Danilo Miranda, diretor-geral do sesc-sp
Danilo Santos de Miranda, filósofo, sociólogo e diretor-regional do Sesc-SP Foto: Matheus José Maria
Foto colorida, vertical. Retrato de Danilo Miranda
Danilo Santos de Miranda, filósofo, sociólogo e diretor-regional do Sesc-SP Foto: Matheus José Maria

Mesmo se dizendo uma pessoa otimista, Danilo Santos de Miranda, 78, não esconde sua grande preocupação com o momento político que o Brasil atravessa: “Estamos em uma situação terrível, sob vários aspectos”, diz o sociólogo e filósofo, diretor-geral do Sesc-SP desde 1984. “Isso vem de antes da pandemia, com erros na condução da economia, com a falta de financiamento para a cultura, com esse negacionismo ao campo do conhecimento e da ciência. E a coisa ficou muito pior com os milhares de mortos, o sacrifício, a dor e o luto espalhados pelo país.”

Em entrevista à arte!brasileiros, Miranda faz um balanço da atuação do Sesc-SP durante a pandemia, com sua intensa atividade virtual, e fala da volta ao presencial: “O encontro, o convívio, as atividades presenciais, isso é essencial para o nosso dia a dia”. É por isso mesmo que a instituição planeja também a abertura de uma série de novas unidades nos próximos anos, algumas delas já em construção – como Franca, Limeira, Marília e Parque Dom Pedro (na capital).

Sobre as constantes tentativas de corte de recursos para as entidades do Sistema S – como Sesc, Senac, Sesi e Senai -, financiadas por taxas compulsórias cobradas na folha de pagamento das empresas (com orçamento anual que chega a quase R$ 20 bilhões), Miranda afirma que isso não é exclusividade do atual governo: “Isso sempre nos preocupou e exigiu de nós uma espécie de comprovação permanente da nossa importância. Como se todos os dias tivéssemos que mostrar o porquê de existirmos, qual o papel que nós fazemos e motivo pelo qual a sociedade necessita da nossa atuação”.

Por outro lado, o que é característica mais particular da atual gestão federal, segundo ele, é que “o governo não tem nem a menor ideia do que é cultura. Não são pessoas que se dedicam ou que mergulham nesse conceito. Quando colocam, por exemplo, a cultura como parte de uma ação voltada para o turismo, sem dúvida nenhuma não entenderam nada do que ela significa” – o ministério da Cultura foi extinto sob o governo Bolsonaro e a atual secretaria é vinculada à pasta do Turismo.

Miranda falou também sobre a desigualdade global e regional escancaradas pela pandemia, sobre a necessidade de aprendermos a ser mais solidários e de atentarmos “à questão ambiental, à questão da diversidade, à questão de gênero e do respeito mútuo”. Leia abaixo a íntegra da entrevista.

ARTE! As unidades do Sesc, mesmo sendo espaços privados, sempre se colocaram na cidade quase como extensões do espaço público. São abertas a todos, pensadas para uma convivência criativa e democrática, enfim, ligadas a um projeto de “bem-estar social e de bem viver”, nas suas próprias palavras. Por um ano e meio estas unidades precisaram fechar as portas, por conta da pandemia. Como foi essa experiência de tentar manter a missão do Sesc sem os espaços físicos?

Danilo Miranda – Fez muita falta, já que o espaço é vital para podermos cumprir a nossa missão plenamente. O encontro, o convívio, as atividades presenciais, isso é essencial para o nosso dia a dia. Eu costumava dizer que a nossa grande especialidade é juntar gente. Agora, diante dos fatos, da nova situação, tivemos que nos reinventar, mudar as coisas. Então as unidades foram fechadas e passamos a fazer uma infinidade de atividades através do nosso sistema à distância, com grande alcance em nossas páginas. Tivemos uma ação muito forte do ponto de vista de conteúdo, com destaque para o Sesc Digital, que é uma plataforma que já estava pronta e foi lançada logo no início da pandemia, em abril de 2020. Lá temos muito material de acervo – mais de 20 mil itens -, uma complementação muito grande do ponto de vista de prestação de serviços e muita informação. E isso foi se aperfeiçoando. Aos poucos fomos prestando alguns serviços presenciais pré-agendados, na parte de alimentação, de odontologia e, mais à frente, até cursos, exposições, shows etc. Somente agora estamos reabrindo completamente.   

SESC Pompeia
Espaço aberto do Sesc Pompeia, em São Paulo, projetado por Lina Bo Bardi Foto: Araty Perone

ARTE! A partir de agora o Sesc-SP passa a trabalhar então em um modelo híbrido entre virtual e presencial? Como são os planos neste sentido?

Sim, nós vamos misturar os dois, o que vai tornar a nossa atuação ainda mais efetiva. Eu já dizia, há algumas décadas, que tudo o que fosse possível deveria ser feito à distância. E nós não tínhamos nem dimensão ainda de quanta coisa isso representava, do lugar em que as tecnologias chegariam. Eu pensava principalmente na parte burocrática, de informações, agendamentos e inscrições, para que as pessoas já chegassem nas unidades com as coisas facilitadas. Mas isso se exacerbou, especialmente agora na pandemia, e o virtual ganhou uma força muito maior, e vamos trabalhar também com essa realidade.

ARTE! No início da pandemia muito se falou sobre a necessidade de aprender algo com o que estava acontecendo, ou seja, uma ideia de que deveríamos sair deste período sabendo lidar melhor com o mundo à nossa volta. Agora, quando vemos um avanço grande na vacinação e a retomada de grande parte das atividades, você acha que de fato aprendemos algo? Mudamos nosso modo de ser ou voltamos para o mesmo lugar?

Falando institucionalmente, no Sesc-SP nós fizemos um grande esforço nesse sentido. Muitas coisas que acumulamos neste período – de informação, modos de fazer e de encarar as coisas – vão ser incorporadas nos nossos hábitos. Agora, falando de modo amplo, eu não gosto da expressão “retorno ao normal”. Porque o normal já era problemático demais, nós já enfrentávamos uma situação de aperto econômico, de dificuldades para financiar muitas ações… Não digo no Sesc, internamente, mas do ponto da sociedade, especialmente no mundo da cultura. Já havia constrangimentos graves antes da pandemia. E então voltar ao normal significa voltar para aquilo? Não nos interessa. Então vamos retomar nossos hábitos, mas também buscar esse caminho novo, que não tem nada a ver com o período pandêmico, mas tampouco com o período anterior. Queremos mudanças mais profundas.

Porque acho que, apesar de tudo, nesse tempo nós enriquecemos o nosso entendimento das coisas, sob determinados aspectos de convivência, de solidariedade, de consideração com o outro, da dependência mútua entre nós. São coisas que foram incorporadas, mesmo que de um jeito muito forte, quase forçado, e nós precisamos ter mais consciência de que vivemos em uma sociedade onde a solidariedade deve ser incorporada – independentemente de posições de caráter político ou religioso, mas do ponto de vista puramente humano. E nesse aspecto alguns pontos ficaram muito exacerbados. A questão ambiental, a questão da diversidade, a questão de gênero, do respeito mútuo, tudo isso vem junto. Não são coisas novas, mas começaram a ser mais exigidas de nós respostas a tudo isso. Então uma grande quantidade de instituições, organizações e empresas estão mais atentos a isso, no mundo inteiro. Governos também, mas aí não é o nosso caso. Somos uma exceção, um absurdo total.        

ARTE! Em conversa que tivemos no começo da pandemia, quando o epicentro dessa crise estava na Europa, você afirmou que se lá a epidemia estava sendo grave, aqui seria ainda pior. De fato, chegamos agora a cerca de 620 mil mortos. A pandemia escancarou ainda mais as desigualdades globais?

Sem dúvida nenhuma. Há um desequilíbrio enorme, isso é notável. Se olharmos o que ocorreu aqui, mas também em países da Ásia, da África e outras partes mais pobres do mundo, sobretudo no hemisfério sul, é bem diferente do que acontece no hemisfério norte. Isso vale para economia, para política, cultura, diplomacia… e vale também para a saúde. É muito grave.

E pensando internamente, em nosso país, há também uma desigualdade muito grande. Nós temos na cidade de São Paulo 100% da população adulta vacinada, enquanto em outros lugares do Brasil há ainda situações muito inadequadas, números muito abaixo disso.

Agora, de lá para cá as coisas caminharam de uma forma um pouco imprevista. Aqui no Brasil de fato chegamos a uma situação gravíssima, inclusive um descontrole total no começo deste ano, mas de lá para cá – mais por força da sociedade, da imprensa e de políticos de outros níveis que não o federal – nós conseguimos um processo de vacinação bastante amplo. E isso hoje nos coloca numa situação até de certa vantagem sobre uma boa parte da própria Europa, onde há um negacionismo muito maior em relação à vacina. Então as coisas mudaram um pouco e é por isso que podemos ter também essa perspectiva de reabertura no Sesc. Ao mesmo tempo, temos razão de sobra para ter muita prudência ao pensar, por exemplo, nas festas de fim de ano, no carnaval e até mesmo nas propostas de liberação do uso de máscara em espaços abertos. No Sesc, por enquanto, vamos exigir as duas doses de vacina e máscara, para os funcionários e para os visitantes.

Obra de Carlito Carvalhosa no Sesc Guarulhos (Sesc-SP)
Obra de Carlito Carvalhosa em área interna do Sesc Guarulhos, inaugurado em 2019. Foto: Divulgação

ARTE! Lembrei de uma entrevista sua em que você fala que nós vivemos uma realidade muito materialista, onde as coisas são colocadas apenas do ponto de vista do desenvolvimento econômico, mas que, cada vez mais, se percebe que a busca pela qualidade de vida depende de muito mais coisas. E aí você fala de educação e cultura em um sentido amplo, sendo elas as bases do trabalho do Sesc-SP. Poderia falar um pouco sobre isso?

Para nós, o conceito de cultura sempre foi muito amplo e muito vinculado à questão educacional. Nesse sentido, os conceitos de cultura e educação até se confundem, porque significam a preparação para uma vida melhor, a busca de um bem-estar maior para todos, em todos os aspectos. Aí entra a questão do conhecimento, da visão de mundo, da percepção das coisas, de senso estético, do senso de comunidade e de pertencimento. Mas entram também as questões de caráter pessoal, questões físicas, de saúde, de alimentação, do modo de vida, e também questões ambientais. Inclusive, os nossos povos indígenas colocam isso de maneira muito integrada, tudo é parte de tudo: nós somos parte desse todo, e o que este todo também é parte de nós. E então, voltando ao Sesc, nós temos essa visão bastante holística, bastante ampla, bastante abrangente, atuamos com essa perspectiva.

ARTE! Essa visão ampla de cultura é, entre outras coisas, o que falta ao atual governo federal do país? 

Não tenha dúvidas. O governo atual não tem nem a menor ideia do que é cultura, nem mesmo a tradicional, clássica. Não tem ideia nem do que é o conceito mais restrito de cultura, esse voltado para as artes e para o simbólico, nem do conceito mais amplo, de caráter antropológico, que diz respeito a tudo que é criação humana. Não são pessoas que se dedicam ou que mergulham nesse conceito. Quando colocam, por exemplo, a cultura como parte de uma ação voltada para o turismo, sem dúvida nenhuma não entenderam nada do que significa a própria cultura.

ARTE! Pensando nesse sentido, passaram pelo governo até agora cinco secretários de cultura, todos com atuações bastante polêmicas. Chegamos então ao atual secretário, Mário Frias, que parece estar cerceando cada vez mais a atuação na área, paralisando a Lei de Incentivo, entre outras coisas…

É uma sequência de pioras progressivas, infelizmente. A Lei Rouanet é uma lei invejada por outros países do mundo, uma vez que trata da questão do incentivo fiscal a partir das empresas, com os projetos empresariais vinculados à questão da cultura pública. É uma coisa que deve ser mais aprofundada, melhorada, avançada, sem dúvida nenhuma, e não digo que a lei é perfeita. Havia problemas sobretudo quanto à questão geográfica e quanto à uma mistura entre o publicitário e o cultural mas, ainda assim, era uma lei que tinha ampla participação de empresários, artistas, promotores culturais, criadores e gestores, com uma comissão representativa da sociedade. Quando você corta isso e torna tudo decidido unicamente por uma pessoa, seja quem for, você está andando para trás, prejudicando todo o entendimento da lei e impedindo efetivamente que ela seja aplicada devidamente. É um recuo gravíssimo, que diz respeito não apenas ao financiamento, mas ao caráter que eu chamaria de didático, educativo, no sentido de envolver as empresas em um compromisso de caráter cultural, social, comunitário e participativo.  

ARTE! Aliás, é este mesmo secretário que foi à Bienal de Veneza e disse não saber quem é Lina Bo Bardi, arquiteta que projetou uma das mais emblemáticas unidades do Sesc-SP, o Pompeia…

Arquiteta que estava sendo premiada no evento. E o Sesc Pompeia é uma unidade exemplar, de fato, ícone da cultura no Brasil e no mundo. É um orgulho do Sesc e acho que de todo o país. Das obras de Lina é, para mim, a mais significativa e importante. Claro que o Masp tem papel central, o Solar do Unhão, a Casa de Vidro, todos são muito importantes, mas o projeto que tem maior vinculação com um vasto programa cultural e educativo, com a convivência, é o Sesc Pompeia.

ARTE! Migrando da Secretaria de Cultura para o Ministério da Economia, desde o início do governo há uma ameaça de cortes nos recursos do Sistema S. Recentemente isso se deu mais uma vez, com Paulo Guedes dizendo que queria usar parte da arrecadação para um programa de estímulo ao emprego. Em que ponto está esse imbróglio?

Olha, eu estou no Sesc há mais de 50 anos e desde lá eu ouço, por parte de praticamente todos os governos, sobre essas tentativas de tirar recursos ou até mesmo de impedir a continuação do funcionamento dessas entidades do Sistema S – como se elas tivessem um caráter supérfluo, desnecessário, desimportante. Bom, isso sempre nos preocupou e exigiu de nós uma espécie de comprovação permanente da nossa importância. Como se todos os dias tivéssemos que mostrar o porquê de existirmos, o porquê de devermos existir, qual o papel que fazemos e o motivo pelo qual a sociedade necessita da nossa atuação. E isso tem sido o grande elemento que impede que essas ideias de cortes prosperem, porque quando eles vão verificar sabem que essas instituições têm um caráter fundamental para a sociedade brasileira, em todos os sentidos – especialmente as quatro originais: Sesc, Senac, Sesi e Senai. Nós temos uma enorme quantidade de pedidos de prefeituras que desejam ter um Sesc, porque consideram essencial ter essa presença em suas cidades. Isso significa um valor importante, somos desejados e é sinal de que há uma aprovação da seriedade e qualidade do nosso trabalho. E, além disso, a nossa importância não é dada necessariamente pelos dirigentes públicos, pelos governos; nossa importância, nosso valor, é dado pelas milhares de pessoas que usam, que frequentam nossas unidades. Pessoas pelo país afora que usufruem seja da formação profissional especializada que o Senac e Senai oferecem, seja de um programa de cidadania, de bem-estar social e valorização do ser humano que o Sesc, o Sesi e outras instituições do Sistema S oferecem. Ou seja, nós prestamos conta do que fazemos permanentemente. 

Mas, enfim, quanto à nossa relação institucional com o governo, nós temos também uma dependência efetiva de ações públicas e governamentais em nossa programação, em nossa maneira de agir. Temos relações com o governo e gostaríamos que elas fossem muito saudáveis, temos todo o interesse em manter boas relações com os três níveis de poder.

Sesc Franca, unidade do Sesc-SP
Imagem do futuro Sesc Franca, já em construção, uma parceria dos escritórios SIAA e Apiacás Arquitetos. Foto: Divulgação

ARTE! Aproveitando que você comentou de cidades que desejam ter a presença do Sesc, poderia falar das unidades que estão em construção neste momento?

Nós temos todo um planejamento para os próximos dez anos, aproximadamente, que prevê a criação de várias unidades em cidades do interior, na capital e no litoral de São Paulo. Atualmente estamos construindo uma unidade importante em Franca, que é a obra mais adiantada, além de outras em Limeira, Marília e no Parque Dom Pedro (capital). Recentemente inauguramos uma unidade em Mogi das Cruzes, teremos outra em Osasco e em breve a recuperação de uma área que nos foi entregue em São Bernardo do Campo. Há ainda ampliações em Registro e Ribeirão Preto – que é uma unidade muito antiga e precisa ser atualizada, e temos previsões também para construir em Pirituba, São Miguel Paulista e Campo Limpo. É muita coisa.

ARTE! De algum modo, portanto, apesar de toda a situação ruim no país, há sempre motivos para otimismo, para tocar em frente os projetos e imaginar transformações na sociedade?

Eu acho que sim, eu sou uma pessoa otimista. Olha, estamos em uma situação terrível no país, sob vários aspectos. Isso vem de antes da pandemia, com erros na condução da economia, com a falta de financiamento para a cultura, com esse negacionismo ao campo do conhecimento e da ciência. E a coisa ficou muito pior com os milhares de mortos, o sacrifício, a dor e o luto espalhados pelo país todo com o coronavírus. Agora, temos que ter uma perspectiva de mudança pela frente, temos que acreditar nisso, uma visão otimista, porque isso tudo tem que ser superado, não pode continuar. E depende muito de nós, de deixarmos evidente tudo o que está acontecendo.

Posso dizer que no Sesc-SP nossa programação segue muito positiva, otimista, com muitas coisas pela frente em todos os campos. No campo das artes visuais, por exemplo, já temos uma série de exposições importantes em cartaz – Alfredo Jaar no Sesc Pompeia, a Trienal Frestas em Sorocaba, entre outras  – e em 2022 devemos trabalhar muito também com o centenário da Semana de Arte Moderna de 22, com os 200 anos da independência e com uma série de assuntos atuais que são fundamentais. Nós vamos continuar tocando o barco sem restrições. ✱

1 comentário

  1. Estamos passando por tempos de mudança e não é de hoje que precisamos superar o as anormalidades da normalidade doentia . Onde a violência social e a desigualdade social são incorporadas na brutalidade extrema nas metrópoles de exclusão. Voltar a ganância do mercado de corpos e almas ? Temos que negar esta brutalidade escancarada pela pandemia do MERCADO .

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