. De certa forma decepcionou alguns críticos e artistas.

Ditadura e repressão

Os anos de 1960 sacodiam o mundo e a Bienal, também atingida pelas mudanças político-ideológicas, tenta sobreviver sob o slogan de Pedrosa: “A arte é o exercício experimental da liberdade”. Era o momento da contracultura, guerra do Vietnã, ditaduras latino-americanas. O golpe militar de 1964, desferido contra a democracia brasileira, colocou muitos intelectuais na prisão. O período coincide com o declínio da Bienal. Em 1965, Maria Bonomi, ao receber o prêmio de melhor gravadora, com uma das mãos pega o troféu e com a outra entrega ao presidente Castelo Branco uma carta assinada por intelectuais e artistas pedindo a soltura do crítico Mário Schenberg, do sociólogo Fernando Henrique Cardoso e de outros intelectuais.

Dois anos depois, obras ícones da pop art americana desembarcam na Bienal. Trabalhos de Andy Warhol, Roy Lichtenstein, Jasper Johns, Robert Rauschenberg e Robert Indiana mostram que se pode trabalhar com os ícones da cultura de massa de um país, com crítica e humor, sem fazer realismo socialista. O prêmio é atribuído a Jasper Johns pela série Three Flags, enquanto Quissak Júnior, jovem artista brasileiro, teve seu trabalho interditado pela polícia por usar a bandeira nacional. O pop brasileiro também mostrou sua dimensão com obras críticas ao sistema, como as de Claudio Tozzi, Antonio Henrique Amaral, Rubens Gerchman e Nelson Leirner. Citando Michel Foucault, “o poder é produtor antes de repressor; produz maneiras de viver e produz realidades”.

Dois anos depois a Bienal sofre um boicote internacional decorrente da intervenção militar na exposição do Museu de Arte Moderna do Rio, que exibia as obras que iriam para a 6ª Bienal de Paris; algumas foram consideradas ofensivas ao regime. Mario Pedrosa é exilado no Chile em 1971 e provoca uma carta de repúdio assinada por dezenas de personalidades, como Octavio Paz e Pablo Picasso. Contrariando as expectativas, o crítico Mário Schenberg, militante da esquerda, não boicotou a Bienal. Para ele, permanecer era uma forma de resistência, de garantir o lugar de protesto. Convicto de sua posição, organiza uma sala com jovens artistas, entre eles José Roberto Aguilar, Carmela Gross, Ione Saldanha, Claudio Tozzi e João Câmara. A Bienal amargava um momento triste ao ver esgarçado o maior projeto de arte que o país já teve. E por que o Brasil jamais recebeu o Grande Prêmio (Itamaraty) da Bienal de São Paulo? Nunca houve explicação convincente. O que se sabe é que o único país latino-americano a conseguir essa façanha foi a Argentina em 1977, com o Grupo de los Trece, liderado por Jorge Glusberg, idealizador do CAyC (Centro de Arte y Comunicación), de Buenos Aires.

Redemocratização

Na década de 1980, com o início da abertura política, os países que assinaram o boicote retornam à Bienal. As galerias se multiplicam e o trânsito da comunidade artística internacional se intensifica, não mais apenas centrado no período do evento, mas durante todo o ano. Walter Zanini assume a edição de 1981 dando ênfase ao experimental e cria zonas de interrogações, sem se preocupar com as certezas. Tal como Harald Szeemann – curador da Documenta de Kassel em 1972, que muda toda a estrutura da mostra alemã e a coloca no topo das grandes exposições internacionais -, Zanini também muda o conceito da Bienal de São Paulo, trocando a montagem por países pela analogia de linguagem. O curador levou o evento para uma relação direta com o novo, expôs a arte postal, o vídeo texto, mostrou a antiarte do grupo Fluxus, abriu para as performances da dupla inglesa Gilbert & George e proporcionou uma profunda análise sobre a Arte Incomum com a participação de psicanalistas e estudiosos sobre a produção dos portadores de doenças mentais.

17ª Bienal de São Paulo.
17ª Bienal de São Paulo. Foto: Fundação Bienal de São Paulo

No processo de ocupação dos 33 mil metros quadrados do pavilhão da Bienal, a 18ª edição, curada por Sheila Leirner, se diferenciou com o impacto causado pela Grande Tela, um conjunto de três corredores de 100 metros cada que exibia centenas de pinturas neo-expressionistas vindas de vários países. Ainda nessa edição, Marina Abramovic e Ulay finalizaram a performance Nightsea Crossing, iniciada na Bienal de Sidney em 1981 e que somava quase 600 horas e 94 dias. Nela, o casal performático permaneceu sentado, se entreolhando durante sete horas, em sete dias, sem se mexer. Alex Vallauri leva seu grafite mundano para a Bienal e constrói a casa da “Rainha do Frango Assado” personificada por Claudia Raia, sua amiga, então com 18 anos.

Seria imprudente negligenciar a 24ª edição, de 1998, com sua abordagem carregada de brasilidade, traduzida em Antropofagia e curada por Paulo Herkenhoff. A mostra transversal histórica incluía obras do período colonial do século 19 e estabeleceu justaposições com a contemporaneidade como no Eixo Exógeno, de Tunga, que dialogou com o quadro Lea e Maura, de Guignard, sendo uma das garotas retratadas a mãe de Tunga. A contemplação silenciosa dos visitantes contrastava com a estridência dos objetos reunidos na sala de Paulo Bruscky na 26ª edição, de 2004, curada por Alfons Hug, cujas releituras se abriam para outras experiências de tempo e memória.

Na Bienal de 2006, com a curadoria de Lisette Lagnado, o artista americano Jimmie Durham, de origem aborígene, escreveu uma carta aberta que enviou junto com seu trabalho, em que denunciava a situação dos indígenas no Brasil, afirmando que a Bienal não tinha se interessado pelo assunto. Essa intervenção de confronto ao colonialismo foi um marco inusitado. Ao escolher Incerteza Viva como tema, o curador Jochen Volz colocou o meio ambiente no debate da 32ª edição, mostra que teve a participação majoritária de mulheres e a primeira cocuradora negra, Gabi Ngcobo.

Nos últimos anos, a Bienal abriu as portas para vários coletivos de artistas que gravitavam, ainda apagados, em torno da produção brasileira. A maioria com inserção de gênero, minorias afrodescendentes e indígenas, que atualizaram o diálogo, mas nem sempre com obras à altura de uma bienal. Não há uma maneira subjetiva única de entender o mundo como forma de relacionar o presente com o passado, a memória com a identidade e se abrir para as infinitas leituras sobre as demandas sociopolíticas atuais. A Bienal de São Paulo chega à sua 34ª edição (analisada nesta edição por Fabio Cypriano) e dá sinais de que o momento artístico e político pede profunda reflexão e estudo de novas atitudes para superar a pobreza e a obscuridade que atualmente toma conta do Brasil.

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