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Exposição itinerante leva arte contemporânea brasileira para cidades nos EUA

Vanderlei Lopes, "O passado é um belo presente!", 2018

O The55Project abriu, no último dia 30 de janeiro, a exposição coletiva What I really want to tell you… no Mana Contemporary Chicago. A mostra havia ficado durante três meses na na Fundação Pablo Atchugarry em Miami no ano passado e tem curadoria de Jennifer Inacio, curadora assistente no Pérez Art Museum Miami (PAMM).

What I really want to tell you… reúne obras de treze artista contemporâneos brasileiros que evocam histórias culturais, sociais e políticas do Brasil. São eles Almandrade, Liene Bosquê, Paulo Bruscky, Anna Bella Geiger, Rubens Gerchman, Ivan Grilo, Randolpho Lamonier, Vanderlei Lopes, Gabriela Mutti, Paulo Nazareth, Regina Parra, Rosana Paulino e Mano Penalva.

A itinerância é fruto do objetivo do The55Project, criado para promover a arte brasileira contemporânea ao redor dos Estados Unidos, tendo realizado outras exposições em Nova Iorque, Miami e agora desembarcando em Chicago. Além de exposições, o projeto faz projetos públicos de arte, programas públicos e conversas para criar diálogo com as comunidades locais.

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Fábrica de Arte Marcos Amaro abre edital no setor educativo

O Edital Meios e Processos realizado pelo Educativo da Fábrica de Arte Marcos Amaro representa o desejo da FAMA de estruturar um ambiente propício para a orientação, a partilha e a pesquisa em criação artística bem como promover o reconhecimento, projeção e inserção de artistas do interior paulista no circuito da arte. Pretende-se possibilitar o aprofundamento na experimentação em arte dentro de um contexto de produção e reflexão alinhados com a arte contemporânea. O foco no artista e em seus processos de criação coincide com o desejo do Educativo FAMA de gerar espaços de compartilhamento de saberes tendo em vista a aproximação com metodologias e práticas poéticas de criação.

Em 2020 o edital envolverá a orientação em processos artísticos com a artista Kátia Salvany e com o acompanhamento curatorial de Andrés I. M. Hernández. O grupo de 30 (trinta) artistas será formado através de um processo de seleção e envolverá 12 (doze) encontros realizados na FAMA na cidade de Itu/SP. O grupo se reunirá quinzenalmente, aos sábados das 10h às 12h e das 14h às 16h nos períodos de abril a junho e de agosto a outubro de 2020. O grupo acompanhará a programação da FAMA e participará dos encontros e palestras com os artistas do acervo da fundação.

Os resultados que se pretendem com essa atividade envolvem a possibilidade de ampliação do repertório visual e conceitual dos artistas participantes, a expansão de suas manifestações artísticas com a utilização de  suportes e meios variados e a contribuição para o fortalecimento da formação de artistas.

As inscrições podem ser feitas até 10 de março.

Clique aqui e saiba mais informações.

 


*Texto: Site do FAMA Museu

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Lixo, luxo e a roga pelos proibidos

A foto mostra a escultura "Cristo Mendigo" que foi o carro abre-alas do desfile Ratos e Urubus. Na imagem, a escultura é coberta por sacos de lixo como uma censura, e carrega a faixa que diz "Mesmo proibido olhai por nós!"
Abre-alas "Cristo Mendigo" no desfile Ratos e Urubus, Larguem Minha Fantasia. Foto: Sebastião Marinho (Agência O Globo)

“Xepa de lá pra cá xepei. Sou na vida um mendigo, da folia eu sou rei”, canta a legião que desfilava pela escola de samba Beija-Flor de Nilópolis, há alguns carnavais, mais especificamente no amanhecer do dia 7 de fevereiro de 1989. O coro entoava a composição de Joãozinho Trinta chamada de Ratos e Urubus, Larguem Minha Fantasia, que empresta seu nome ao conjunto de obras expostas na Galeria Tarsila do Amaral, no Centro Cultural São Paulo (CCSP). Mais do que inspiração ou referência, no entanto, o samba enredo é trazido como uma das obras componentes da exposição. Nada mais justo, retomando que o próprio Joãozinho Trinta se referia ao desfile das escolas de samba como uma “Ópera de Rua” – sendo uma forma de arte que reúne música, enredo, um pensamento plástico dos cenários: uma obra de arte que abrange diversas linguagens.

Duas transmissões do desfile compõem a abertura da exposição, embora o público seja recebido por uma reinterpretação do Cristo Mendigo, o elemento de um dos carros alegóricos que tornou o desfile tão emblemático. Na ocasião, durante a retomada democrática, o abre-alas da Beija-Flor seria o Cristo Redentor vestido como mendigo, porém a Arquidiocese do Rio conseguiu proibir a ação levando Joãozinho Trinta a cobrí-lo com um saco preto incluindo a mensagem: “Mesmo proibido olhai por nós”. Segundo Thais Rivitti, uma das curadoras da exposição junto com Carlos Eduardo Riccioppo, o episódio “ganhou página de jornal, as revistas semanais, criou um grande debate estético, político e trouxe questões que ainda hoje encontramos no cenário da arte contemporânea”. Ela comenta ainda que a imagem do Cristo Mendigo “repercute muito, principalmente com os episódios recentes de censura; ela volta à tona e ganha uma ‘nova atualidade’”.

A releitura do abre-alas, para a exposição, foi realizada por Raphael Escobar e o coletivo Os Cupins das Artes, cujos membros são conhecidos pelo público através dos retratos de João Leoci, ao lado da escultura. Vale destacar também as três duplas fotográficas trazidas do projeto Swinguerra, de Barbara Wagner e Benjamin de Burca, cujo trabalho em vídeo representou o Brasil na 58ª Bienal de Arte de Veneza. As imagens de Wagner e Burca são potencialmente as que dialogam mais diretamente com o aspecto de identidade e pertencimento tão presentes nos desfiles das escolas de samba. Em especial no Rio de Janeiro, onde elas – as escolas – “são nações mesmo, muita gente trabalha voluntariamente porque eles estão levando o desfile para a avenida para serem reconhecidos”, como comenta a idealizadora da exposição, Alayde Alves. 

Além das obras comissionadas houve um trabalho curatorial em cima do projeto de criação do desfile, resgatando a memória dos passos para a construção de Ratos e Urubus com os registros fotográficos de Valtemir Miranda e os esboços dos carros alegóricos desenhados por Cláudio Urbano. Essas peças alargam nossa percepção do desfile passando a sensação de quem o estava fazendo e fornecendo um contraponto às transmissões da Globo e TV Manchete.

Por fim, uma pintura não entitulada de Nuno Ramos e um poema visual de Augusto de Campos questionam a tênue dualidade entre “luxo” e “lixo”. Enquanto isso, a exposição é finalizada com duas instalações – Desenhando com terços e Pancake – da artista performatica brasileira Márcia X com provocações acerca do desejo e as restrições religiosas – bem pontual em uma época que vemos mais constantemente adultos em um estado quase infantil de gozo não medicado. 

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Museu Afro apresenta grande mostra sobre arte e cultura indígenas

"O Guerreiro" (Série Mehrere Mex – Gente que estende sua beleza). Foto: Guta Galli

Uma grande mostra sobre cultura e arte indígenas completa a trilogia do Museu Afro Brasil sobre os povos responsáveis pela formação do país – Africa Africans (2015) e Portugal, Portugueses (2016). Intitulada Heranças de um Brasil profundo, a mostra ocupa uma grande área do museu paulistano, localizado no Parque Ibirapuera, com objetos diversos, obras de arte e fotografias de diferentes períodos e regiões do país.

Com curadoria de Emanoel Araujo, a exposição reúne cerca de 500 peças entre arte plumária, adornos, cestaria, máscaras, esculturas, utensílios e arte contemporânea de várias etnias indígenas. Entre eles os Karajá, Marubo, Kayapó, Mehinako, Yanomami, Rikbaktsa, Tapirapé, Waurá, Tapayuna, Baniwa, Ashaninka, Parakanã, Panará e Juruna. Um dos desta destaques da mostra é a Casa dos Homens, construída por um grupo de quatro indígenas do povo Mehinako.

Segundo texto do curador, “essa exposição celebra a vida desses povos das florestas que através de séculos vivem e sobrevivem sendo achacados pelos homens brancos, sedentos em mostrar para o mundo, dito civilizado, as muitas culturas das etnias dos povos da floresta”. Deste modo, além da produção dos povos originários, a mostra expõe também a visão que o homem branco apresentou ao longo dos séculos sobre os nativos, seja em pinturas, documentos ou fotografias.

apresenta um premiado grupo de fotógrafos e fotógrafas que se dedicaram (ou ainda se dedicam) a documentação de populações indígenas brasileiras, como Claudia Andujar, Rosa Gauditano, Maureen Bisiliat, Nair Benedicto, Manuel Rodrigues Ferreira, Rodrigo Pretella, Jamie Stewart-Granger, entre outros. Entre os artistas indígenas contemporâneos presentes na exposição está o jovem Denilson Baniwa, vencedor do prêmio PIPA Online 2019. Completam a mostra artistas como Gilberto Salvador, Claudio Tozzi, Rubens Ianelli, João Camara Filho e João Pedro Vale, entre outros.

“Essa exposição tem muitas vertentes, como não poderia deixar de ser diante de tanta complexidade da vida e da arte desse nosso povo que ainda resiste aos ataques e à inoperância nacional (…) Aqui também reside um brado, um alerta – um grito mesmo – em defesa desse nosso povo, que aqui estava e que continua estando em terras onde sempre foi o dono, para sempre!”

Heranças de um Brasil profundo
Até 26 de julho
Museu Afro Brasil – Parque Ibirapuera
Entrada gratuita

 

*Leia em nossa próxima edição reportagem completa sobre a mostra

 

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A palavra como troca e a partilha do sensível

Ana Teixeira, “Bandeira”, 2019.

Entre a falação de estudantes do Mackenzie que passam seu tempo livre sentados no vão em frente ao Centro Cultural Maria Antônia, na Vila Buarque, ouve-se um alto-falante proferir palavras no imperativo: “Impressione, seja, garanta…”, ecoa uma voz masculina facilmente associada a vozes de vendedores que passam com carros pelas ruas de bairros. A intervenção sonora é uma obra da exposição É tarde, mas ainda temos tempo, uma individual da artista Ana Teixeira com curadoria de Galciani Neves que se encerra no dia 2 de fevereiro.

Crescida em uma família onde a literatura e o cinema eram essenciais, a construção de uma relação forte com o objeto ‘palavra’ foi, para Ana, inevitável e progressiva. “O que é pra ser são as palavras”. A frase anterior, que a artista atribui a Guimarães Rosa, é para ela muito significativa. “Jogar com as palavras é uma coisa que me atrai. Eu acho que as palavras geram desdobramentos que me interessam muito, porque elas geram provocações”, conta.

Em todas as obras que a artista apresenta nesta exposição, e em outras tantas ao longo de sua carreira, a palavra tem funcionado como uma espécie de troca, sejam trocas de experiências, de sentimentos/emoções ou de momentos, dentre outras. A obra Em Contato, por exemplo, que é constituída por boias com um advérbio escrito em cada uma delas, foi criada para ocupar piscinas e fazer com que as pessoas que as utilizem se aproximem para formar frases. A aproximação pelo “jogo” com as palavras faz com que essas pessoas troquem um momento entre si.

No Maria Antônia, as boias se encontram no chão, mas prontas para serem vestidas pelo público que desejar explorar suas possibilidades de criação. “São inúmeras possibilidades de frases que podem ser formadas com apenas 14 advérbios”, Ana explica, mostrando o advérbio “ainda” tatuado em seu pulso. Ela conta que foi a partir dali, em meados de 2010, que começou a sua relação com essa classe de palavras: “Me interessou essa ideia de que podemos formar frases sem o verbo”.

Contornando as escadas que levam à sala de exposição e parte das paredes que a circundam está Linha de sonhos, que resulta de alguns depoimentos da performance Troco Sonhos, obra que também ilustra muito bem a questão do câmbio como ponto no trabalho da artista. Se engana quem pensa que a palavra é apenas uma forma de entrar em contato com algo ou alguém. O contato é, afinal, um meio para que uma troca ocorra.

Troco Sonhos, por sua vez, é intervenção que a artista monta na rua, onde distribui sonhos (o doce) solicitando em contrapartida que as pessoas que se aproximem confidenciem para ela algum sonho (os que estão à mente). Ao mesmo tempo que isso ocorre, outra troca acontece: em troca do interesse de quem se aproxima, Ana apresenta a percepção de que o dinheiro não é a única moeda.

 

Entramos nesse universo também na inédita Cala a boca já morreu. Uma outra versão desta obra foi apresentada na coletiva referente ao 7º Prêmio Indústria Nacional Marcantonio Vilaça — do qual a artista foi uma das 30 finalistas –, sediada no MAB-FAAP entre setembro e outubro do ano passado. Para a sua individual, ela passou dez dias desenhando mais de 40 mulheres em uma das paredes do espaço expositivo, mulheres essas que seguravam cartazes com falas como “Chega de padrões”, “Eu não sou louca, eu tenho opinião”e “Sua opinião sobre meu corpo é sua”.

As voluntárias que escolheram suas frases e posaram para a artistas ganharam, em troca, sua representação em desenho. Nesta obra, porém, o “escambo” também passa pela sororidade, o princípio feminista da união entre as mulheres que exige uma relação de identificação e retorno entre duas ou mais. Uma evidente partilha do sensível.

Os trabalhos Outra Identidade, que troca impressões digitais por um carteira de identidade fictícia com uma frase com qual a pessoa se identifica, e Empresto meus olhos aos seus, que troca uma lembrança por um registro visual do local onde ela ocorreu, — e mesmo Escuto histórias de amor, que troca um depoimento por um ombro amigo — também se desdobram por essa trilha.

Esse conjunto remete a uma percepção levantada por Lévi-Strauss (em cima da “dádiva” de Mauss) de que a palavra seria um caminho para compreender a sociedade, quando usada numa troca. É visível que nessa busca de Ana por uma forma de se comunicar e se relacionar através delas está presente o desejo de entender o outro.

“Não sou eu o foco, o foco é o outro. Me interessa o outro, a minha matéria prima é o outro”, ela diz. É desta forma, portanto, que é possível observar que o entendimento que ela busca não passa exatamente por um cultivo de erudição mesquinha, mas por um movimento fluido de empatia em relação ao outro, até quando o outro está dentro de si mesma.


Slam Cala a Boca Já Morreu e encerramento da exposição
2 de fevereiro, das 15h às 17h
Centro Universitário Maria Antonia – USP: R. Maria Antônia, 258/294 – Vila Buarque, São Paulo – SP
Mais infos: 11 3123-5202

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Anita Schwartz Galeria realiza intensa programação de verão

A Anita Schwartz Galeria de Arte, no Rio de Janeiro, tem apresentado uma grande programação gratuita com arte, música, poesia, instalações sonoras, performances acrobáticas, teatrais, cinema, aula de modelo vivo e um bar temático.

Trata-se do Projeto Verão #1, com a presença de mais de 20 artistas, como Alexandre Vogler e Cadu, representados pela galeria, Botika, Paulo Tiefenthaler, Amora Pera, Guga Ferraz e outros artistas visuais, bailarinos, músicos, poetas e cineastas. O escritor Nilton Bonder fará uma conversa aberta após a exibição do documentário A Alma Imoral, de Silvio Tendler, e durante todas as noites do período funcionará no terraço o Bar Pinkontolgy, de Gabriela Davies, curadora da Vila Aymoré, com drinques criados especialmente para o Projeto Verão #1.

Semanalmente, às quartas-feiras, o “cubão branco” no térreo, com seus sete metros de altura, será ocupado por performances. No segundo andar do prédio no Baixo Gávea, zona sul carioca, estarão duas exposições: Bebendo Água no Saara, com trabalhos de Laís Amaral, e Milanesa, de Felipe Barsuglia.

Confira datas e horários dos eventos, que ocorrem entre janeiro e março, no site da galeria. Clique aqui.

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A obra de Anna Bella Geiger e o colapso do autorretrato tradicional

Autorretrato, década de 1960. Impressão em papel de imagem computadorizada. 36x36 cm. Coleção da artista, Rio de Janeiro.

O mérito da mostra Brasil nativo, Brasil Alienígena, de Anna Bella Geiger, simultaneamente no MASP e no Sesc Avenida Paulista, é recolocar no debate público a obra de uma das mais importantes artistas brasileiras, explicitando a coerência e a pertinência de seu percurso voltado sempre para a questão identitária.

De fato, é a problemática identitária (em sua acepção mais alargada) o que, a meu ver, caracteriza melhor a obra da artista que, embora tenha sido vista por muitos como fragmentária, a mostra do MASP/Sesc acertadamente a configura (de forma consciente ou não) como um território único, mesmo que conflagrado. Nele, as questões ligadas à identidade se digladiam e se superam para ressurgirem mais tarde em novas batalhas, convulsionando o próprio território criado pela artista (as metáforas bélicas aqui usadas estão de acordo com parte da iconografia de Anna Bella).

Gostei da maneira sóbria com que as obras foram dispostas por salas, deixando claro para o público a permanência dessa questão em todos os encaminhamentos que a artista concedeu ao seu trabalho, mostrando, inclusive, momentos em que ela, de fato, marcou a arte brasileira, afirmando um caminho distante da herança concreta/neoconcreta — sem dúvida um norte, mas não o único — a ser considerado como legítimo. Anna Bella é uma das poucas artistas brasileiras com reconhecimento local e internacional, cuja poética não se constituiu como continuidade daquelas correntes e cujas características tão destacadas, dificultam mesmo aqueles que querem alinhar sua obra à “continuidade” do neoconcretismo durante a década de 1960.

O interesse da obra de Anna Bella é que ela se desenvolve autônoma, dialogando aqui e ali com produções de alguns de seus colegas (sobretudo nos anos 1960), porém, mais a partir de influxos exteriores[1] do que locais. Com origem na abstração lírica (ou “expressiva”), a singularidade de sua obra se dá sobretudo por sua inadequação a grupos e mesmo a demandas de mercado.

 

Acima me utilizei de metáforas ligadas à localização (“um território”, “um norte”) e essa atitude não foi gratuita, pois se adequa ao aspecto peculiar da produção de Anna que marca, desde os anos 1970, um lugar específico de onde ela fala: ela é uma artista branca, descendente europeus, vivendo e trabalhando no Rio de Janeiro, Brasil.

Visitando a mostra, percebe-se a artista trabalhando com a sua localização e seu lugar de ação e, para isso, fazendo uso de uma série de meios, como a fotografia, a gravura, o vídeo, a instalação, entre outros e, como método, em grande parte dos trabalhos, a cartografia.

É desestruturando essa linguagem técnica e científica que Anna representará a si e a sua circunstância como instrumento para a sua própria localização no espaço (e no tempo) na busca contínua do entendimento sobre aquele lugar que pode ser (ou vir a ser) seu local de ação perante a realidade e a realidade da arte.

Mas não é apenas por meio da desestruturação da cartografia que Anna Bella desenvolve a afirmação de seu lugar no mundo, como artista e mulher latino-americana. Ela se vale também de determinados procedimentos para minar outros discursos também já firmados pela tradição, utilizando-os para dar continuidade ao trabalho de demarcar o seu lugar de luta.

Ante a abrangência de todos esses aspectos que a retrospectiva de Geiger nos traz, optei por me deter em alguns poucos trabalhos em que ela desestrutura o conceito tradicional do autorretrato a partir de procedimentos paródicos e/ou alegóricos. O interesse por esse setor de sua obra surgiu, por um lado, pela pertinência dessa sua produção que, a partir sobretudo dos anos 1970, dialoga com trabalhos de outras artistas que discutem a identidade da mulher a partir não mais, ou não mais apenas, de trabalhos voltados para a “expressão” de um sujeito autocentrado, mas de um ser que se forma a partir do embate com o mundo (como exemplo, a norte-americana Cindy Sherman que, naqueles anos apresentava a si mesma desdobrada em estereótipos de mulher vindos do cinema norte-americano). Por outro lado, os autorretratos de Anna Bella, junto daqueles de outros poucos artistas que também naquele período desenvolveram trabalhos do mesmo tipo no Brasil (refiro-me aqui a Carlos Zilio e Gabriel Borba, entre outros), darão início a um tipo de produção local, em que os artistas passarão a usar o próprio corpo não mais como marca de uma individualidade intransponível, mas como elemento para a discussão sobre a subjetividade contemporânea, marcada pelo embate com a sociedade, a tradição, a indústria cultural etc.

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Foi uma ideia feliz a dos curadores da mostra apresentarem, junto a trabalhos mais conhecidos de Anna Bella, obras menos conhecidas, porém não menos importantes, dada sua significação no quadro da arte brasileira. Me detenho aqui em uma parede da exposição onde se encontram três autorretratos de Anna Bella, um de 1951 (Col. G.Chatteaubriand/MAM-Rio), os outros, respectivamente dos anos 1960 e  2003 (ambos da coleção da artista).

Na primeira, um grafite e carvão sobre papel, é notório o desejo da artista em adequar sua imagem à tradição do autorretrato: o tronco e o rosto são descritos de maneira sintética, com ênfase nos olhos, com as pupilas voltadas para a direita, meio inquietas e desconfortáveis. Essa adaptação do próprio corpo às estruturas da retratística tradicional, a ênfase à “expressividade” do olhar (olhos, as “janelas da alma”), atestam que, ainda em seu processo de formação, Anna Bella encarnava a visão que a sociedade ocidental construiu para a autoimagem do artista. Na obra, não se percebe apenas uma adequação, mas uma crença nesse constructo (apesar do desconforto aparente da modelo).

Anna Bella dá sinais de deslocar-se dessa tradição, quando, cerca de uma década depois, propõe um autorretrato que, na verdade, já se assume como um readymade modificado: originariamente uma fotografia analógica de seu rosto, agora processada via computador. Nada nessa peça exala a aura do artista: nada da expressividade do gesto autoral, do olhar denso. Esse autorretrato é manipulação e deslocamento puros.

Já em Monalisa, um backlight, a imagem da artista é apresentada como paródia e como alegoria. Simula, em termos jocosos, a Mona Lisa de Leonardo (e a paródia dessa obra, realizada por Marcel Duchamp no início do século passado) e, ao mesmo tempo, funciona como um complexo comentário sobre o sistema de arte no Brasil. Ao emparedar a própria imagem entre um cartaz (onde se lê, “Anna Bella Geiger” e mais abaixo, “Photo Rubber”) e, no último plano, uma foto da favela de Santo Amaro, no Rio de Janeiro[2], Anna Bella ironiza a si mesma, tomando-se como uma “photo rubber stamp” do circuito de arte, sobrepondo-se à realidade social de sua cidade natal.

Com o conjunto formado por essas três obras, o visitante é levado a entender o percurso de Anna Bella, tanto dentro da tradição dos autorretratos quanto da própria história da arte recente: o respeito inicial à tradição se abre para as novas tecnologias e a instrumentalização irônica da própria imagem para a produção de obras que desmentem aquele respeito inicial.

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Brasil nativo/Brasil alienígena – obra de 1976/77 que empresta o título à exposição – é formado por nove pares de cartões-postais. Cada par, por sua vez, conta com um cartão-postal representando indígenas brasileiros em diversas ações, e por um segundo cartão em que a artista reproduz a cena presente no primeiro, usando a sua própria imagem e, em alguns casos, também figuras do seu convívio.

Não é à toa que essa obra marcou um ponto de desvio na arte brasileira. Em primeiro lugar, porque ela se configura como uma ação de apropriação, no caso, de cartões-postais industrializados representando indígenas em situações estereotipadas. Raras vezes, no país, um/a artista teria se apropriado de objetos reais como elemento constitutivo do trabalho[3].

Por sua vez, os cartões produzidos pela artista para acompanharem aqueles apropriados representavam Anna Bella tentando canhestramente se adequar aos estereótipos dos indígenas, construídos há décadas, e reforçados pela indústria cultural local, alinhada à ditadura civil-militar que então governava o país. Ou seja, Anna Bella não se apresentava mais como um sujeito que cria a realidade, no sentido romântico do artista como demiurgo, mas como um indivíduo que edita o próprio real existente, conferindo-lhe outros significados. E, para tanto, não se vexa em usar a própria imagem para alcançar seus propósitos que estão longe de buscar a expressão de seu “eu profundo”.

Daí, então, a ressonância de sentidos possíveis de Brasil nativo/Brasil alienígena: o que significa ser brasileira ou brasileiro? Como se adequar às simulações de brasilidade, tendo como parâmetros as figuras idealizadas dos indígenas que, naquele tempo (como hoje) sofrem as agruras do extermínio? Por outro lado, o conceito de autorretrato que, se por ventura, ainda pudesse existir naqueles cartões-postais produzidos por Anna Bella apresenta-se totalmente corrompido ou colapsado, dado que ela, criticamente, simulava se adequar a um conjunto iconográfico (e comportamental) que não fazia parte de sua experiência imediata.

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A dimensão crítica de Brasil nativo/Brasil alienígena, ao ironizar os estereótipos de brasilidade muito divulgados naquele período pesado da história do país, funcionava como uma pá de cal jogada sobre eles. A partir de Brasil nativo/Brasil alienígena, pensar a questão identitária no Brasil ganhava outra complexidade, ao mesmo tempo em que o próprio conceito de autorretrato dava sinais de que deveria ser repensado e refeito.

Ao mesmo tempo, é interessante sublinhar como Brasil nativo/Brasil alienígena pode ser entendida como a busca de Anna Bella por uma localização física e simbólica, a partir da constatação do que a artista não era, em relação à sociedade em que estava inserida.

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Ainda naquela década, mas pouco antes da obra tratada acima, entre vídeos, gravuras e fotografias expostas no MASP, encontram-se duas séries de fotomontagens em xerox, ambas de 1975. Em Diário de um artista brasileiro[4], Anna Bella atesta sua inadaptabilidade como mulher e artista dentro de um determinado segmento, o circuito de arte dominado por homens brancos. Ela insere retratos seus em fotos de artistas plásticos célebres, apropriadas de revistas.

Diário de um artista brasileiro, 1975.

Registre-se como a inadequação simbólica de uma artista latino-americana àquele universo, explicita-se na própria inadequação proposital de seus retratos inseridos nas fotos protagonizadas por Matisse e outros, numa conjugação perfeita (diga-se) entre a formalização dos trabalhos da série e a intenção que a motivou[5].

Na série Arte e decoração, retratos recortados de Anna Bella, sempre vestida de preto (apenas suas sandálias eram brancas, em contrastes com as meias, também pretas), foram colados em fotos retratando ambientes glamurosos, em que as obras de arte eram apresentadas como símbolos de prestígio, como mercadorias de luxo. Esta série enfatiza também a inadequação da artista àquele tipo de lugar proposto para a arte pelos meios de comunicação de massa, lugar que ela demonstrava também não querer pertencer.

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O visitante que se dispuser a percorrer a exposição com certeza encontrará vários outros trabalhos de Anna Bella, em que ela demonstra ser a desestruturação do conceito tradicional de autorretrato, uma de suas estratégias principais para a constituição de sua obra que, como mencionado no início desses comentários, configura-se como um território de conflagração de temas identitários.

A exposição traz outros segmentos desse mesmo território, também fundamentais para a compreensão geral da obra dessa artista? É claro que traz. Para satisfazer a curiosidade, é preciso visitá-la, entrando em contato direto com a obra dessa que é uma das mais importantes artistas brasileiras.


[1] – A pop art, o happening, a performance, a arte conceitual etc.

[2] – Sobre o assunto, ler “Anna Bella Geiger: vísceras, mapas e retratos”, de Tomás Toledo. In Museu de Arte de São Paulo e Serviço Social do Comércio. Anna Bella Geiger: Brasil nativo/Brasil alienígena. São Paulo: MASP, Edições Sesc, 2019, pág. 26.

[3] – Na mesma época, outros artistas no Brasil também realizavam operações ligadas à apropriação, ao deslocamento de imagens e à construção de cenas. Além de Anna Bella e dos já citados Carlos Zilio e Gabriel Borba, seria interessante ter em mente também algumas das produções de Aloísio Magalhães, Regina Silveira e Nelson Leirner.

[4] – Interessante Anna Bella nomear a série reforçando o gênero masculino da palavra “artista”. Uma alusão irônica ao fato de que ser artista naquela época significava ser homem, ou um ato falho? Uma questão a ser analisada em outra oportunidade.

[5] – As fotocolagens que deram origens às fotomontagens foram produzidas em uma máquina reprogrática cujos resultados eram muito discutíveis do ponto de vista técnico, fazendo com que as imagens resultantes não primassem pela boa visualização. Junte-se a este fato, aquele da proposital inadequação dos retratos da artista inseridos nas fotografias dos artistas célebres.

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My Name Is IVALD GRANATO Eu Sou — Sesc Belenzinho

Finalizada no Sesc Belenzinho e rumo ao Sesc Guarulhos, a exposição My Name Is IVALD GRANATO Eu Sou, uma individual com centenas de obras do artista Ivald Granato reúne pinturas, objetos, desenhos, cadernos e recursos multimídia que mostram os 50 anos da trajetória do artista.

Assista aqui vídeo com entrevista com o curador da mostra, Daniel Rangel.

Aproveite para ler em nosso site texto de Leonor Amarante sobre a exposição. Clique aqui.

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Noite das Ideias promove debates e encontros artísticos em três capitais

Foto de Ricardo Stuckert, que participa do evento. Foto: Ricardo Stuckert/Divulgação

Parceria da Embaixada da França no Brasil com o Institut Français na França, a primeira Noite das Ideias no Brasil acontecerá simultaneamente em Brasília (na Aliança Francesa), São Paulo (Casa das Rosas) e Rio de Janeiro (Parque Lage) nesta quinta-feira, dia 30 de janeiro, sob o tema “ser vivo e floresta”.

O evento – que deve ser realizado em 70 países em diferentes momentos – propõe em sua primeira edição brasileira um momento de reflexão criativa sobre a floresta, seus desafios, suas concepções e sua variedade: da floresta tropical à mata atlântica, do cerrado aos maquis mediterrâneos. Este tema será pensado e vivenciado seguindo diferentes abordagens: filosóficas, científicas, antropológicas, ecológicas, técnicas e sociais. A programação também contará com momentos artísticos como projeções e performances.

A programação será baseada em dois eixos principais: “A floresta como ser vivo”, relativo às descobertas e técnicas científicas mais recentes, filosofias de vida e abordagens alternativas sobre a floresta presentes em práticas espirituais e locais; “a floresta como local de seres vivos”, relativo à discussão sobre os seres vivos que não apenas vivem, mas que também administram e moldam as florestas.

Entre os nomes que participarão do evento nas três cidades (veja a programação completa aqui) estão artistas, líderes indígenas, poetas, curadores, botânicos, antropólogos, jornalistas e pesquisadores, entre eles Ernesto Neto, Jean-Paul Ganem, Santídio Pereira, Ricardo Stuckert, Alvaro Tukano, Ailton Krenak, Luiz Zerbini, Bernardo Esteves e Ricardo Abramovay.

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Grande Cortejo Modernista agita o aniversário de São Paulo

O aniversário de 466 anos de São Paulo, que acontece neste sábado (25), terá mais de 300 atividades em 150 pontos espalhados por todas as regiões da cidade. Entre as atividades estarão shows, palestras, cinema, dança, circo, teatro, programação infantil, debates e roteiros de memória.

O destaque da região central fica por conta de uma grande ação que evoca o modernismo. Trata-se do espetáculo itinerante Grande Cortejo Modernista, que terá início com dez horas de duração, começando no Pateo do Collegio e terminando na Praça da República. Apresentam-se artistas como Elba Ramalho, Karol Conka, Rashid e Ney Matogrosso; os grupos Bixiga 70, Skank, Demônios da Garoa, Aerogroove, Coral Indígena Guarani Amba Vera, Orquestra Sinfônica Municipal, Coro Lírico, Coral Paulistano, Balé da Cidade, bonecos da Cia. PiA FraUs, além dos Blocos Pagu e Baixo Augusta.

O cortejo promove uma verdadeira viagem pela história do Modernismo e suas manifestações na capital paulista. Atores e atrizes foram convidados para dar vida a personagens históricos. Marcos Palmeira será Heitor Villa-Lobos, Rosi Campos será Tarsila do Amaral, José Rubens Chachá será Oswald de Andrade, Pascoal da Conceição será Mário de Andrade, Marcelo Airoldi será Di Cavalcanti e Virginia Cavendish será Anita Malfatti.

Confira todo o percurso do Grande Cortejo Modernista e a programação completa do aniversário de São Paulo no site da Secretaria Municipal de Cultura.

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