O artista plástico Cildo Meireles
O artista plástico Cildo Meireles em seu ateliê, no Rio de Janeiro/Marcos Pinto

A expressão “uma agulha perdida em um palheiro” está em mais de 17 mil páginas da internet, utilizada de forma comum para designar algo impossível de se encontrar. Foi a partir dessa expressão que Cildo Meireles criou Fio, fardos de palha envoltos por cem metros de fios de ouro, com uma agulha também de ouro na ponta. “Gosto quando as coisas são fundadas no imaginário do maior número de pessoas”, explica Cildo, em seu espaçoso ateliê, em Botafogo, no Rio.

Um dos artistas contemporâneos brasileiros de maior visibilidade no exterior, com retrospectivas recentes na Inglaterra, Espanha, Dinamarca, Itália e em Portugal, Cildo Meireles, 67 anos, é hoje também um dos mais populares no País, graças às suas instalações permanentes em Inhotim: Através e Desvio para o Vermelho. Versões de ambas, a propósito, estarão também em exibição permanente nos EUA, em Glenstone, um museu próximo a Washington, com características semelhantes às de Brumadinho.

Fio é uma das obras de Meireles em exibição no 34º Panorama da Arte Brasileira do Museu de Arte Moderna, na sala menor, em uma seção denominada Imersão, que busca contextualizar as obras da mostra.

“Criei essa obra a partir de uma mostra chamada Ouro e Paus, em 1990, quando eu usava dois materiais comuns, mas com valores muito distintos, como a madeira e o ouro”, conta. A exposição reunia desde uma cama de faquir com pregos de ouro a caixas montadas com o mesmo elemento nobre. “Em 1999, quando mostrei Fio no New Museum, em Nova York, ela foi roubada, mas não acho isso grave”, afirma, desprendido, num estilo que parece acompanhar sua vida. Afinal, apesar de ser um dos mais badalados artistas nacionais, ele se veste sempre de forma casual e com um boné surrado, que chama de “minha peruca”.

Uma das obras mais recentes de Meireles, Aquarum, dois copos, um cheio de água com tensão superficial, ou seja, com o líquido um pouco acima das bordas, e outro cheio de ouro, está em exibição em sua galeria italiana, a Continua, até janeiro de 2016. “O ouro é tão denso que, para encher um copo, foram precisos 8,5 kg”, diz, como se o material não tivesse muito valor, quando na verdade só o custo da obra ultrapassou R$ 1 milhão. “Mas o copo com ouro é o brinde para quem levar o copo com água”, ironiza.

Por que usar materiais como ouro? “Primeiro, porque desde os anos 1970 realizei trabalhos que tinham tanto o material mais barato quanto o mais caro. Depois, o que me interessa como artista é quando o tema passa a ser matéria-prima”, afirma.
De fato, muitas de suas obras partem da matéria como primeiro produtor de significado, caso de Missão/Missões (Como Construir Catedrais), de 1987, exibida na antológica Magiciens de la Terre, em Paris. Nela, um chão de 600 mil moedas se une por um fio de 800 hóstias a um céu de dois mil ossos, uma obra com leitura marcadamente crítica sobre a ação dos missionários no Sul do País.

A política, contudo, entrou na poética do artista por motivos alheios às suas primeiras intensões. Meireles nunca estudou arte formalmente. Aos 15 anos, em 1963, em Brasília, ele frequentou o Ateliê Livre da Fundação Cultural do Distrito Federal, coordenado pelo peruano Barreneschea, com quem seguiu estudando, mesmo após seu fechamento, pelos militares, no ano seguinte. Já em 1968, Meireles entrou na Escola Nacional de Belas Artes, no Rio, mas desistiu dois meses depois: “Eles ensinavam o que eu já sabia, não tinha sentido”.

“Fio”, uma das obras de Cildo Meireles em exibição no 34º Panorama da Arte Brasileira
“Fio”, uma das obras de Cildo Meireles em exibição no 34º Panorama da Arte Brasileira, do Museu de Arte Moderna de São Paulo/Foto: Divulgação

A essa altura, no entanto, o artista já estava trabalhando em duas séries cujos projetos ele até hoje continua a realizar: os Volumes Virtuais e os Cantos. Esses últimos, quinas que desafiavam o sistema euclidiano, podiam ser adentrados pelos espectadores. Seria uma forma de criar penetráveis, como as propostas de Hélio Oiticica? “Naquele momento, era um caminho quase inverso. Ele buscava algo mais telúrico e ao mesmo tempo com participação popular, já eu queria simplificar o espaço, estava no caminho da abstração”, recorda-se.

Tanto os Volumes Virtuais como os Cantos acabaram selecionados para uma mostra no Museu de Arte Moderna do Rio, em 1969, a pré-Bienal de Paris, de onde sairiam representantes do País para a mostra francesa. Contudo, por conta da ditadura, a exposição foi fechada pelos militares antes mesmo de ser aberta, forçando Cildo a um desvio para um caráter político.
Sua primeira obra com tal faceta, logo em seguida, foi nada menos que Tiradentes: Totem Monumento ao Preso Político ou Introdução a uma Nova Crítica, em que queimava galinhas vivas no dia 21 de abril de 1970, parte da mostra Do Corpo à Terra, organizada por Frederico Morais, em Belo Horizonte.

Naquela época, com apenas 22 anos, Cildo já havia sido convidado pelo curador Kynaston McShine para a mostra Information, que seria realizada no MoMA, também em 1970, que teria ainda Artur Barrio, Hélio Oiticica e Guilherme Vaz. O convite veio por sua participação no Salão da Bússola, no MAM carioca, no ano anterior, quando McShine viu os Espaços Virtuais.
Foi no trem Vera Cruz, que fazia o trajeto BH-RJ, que o artista escreveu Cruzeiro do Sul, o manifesto que explicaria sua participação na mostra norte-americana, que começa com a frase clássica “Não estou aqui nesta exposição para defender uma carreira e nem uma nacionalidade.”

Contudo, a obra para Information, que veio a se tornar um de seus ícones, saiu de forma mais espontânea, no fim de semana seguinte. Após ir a uma praia afastada com amigos, no caminho de volta o grupo parou para almoçar em um boteco. Foi onde um dos amigos jogou um caroço de azeitona dentro de uma garrafa de Coca-Cola e contou que, por conta do processo de lavagem industrial, seria impossível tirar o caroço. Foi aí o Eureka! do artista: “Eu achava o texto Inserções um tanto obscuro e, com a possibilidade de intervir em uma garrafa, eu punha em prática minhas ideias. A partir daí também imprimi textos em notas, usando serigrafias em ambas”. Foi Oiticica quem acabou levando as garrafas de Coca-Cola, para a mostra no MoMA, todas impressas com a ajuda do artista Dionísio del Santo.

Naquele período, no Rio, Meireles vivia em Santa Teresa, pagando algo em torno de cem cruzeiros, por um pequeno quarto. Foi lá, há quase 50 anos, que a então jovem curadora Aracy Amaral o visitou pela primeira vez, e desde então acompanha seu trabalho de perto.

Encarregada do 34º Panorama da Arte Brasileira, Da Pedra Da Terra Daqui, Aracy resgatou um projeto do artista, que ela deve ter conhecido em 1969, a série Arte Física, composta por várias proposições, uma delas retirar do ponto mais alto do pico mais alto do Brasil cerca de um centímetro de matéria e, em seu lugar, colocar algo de dois centímetros do subsolo do País.
Para o Panorama, não foi o próprio artista que realizou o projeto, mas Edouard Fraipont e seu assistente Miguel Escobar, usando um pedaço do mineral kimberlito para aumentar em um centímetro a altura do País, colocando em prática outra regra da poética de Meireles, em sua própria definição: “A partir do mínimo possível, alterar o máximo possível”.

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