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Um espaço independente que resiste na cena paulistana

Pessoas na entrada do Atelie397, na Pompeia, na abertura da exposição Que Barra!, em 2018.
Pessoas na entrada do Atelie397, na Pompeia, na abertura da exposição Que Barra!, em 2018. Foto: Divulgação/Ateliê397

Em um livro lançado em 2015 sobre o Ateliê397, um dos mais longevos espaços independentes de arte de São Paulo, chama atenção que a foto da capa seja de uma festa – com corpos dançando e mãos segurando cervejas – e não de uma exposição, de uma obra de arte ou de uma performance. E isso não significa que o Ateliê397 seja um espaço de festas, por mais que tenha abrigado muitas delas, especialmente antes de se mudar da boêmia Vila Madalena para uma rua residencial na Pompeia. O que a escolha da foto parece demonstrar, na verdade, é que nas mais variadas atividades que abriga e realiza – ateliês, cursos, debates, residências artísticas e exposições – o espaço preza especialmente pelo convívio, pelas trocas, diálogos e encontros, assim como acontece em uma boa festa.

“Espaço dedicado à circulação, produção e exibição de arte contemporânea”, como explica a placa na entrada do grandioso galpão na pacata rua Gonzaga Duque, o 397 completa 16 anos de atuação tendo passado não só pela mudança de endereço, em 2017, mas também por reformulações na equipe e nos modos de gestão. Nunca perdeu de vista, neste percurso, que certo grau de informalidade e irreverência são desejáveis para o tipo de experimentação e pensamento crítico que busca produzir e para o lugar – nem mercadológico nem excessivamente institucional – que pretende ocupar.

“Talvez não seja bem a festa, mas sim a cerveja”, comenta o artista Raphael Escobar, colaborador do 397. “A cerveja como esse espaço de comunhão da conversa, da troca, do discutir, do pensar ideias boas e ruins. No Ateliê as coisas fluem muito desse jeito, em um encontro de pessoas de diferentes gerações, em diferentes estágios da carreira. Acho que esse convívio dá força para todo mundo, tem uma potência incrível, possibilita a construção do pensamento.” Escobar, que frequenta o 397 há cerca de dez anos e hoje ministra cursos no local, é um dos muitos artistas que ali chegou no período final de sua graduação.

O Ateliê397 durante a exposição Abraço Coletivo. Foto: Divulgação

Como explica a museóloga e educadora Tania Rivitti, gestora do espaço ao lado de Ana Elisa Carramaschi, Bia Mantovani e Carollina Lauriano, “desde o início existe essa proposta de formar jovens artistas. Esse artista que sai da faculdade e percebe que ainda precisa discutir mais, apresentar mais seu trabalho, entender como apresentá-lo”. Esse caráter de formação, que permeia boa parte das atividades propostas pelo Ateliê, está presente tanto em cursos como o Clínica Geral, um acompanhamento semestral para projetos de artistas e pesquisadores, quanto na residência artística Temos Vagas!, que neste momento se encontra em sua segunda edição, com nove jovens artistas e um coletivo.

Na vasta área central do galpão, os artistas da residência têm seus espaços de trabalho separados apenas por uma faixa no chão, sem paredes ou divisórias, o que propicia um diálogo permanente entre os participantes. As salas restantes são alugadas para outros artistas mais experientes que têm seus ateliês no local, normalmente compartilhados por duas ou três pessoas cada um. Há ainda uma sala para gestão, reuniões ou pequenas mostras e um recinto, logo na entrada, que sedia a Escola da Floresta, projeto comandado pelo artista Fábio Tremonte. Apesar de algumas poucas paredes, nenhum dos ambientes têm portas fechadas.

Para o curador Gabriel Bogossian, outro dos colaboradores do Ateliê ao lado de Escobar e de Thais Rivitti, esse caráter de formação é dos traços da identidade do 397 mais relevantes de se destacar no atual contexto da cidade de São Paulo. “Acho que falta aqui, historicamente, uma escola livre nos moldes do Parque Lage no Rio de Janeiro. E nos últimos anos os espaços independentes ocuparam um pouco esse lugar”. Ao mesmo tempo, ele ressalta, com o encerramento das atividades de muitos deles, em decorrência de dificuldades financeiras, o 397 acabou se tornando ainda mais singular no cenário da cidade.

Performance realizada no galpão do Ateliê397 durante a exposição “Abraço Coletivo”, em 2019. Foto: Amalia Coccia

“Existem outros lugares que abrigam exposições, debates e performances, mas poucos têm essa ocupação constante, esse espaço de encontro regular que permite a pedagogia da convivência”, afirma Bogossian, que destaca ainda o valor acessível (quando não gratuito) dos cursos e atividades do 397. “E acho que ainda falta no meio artístico a consciência da importância desse espaço, que é um lugar de oxigenação do campo, da prática”, completa o curador.

Passado e futuro

Ao longo dos 16 anos de história do 397, o desejo constante de questionar as práticas institucionais e mercadológicas do universo da arte contemporânea resultou em variados tipos de atividades e experiências. No Surpraise, por exemplo, que já teve oito edições, um leilão de arte é realizado “às cegas”, sem que os participantes sejam informados da autoria das obras vendidas. Trabalhos de artistas iniciantes e consagrados se misturam e recebem o mesmo preço inicial, transformando a experiência em uma espécie de aposta que coloca em cheque a ideia de autoria e a especulação financeira no meio artístico.

A partir de um projeto proposto pelo Ateliê397 e contemplado pelo Prêmio Funarte de Arte Contemporânea de 2012, a exposição Espaços Independentes: A Alma é o Segredo do Negócio foi montada em parceria com o Ateliê Aberto (Campinas), o Atelier Subterrânea (Porto Alegre) e as paulistanas Casa Contemporânea, Casa Tomada e Casa da Xiclet. A ideia de unir e colocar em diálogo as práticas de diferentes espaços independentes buscava se contrapor às premissas individualistas do mercado e favorecer o compartilhamento de conhecimentos e práticas coletivas. 

“Existem outros lugares que abrigam exposições, debates e performances, mas poucos têm essa ocupação constante, esse espaço de encontro regular que permite
a pedagogia da convivência”

Gabriel Bogossian

   

Com o trabalho do grupo de estudos “Mulheres não precisam estar nuas para entrarem nos museus”, a exposição Vozes Agudas foi organizada em 2018 e emprestou seu nome para um novo grupo de estudos e intervenções que segue em atuação no 397. Com ênfase feminista e formado exclusivamente por mulheres atuantes no circuito artístico paulistano, o Vozes Agudas tem realizado encontros, leituras e uma série de podcasts disponíveis no site do Ateliê.

Em julho de 2019, uma grande mostra intitulada Abraço Coletivo reuniu obras de quase 300 artistas no galpão. A partir de uma chamada aberta (em que nenhum artista seria recusado), a mostra atraiu expositores de diferentes idades e com trabalhos em variadas plataformas, chamados à pensar o espaço junto à curadora Paula Borghi.

Se alguns destes projetos de anos anteriores – especialmente na primeira metade da última década – foram financiados a partir da aprovação em editais ou da captação nas leis de incentivo à cultura, o quadro se tornou mais crítico para o 397 nos tempos recentes. “É nítido um intenso desejo de desmonte da cultura”, comenta Bogossian. Assim, o espaço tem debatido novas estratégias de sobrevivência e tentado colocar em prática projetos que possam manter sua sustentabilidade.

Performance realizada durante a exposição Abraço Coletivo, em 2019. Foto: Divulgação

Um crowdfunding (financiamento coletivo) realizado em 2017 arrecadou R$ 65 mil e possibilitou a manutenção das atividades do 397 no primeiro semestre de 2018. A venda dos múltiplos, obras de diversos artistas ligados à casa, é outro caminho que tem ajudado. Cursos, residências e os aluguéis pagos pelos artistas que ali trabalham representam outra parte da arrecadação, mas não o suficiente para fechar as contas. Neste sentido, o 397 pensa em possibilidades como a retomada do Surpraise, a realização de um crowdfunding permanente e a criação de parcerias com outros coletivos e instituições da cidade – sejam museus, galerias ou universidades –, sem que isso signifique uma diminuição na autonomia do Ateliê.

Outro objetivo neste ano de 2020 é estabelecer um diálogo mais forte e horizontal com o bairro da Pompeia e seus moradores. Para isso, segundo Rivitti, é preciso tanto ir às ruas e praças quanto atrair as pessoas para dentro do galpão. “E um dos desafios é achar uma linguagem em que a gente se reconheça e que esses moradores também se reconheçam. Não adianta achar que vamos iluminar as pessoas com a ideia de arte contemporânea, com uma mentalidade de especialista que quer muito mais ensinar do que ouvir o outro”, diz ela. “Então temos que levar propostas, saber se colocar, e ao mesmo também ouvir, conseguindo se aproximar do dia a dia do bairro.”

Para as gestoras do Ateliê, uma maior ocupação do espaço público se insere também como prática política em tempos de ataque às artes e à educação. “Nesse momento difícil, que temos um governo inimigo da cultura, estamos pensando que tipo de questões queremos trabalhar, que discussões queremos fazer, com ousadia e sem ter amarras. Discussões sobre a cidade, questões de gênero e raciais, feminismo e meio ambiente, sempre olhando com atenção para as pessoas que estão na mira de um modo geral”, diz Rivitti.

Nestes 16 anos de estrada, tentar fazer uma lista dos artistas que passaram pelo Ateliê397 seria tarefa quase impossível. Entre nomes menos conhecidos e consagrados, centenas de pessoas tiveram parte de suas formações ou trajetórias marcadas por alguma prática ou experiência vivida neste espaço independente paulistano. “A arte demanda formação e bons profissionais”, conclui Rivitti. “E precisa de tempo, não é imediata. Então esse processo que o ateliê sempre propiciou, com os alunos, artistas, professores e frequentadores, resultou no amadurecimento de muita gente boa que está por aí. É um trabalho longo e que deve continuar.” 

Transversalidade de raiz

O curador Josué Mattos conversa com a equipe responsável pelas obras do Centro Cultural Veras.

Um centro cultural está sendo criado de forma bastante distinta das instituições de arte brasileiras privadas, em geral financiadas por mecenas milionários e mesmo assim com histórias recorrentes de fracasso, algumas delas colocando em risco museus, como ocorreu com o fechamento do MAM-SP em 1967.

O novo local é o Centro Cultural Veras, concebido a partir de uma gestação de vinte anos pelo monge e curador Josué Mattos, que teve a ideia quando vivia em um monastério nas montanhas de Paraty e acabou se especializando em arte na França. Mais fora da curva, impossível.

Centro Cultural Veras
Registro da construção do novo Centro Cultural Veras. Cortesia do próprio Centro Cultural

Nascido em Criciúma (Santa Catarina), Mattos mudou para Florianópolis nos anos 90. “Foi quando começou o desejo de fazer esse projeto. A concepção é de 1999. Naquela época eu estava envolvido em movimentos alternativos, espirituais e ligados ao Yoga e frequentava um centro cultural, que não era bem a melhor denominação para ele, mas era assim que era chamado”, inicia a contar a história atípica,  por telefone, logo após ter resolvido como retirar uma imensa rocha que ameaçava o subsolo do novo espaço.

Em 1999, o monge foi morar em Paraty, onde passou três anos, e de lá partiu para Paris, estudar arte, “porque achava que seria importante para esse centro cultural”. Passou quase dez anos na capital francesa, estudando filosofia e literatura do Yoga e História da Arte e Arqueologia.

“Voltei para o Brasil, em 2006, para um intercâmbio com a USP e foi quando a Lisette Lagnado estava fazendo a Bienal. Foi um momento de grandiosa iniciação na curadoria. E, paralelamente, havia uma grande mostra da coleção do MAM na Oca e fui convidado pelo Tadeu Chiarelli, meu professor na USP, para ser um dos educadores da exposição”, recorda Mattos.

A experiência foi essencial em seu percurso: “Visitar a Bienal todo dia e conviver com o acervo do MAM me levaram a decidir que, quando voltasse ao Brasil, o que ocorreu em 2010, eu tentaria atuar como curador para facilitar a construção do centro cultural.”

Nesses últimos dez anos, todos os trabalhos assumidos pelo curador-monge ajudaram na viabilização do novo espaço, entre eles a concepção e curadoria da primeira edição do projeto Frestas – Trienal de Artes, no Sesc Sorocaba, uma mostra periódica de arte contemporânea, que teve início em 2014. “Convidado para conceber um projeto de uma bienal no interior, sugeri que fosse uma trienal, em virtudes de debates da 28ª Bienal de SP, e mesmo antes, nos anos 1980, quando Aracy Amaral apontava o curto tempo para se organizar uma mostra desse porte em dois anos”, explica.

Além de mobilizar seus cachês para a construção do centro cultural, realizou duas permutas que permitiram o financiamento da mão-de-obra e do elevador do edifício. No primeiro caso, no Instituto Adelina, em São Paulo, assumiu uma espécie de direção artística que reforçou a vocação sem fins lucrativos da instituição. Em Ribeirão Preto, Mattos esteve à frente da fundação do Centro de Arte Contemporânea W, criado pela artista Weimar, onde atua como curador desde então.

Outra importante forma de aporte foi a doação de obras de cerca de 120 artistas, entre eles Cildo Meireles, Rivane Neuenschwander e Ernesto Neto, boa parte delas vendidas em um leilão na Casa Goia e na Feira Parte, ambas em São Paulo. Um programa de múltiplos, realizado com obras integralmente doadas por Regina Silveira, Jorge Menna Barreto, Sandra Cinto e Albano Afonso também tem gerado recursos para à compra de materiais de construção.

No total, o Veras está orçado em R$ 2,35 milhões, incluindo aí a compra do terreno, o projeto arquitetônico, a construção e os equipamentos. Desse total, faltam ainda serem captados R$ 630 mil. Se tudo for obtido ainda neste ano, com a campanha de financiamento coletivo a ser lançada no primeiro semestre de 2020, o espaço será inaugurado no início de 2021.

Pilares

Quando fala do Veras, Mattos costuma referir-se no plural, “nosso projeto”, o que inclui sua companheira e outros quatro amigos, “que não são do campo da arte”.  O centro cultural, assim, “pertence a uma associação de direito privado sem fins lucrativos, a mesma estrutura jurídica da maioria dos museus privados no Brasil”, como define o curador.

O edifício de 1.100 m2 foi concebido pelos escritórios Terra e Tuma Arquitetos Associados e Gabriella Ornaghi Arquitetura de Paisagem, ambos de São Paulo.  Terra e Tuma ganhou, em 2016, o prêmio de melhor casa do mundo pelo ArchDaily, graças à moradia de Dona Dalva, na Vila Matilde.

Quando fala do Veras, Mattos costuma referir-se no plural, “nosso projeto”, o que inclui sua companheira e outros quatro amigos,  “que não são do campo da arte”

O nome Veras vem da rua onde ele se encontra, Vera Linhares, no centro da Ilha de Florianópolis, que não coincide com o centro da cidade, mas está a 500 metros das duas universidades públicas da capital, a Federal e a Estadual. Contudo, Veras também poderia ser uma referência aos Vedas, os quatro livros que formaram o sânscrito e de onde, de fato, vem a inspiração para os quatro pilares conceituais do espaço: ciência, filosofia, Yoga e arte. “Nos Vedas, elas são as bases que sustentam uma comunidade”, explica Mattos.  No Veras, no entanto, foi feita uma tradução livre de dois desses conceitos:  ciência foi alterada para educação e sustentabilidade ficou no lugar de filosofia.

Mattos observa que, no Brasil, essa transversalidade já ocorre em outros espaços culturais, como o SESC. “Eu acredito muito na transversalidade como forma de superar o desafio de formação de público em nossa região”, conta o curador, a partir de sua experiência como diretor do Museu de Arte de Santa Catarina por dois anos, em 2017 e 2018. Ele saiu de lá para uma residência artística no Japão.

Diálogos

“Quando decidi dar início ao processo de concepção de um centro cultural, então solitário e silencioso, não podia imaginar quanto o contato com a História da Arte me permitiria aproximar experiências antes experimentadas apenas no contato com buscadores de caminhos espirituais. Foi quando me deparei com a obra de artistas que pareciam ir no mesmo sentido e tive a sensação de pertencer a uma vasta comunidade”, afirma o curador.

Para ele, referências para o trabalho no novo centro cultural serão, entre outros, os experimentos de Joseph Beuys (1921 – 1986), o misticismo de Mondrian (1872 – 1944) ou de Agnes Martin (1912 – 2004), a condição clínica dos últimos experimentos de Lygia Clark (1920-1988) assim como o criador dos happenings, Allan Kaprow (1927 – 2006) ou o suprassensorial Hélio Oiticica (1937 – 1980) com a arte ambiental. Da atualidade, ele aponta Jorge Menna Barreto, “que fez da escultura social do Beuys o que ele chama escultura ambiental, envolvendo comunidades pouco convencionais no sistema de arte”, Mônica Nador, com sua noção de autoria compartilhada, Sandra Cinto, Ernesto Neto, Bené Fonteles, Rodrigo Bueno, com quem preserva fortes elos.

No campo das exposições, “o que a gente pretende desenvolver aqui são imersões de alguns artistas com a comunidade, muito pouco familiarizada com o estatuto desse artista que não precisa desenvolver objetos”, afirma. Uma referência é a bienal Manifesta, que ocorreu em Zurique, em 2016, onde artistas foram criar projetos na cidade. “Em Florianópolis, nós temos quarenta e poucas praias, duas comunidades rurais, um centro urbano minimamente desenvolvido, e a questão é como criar mecanismos de arte contemporânea que façam valer essa topografia singular.  O que nós queremos é dar voz a artistas que estejam dispostos a criar relações e promover diálogos, independente de se o que for realizado possa ser chamado de arte, porque creio que essa questão hoje não é mais pertinente”, conclui. 

Calendário dissidente, documento gráfico da política brasileira

As imagens entram no mapeamento a partir de hashtags específicas do Instagram
As imagens entram no mapeamento a partir de hashtags específicas do Instagram

No mundo digital um turbilhão de imagens nos bombardeia a cada fração de segundo e tudo pode se dissipar pela rede com a mesma rapidez. Com o propósito de discutir a memória gráfica dos principais acontecimentos sociopolíticos do Brasil desde a posse do presidente Jair Bolsonaro, a designer gráfica Didiana Prata lança Calendário Dissidente, realizado por meio do mapeamento da estética das imagens no banco de dados do Instagram.

O projeto mostra a arqueologia das narrativas visuais da memória gráfica brasileira. “A ideia é conseguirmos observar e arquivar essas novas estéticas que vêm da rede”, assinala Didiana, que mostra os resultados parciais da pesquisa de doutorado no curso de pós-graduação em Design da FAU/USP, sob orientação da profa. dra. Giselle Beiguelman e desenvolvida durante sua residência no Centro de Inteligência Artificial do Inova USP. Essas imagens dissidentes, na opinião da designer, trazem vocabulário novo que diz respeito também à manifestação estética do qualquer um. “Isso interessa na medida em que se trabalha com amostragem maior de imagens e acesso às outras narrativas como linguagem visual, divergência e diversidade de produção, não só de artistas designers mas também de cidadãos, de pessoas engajadas e com diversos ativismos”.

O Calendário está em processo e a preocupação é arquivar essa produção cronologicamente. “O primeiro estágio é classificar a partir da temporalidade em que foram publicadas criando uma narrativa visual cronológica, diferente do que ocorre na visualização fragmentada dessas imagens nas páginas dos aplicativos. Daí, olhar para elas e categorizá-las dentro de filtros estéticos, categorias que estou propondo”. Para armazenar milhões de imagens e respectivas legendas, Didiana aprofunda sua pesquisa junto à equipe do Inova USP, usando inteligência artificial e aprendizagem de máquina para treinar os robôs para que façam a classificação de imagens dentro de um critério estético. “Os classificadores de imagens que existem no mercado são todos com viés comercial ou de vigilância e eu não estou interessada nesse perfil, nem nesse tipo de rotulação”.

Essa nova vertente é o uso da inteligência artificial ligada à estética e à produção artística e, para a designer, esse é o ponto. “Nem tudo está no Calendário, porque estamos finalizando a parte das classificações de imagens e aprimorarando o processo”. Didiana vai afinar as imagens e fazer curadoria assistida, como ela diz, com seus amigos robôs nas categorias estéticas relevantes. Devido ao risco de caírem no esquecimento, diante do fluxo de superprodução e veiculação nas redes às quais pertencem, as imagens são catalogadas e arquivadas, a partir da análise de algumas hashtags. O site captura, indexa e publica diariamente três imagens mais curtidas com hashtags #designativista, #desenhospelademocracia, #mariellepresente, #coleraalegria. Marielle, segundo Didiana, é uma hashtag importante pelo número de imagens e pelos vários ativismos contidos não só de cunho político, mas também pela questão do negro no Brasil, racismo e questões de gênero. “A ideia é que as pessoas possam consultar o Calendário para outras questões como jornalismo, sociologia, política, arte.Considera-se que as hashtags estabelecidas como filtro de busca são representativas das dissidências e das manifestações coletivas frente ao momento atual da nossa história.

As imagens entram no mapeamento a partir de hashtags específicas do Instagram
As imagens entram no mapeamento a partir de hashtags específicas do Instagram

Em que afinal diferem as imagens postadas no Instagram e as do Calendário Dissidente? “Na verdade no Instagram você está sujeito a visualizar as imagens das pessoas que você segue, pode até seguir uma hashtag, mas as imagens que vão aparecer são as que o algoritmo selecionou dentro do seu grupo de seguidores”. Didiana lembra o que aconteceu com essa pesquisa no seu Instagram. “Ele falava de uma estética na minha bolha e isso não me interessa. Eu ampliei os dados qualitativos e descobri artistas anônimos no Brasil todo. Essa é a riqueza do trabalho, é você ampliar o vocabulário com uma mostra maior que sem a inteligência artificial eu não teria como fazer.”

No site do Calendário pode-se visualizar trabalhos de profissionais e de cidadãos comuns, com intervenção e memes. “Os memes são incríveis, marcam o imediatismo da cultura visual das redes, feitos a partir de imagens propriadas da grande mídia, normalmente imagens jornalísticas que falam do dia a dia”. Didiana não considera essas imagens as mais adequadas para serem investigadas, uma vez que já são discutidas por pesquisadores da comunicação. Ela se interessa pelas colagens e ilustrações digitais, tipografias e ilustrações vernaculares. Há resgate de coisas da cultura popular, de caligrafia, de ilustrações do cordel que são trazidas para a contemporaneidade.

Essas imagens, segundo a designer, apresentam novos paradigmas para o estudo do design de comunicação da era pós-internet. Por varredura algorítmica, o Calendário rastreia os principais temas relacionados às imagens do dia e oferece ao usuário os filtros temáticos correspondentes.

A segunda fase do projeto apresentará uma curadoria de imagens, selecionadas a partir de seis categorias estéticas preestabelecidas: factuais; ilustração digital; ilustração manual; tipografia digital; tipografia vernacular e apropriação. Esta etapa está prevista para ir ao ar em junho deste ano. Agora é esperar.

Onde se criam novos mundos

Espaços de Trabalho de Artistas Latino-Americanos. Editora Cobogó, 2019, 364 p. R$ 150,00
Espaços de Trabalho de Artistas Latino-Americanos. Foto: divulgação Editora Cobogó

O rio Mapocho, que atravessa a cidade de Santiago, no Chile, foi o local escolhido pela artista Cecília Vicuña para representar seu ateliê no livro Espaços de Trabalho de Artistas Latino-Americanos, lançado agora no início de 2020, sob coordenação editorial de Fernando Ticoulat e João Paulo Siqueira Lopes.

“Domesticado e transformado em esgoto e depósito de lixo químico”, segundo a artista chilena, ela conta, na publicação, que “trabalho no rio para recuperar o sentido de que esse é um lugar majestoso”. Em sete páginas, média dedicada a cada artista, o rio é visto em uma situação de fato catastrófica, quase desaparecendo, o que se transforma em uma espécie de manifesto, de obra em si.

Dos 27 selecionados para a publicação, Vicuña, que há 38 anos vive em Nova York, mas sempre retorna à sua terra natal, foi a mais ousada para apresentar seu espaço de criação. Todos os demais abriram seus ateliês convencionais, mesmo que tais locais, como indica Pablo Leon de la Barra no ensaio que abre o livro, sejam “o lugar que permite ao artista sonhar novas obras, novos mundos”. O fotógrafo Fran Parente é o responsável por todas as imagens do livro.

 

Vicuña, na faixa dos 70 anos, é de uma geração de pioneiras na produção artística latino-americano, que só recentemente conquistou espaço no circuito internacional, caso também da colombiana Beatriz Gonzalez, das argentinas Liliana Porter e Marta Minujín, e da mexicana Graciela Iturbide, todas participantes do livro, um mérito na seleção. Representatividade, aliás, foi uma questão seriamente observada na publicação: há artistas negros, casos dos brasileiros Lucia Laguna e Arjan Martins, e indígenas, como se declara a própria Vicuña. É um sinal positivo de que, ao menos no campo da arte, a preocupação em evitar as narrativas masculina e branca já é uma busca inevitável. Para um livro bancado pela Lei de Incentivo à Cultura, ou seja, verba pública, deveria ser padrão obrigatório.

O ensaio de La Barra, poético na forma e no conteúdo, é uma boa introdução ao tema, afinal o ateliê do artista é um lugar altamente estereotipado e o curador mexicano radicado no Rio de Janeiro aborda muitas das possibilidades que ele hoje representa, sendo tanto “um lugar de revolução e ativismo”, como também responsável por “gentrificar a área”.

Outra definição significativa de La Barra é que “entrar no ateliê é como estar do outro lado do espelho”, parafraseando a Alice de Lewis Carroll. Mas é um pouco isso que o livro consegue, já que além das imagens dos “espaços de criação”, entrevistas concisas, mas aprofundadas, conduzidas pela jornalista Beta Germano, dão conta do que representa o ateliê para cada artista, assim como algumas linhas poéticas de sua obra, revelando assim esse outro lado do que em geral se vê da produção artística.

Mais uma metáfora do ateliê é lembrada no texto de introdução de Germano, retomando uma ideia de Ronaldo Brito: “O artista no ateliê é como o leão na selva e o artista no museu é como o leão no zoológico”.

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Artistas brasileiros seriam suficientes para uma publicação deste porte. Nomes não faltam, como Claudia Andujar, Regina Silveira, Anna Maria Maiolino, Rosângela Rennó ou Nelson Leirner, entre tantos outros. Mas o recorte latino-americano revela-se altamente necessário,  ao construir um caráter de identidade que nem sempre nós brasileiros estamos acostumados. E é nos depoimentos dos hermanos e hermanas, como Cecilia Vicuña e Alfredo Jaar, ambos do Chile, ou Beatriz Gonzalez e Miguel Ángel Rojas, da Colômbia, que a publicação reforça atualidade no debate político que o continente atravessa.

Ultimamente, curadores tem apontado Cildo Meireles, também presente no livro, como o melhor artista brasileiro, em uma denominação mais adequada ao campo do esporte, que afinal possui fórmulas claras para tal definição, do que a arte. O que o livro apresenta, aliás, é justamente o lugar do erro, da tentativa, do risco do artista e não de sua obra mais conhecida. E o ateliê de Meireles, nesse caso, é dos mais simples, que sequer se parece com um espaço de criação. Mas como defende La Barra, é um espaço que “pode resistir à lógica capitalista de produção/consumo”.

Mesmo tendo o formato “coffee table book”, Espaços de Trabalho de Artistas Latino-Americanos é uma publicação que fala do lugar de criação em tempos difíceis, ao mesmo tempo que apresenta uma geração que atravessa contratempos há mais de 50 anos, muito antes do boom, já passageiro, da arte latino-americana. E, mais importante, o livro traz contribuições de fato sobre o que significa criar na América Latina, um debate mais que necessário.

Um exercício muito íntimo

Performance do artista sul-africano Neo Muyanga
Performance do artista sul-africano Neo Muyanga, apresentada no Pavilhão da Bienal em parceria com o coletivo Legítima Defesa. Fotos: Levi Fanan/ Divulgação

(Confira aqui as novidades da Bienal de São Paulo, adiada por conta da pandemia do coronavírus, e acesse o novo site da 34a edição, que apresenta as “correspondências” escritos pelos curadores).

 

Sob o título Faz escuro mas eu canto, a 34ª Bienal de São Paulo teve seu pontapé inicial em 8 de fevereiro, com a abertura da exposição de Ximena Garrido-Lecca e a performance realizada por Neo Muyanga e assistida por um público de quase 1,8 mil pessoas. Essa antecipação da agenda não apenas coloca em prática o desejo – muitas vezes enunciado nas edições passadas, mas raras vezes conquistado – de alargar o alcance temporal de um dos principais eventos culturais da cidade, como serve para dar a tônica do que se pode esperar da grande exposição coletiva deste ano.

Usando como fio condutor a ideia de ensaio, de algo que vai se construindo ao longo do tempo a partir de um intenso diálogo entre os membros da equipe curatorial, a atual edição da Bienal tem por meta a descentralização, o espraiamento de suas ações pela cidade – por meio de uma parceria ampla com 25 diferentes instituições culturais –, abrindo múltiplas possibilidades de leituras das obras e artistas selecionados. Outros aspectos importantes da presente edição são uma maior abertura para a inserção de trabalhos de caráter histórico, um equilíbrio claro entre os gêneros e um interesse em promover encontros, diálogos entre diferentes poéticas e obras. Em entrevista recente Jacopo Crivelli Visconti, curador da mostra, e Paulo Miyada, curador-adjunto, explicaram os principais contornos de seu projeto. Também fazem parte da equipe a artista brasileira Carla Zaccagnini e os curadores Francesco Stocchi (Holanda) e Ruth Estévez (México).

arte!✱ – Vamos começar pela questão do “Faz Escuro mas eu canto”. Como foi chegar nesse tema?

Jacopo Crivelli Visconti – Não há um tema e sim uma metodologia que tem muito a ver com essa ideia de expandir a bienal no tempo e no espaço, com o exercício de propor que a pessoa possa ver as obras mais vezes. Nas três exposições que acontecem ao longo do ano, dedicadas ao trabalho da Ximena Garrido-Lecca, da Clara Ianni e da Deana Lawson você vê com clareza os interesses, as preocupações dessas artistas. Depois de relativamente pouco tempo você reencontrará de novo aquelas obras justapostas a trabalhos de outros artistas.

Além disso, a mostra se espalha pela cidade com 25 parcerias com diferentes instituições. Vocês farão essas curadorias?

Paulo Miyada – Cada instituição acaba sendo parte de uma espécie de comitê curatorial expandido. Não só porque cada exposição tem seu curador, mas porque cada exposição tem seu público e seu contexto. Não decorrem apenas do interesse para a Bienal, mas também da possibilidade de reverberarem de forma potente naquele lugar, fazer sentido com aquele público.

Paulo Miyada, curador-adjunto, Carla Zaccagnini, curadora convidada, Jacopo Crivelli Visconti, curador-geral, Ruth Estévez, curadora convidada e Francesco Stocchi, curador convidado. Equipe curatorial da 34a Bienal de São Paulo.
Paulo Miyada, curador-adjunto, Carla Zaccagnini, curadora convidada, Jacopo Crivelli Visconti, curador-geral, Ruth Estévez, curadora convidada e Francesco Stocchi, curador convidado. Foto: Pedro Ivo Transferetti/ Divulgação

Essa ideia de expansão está muito presente na história das bienais, mas é raro vê-la efetivada na prática.

Visconti – Pode parecer que a ideia é fazer um projeto muito grande, como se a Bienal precisasse de mais espaço. Mas acho que na verdade estamos propondo um exercício muito íntimo, um caminho diferente, de criar uma relação com as obras, algo que normalmente esses eventos muito grandes não permitem. Essas exposições individuais vão coabitar por algum tempo. E haverá também as performances nos dias de abertura (Palabras Ajenas, de Leon Ferrari, e A Ronda da Morte” peça inédita de Hélio Oiticica).

Vocês estão fazendo praticamente uma curadoria de obras?

Miyada – Exatamente, se comparado a outras bienais será muito mais uma curadoria de obras do que uma curadoria de artistas. Talvez nisso a gente também se distinga da maioria, que tem muita ênfase na produção de obras novas. Até porque com elas você não consegue ter uma afinação tão precisa e o que nos interessa aqui é essa escala mais íntima, é essa obra aqui junto com essa e essa, que você consegue entender.

Comecemos pela história do poema.

Miyada – Foi escrito pelo Thiago de Mello, poeta amazonense, entre 1963 e 1964, entre o estado do Amazonas e Santiago do Chile, onde ele era adido cultural. Era um poema de esperança, num momento de desejo progressista. Mas só foi publicado em 1965 quando, como a gente sabe, a realidade do Brasil já era muito diferente. Em 1968, o Thiago de Mello foi preso. Ele conta que entrou na cela, com muito medo, sem saber o que podia acontecer e quando olha para a parede vê que o preso anterior tinha deixado escritos seus versos: “Faz escuro mas eu canto porque a manhã vai chegar”, o que fez com que ele retomasse a crença. Em poucos anos, esse verso foi esperança, persistência, chamado, suspiro. E a gente fica pensando: como é que ele chega hoje?

Vamos resistir por cima, né?

Visconti – E não cantar apenas sobre essa escuridão. É preciso muita coragem para falar de outras coisas num momento como o que a gente está vivendo. É essa coragem que a gente está defendendo aqui, como ponto de partida.

Miyada – Dentro da exposição a própria ideia de repetição seria sim um desses enunciados, desses subtemas ou diários de convergência. Está muito claro no projeto que uma exposição se faz como um ensaio, mantendo relação com a leitura de Francis Alys de como os projetos progressistas, especialmente nas Américas, parecem sempre um ensaio, no sentido de uma repetição, de algo que parece que agora vai e depois é abandonado. Tudo vira ruina muito rápido.

É possível dar um exemplo concreto sobre esse núcleo da repetição?

Visconti – Não vai ser um bloco porque não haverá separação, porque esses vários assuntos (uns seis ou oito) se entrelaçam. Por exemplo, estamos tentando trazer um sino da capela do Padre Faria, em Ouro Preto. É um sino bastante típico, mas que tem a particularidade de ter sido tocado em momentos muito importantes da história do Brasil. Reza a lenda que foi tocado na noite da execução de Tiradentes, quando obviamente havia a proibição de tocar os sinos porque estava sendo executado um inimigo do império. A história mudou, Tiradentes virou um herói nacional e o sino foi levado para Brasília e tocado no dia da inauguração da nova capital. A gente vai falar de como sua história vai se repetindo das maneiras mais imprevisíveis ao longo dos séculos. As noções de resistência, de como as coisas aparecem e desaparecem, são outras abordagens contempladas.

Paulo Miyada, curador-adjunto, Carla Zaccagnini, curadora convidada, Jacopo Crivelli Visconti, curador-geral, Ruth Estévez, curadora convidada e Francesco Stocchi, curador convidado. Equipe curatorial da 34a Bienal de São Paulo.
Jaider Esbell, “Malditas e Desejadas”, 2013 acrílica sobre lona encerada. Acervo da Galeria Jaider Esbell de Arte Indígena Contemporânea. Foto: Marcio Lavor 

Quem mais trataria dessa questão da repetição?

Visconti – Morandi é um bom exemplo. Pintou um repertório relativamente reduzido do ponto de vista iconográfico ao longo de décadas. Mas também reverbera particularmente a ideia do Faz escuro mas eu canto. É daqueles artistas que, da mesma maneira como Monet pintando Ninfeias na I Guerra Mundial, podem ser vistos como como alienados ou como – e é assim que eu acho que é preciso vê-los – alguém que considera que perseverar enquanto o mundo está pegando fogo não é um escapismo.

São diferentes as abordagens em reação ao escuro?

Miyada – É preciso lembrar que para algumas pessoas faz escuro faz um ano; para outros 10 anos, 500 anos, mil anos. Enquanto você ouve as vozes que estão incluídas nessa experiência, a ideia do que significa cantar diante do escuro se transforma. Se à primeira leitura o escuro é visto como ameaça, risco, e é isso mesmo, de perto ele pode ser um aliado para muitos artistas. E, pelo contrário, a transparência pode ser um recurso altamente ideológico, de controle, de repressão, de vigilância.

 

A Arte como Essência

Arte por Baniwa
Nhandecy Eté e o Peabiru. Fotos: cortesia do artista

ESCREVO ESTE TEXTO no meio do isolamento a que fomos submetidos nos últimos dias pela pandemia que assolou nosso planeta, em maior ou menor grau, na maioria dos países.
Na Itália, de onde até agora pouco comentávamos as mostras da Bienal de Veneza, morreram nos últimos 30 dias aproximadamente 12 mil cidadãos. Todos nós acompanhamos estarrecidos as cenas internacionais, próprias de filmes de ficção científica.Lemos e ouvimos diariamente uma infinidade de dados e informações sobre um flagelo desconhecido, o COVID-19, que só se aproxima da Peste Negra, na Idade Média, ou da Gripe Espanhola, antes da I Guerra Mundial. Hoje e aqui, estamos tentando minimizar os números das perdas humanas no Brasil, colaborando com uma quarentena que permita a menor quantidade de infectados.
Assistimos perplexos em nossa fragilidade às rachaduras de um sistema econômico e político que não se sustenta quando se trata de atender ao ser humano por igual. Quem até poucos dias atrás defendia o Estado mínimo, reconhece hoje no Sistema Único de Saúde Pública (SUS) a única saída para crises desta magnitude. Cientistas que no começo do ano foram forçados a parar suas pesquisas graças aos cortes de bolsas e investimentos agora passam a ser solicitados a todo momento.
O coronavírus veio de encontro ao vírus nosso de cada dia.
Na cultura, onde já discutíamos os cortes nas leis de incentivo e assistíamos ao desmantelamento de várias instituições, a pandemia traz um novo desafio.
Até a presente data, 31 de março de 2020, todos os encontros e todas as atividades culturais foram canceladas ou adiadas. Fecharam suas portas as edições das feiras Art Basel em Hong Kong e na Basileia; ARCO Lisboa; a SP-Arte, em São Paulo; e a arteBA, em Buenos Aires. As Bienais de São Paulo e do Mercosul foram adiadas, assim como a Manifesta13, em Marselha. Falta ainda a Bienal de Berlim anunciar se será mantida em junho.
O Centro de Exibições IFEMA, onde funcionou há apenas um mês a tradicional feira ARCO Madrid, acaba de ser transformado em um “hospital” com mais de mil leitos para pacientes contaminados.
“O panorama é desolador para o setor da cultura do país”, disse Manuel Fernandez-Braso, presidente da Asociación de Galerías de Arte de Madrid.
Não obstante à angústia que vivenciamos, tendo que cuidar de nós e dos nossos semelhantes, tivemos que encontrar, no nosso dia a dia, momentos de reflexão e soluções de trabalho para não esmorecer.
Para nossa equipe, este seria um momento de grande comemoração. Nesta edição #50, a primeira do ano, ARTE!Brasileiros completa 10 anos. Dez anos onde defendemos a ideia de que a arte sintetiza narrativas transversais e que, especificamente na obra de arte, o artista exprime sua capacidade de se afastar do mundo e percebê-lo como sujeito. Nela estão contidas suas ideias e, com certeza, as suas angústias e as do seu tempo.
Nestes anos buscamos retratar a pujança e a diversidade da arte contemporânea brasileira, para os brasileiros e para o mundo, em alguns dos temas que se sobressaíram nesse período de forma marcante: a defesa da liberdade e as questões de gênero; a luta contra a discriminação racial, a segregação da mulher, a opressão econômica, social e política; os movimentos migratórios, as liberdades, a denúncia das agressões ao meio ambiente e ao planeta.
Retratamos também a inovação no movimento, na cor, a busca por novos suportes, a experimentação, a pesquisa de materiais e de histórias.
Para isso, investimos numa plataforma de cultura e arte contemporânea digital, capaz de falar tanto com a academia como com o mercado.
Criamos uma enorme rede de colaboradores nacional e internacional e nossos seminários aproximaram interlocutores de vários países.
Chegamos até aqui com um saldo positivo. Mais de mil assinantes da revista impressa, perto de 50 mil seguidores orgânicos e fiéis no Instagram, além de uma rede de relacionamento e de leitores que ronda cerca de 80 mil no portal da www.artebrasileiros.com.br
Este ano, se conseguirmos vencer o COVID-19 e suas sequelas, realizaremos nosso VI Seminário Internacional, previsto para começo de outubro.
Esta edição, que traz um novo projeto gráfico, encomendado especialmente à equipe de designers do Alles Blau Studio, teve a capacidade de se adequar às dificuldades do momento. O trabalho com as equipes em home-office, suas entrevistas e reportagens, mostraram um altíssimo grau de colaboração e competência por parte de todos os envolvidos. A maioria dos textos foi produzida antes dos vários adiamentos de mostras e bienais, mas optamos por mantê-los, acreditando que dias melhores virão.
Esperamos encontrar todos com saúde, podendo imaginar um outro momento, que certamente vai nos exigir re-nascer.

A Memória das últimas coisas e depois

Registros de memória em Tsunami, Photographs and Then
The photograph is part of the "Lost & Found" project and can be found in the book "Tsunami, Photographs and Then", its authors and stories remain unknown. Courtesy of Munemasa Takahashi.
“Certo, certo. Não esqueçam o que vocês verão aqui”. Esse foi o comentário feito por um dos frequentadores do barzinho Kobune a Munemasa Takahashi, em 26 de abril de 2011, depois dele contar que não estava na província de Miyagi (Japão) como mais um voluntário, colaborando no local que havia sido atingido um mês e meio antes da sua visita, por um terremoto de magnitude 9.1, e que movimentou muralhas de água que bombardearam a costa da ilha.

Takahashi, que havia estudado fotografia e construído uma vida em torno dela, se sentia desamparado com sua impotência diante do desastre. “Quando eletricidade, gás e água pararam, quando não havia comida ou combustível e não havia como se aquecer, não havia nada que a fotografia pudesse fazer para ajudá-los. As fotografias pareciam documentar e entregar as cenas do terrível evento às pessoas em lugares seguros”, ele viria a explicar, sobre a cobertura da tragédia em imagens, no prólogo do livro Tsunami, Photographs and Then, organizado posteriormente por ele num esforço de retratar a construção dos projetos Memory Salvage e Lost & Found em uma publicação bilíngue – japonês e inglês – oferecendo ricos detalhes, entrevistas com visitantes das exibições e, claro, algumas das imagens expostas.

Antes disso, sua maior esperança para evitar a inércia diante da tragédia, era viajar até uma das áreas menos afetadas na província, gastar dinheiro com os comerciantes locais e tentar movimentar um pouco a economia do lugar.

Registros de memória em Tsunami, Photographs and Then
A fotografia é integrante do projeto Lost & Found e pode ser encontrada no livro Tsunami, Photographs and Then, seus autores e histórias permanecem desconhecidos. Cortesia de Munemasa Takahashi.

“Por favor, me avisem se vocês puderam colaborar”, dizia uma mensagem espalhada pelas redes oito dias depois de sua visita. Era um chamado por voluntários para integrarem os esforços de limpeza e catalogação das fotos – retratos de família, registros caseiros etc. – levadas pelo tsunami e eventualmente resgatadas pelo SDF (Forças de Autodefesa).

Respondendo à convocação, Takahashi entrou em contato com o Professor Kuniomi Shibata, que conduzia o projeto Memory Salvage (Salvamento da Memória), sob supervisão da Corporação FUJIFILM. Neste momento, os voluntários ainda trabalhavam na sala de Shibata, na Universidade Feminina de Otsuma, e haviam barreiras a serem contornadas para que as pessoas pudessem procurar pelas fotografias em seus computadores – mais tarde dois softwares foram desenvolvidos para que as imagens pudessem ser encontradas de acordo com reconhecimento facial e área em que foram resgatadas. Era necessário digitalizá-las. Contudo, o fornecimento de eletricidade era escasso e irregular, o que significa que eles precisavam de uma maneira para fazê-lo sem depender da fonte de alimentação inconsistente, ou seja, utilizando câmeras digitais. O obstáculo do método, por sua vez, era a escassez de equipamentos e o ambiente de trabalho. Era contaminado, cheio de pequenas partículas de poeira do lodo seco que poderiam danificar os equipamentos, significando que qualquer ferramenta teria que ser doada, e não emprestada. Incrédulo, novamente, Takahashi enviou um pedido à web. Os apetrechos foram oferecidos em poucas horas, alguns por totais desconhecidos do fotógrafo, outros por colegas e professores de sua escola de fotografia.

Conforme o processo de limpeza e digitalização começou a caminhar tranquilamente, com 20 a 80 voluntários comparecendo todos os finais de semana, as fotografias reproduzidas começaram a se acumular. Dessa forma foi criado um espaço para devolvê-las aos proprietários. Elas foram indexadas e reunidas de volta em álbuns físicos, com três imagens em suas capas para identificação pelo antigo dono, fornecendo o retorno de uma parcela daquilo que lhes foi usurpado pelo desastre. Até 2014, pelo menos 300 mil fotografias físicas haviam sido retornadas aos seus donos. Talvez, assim como a personagem Hana, do escritor Amós Oz, as pessoas se apeguem à memória como alguém que se agarra a um parapeito, num lugar alto, e numa época em que as coisas são tão efêmeras elas confiam lembranças a dispositivos externos porque querem deixar provas que as identifiquem.

Hopeless Box

As fotos chegavam ao projeto lavadas, encharcadas e até completamente obliteradas. Por um tempo, aquelas danificadas consideravelmente, cujo estado era praticamente impossível de passar por restauro, eram designadas para o Hopeless Box (“caixa sem esperança”), uma solução para deixá-las intactas até que a equipe descobrisse qual seria seu destino, embora cada vez mais colaboradores expressassem que seria melhor simplesmente descartá-las. Com o andar da campanha, uma questão que ainda martelava a cabeça dos organizadores era a possibilidade de fornecer um retorno financeiro para a comunidade afetada. Um esquema de moradias temporárias começava a ser implementado e necessitava verbas para custear sua construção e seus trabalhadores. Eles concordavam que era significativo mostrar esses registros a quem não podia visitar o acervo.

Como escreveu certa vez o pesquisador Boris Kossoy, “desaparecidos os cenários, personagens e monumentos, sobrevivem, por vezes, os documentos”

Uma resolução foi expor as fotos que outrora estavam perdidas, surgindo assim o Lost & Found Project, levando-as da Galeria Internacional da Fotografia, no Japão, até o Centro para Fotografia Contemporânea, na Austrália, e a Fundação Aperture, nos Estados Unidos. “Nós optamos por exibir as fotos em um formato de exposição porque queríamos que as pessoas as vissem pessoalmente, não através de material impresso ou da Internet”, relata Takahashi, notando também que logo antes da exposição sair do papel os organizadores ainda se faziam perguntas como: “E se não pudermos arrecadar dinheiro suficiente para as habitações temporárias? E se for eticamente errado mostrar as fotos publicamente?”.

Seguindo o sentido oposto, a mostra se tornou uma forma de entregar uma narrativa sobre as pessoas atingidas pelo tsunami que fugisse de uma história recheada com números que involuntariamente seria traduzida em um conto sobre tragédia ou uma alegoria forçosa sobre esperança diante do caos. Lost & Found – com registros fornecendo ricas eminências de história, abraçando uma constelação maior do que nos resta da tragédia e também imagens visualmente impressionantes como resultado da sua deformação química – fornece um espaço de suspensão nessa dicotomia.

Por que fotografamos?

“Por que as pessoas estão sempre tirando fotos?” é uma questão que parece assolar recorrentemente Munemasa Takahashi, pelo menos ao longo da escrita do livro Tsunami, Photographs and Then.

Registros de memória em Tsunami, Photographs and Then
A fotografia é integrante do projeto Lost & Found e pode ser encontrada no livro Tsunami, Photographs and Then, seus autores e histórias permanecem desconhecidos. Cortesia de Munemasa Takahashi.

A fotografia cria uma realidade que existe precisamente nela, nem antes, nem fora dela, fornece um traço indicial de quem esteve lá, como se pareciam. Walter Benjamin afirmaria que “no culto da lembrança dos seres queridos, afastados ou desaparecidos, o valor de culto das imagens encontra-se o último refúgio. Na expressão fugidia de um rosto humano, nas fotos antigas, pela última vez emana aura. É isso que lhes empresta aquela melancólica beleza, que não pode ser comparada a nada”.

Caso as fotografias agrupadas para o projeto Lost & Found sejam bem recebidas pelos visitantes, talvez seja possível falar de uma ressignificação daquilo que essas fotografias simbolizaram, se distanciando de um exclusivo testemunho de desastre, voltando a se aproximar de um canalizador das questões universais do ser humano; como escreveu Ursula Le Guin, do que há “no ventre do tempo, e morte, e chance”.

Linguagem pré-incaica

Caixa de mdf com sementes: cerâmica e pintura acrílica.
Caixa de mdf com sementes: cerâmica e pintura acrílica. Fotos: Patricia Rousseaux

ARTE!* – Quando surgiu a ideia de desenvolver esse projeto?

Ximena Garrido-Leca – No ano de 2010 visitei a ruína de Pachacamc[1], perto de Lima.  Conversando com o arqueólogo soube que durante as escavações tinham encontrado sementes da espécie Phaseolus Lunatus brancas e pretas, que não eram nada comuns e que tinham se perdido. Estavam pensando em reinseri-las na cultura. Nesse momento ele me deu várias sementes de presente. 

A partir dai fiquei muito curiosa sobre a história, e comecei a pesquisar. De fato, essas sementes, espécie de feijões, tinham sido representadas em várias culturas peruanas, pré-hispânicas em cerâmicas e peças têxtis, especialmente na cultura Moche, a cultura Mochica. Outro arqueólogo, Rafael Arcofuego, a princípios do século XX desenvolveu uma teoria onde estas representações seriam um sistema de escritura. Existem outras teorias refutando esta ideia, dizendo que não, que seriam jogos ou parte de um ritual agrário, mas eu decidi me focar na sua teoria. Ele sustenta que cada paillard de sementes representa uma ideia, não seriam ideogramas e sim um sistema de comunicação simbólico.

Estrutura hidropônica e plantas da espécie Phaseolus Lunatus
Estrutura hidropônica e plantas da espécie Phaseolus Lunatus

Teria existido 100 a 850 a.C., e isso confirmaria a ideia de ter existido sim, uma outra escritura peruana, antiga, pré-incaica. Assim, decidi pesquisar mais e montar um projeto baseado em traduzir um texto colonial, La extirpación de la ideolatria en el Peru, escrito por Pablo José de Arriaga em 1621, uma espécie de manual da colônia de como erradicar os costumes indígenas.

Tomei um capítulo, o Edicto contra la ideolatria, que narra os costumes, os rituais e como aplicar os castigos. A partir daí, fui montando grupos gráficos com as sementes reproduzidas em cerâmica. Construindo um novo texto gráfico, a partir de conjuntos de morfologia e de cor.


[1] A cidade foi construída por volta de 200 a.c. Seu nome é uma referência ao “Pacha Kamaq”, deus criador da Terra segundo a crença da população local pré-inca. Pachacamac foi um importante centro administrativo e religioso para grandes civilizações pré-coloniais em períodos distintos, como os Limas, os Huaris e, por
final, poderosos Incas; até ser totalmente saqueado e destruído pelos espanhóis. Hoje, 500 anos depois,
os esforços para reconstruir suas inúmeras pirâmides, templos, praças e casas são incessantes.

A arte não se desliga da vida

Prêmio PIPA Online
"Monalisa Indígena", de Denilson Baniwa, último vencedor do Prêmio PIPA Online. Foto: Divulgação.

Vencedor do Prêmio Pipa Online em 2019, Denilson Baniwa se descreve como um artista indígena, que é indígena e é artista. Nascido em uma comunidade do povo Baniwa no Rio Negro, no estado do Amazonas, o artista fala em entrevista à ARTE!BRASILEIROS sobre a sua inserção no circuito das artes, sobre decolonialidade, apropriação cultural e o sagrado.

ARTE!✱   O que a arte indígena é hoje no cenário da arte brasileira?

DB – Essa questão da arte indígena em contraste à arte “considerada arte” é uma coisa que já vem sendo discutida há bastante tempo. Acho que até antes de ter essa galera toda indígena trabalhando e circulando. Acho que o diferente agora é que tem esse tanto de artistas indígenas com um poder de aproximação e de voz bem marcante, que consegue conversar e dizer um ponto que não era visto antes, que é a partir dessas pessoas indígenas. Para a gente, não tem essa diferença entre arte e vida ou arte e resistência assim como tem no Ocidente, onde a arte é um instrumento de poder em relação a outros seres humanos. Mas quando esses artistas indígenas se propõem a circular de uma maneira que se utiliza de linguagens não indígenas também é uma estratégia de conversar por uma língua que seja entendido por quem não faz parte dessa cultura. Acho que se a gente começasse a trabalhar com códigos que só, por exemplo, os Baniwas entendessem ficaria difícil para o meu trabalho conversar com quem não é Baniwa.

Pode exemplificar?

DB – Recentemente eu estava num congresso falando sobre decolonialidade e sobre apropriações históricas e alguém me provocou falando: “Você está falando de descolonização mas está falando em português, está articulando os pensamentos de uma maneira ocidental que não é Baniwa. Como você quer falar de descolonização se você não utiliza a linguagem indígena, já que você quer quebrar com esse processo histórico?”. Eu respondi em Baniwa para ela e ela não entendeu. E eu disse: “Esse é o motivo que a gente utiliza de linguagens não indígenas”. Se formos, de cara, falar num código que só indígenas entendem, essa comunicação vai ficar com ruídos muito grandes. O que os artistas indígenas têm feito nesse momento é conversar em código que seja entendível pela maioria das pessoas, indígenas ou não. Acho que em determinado ponto nesse caminho a gente vai começar a falar em códigos indígenas. Mas vai ser um grande processo ainda.

Já que apontou a questão da descolonização/decolonização, queria saber como você acha que isso tem avançado aqui.

O discurso de decolonização é cheio de controvérsias e equívocos, porque até onde a gente sabe tudo isso começou com uma mulher latino-americana que começou a falar e publicar sobre isso. Ninguém deu ouvidos a ela, primeiro porque ela é mulher e segundo porque é da América Latina. Tudo o que ela já falava e publicava acabou sendo absorvido por um grupo de homens da academia europeia. A partir daí, começaram a olhar para esses temas. É tudo muito complexo nesse discurso, a começar pela academia só ter levado em consideração quando um homem, hétero, branco e europeu falou sobre. E também é uma questão que ainda é discutida por pessoas que não são desses lugares “descolonizados”. Acho que, inclusive, nós indígenas quando assinamos “decolonize” ao invés de “descolonize” é um modo de nos colocarmos em um lugar diferente do que a academia ocidental discute. É um modo de colocar que é um pensamento diferente, talvez não o pensamento, mas uma posição diferente dentro da discussão. Mas no Brasil isso é muito recente. Em outros lugares da América Latina a discussão é mais antiga.

Metrô-Pamurĩ-Mahsã (Cobra Metrô).
Metrô-Pamurĩ-Mahsã (Cobra Metrô).

E por que só agora?

O Brasil é muito tardio e também não se entende como colônia. A maior ficção colonizadora que a gente tem é que o Brasil foi independente ou é independente. Aqui é o único lugar das Américas que a independência veio por parte do rei e não do povo. Copiamos muito o estilo de vida de outros lugares porque não nos aceitamos brasileiros, ao contrário de outros lugares na América Latina. Na Bolívia, Equador, Chile, você vê que existe um sentimento no qual as pessoas se consideram filhos daquele território.

Você foi um dos fundadores da rádio Yandê, a primeira rádio indígena do país. Tem outros projetos nos quais está envolvido hoje?
A rádio Yandê é um dos projetos mais importantes que eu já consegui realizar. Hoje ele é copiado por vários indígenas, é tido como uma referência em comunicação, escutado acho que em 40 países. É um marco no Brasil. Rádios desse tipo já existiam na América do Norte e do Sul há muito tempo. A gente fez isso em 2013, distante do que já era produzido na América Latina. Hoje é um marco no que é comunicação, no que é acesso à comunicação, no que é estratégia. Quando eu decidi que ia me dedicar ao trabalho artístico, não consegui mais dar conta da Yandê. Eu saí da coordenação e das ações. Então é um projeto muito importante, que eu tenho muito orgulho, que eu participo ainda, mas que eu não faço mais parte da linha de frente porque precisaria de uma dedicação maior. Fora isso, eu tenho estado no movimento indígena, como sempre, e dentro de discussões sobre acesso à informação e acesso à universidade. Participo das reuniões em universidades onde têm grupos indígenas, tenho participado de reuniões de ações de retomada de território. Tudo o que eu faço agora é ligado a um trabalho artístico, a uma pesquisa artística.

Diabetes
Diabetes

Quando você decidiu se focar quase inteiramente ao trabalho como artista?

Eu nunca tive um pensamento sobre trabalhar enquanto artista ou viver uma vida de artista. Em 2015 fui convidado para fazer a identidade visual, junto com uma arquiteta do Nordeste, da mostra DjaGuata Porã, que ficou no Museu de Arte do Rio (MAR) em 2016/2017. E acabou que conheci os curadores Clarissa Diniz, José Ribamar Bessa, Pablo Lafuente e a Sandra Benites, que eu já conhecia. Tive um contato grande com esse grupo que trabalhava no MAR. Por acidente, eles conheceram alguns trabalhos meus e comecei a conversar com esses curadores sobre a presença indígena dentro desses espaços. Eu já tinha algumas discussões sobre comunicação, sobre acesso à informação e à mídia. E começamos a falar sobre isso a partir de uma perspectiva da história da arte. Acabou que me envolvi bastante com esse grupo e começamos a levar essa discussão a outros lugares, para algumas galerias e para as universidades. Aos poucos, as pessoas foram conhecendo alguns trabalhos meus. Na verdade, eu sempre trabalhei com visualidade. Não sei dizer uma data exata em que eu passei a me considerar artista, só sei que quando vi estava com meu tempo todo dedicado a isso e não conseguia mais sair. Foi quando notei que não conseguia dar conta de mais nada além de ser artista.

Você ganhou o PIPA Online no ano passado. Como foi para você?

O PIPA foi uma grande surpresa pra mim. Eu tinha noção do que era por conta do Jaider Esbell, da Arissana Pataxó e do Ibã Huni Kuin que já tinham participado. Mas eu não entendia direito o que era o PIPA ainda, ou a importância dele e o alcance que tinha. Foi uma surpresa quando me mandaram um e-mail falando que eu tinha sido indicado. Primeiro porque sou um artista que não tem formação em arte, não frequentei a escola de Belas Artes e nem esse círculo de pessoas que têm uma tradição na arte. Sou bem recente nesse mundo, então fiquei muito surpreso com a indicação. Passado isso, foi muito recompensador para mim em vários sentidos. Primeiro que para a população indígena no geral, na aldeia (falando pelo meu povo, que está lá no Rio Negro), a arte não significa nada, não quer dizer nada esse trabalho de exposições, de galerias. Foi uma surpresa porque eu não fazia ideia de que eles me acompanhavam. Quando teve o PIPA e começamos a compartilhar o link, várias pessoas lá da minha comunidade, dos Baniwa e de outros povos da minha região, mandaram uma mensagem dizendo que estavam torcendo por mim. Foi a primeira vez que eu tive noção de que o meu trabalho estava alcançando esse lugar, que eles sabiam o que eu estava fazendo e que entendiam o que eu estava fazendo. Em segundo lugar, foi bem legal porque eles se mobilizaram para votar em mim. Isso me deixou muito feliz. Fez eu entender a importância de eu estar aqui, que eles confiavam em mim.

Cunhatain antropofagia musical
Cunhatain antropofagia musical

E depois do prêmio?

Foram três momentos: de entender que os indígenas da aldeia sabiam do meu trabalho; depois de ver um monte de gente que conhecia meu trabalho e que me acompanhava; e, no final, de perceber o alcance que o prêmio tinha para fora de tudo o que eu conhecia. O PIPA foi um divisor para mim, porque acho que ele me fez ver um pouco mais de como eu podia trabalhar, de até onde eu chegava e como eu poderia me comunicar com o mundo pelo meu trabalho.

Você falou agora sobre sua relação com seu povo. Você tem um cuidado muito grande para transpor elementos da sua cultura para seus trabalhos, como questões religiosas...
Eu tenho esse cuidado porque dentro da cosmogonia Baniwa, da criação, tem uma ética, digamos assim, que tem vários conselhos que a gente tem que seguir durante a vida. Um deles, com o PIPA, eu meio que “quebrei”, que é ter que andar de maneira discreta pelo mundo, que suas ações têm que ser maiores que a sua imagem, a sua presença. As ações e o trabalho têm que ser maiores que a nossa vaidade, talvez essa fosse a melhor tradução. E outra coisa que me faz pensar sobre o que quero falar e o que posso falar, não que seja uma obrigação – mas é como eu entendo –, é você viver nesse mundo sem envergonhar o seu povo. E acho que isso é uma coisa que eu quero levar. Eu quero viver nesse mundo em que meu povo possa se orgulhar sabendo que não vou prejudicá-los, porque sei que o único lugar que eu posso voltar é para o meu povo. Eu posso fazer muito sucesso aqui, posso viajar muito, posso ganhar mil coisas onde estou neste momento. Mas, se um dia algo der errado, o único lugar que vai me aceitar é junto do meu povo.

Infogravura feita por Baniwa
Antropofagia musical, 2016, infogravura, tamanhos variaveis

É uma questão de apropriação?

Não sei se apropriação… Às vezes são coisas que as pessoas não têm autoridade para fazer. Por exemplo, as cestarias Baniwa têm todo um símbolo, todo um código. É um objeto que ativa conexões entre vários mundos. Se eu utilizo uma cestaria eu tenho que entender que ativações esse objeto realiza. Então são coisas sobre as quais não se tem controle. É um descuido, ou um não entendimento, de como funciona o mundo indígena, onde a arte não se desliga da vida e o espiritual não se desliga do mundo natural, digamos assim.

E as discussões em torno da apropriação cultural por parte de outros?

Eu acho que roubo é roubo. Se você é um ladrão, tem que assumir o seu roubo. O que me incomoda na apropriação na arte não é o roubo em si, mas a ficção criada em cima do roubo. Quando alguém passa uma semana em uma aldeia e volta se achando o pajé. Essa ficção criada para justificar o roubo é o que me incomoda. É como uma desculpa. Eu vejo muito isso em alguns lugares que vou e tem artistas que se utilizam de padrões, de discursos indígenas, de medicinas. Tem sempre uma história mirabolante em torno de tudo. Isso me deixa fatigado. As pessoas precisam assumir “eu roubei e vou utilizar isso aqui”, porque aí as coisas ficam mais claras. É como se utilizar dos grafismos indígenas para criar uma coleção de roupas e falar que está valorizando a floresta e os povos indígenas. Não. Criou-se uma estampa a partir de um grafismo indígena porque quer vender. 

2016 | 32a Bienal de São Paulo: “A arte que surge do diálogo”

Takuma
O diretor indígena Takumã Kuikuro, do Vídeo nas Aldeias, em filmagem no Parque do Xingu. Foto Vincent Carelli

Foi no ano de 1986 que o indigenista e cineasta Vincent Carelli realizou sua primeira experiência de produção audiovisual com os índios nambikwara, em Mato Grosso. Ao filmar a vida daquela população, ele poderia fazer apenas o que já era prática corrente no País havia décadas, ou seja, registrar os costumes de povos considerados “exóticos” e apresentar o resultado na TV, cinema ou em ambientes acadêmicos. O interesse do documentarista, no entanto, era outro. “A ideia era ver como os índios reagiriam ao se confrontar com a própria imagem, e ao se apropriar dela”, conta Carelli, que passou a exibir e debater o que filmava com os habitantes locais, e não com os “homens brancos”. Mais do que isso, a vontade era que a prática se tornasse coletiva, e o cineasta logo passou a câmera para as mãos dos próprios índios.

Hoje, 30 anos depois e consagrado, o projeto Vídeo nas Aldeias (VNA) já ajudou a formar dezenas de diretores indígenas pelo País e, junto a isso, a criar uma nova gramática cinematográfica. Um tanto surpreendente para o circuito da arte contemporânea – por ser visto por alguns como um projeto mais ligado ao meio acadêmico do que artístico –, o VNA é um dos escolhidos para expor na 32ª edição da Bienal Internacional de São Paulo, intitulada Incerteza Viva, dentro de uma proposta da curadoria de apresentar produções criadas em diálogo estreito com comunidades, povos e grupos culturais populares de diversos cantos do mundo.

Não se trata de arte política e engajada, no sentido tradicional, nem de trabalhos que procurem documentar a realidade, mas de práticas colaborativas que revelam outros modos de fazer arte, como explica o curador Jochen Volz. “Se alguns anos atrás existia a tendência do ‘artista antropólogo’, que queria mostrar outras culturas, acho que hoje é forte essa ideia de realmente participar. Não mostrar, mas estar junto, fazer junto”, diz Volz, referindo-se a uma série de trabalhos que estarão na Bienal – como os dos artistas Bárbara Wagner, Felipe Mujica e Cecilia Bengolea, entrevistados pela ARTE!Brasileiros.

Nesse sentido, o Vídeo nas Aldeias é um dos casos mais radicais, já que, mesmo que coordenado por Carelli e uma equipe, foi apropriado pelos índios e se tornou um cinema feito por eles mesmos. Segundo Carelli, a entrega da câmera subverteu a lógica tradicional, na qual o homem branco é quem vai estudar e falar sobre “o outro”. E ao mudar o ponto de vista, mudam também simbologias e temáticas: “No começo, eu fui com a ideia de fazer um trabalho de denúncia, político, mas os índios demonstraram um outro interesse, e se entusiasmaram em apresentar o que interessa a eles, as belas coisas, os seus tesouros culturais. Imediatamente eu entendi que a grande questão política de toda minoria é a questão identitária, que é cultural, de afirmação”.

Cena de “Estás vendo coisas”, de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca. Foto: Divulgação

Ao se apropriar da câmera e criar narrativas próprias, em geral construídas coletivamente nas aldeias, os índios passaram a desenvolver linguagens – de modo principalmente intuitivo, apesar das oficinas de formação comandadas por Carelli – e a fazer sua própria arte. “Mesmo que esses vídeos sejam peças de interesse etnográfico, acho que são essencialmente cinematográficas, no plano artístico. Não é um vídeo relatório, de panfleto. É cinema”, diz Carelli. “E, quando eles assistem aos próprios filmes, superam finalmente aquela decepção que todo povo indígena enfrenta com o audiovisual, que é o da expropriação, da manipulação, da TV que omite o que era o mais importante para eles”.

DO BREGA AO DANCEHALL
Também discutindo processos de apropriação, colaboração, documentação e experimentação, a fotógrafa e artista visual Bárbara Wagner tem chamado a atenção por suas pesquisas centradas em grupos e manifestações culturais aparentemente marginalizadas e em suas estratégias de visibilidade e subversão dentro da indústria cultural e de consumo. Em séries de fotos como Brasília Teimosa (2005-2007) – que adentra o universo “cafona” e “vulgar” dos frequentadores de uma praia recifense – e Estrela Brilhante (2008-2010) – que investiga o mundo do maracatu em Nazaré da Mata (PE) –, Wagner transita em ambientes e estabelece diálogos na busca de não folclorizar ou exotizar “o outro”. Mostra, também, que muitas dessas culturas ditas “periféricas” não buscam mais a aprovação dos “centros” e que, subvertendo velhas dicotomias, chegam sem pedir passagem.

Competicao internacional Dancehall Queen
Competição internacional Dancehall Queen (2013), em Montego Bay (Jamaica), que será tema do trabalho de Cecilia Bengolea e Jeremy Deller

Para a 32ª Bienal, a artista deve aprofundar sua pesquisa mais recente, em torno dos MCs de brega do Recife, e apresentar o inédito Estás Vendo Coisas, feito em parceria com Benjamin de Burca. Assim como no caso do Vídeo nas Aldeias, a ideia não é apenas documentar ou se apropriar de uma cultura alheia: “O que eu quero é estar dentro, conversar, entrar em acordos. Não se trata de ir lá, tirar um produto deles e deslocar para a Bienal”, diz Wagner. Nesse sentido, a artista relativiza uma ideia presente em diversos campos do conhecimento – das artes à antropologia, da arquitetura à política – de que se deve “dar voz aos marginalizados” e às suas manifestações culturais. “Eles têm controle da própria imagem e da própria voz, então para nós deve haver um processo de escuta e observação. E eu sempre me pergunto que contribuição eu posso dar para a documentação da produção cultural desses grupos, mas que seja de forma colaborativa”, conclui a artista.

“É melhor dar voz do que esconder”, brinca Volz. “Mas acho que já podemos partir de outro patamar de discussão, sem essa ideia da cultura central ou periférica. É muito mais interessante pensar em uma rede que é horizontal, que permite que as coisas aconteçam em algum lugar e reverberem para toda a rede. Então se trata mais de ouvir, interagir e entender que a cultura engloba tudo isso”. Engloba, por exemplo, as competições de dancehall queen, na Jamaica, onde a dançarina argentina Cecilia Bengolea e o artista Jeremy Deller produzirão um vídeo para a Bienal. Coreógrafa e bailarina, Bengolea pesquisa e participa há anos da popular competição de dança jamaicana. Este ano, além de competir, produzirá com Deller um vídeo sobre o evento, uma mistura de documentário e ficção feita em diálogo com os dançarinos e outros personagens locais.

CORTINAS E COSTURAS
Ao apresentar projetos produzidos em diálogo estreito com comunidades e com questões da realidade concreta, a 32ª Bienal de São Paulo, que acontece entre 10 de setembro e 11 de dezembro, busca também – “através da poética da arte”, segundo Volz – contribuir para discussões globais sobre economia, política, condições sociais e climáticas, entre outras. O título, Incerteza Viva, surge nesta linha, partindo da constatação de que “a incerteza é a condição em que todos nós vivemos”. Quem melhor do que os índios, por exemplo, para falar de incerteza? “Eles vivem a incerteza permanente”, diz Carelli. “A cada década há um redimensionamento de suas terras. É um ciclo neocolonial perpétuo.”

Com a proposta de se aproximar dessas questões contemporâneas, a mostra procura também trazer o público para perto do pavilhão da Bienal. “Essa arte feita em diálogo com as populações aproxima as pessoas da arte contemporânea, muitas vezes vista como algo tão longínquo”, diz o artista chileno Felipe Mujica, que participa da edição com uma série de cortinas que serão produzidas com as bordadeiras do Jardim Conceição, de Osasco, e os designers e estilistas Alex Cassimiro e Valentina Soares, de São Paulo. Assim como fez na Bienal de Cuenca (Equador) de 2014, quando criou seus trabalhos com as bordadeiras de uma oficina familiar de costura da cidade, Mujica quer, aqui, produzir em diálogo com agentes locais. Apesar de conhecido por suas cortinas – feitas com diferentes tecidos e desenhos geométricos –, o chileno não domina todo o processo de produção de sua obra, e faz disso não uma falta, mas uma possibilidade. “Eu não costuro, então me interessa também aprender com a pessoa que costura as cortinas. E aí sempre se produz um diálogo entre o que eu pretendo fazer e o que a pessoa propõe e diz que é possível”, explica.

Em São Paulo serão cerca de 30 cortinas penduradas no pavilhão que, segundo Mujica, estarão posicionadas de modo a criar novos espaços e relações com a arquitetura do local. Ao dialogar com comunidades e ao chamar seus trabalhos artísticos de “cortinas”, o chileno procura, justamente, se aproximar da vida real: “Tem gente que quer chamar de banners ou bandeiras, mas eu prefiro chamar de cortinas, porque me interessa que se mantenha essa noção doméstica, que se relaciona com a vida das pessoas”. Para se relacionar mais concretamente com a realidade que pretende debater, a 32ª Bienal está promovendo também os Dias de Estudo – em Cuiabá (Brasil), Santiago (Chile), Acra (Gana) e na Amazônia Peruana – nos quais curadores, artistas e outros envolvidos na produção do evento visitam comunidades locais, reservas ecológicas, centros culturais e estúdios de artistas.

Comissionando os trabalhos criados em diálogo com grupos culturais diversos, a Bienal mostra também coerência com o conceito que a norteia, de “incerteza viva”, não só nos debates e temáticas que promove, mas nos próprios processos de produção das obras. Um trabalho feito em constante negociação com terceiros é também fruto do improviso e da experimentação, e não pode ter um resultado final preestabelecido, como explica Mujica. “Ao se trabalhar nesse diálogo com as pessoas, o resultado também é sempre incerto”, afirma. Incerto, segundo Volz, pois criado em relação com a vida concreta, ela mesma imprevisível: “A arte nos permite criar narrativas, provocar questionamentos e reflexões, mas na verdade são reflexões que partem da vida real em suas várias dimensões”. E ele conclui: “Isso tem a ver com entender que os níveis de conhecimento e abstração são múltiplos. E a polifonia entre comunidades indígenas, jamaicanas de dancehall, de artesãos e bordadeiras, de MCs de bregas e assim por diante, isso é o que nos interessa muito”.