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“Leçons de la pierre”, de Ícaro Lira

O texto a seguir é de autoria da curadora francesa Elena Lespes Muñoz, escrito para a mostra Leçons de la pierre, de Ícaro Lira. A exposição está em cartaz na Galeria Salle Principale, em Paris, até 1 de fevereiro de 2020. Esta é a primeira exposição individual do artista na França. A tradução para o português é de Marta Lança.


*Por Elena Lespes Muñoz 

Pacientemente e um pouco ao acaso, porém com uma curiosidade concentrada, ele tira da caixa o conteúdo que vai dispondo no chão. A imagem devota de uma Virgem azulada, um pedaço de pano endurecido que parece cartão costurado, uma carta manuscrita cujas primeiras linhas foram lidas sem as tentar entender e pequenas fotografias amareladas com cantos redondos e acizentados. Espalhados desta forma, montados como um quadro no atrito da areia, o conjunto funciona por afloramentos. Não que esses objetos venham da mesma caixinha de metal para dizer algo comum – o tempo, a costura da história -, mas esse ato de organizar e de montar que Ícaro engendra, tem algo de edição. Documentário ou ficção, não interessa.

Sentada ao seu lado, vejo-o manusear os objetos no sótão da minha bisavó. Sem timidez, mas com a modéstia do estrangeiro em território íntimo, levanta tampas, puxa papéis de uma pilha de documentos, sopra poeira, pára em miniaturas de objetos infantis presas por uma corda áspera -, passa rapidamente para outros, faz perguntas, ouve. Não podemos dizer que está à procura de alguma coisa, mas essa ténue atenção que ele dá aos objetos, histórias que eles podem ou não contar, aos seus eventuais deslizes para outras histórias, reencontraria mais tarde ao caminhar nas ruas de Londres, trocando ideias sobre a exposição que estávamos preparando para a Galeria Salle Principale.

De há uns anos para cá, Ícaro Lira, um artista brasileiro de quem a primeira exposição individual em França foca a questão do deslocamento, controle e isolamento social. Uma história de fissuras e deslocamentos, a história da migração é mais do que uma história de origem – de onde se vem -, é uma história de circulação e de demarcação – onde se vive, onde permanecemos, o que foi preciso para aí ficar. Uma demarcação em relação à terra nativa, é claro, mas também àquela sofrida, implícita ou explicitamente, na terra de recepção. O que é viver em algum lugar? Pertencemos ao lugar onde moramos? O que define a nossa pertença a determinado lugar? A que é que, mas também a quem somos estrangeiros? Dos territórios do nordeste brasileiro de onde ele vem e onde nunca pára de voltar, às ruas de São Paulo, Londres, Paris, Nápoles ou uma pequena vila andaluza, o artista vive em passagem. Não mais viajante do que exilado ou migrante, Ícaro Lira não celebra o nomadismo, mas está interessado nas transfigurações – políticas, económicas, sociais, mas também íntimas – que as circulações engendram. A partir das suas viagens, que são sobretudo encontros, traz objetos de volta: ripas de madeira, pedras, quadros, lixo, documentos administrativos, artigos de imprensa, mas também entrevistas em áudio e notas pessoais. Tantos traços com histórias singulares que, justapostos e em conjunto, formam uma malha de significado frágil aberta à interpretação.

Assim, pela acumulação díspares de detalhes, talvez inicialmente inócuo, algo provém do seu trabalho. Forma-se algo parecido com uma narrativa, ou algo que toma o lugar do rascunho do voluntário. Para silenciar o espaço, avançar nas histórias, deixar surgir as aproximações, como arquivista consciente, Ícaro Lira dedica-se, no entanto, à tarefa que lhe parece ser incumbida. Com as regras de classificação, separação e atribuição, prefere o acumular modesto e discreto de objetos heterogéneos e as linhas de fuga abertas por associações efémeras. Dizer mas preferir não. Procurar contar a história de trajetórias íntimas ou coletivas por agrupamentos frágeis e pouco ruidosos, para dar a ver linhas de significado irredutíveis às grandes narrativas. E com a voz monótona, prefere o arquivo íntimo, forma físsil e não homogénea por excelência. Assim, o deslocamento de um objeto sempre será possível e, com ele, uma escrita que incessantemente não se consegue concluir-se. Talvez seja o que Ícaro está tentando fazer aqui, um cesto de ficção[1]: uma história que seria contada a partir de cacos e papéis enfiados às cegas no bolso da calça Jeans.

Os objetos e documentos coletados e montados por Lira constituem um agenciamento plástico a par de uma dicção poética. Assemelha-se a uma prosa interior na qual o olhar e o pensamento vêm fundir-se aos gestos repetidos de deslocamento, de justaposição, de separação, de recuperação e associação. Os objetos funcionam igualmente como significantes como sinais. Para lá do valor documental que uma fotografia tirada da revista Paris Match ou que uma nota de mil cruzeiros possa ter, parece-me que existem dois modos de se relacionar com o real. O primeiro baseado numa lógica de índice, o documento, como um vestígio, referindo-se a um regime específico de conhecimento e de representação, é um veículo de acesso ao passado. A essas histórias prolongadas no tempo e aos silêncios que, para se tornarem de membranas tão finas, devem a existência ao palimpsesto de vozes e de memórias. Mas, mesmo assim, seria imediatamente devedor na sua função de prova pelas manipulações e deslocamentos que o artista lhe fez passar. O outro, mais precário, revelaria um pensamento: um pensamento como aquilo que resiste precisamente ao inteligível. Neste sentido, com detalhes tais como uma romã seca ou um pedaço de ardósia, Ícaro trabalha mais com conotações do que com certezas, conseguindo, na sua própria insignificância, atingir algo do real. Seria errado conceber esses documentos e objetos como único meio de acesso aos fatos, buscar nos seus pormenores uma linha de sentido que lhe concedesse toda a importância e justificasse a sua presença no dispositivo aqui implantado. Em vez disso, levam-nos a pensar em como aceder os fatos que conseguem contar. Duas edições da imprensa nacional brasileira – A Folha de São Paulo – uma de 8 de abril de 2018, outra de 29 de outubro de 2018, estão dispostas lado a lado, no chão, no papel que serviu para proteger e transportá-las. Uma anuncia a prisão de Lula, outra a nomeação de Bolsonaro para presidente do Brasil. Ícaro transportou consigo esses dois números na mala, por um ano, sem saber o que lhes haveria de fazer. Nem o fazer com aquilo que eles enunciam. Leveza, não tenho certeza – preso / peso (prisioneiro / peso). A sua materialidade resiste ao discurso.

As montagens de Ícaro iludem qualquer forma de integração num discurso excedente, são avessas à linearidade e demonstração. Preferindo a possibilidade de investimento íntimo à síntese de um discurso totalizador. O paradigma de indexação é, portanto, bloqueado. Depositados aqui e ali, objetos como um pedaço da rocha obsidiana, figurinhas de Chiquilin ou um livro, acompanham as obras – elas próprias feitas de outros objetos -, enfatizando a sua dimensão material e irredutível. A obra torna-se, assim, o espaço expositivo de uma coleção pessoal, onde se pode ler trechos de histórias, que giram constantemente em torno dos vestígios que Ícaro vai recolhendo. Nesse conjunto os objetos nunca funcionam em bruto, mas engajados numa lógica de montagem e de exibição. Portanto, é menos a restituição de uma história que se desenrola diante de nossos olhos do que um relacionamento íntimo com ela.

Por essa abordagem que não pretende de todo fechar-se, mas oferecer-se, como escuta, à pluralidade de histórias e vozes, à sua vulnerabilidade, Ícaro Lira dá conta de uma profunda empatia pelas experiências vividas. A exposição na galeria Salle Principale aparece como um nó. Um nó temporário de vozes, encontros e histórias, de territórios atravessados, habitados e carregados em cada um, de temporalidades distintas constantemente reconduzidas por colagens renovadas. Neste sentido, não atua no modo da instituição, mas mais no ato de quebrar e abrir. A enunciação é plural e especular. Faz-se ouvir de repente, nas sequências e articulações da montagem, no eco dos encontros que o viram nascer e que faz suscitar.


Lições de pedra, título da exposição, é extraído do poema A Educação pela Pedra, de João Cabral de Melo Neto, publicado em 1965.

[1] “(…) todos já ouvimos falar de paus, lanças e espadas, de todos esses instrumentos com os qual atacamos, se perfura e se bate, dessas coisas longas e duras. No entanto, não ouvimos nada sobre a coisa em que colocamos outras coisas, o recipiente e as coisas que ele contém.
Esta é uma nova história. ”Ursula Le Guin, em“ Teoria da ficção-cesta ”(título original: The Carrier Bag Theory of Fiction, 1986).


*Elena Lespes Muñoz vive e trabalha em Paris. Historiadora de arte (Universidade de Paris I e Universidade de São Paulo). Coordenou projetos em arte contemporânea na Fundação Kadist. Trabalhou na associação Artesur (dedicada à arte contemporânea na América Latina) e na Galeria Aline Vidal, além de curadora de exposições (Le bruit des choses qui tombent, FRAC-PACA, 2017; Video SUR, Palais de Tokyo, 2018). Atualmente, é gestora de comunicação e mediação da CAC Brétigny.


Leçons de la pierre, de Ícaro Lira
Até 1 de fevereiro
Galeria Salle principale: 28, rue de Thionville 75019 Paris, França
Mais infos: +33 9 72 30 98 70 | gallery@salleprincipale.com
Quarta à sexta | 14:00 às 19:00 sábado | 11h às 19h e mediante agendamento www.salleprincipale.com

A arte da palavra na obra de Ana Teixeira

“O que é pra ser são as palavras”. A frase anterior, que a artista Ana Teixeira atribui a Guimarães Rosa, é para ela muito significativa. Crescida em uma família onde a literatura e o cinema eram essenciais, a construção de uma relação forte com o objeto ‘palavra’ foi, para ela, inevitável e progressiva. Alguns desdobramentos disso estão presentes na exposição É tarde, mas ainda temos tempo, individual da artista no Centro Universitário Maria Antônia, em São Paulo.

A curadoria de Galciani Neves reúne também trabalhos inéditos de Ana, como Cala a boca já morreu, uma outra versão dele foi apresentada também na coletiva referente ao 7º Prêmio Indústria Nacional Marcantonio Vilaça — do qual a artista foi uma das 30 finalistas –, sediada no MAB-FAAP entre setembro e outubro do ano passado. Para a sua individual, ela passou dez dias desenhando mais de 40 mulheres em uma das paredes do espaço expositivo, mulheres essas que seguravam cartazes com falas como “Chega de padrões”, “Eu não sou louca, eu tenho opinião”e “Sua opinião sobre meu corpo é sua”.

“Jogar com as palavras é uma coisa que me atrai. Eu acho que a palavra geram desdobramentos que me interessam muito, porque ela gera provocações”, conta Ana.


É tarde, mas ainda temos tempo, de Ana Teixeira
até 2 de fevereiro de 2020
Centro Universitário Maria Antonia: Rua Maria Antônia, 258/294 – Vila Buarque, São Paulo – SP
Mais informações: (11) 3123-5202

Leonor Antunes e a contaminação do experimentalismo moderno

Detalhe de escultura de Leonor Antunes em foto de Fernando Netto/MASP.

A exposição Leonor Antunes: vazios, intervalos e juntas em cartaz no Museu de Arte de São Paulo – Masp parece configurar à primeira vista um desafio ao erudito, mas vai além com um discurso complexo e provocador. As inúmeras referências às obras de arquitetos, artistas, designers do século 20, contidas na produção da artista portuguesa radicada em Berlim, dão corpo a uma espécie de arquivo sobre a produção de nomes fundamentais do experimentalismo moderno, entre eles Anni Albers, Charlotte Perriand, Franco Albini, Clara Porset, Egle Trincanato, Eileen Grey, Eva Hesse, Franca Helg, Gego, Lygia Clark e Ruth Asawa. Todos refletem a ruptura e criação de novos códigos nas artes e promovem indiretamente um encontro entre as suas produções.

Dentro dessa constelação, Lina Bo Bardi, arquiteta que assina o projeto do Masp, é o eixo central da mostra que se estende para a Casa de Vidro, no Morumbi, também projetada pela arquiteta e onde morou com seu marido, Pietro Maria Bardi. A curadoria é de Adriano Pedrosa e Amanda Carneiro em uma exposição que se destaca das demais em cartaz no museu por algumas singularidades. Instalada no primeiro subsolo, a mostra se conecta diretamente com o desenho de Lina: Vazios, intervalos e juntas é uma alusão aos espaços criados por ela em sua arquitetura e dá título à mostra. A peça Villa Neufer, uma escultura feita a partir de uma escada de Albini, abre a exposição. De uso cotidiano, mas com particularidades artísticas e de design, que Amanda denomina espaço vernacular e não canônico, a escada exibe cordas vermelhas que se referem aos trepantes de Lygia Clark e ao mesmo tempo dialoga diretamente com a emblemática escada vermelha de Lina que une dois pisos.

Os trabalhos de Leonor Antunes, em sua maioria, são verticais e geométricos e ocupam um espaço todo envidraçado onde as esculturas parecem flutuar. No piso, Planos em Superfície Modulada, 1952, pintura geométrica de Lygia Clark se dilata por todo o território da exposição. Esta obra marca o deslocamento da pintura para fora da moldura e dá início à sua famosa série Bichos. Pesquisadora apaixonada, na busca incessante de associações entre a produção de vários artistas, Leonor Antunes promove descobertas que se revelam ao longo da mostra. Albini, amigo e cúmplice de Lina no conceito do saber ver e fazer, aparece em vários trabalhos da artista. “Ambos são autores de experiências radicais no contexto italiano do pós-Guerra. Quer Albini, quer Lina viveram a idade adulta durante o regime fascista na Itália, o que lhes trouxe muitas oportunidades de experimentação em termos expositivos simbólicos”.

Dentro do repertório desses artistas há trabalhos que espelham uma contaminação que permite trocas e demonstram historicidade. Os biombos da entrada da sala são feitos a partir de detalhes de duas cadeiras: uma desenhada por Lina para o Masp, e outra por Albini para a Villa Neufer, na Itália. Uma das pernas da cadeira de Lina se funde à perna da cadeira de Albini. Há este tipo de associação, mas este é só um exemplo”. Desse recorte parcial, pode-se acompanhar alguns sistemas construtivos inventados pelos artistas. Chama a atenção um elemento ampliado a partir de uma peça que Lina viu na casa da cubana Clara Porset, no México. Leonor Antunes, em 2015, fez uma exposição na Kunsthale Basel, na qual ela associa a figura de Lina com a figura de Clara. Ambas têm percursos semelhantes, são mulheres que emigram para um outro país onde desenvolvem um trabalho extraordinário ligado ao mobiliário e ao desenho, envolvendo a comunidade indígena e a popular mexicana.

Leonor Antunes constrói peças que intervêm na arquitetura onde são mostradas e o recorte no Masp é desafiador. “Expor neste museu é uma das minhas conquistas. Quando o Adriano Pedrosa me convidou fiquei muito feliz, não só porque admiro e trabalho sobre o universo da Lina há anos, mas também porque o Masp respeita a herança da arquiteta, e a revê na contemporaneidade. Ali se faz um trabalho sério”. A montagem privilegiou a relação da arquitetura do museu com o exterior, abriu as cortinas e deixou a cidade entrar com sua luminosidade natural promovendo a articulação do coletivo e privado. “Como o edifício é tombado e não pude furar o teto, inseri umas grelhas de madeira embutidas dentro dos cubos da sala, como se já pertencessem ao local e daí pude suspender alguns trabalhos”.

A artista vive em Berlim desde 2005, cidade que ela considera responsável pela internacionalização de seu trabalho. “Se tivesse permanecido em Portugal teria sido muito difícil, ou mesmo impossível. Essa mudança foi fundamental na reestruturação do modo como geri minhas pesquisas e consegui materializar o meu trabalho”. Ela fala de uma metrópole desejada por artistas de várias áreas e países, onde muitos passam e alguns ficam e trabalham. “Hoje em dia, assim como em muitos outros lugares, é assustador assistir ao `renascimento` da extrema direita”. A artista tem posições ideológicas definidas sem se preocupar como o mercado de arte. Quando representou Portugal na Bienal de Veneza em 2019, chegou a declarar que se os partidos de direita PSD ou CDS estivessem no poder ela se recusaria a participar. “Minha escolha não é partidária e sim ideológica. Hoje Portugal é um dos poucos países que têm governo de esquerda. Não possui pavilhão próprio em Veneza, (como o Brasil), e a iniciativa de participar da bienal é do Ministério da Cultura, com orçamento muito reduzido”. Ela comenta que o pavilhão dos Estados Unidos é privado e caso fosse governamental nenhum artista que ela conhece representaria o governo de Donald Trump. Comento a falta de mobilização dos brasileiros e a discreta participação de artistas e intelectuais na luta por mudanças. “Os artistas são os primeiros a não se calarem diante de governos reacionários. A arte também é uma forma de demonstração de desencanto com o mundo, ou não. É muito triste o que se passa com o Brasil. Infelizmente a onda populista também atinge outros países e todos nós sabemos onde estão as fontes”.

Leonor Antunes: vazios, intervalos e juntas está em cartaz simultaneamente às exposições de Anna Bella Geiger e Gego e fecha o eixo temático Histórias das mulheres, histórias feministas, que ocorreu ao longo de 2019 no Masp.


Leonor Antunes: vazios, intervalos e juntas 
Até 12 de abril de 2020
Masp: Avenida Paulista, 1578

ESTE ARTE abre os trabalhos das feiras em 2020

Oskar Metsavaht, “Arquétipo”, 2019

Até 08 de janeiro, a ESTE ARTE estará com a 6ª edição em Punta del Este, Uruguai. A feira de arte internacional apresenta uma seleção única de galerias regionais e internacionais e artistas modernos e contemporâneos.

Nessa lista, artistas brasileiros figuram em estandes de galerias tanto nacionais quanto estrangeiras. O artista Oskar Metsavaht, por exemplo, tem duas obras expostas na galeria Reginart Collection – especializada em artistas do século XX, como Dalí, Miró, a Escola de Paris, Léger, Matisse, Modigliani, Picasso e os mestres italianos dos anos 60. No estande, a galeria traz ainda Maria Carmen Perlingeiro, Armando Marrocco, Romain Sarrot e Claude Viallat.

Elle de Barnardini, Sem título, da série “Formas contrassexuals”, 2019.

No espaço da Galería Zielinsky (Espanha), há a presença de trabalhos do brasileiro João Farkas junto a obras de artistas argentinos e uruguaios, como Yamandú Canosa e Diego Pujal. Na Piero Atchugarry, de Miami, Tulio Pinto é o brasileiro com obras em destaque.

Três casas brasileiras participam da ESTE ARTE. A Galeria Karla Osório, de Brasília, apresenta obras de Elle de Bernardini, Catalina León, Lucia Tallová, Daisy Xavier e Luca Benites. Na Galeria Aura (São Paulo), podem ser vistas obras de Renato Custodio, Camilla D’Anunziata e Marcelo Macedo. Por sua vez, a Galeria Mario Cohen (São Paulo), leva grandes nomes de seu acervo, como Ellen Von Unwerth, Pierre Verger, Sebastião Salgado, Otto Stupakoff e Elaine Pessoa, dentre outros.

Orun – SESC Carmo

 “Orun” é uma instalação da artista Paula Scamparini originalmente montada para um edital do Oi Futuro, no Rio de Janeiro. A mostra está em cartaz, agora, no Sesc Carmo, em São Paulo, até o dia 10 de janeiro de 2020.

São 63 monitores suspensos, espalhados pela galeria de exposição da unidade, que mostram depoimentos de pessoas de diversas etnias sobre o entendimento do “céu”. De acordo com a produtora executiva de Orun, Raquel Valadares, Paula se preocupou em reunir uma grande diversidade de pessoas na obra, indo para quilombos, aldeias indígenas, interiores: “Com isso, a gente consegue fazer um céu do Brasil bastante diverso”.

Assista à entrevista completa com Raquel no vídeo acima.


Orun

Até 10 de janeiro
Sesc Carmo: Rua do Carmo, 147 – Sé, São Paulo – SP
Mais informações: (11) 3111-7000

 

Reveja os melhores momentos do ECPS em 2019

Performance São Paulo Companhia de Dança na mostra de Detanico Lain. FOTO: Fábio Furtado

Quatro grandes exposições ocuparam as salas do Espaço Cultural Porto Seguro em 2019. Foram três individuais e uma coletiva que foram apresentadas pela instituição ao longo do ano.

De janeiro a abril, a dupla brasileira radicada na França Detanico Lain, levou um “jardim de códigos” para o espaço expositivo do ECPS. Sob curadoria de Rodrigo Villela, diretor da instituição, a mostra reuniu 14 obras dos artistas, que possuíam alguma relação com a ideia da luz. Afinal, é a luz que indica a passagem do tempo, que permeia todas as obras em algum ponto. E é a luz que mantém um jardim vivo e forte. Relembre matéria publicada na ARTE!Brasileiros 46 clicando aqui. Confira abaixo a performance “A quadratura do círculo”, feita em parceria com a SP Companhia de Dança para a mostra.

Na sequência, a mostra coletiva ligada ao edital Novas Efervescências, lançado no ano passado, levou obras de artistas como Arnaldo Pappalardo, Tiago Mestre e Angella Conte ao espaço. O edital convidava “os artistas a explorar a permeabilidade da instituição para os atuais diálogos de criação”. A comissão julgadora era formada por Isabella Lenzi, Jacopo Crivelli Visconti e Ricardo Ribenboim.

Em agosto, foi a vez da retrospectiva Wrong so Well, que explorou a trajetória do fotógrafo Carlos Moreira. Saiba mais em texto de Helio Campos Mello, publicado em nossa edição 48. Nesta retrospectiva, foram apresentadas cerca de 400 fotos, escolhidas pelos curadores Fábio Furtado, Regina Martins e Rodrigo Villela, em um trabalho de curadoria que começou em janeiro e mergulhou nos arquivos de mais de 50 anos do trabalho do fotógrafo.

Por último, e em cartaz até 2 de fevereiro de 2020, aberta à visitação gratuita, uma individual com obras importantes do artista venezuelano Carlos Cruz-Diez está montada no ECPS. O artista, que faleceu em julho deste ano, auxiliou em todo o processo de concepção da mostra, sendo a última de suas exposições que teve seu olhar. Além das obras cromáticas de Cruz-Diez, A liberdade da cor expõe fotografias em preto e branco que ele tirou no começo de sua carreira. Leia sobre em texto publicado na ARTE!Brasileiros 49.

FAMA Campo

Um espaço dedicado à land art foi inaugurado pela Fábrica de Arte Marcos Amaro (FAMA) no dia 30 de novembro na cidade de Mairinque, no interior de São Paulo. Próximo à sede da instituição em Itu, o local é construído para abrigar obras de arte ao ar livre, fazendo com que elas conversem com a paisagem local.

Confira no vídeo entrevistas com Marcos Amaro, Ksenia Kogan Amaro, Raquel Fayad, Ricardo Resende e a artista Marcia Pastore.

O doutor e os monumentos

"Cena de família de Adolfo Augusto Pinto", 1891, de Almeida Jr. Foto: Divulgação

Quem já visitou a Pinacoteca de São Paulo contemplou uma das pinturas de Almeida Jr. pertencentes ao acervo: Cena de família de Adolfo Augusto Pinto, óleo sobre tela de 1891. Nela estão representados um casal e cinco crianças em uma sala: dois pequenos cuidam de um bebê[1]; um garotinho examina um álbum de fotografias; a mulher ensina algum segredo de costura para uma menina enquanto o homem lê a primeira página de um jornal de engenharia com um cão deitado ao seu lado.

O ambiente que envolve aquela reunião não podia ser mais indicativo das pretensões do casal: os instrumentos musicais, os quadros na parede, o tapete, a manta, as fotografias e o álbum revelam um interior onde os proprietários aspiram gravitar em um bem viver “civilizado”, europeu. A natureza tropical, único sinal de “brasilidade” da composição, está representada pela forte luz do sol lá fora (atenuada quando entra no ambiente), e pelos índices de sua domesticação: o canteiro ladeando o muro que limita a propriedade, a pintura de paisagem sobre o piano, os vasos que decoram a sala.

O doutor Adolfo Augusto Pinto – ali retratado –, então reconhecido como um importante engenheiro na cidade de São Paulo, não pode ter sua biografia resumida apenas a essa atividade. Nascido em Itu, ex-estudante de medicina em Salvador, formado engenheiro no Rio de Janeiro e posteriormente trabalhando em alguns dos principais empreendimentos de infraestrutura que sustentavam o rápido crescimento da cidade e do Estado de São Paulo, Adolfo A. Pinto era mais do que um engenheiro bem-sucedido. Ele agia também como uma espécie de ideólogo, um “intelectual orgânico” da burguesia ilustrada do Estado, tendo como uma de suas missões colocar São Paulo como o centro inconteste do país, não apenas no plano econômico, mas também cultural e simbólico.

Católico e certo de suas convicções sobre o passado, o presente e o devir, tanto do Estado, quanto da capital de São Paulo, o engenheiro, em 1929, publicou um libreto para sensibilizar paulistanos a contribuírem para o término da construção da nova Catedral da Sé, iniciada em 1913. Nele, o engenheiro assumia-se como porta-voz daqueles que acreditavam ser a cidade a sede de uma verdadeira civilização cristã na América do Sul e a futura Catedral, o seu monumento máximo:

[…] a cidade de São Paulo, em suma, que está assim a se cobrir de todas as galas de que o progresso e a opulência são capazes de esmaltar uma grande metrópole moderna, não pode permanecer indefinidamente descoroada de seu monumento máximo, testemunho inconfundível da nobreza espiritual de sua civilização, da obra que mais pode dignificar a velha alma paulista, valendo por um perene Te Deum de ação de graças à suprema onipotência divina pelos extraordinários dons de que cumulou este abençoado recanto do Brasil […][2]

Monumento da civilização paulista, na cripta da futura Catedral, e junto aos restos mortais dos bispos locais, seriam colocados aqueles de Tibiriçá e do Regente Feijó:

[…] Se amanhã ali se erguerem os mausoléus de Tibiriçá e Feijó, bem se poderia dizer que a alma histórica de São Paulo viverá em sua Catedral. É que Tibiriçá representa não só o fator decisivo da fundação da cidade, mas também o primeiro grande ascendente dos Piratininganos, a tropa heroica das famosas bandeiras descobridoras.
E ao encerrar-se o período colonial e raiar a era da Independência […], não foi porventura a nobre figura de Feijó, uma das que mais brilharam no cenário político do Brasil?[3]

A burguesia paulistana de então não brincava em serviço: impensável “apenas” criar infraestrutura para que a cidade e o Estado se firmassem como pontos máximos do capitalismo nacional. Era necessário criar uma narrativa que justificasse a hegemonia paulista de então, enfatizando a suposta precessão de seus habitantes de antigamente na construção do Brasil – sempre sob a égide do catolicismo.

Se Feijó, um paulistano, devia ser venerado por ter lutado pela integridade do Brasil entre o primeiro e o segundo reinados, Tibiriçá – um indígena “paulista” – era o iniciador, o “grande ascendente” dos bandeirantes de São Paulo, aqueles que ampliaram o território brasileiro que Feijó manteve centralizado dentro da crise do século XIX.

***

A luta de Adolfo A. Pinto por monumentos que expressassem a visão de seu grupo sobre a história de São Paulo, constituída a partir da convergência entre a religião católica e a “tropa heroica das famosas bandeiras descobridoras”, não se restringiu à batalha pela conclusão da Nova Catedral. Antes, em 1910, membro da Comissão que escolheria o projeto de Amadeu Zani para o Monumento à Fundação de São Paulo (inaugurado em 1925, no Pátio do Colégio), é nítido seu interesse em juntar ali as figuras de Anchieta, Tibiriçá e Nóbrega, ou seja: representantes da Igreja Católica e, de novo, o “grande ascendente” dos bandeirantes[4].

O engenheiro também teria papel vital no concurso para o Monumento à Independência, situado em frente ao Museu Paulista. Em suas memórias ele informa que, como relator da Comissão encarregada dos projetos, emitiu parecer sobre eles, votando favoravelmente ao projeto vencedor, do escultor italiano Ettore Ximenez. Pinto enfatiza que propôs modificações ao projeto de Ximenez, aceitas pelo escultor:

Essa modificação consistiu em substituir dois grupos de figuras alegóricas, que decoravam os lados direito e esquerdo do corpo central do monumento […], por dois grupos de figuras históricas precursoras da Independência, representando um deles os revolucionários de Pernambuco, e outro os inconfidentes mineiros.[5]

Cioso para que os monumentos paulistas estivessem submetidos aos fatos que celebravam, Adolfo Pinto, nesse episódio, entendeu ser fundamental gravar em pedra e bronze o “processo” da independência do país, preterindo alegorias decorativas em favor dos episódios pernambucano e mineiro que culminariam, é claro, na independência ocorrida em São Paulo (e não em qualquer outro lugar do país).

Essa observância aos fatos históricos também parece ter motivado a Comissão responsável pelo já citado concurso para o Monumento à Fundação de São Paulo, a rejeitar o projeto apresentado pelo escultor brasileiro Correa Lima, rebaixando-o para o segundo:

Correa Lima […] concorreu ao certame com excelente projeto. A composição é feliz e todas as figuras são modeladas com aprimorada fatura […]. Para ser completo este projeto, só faltou que o ilustre artista lhe tivesse acentuado a individuação histórica. É que, posta de parte a figura do Bandeirante, que aliás não pertence à época em causa, não há ali nenhum traço característico, não é evocado nenhum episódio do acontecimento histórico que o monumento é destinado a comemorar – a fundação de São Paulo.[6]

A noção de que o monumento à fundação da cidade devia ser um “documento” daquele fato (uma missão impossível, como sabemos) levaria Adolfo Pinto a rebaixar o posicionamento de Correa Lima no concurso, reprovando-o, inclusive por ter colocado em seu projeto a figura do bandeirante, que não pertenceria “à época em causa”.

Tal censura ao projeto de Correa Lima absolutamente não significava que Pinto não reconhecesse a importância do bandeirante para a narrativa heroica que ajudava a construir sobre a cidade de São Paulo. Em seu discurso na abertura da Primeira Exposição Brasileira de Belas-Artes em São Paulo, em 1911, o engenheiro, após lamentar a falta de monumentos públicos no tecido urbano da cidade, salientando apenas o projeto do Monumento à Fundação de São Paulo – “condigna obra de arte em homenagem à benemérita e inolvidável memória de Anchieta, de Nóbrega, de Tibiriçá…”[7] – ele assim se manifesta sobre a necessidade de um monumento que homenageasse a figura do bandeirante:

Depois da fundação de S. Paulo, pode-se dizer que encheu a maior parte do período colonial a incomparável epopeia bandeirante. São troféus da extraordinária campanha o efetivo descobrimento do Brasil, a exploração do território em toda a sua vastidão continental, desde a costa marítima até as vertentes andinas do Amazonas, e, por fim, a formação dos primeiros núcleos interiores de vida e trabalho – tudo à custa dos mais arrojados lances de estoica bravura, empreendidos e levados a cabo por um pugilo de heróis, os mamelucos de Piratininga!
Todos nós vivemos a exalçar as lendárias arrancadas desses intrépidos “caçadores de esmeralda”, argonautas do novo mundo; o povo paulista ufana-se da mais profunda e valorosa de suas raízes étnicas; no entanto, onde se levanta o monumento público, onde a obra de arte destinada, como o selo da História, a autenticar solenemente, perpetuando na memória dos séculos, a veneranda tradição daqueles feitos sublimados?[8]

***

Como sabemos, agora em 2020 será comemorado o centenário da primeira maquete do Monumento às Bandeiras, de Victor Brecheret, encomendada ao artista pelos então jovens intelectuais de São Paulo Oswald de Andrade, Monteiro Lobato e Menotti Del Picchia, projeto que somente seria executado a partir de 1936, sendo inaugurado em 1953[9].

“Monumento às Bandeiras”, de Victor Brecheret. Foto: Divulgação

Relata a tradição historiográfica modernista que a encomenda teria surgido como a reação desses intelectuais à ousadia da colônia portuguesa de São Paulo, que se propunha oferecer à cidade um monumento em homenagem aos bandeirantes, ligando irremediavelmente a história daqueles supostos heróis a Portugal[10]. Portanto, da maneira como foi e é narrada, a necessidade de ereção de um monumento que louvasse o “passado bandeirante” paulista teria surgido como uma reação modernista à empáfia dos portugueses então residentes na cidade.

Ao construir tal versão, no entanto, essa historiografia deixou de lado outro projeto de monumento às bandeiras comissionado pelo Estado ao escultor italiano residente em São Paulo, Nicola Rollo, ainda em 1920, que deveria ficar situado em frente ao Museu Paulista, entre o edifício da instituição e o Monumento à Independência.

Por sua vez, em frente a esse, era ideia de Afonso de E. Taunay, diretor do Museu Paulista, mandar erigir um monumento em homenagem à proclamação da República, conferindo àquela avenida o papel de simbolizar o “fato” de que, de São Paulo, teriam partido os paulistas para conquistar o território brasileiro, sua independência e posterior República.[11] Como se percebe, tal projeto possuía o mesmo substrato ideológico das demandas de Adolfo Augusto Pinto.

Somando essas questões, conclui-se que a demanda por um monumento que louvasse a história das bandeiras paulistas, não se iniciou propriamente com o embate entre a colônia portuguesa de São Paulo e os modernistas, repletos de gás nacionalista, às vésperas das comemorações do centenário da independência do país, em 1922. Ela vem de antes: passa pelo projeto de Rollo e volta pelo menos a 1911, quando Adolfo A. Pinto, como porta-voz dos paulistas bem-postos e bem situados economicamente, clama pela necessidade de se erigir na cidade um monumento que louvasse os bandeirantes.

Quais as razões que teriam levado a historiografia modernista a apagar ou, pelo menos, colocar em segundo plano tanto o projeto de Rollo quanto as demandas anteriores, aqui comentadas? De início eu diria que, frente à realidade do Monumento às Bandeiras, de Victor Brecheret, no Parque Ibirapuera, Marta Rossetti e outros pesquisadores tiveram o cuidado de buscarem apenas a história da obra desse escultor, sem se preocuparem com outras possíveis evidências de demandas e projetos anteriores ou contemporâneos àquele do escultor[12].

Por outro lado, não se deve esquecer também que, se existe o mito do bandeirante paulista, os pesquisadores “históricos”, aqueles comprometidos com os primeiros relatos sobre o modernismo de São Paulo, foram responsáveis pela criação de outro mito: justamente aquele dos intelectuais e artistas comprometidos com aquele movimento, vistos como jovens intrépidos que começaram uma revolução do nada, numa São Paulo despossuída de um debate cultural e artístico preexistente. Uma narrativa que deixa de lado um ponto fundamental, ou seja, aquele que demonstra terem sido os modernistas, por origem ou por adesão, partidários da elite econômica e cultural que dava as cartas na cidade no início do século XX.

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As tentativas de homenagear os bandeirantes formaram, de fato, uma demanda que uniu modernistas e passadistas de São Paulo, levando à ereção do Monumento às Bandeiras, a partir de 1936, num outro momento da história de São Paulo e do país. Sua inauguração, em 1953 – iniciando as comemorações do IV Centenário da Fundação de São Paulo, que ocorreria no ano seguinte –, por sua vez, levou-o a transformar-se em um dos grandes símbolos da cidade e do Estado, festejado, tanto pelas elites modernas e passadistas, como por vários artistas, e por grande parte da população.

Em 2016, no entanto, o artista Jaime Lauriano apresentou a obra Monumento às Bandeiras, uma miniatura do monumento de Brecheret colocada sobre um tijolo. A miniatura, fundida em latão e cartuchos de munições utilizadas pela Polícia Militar e pelas Forças Armadas (dados que constam explícitos em sua ficha de identificação), conferem e reforçam um aspecto evidente à obra: aquele tijolo encimado pela réplica do Monumento, depositado no chão da sala de exposição, atua como uma arma de ataque, a resposta possível de membros de comunidades marginalizadas à truculência policial.

Monumento às Bandeiras, 2016, Jaime Lauriano. Foto: Filipe Berndt/ Divulgação

Sem querer circunscrever a potência alusiva da obra de Lauriano a um único significado, me parece claro que, se para muitos, o Monumento às Bandeiras, de Brecheret, significou a homenagem máxima dos paulistas a seus ancestrais, Monumento às Bandeiras, de Jaime, surge como índice de uma mudança de percepção sobre o que pode ter sido a experiência bandeirista entre nós, a partir da visão de segmentos até então marginalizados da população local, que percebem o Monumento ali no Parque Ibirapuera como o símbolo do genocídio cometido há séculos por setores da elite contra as populações indígenas e pretas.

Se, para Adolfo A. Pinto, um monumento aos bandeirantes seria uma homenagem àquele “pugilo de heróis”, para Jaime Lauriano, o seu Monumento às Bandeiras é:

[…] uma arma para se atirar contra os policiais que, junto com os grandes agropecuaristas são os novos bandeirantes, a meu ver, é claro […]. Para mim o Monumento às Bandeiras, de Brecheret, é um totem à barbárie. Um monumento à violência que estripa a terra brasilis, desde sua invenção. Para mim é um ídolo fálico que a todo momento nos lembra, ou relembra, que a construção do Brasil é uma construção de machos brancos, que chegavam violentando quem se opusesse à sua pulsão de desejo […].[13]

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Com sua maquete primeira completando cem anos, agora em 2020, o Monumento às Bandeiras, de Brecheret, continua sendo o resultado em granito de uma demanda antiga de parte da população de São Paulo para homenagear seus ancestrais tornados míticos. Ao mesmo tempo, e para muitos, ele é o símbolo da barbárie que fundou o Estado brasileiro.

Como reagiria o dr. Augusto A. Pinto frente a essa divergência? Continuaria tranquilamente lendo seu jornal especializado, satisfeito com suas certezas, enquanto, com sua esposa e filhos, repisava os estereótipos de uma família burguesa, branca e feliz? E como ficamos nós, seus pósteros, neste futuro da cidade de Augusto A. Pinto? Continuaremos absortos em nós mesmos e alheios às demandas que chegam das ruas?

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[1] – Especula-se sobre a representação desse bebê, o quinto filho do casal Generosa e Adolfo Augusto Pinto, e batizado com o mesmo nome do pai. Na tela, sua pele escura levantou algumas hipóteses: seria ele filho ilegítimo de Adolfo Augusto, seria uma criança adotada? A jovem pesquisadora Natália Cristina de A. Gomes, em seu trabalho Cena de família de Adolfo Augusto Pinto: um estudo sobre o retrato coletivo de Almeida Jr. (TCC, Unifesp, 2016) chama a atenção para o fato de que a pele escura do bebê pode ter sido causada por algum processo de deterioração da própria pintura (observado em outros segmentos da mesma), hipótese mais plausível, uma vez que, em nenhum outro documento consultado ficou estabelecido a origem afro-brasileira de Adolfo Augusto Pinto Filho.

[2] – PINTO, Adolfo A. A Cathedral de São Paulo. 1929. São Paulo: Melhoramentos de São Paulo. S.d. s. pag.

[3] – Idem.

[4] – Sobre o assunto, consultar o relatório da Comissão constituída para o Monumento, da qual Adolfo A. Pinto foi o relator (também faziam parte da Comissão: Claudio Rossi e Ricardo Severo): “Monumento comemorativo da fundação de São Paulo”. In: PINTO, Adolfo A. Na Brecha. São Paulo: Off. Typ. Cardozo Filho & C., 1911, pág. 294.

[5] – PINTO, Adolfo Augusto. Minha vida (memórias de um engenheiro paulista). Prefácio e Notas: Hélio Damante. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1970, pág. 129.

[6] – “Monumento comemorativo da fundação de São Paulo”. In: PINTO, Adolfo A. Na Brecha. São Paulo: Off. Typ. Cardozo Filho & C., 1911, pág. 303.

[7] – “A Cultura Artística”. In: PINTO, Adolfo A. Na Brecha. São Paulo: Off. Typ. Cardozo Filho & C., 1911, pág. 318.

[8] – Idem.

[9] – Sobre o assunto ler, entre outros: BATISTA, Marta R. Bandeiras de Brecheret. História de um Monumento (1920-1953). São Paulo: Departamento do Patrimônio Histórico, 1985.

[10] – Idem.

[11] – Sobre Nicola Rollo, consultar: KUNIGK, Maria Cecilia M. Nicola Rollo (1889-1970). Um escultor na modernidade brasileira. São Paulo. Dissertação de Mestrado. ECA USP, 2001. Sobre o Monumento à Independência: MONTEIRO, Michelli Cristine S. São Paulo na disputa pelo passado: o Monumento à Independência de Ettore Ximenes. São Paulo. Tese de Doutorado. FAU USP, 2017.

[12] – Vale ressaltar que a pesquisadora Aracy Amaral, em seu livro Artes Plásticas na Semana de 22 (2ª. São Paulo: Edusp/Perspectiva, 1972, pág. 65 e segs.), cita o projeto do Monumento às Bandeiras, de Nicola Rollo.

[13] – Depoimento do artista ao autor, em 28 de março de 2017. Publicado em: “Andar por São Paulo faz com que São Paulo também ande em nós” in CHIARELLI, Tadeu (cur.). Metrópole: experiência Paulistana. Catálogo da exposição homônima. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2017, pág.26.

A realidade escancarada na ficção de Guerreiro do Divino Amor

Studo para uma Cosmogonia Supercomplexa Metropolitana Expandida
"Studo para uma Cosmogonia Supercomplexa Metropolitana Expandida", 2017, Painel de backlight animado, 200 X 105cm

As Superficções concebidas por Guerreiro do Divino Amor poderiam também ser chamadas, segundo ele mesmo, de hiper-realistas, neorrealistas ou documentários. Pois através delas, na série de trabalhos intitulada Atlas Superficcional Mundial, o artista de 36 anos, nascido na Suíça e radicado no Rio, trás à tona algumas das temáticas mais profundas e complexas de nossa sociedade, tanto geopolíticas quanto referentes ao imaginário coletivo. Assuntos atuais – e nada ficcionais – como a atuação dos poderes políticos, religiosos, midiáticos e do marketing, as desigualdades sociais, a violência do Estado e as estratégias de embranquecimento da população.

Em vídeos que se desdobram em painéis, revistas e outros suportes, Guerreiro apresenta os universos superficcionais de cada cidade ou região em que trabalha, sob uma perspectiva apocalíptica e a constatação de que vivemos em guerra. De 2005 para cá já foram imersões em Bruxelas, Rio, São Paulo, MG e Brasília. O artista não teme “dar nome aos bois” quando estampa nos vídeos, “como totens”, rostos de figuras poderosas como Silvio Santos, Doria, Bonner, Eduardo Cunha, Malafaia e o pastor Davi Miranda. Chegou a ser processado pela filha deste último, mas absolvido “em uma sentença inclusive muito bonita. Um alívio, porque hoje em dia não se sabe o que esperar da justiça”.

Com uma estética bastante peculiar, de cores fortes e referências ao universo da internet, o artista questiona as ideias de bom gosto e os padrões visuais hegemônicos, por vezes de modo debochado e irônico. Formado em arquitetura em Bruxelas, ele conta que achava a forma de apresentação usual dos projetos, tudo meio cinza e neutro, “uma cafonice”. Preferiu retomar suas referências de infância e adolescência, de novelas e videoclipes a programas da Xuxa – “acho que o pop mexe mais com o coração, tem esse impacto direto e mais abrangente” –, e aprofundar “a pesquisa da estética como ficção, ao observar como cada segmento social cria uma estética ficcional que carrega consigo códigos bem definidos”.

Seu Atlas deve ganhar agora episódios na Suíça, “que tem essa narrativa superficcional de perfeição”, na Itália, “à procura das raízes do cristianismo e do fascismo, muito importantes para entender São Paulo e o Sul do Brasil”, e no México. Guerreiro foi o vencedor, este ano, do Prêmio Pipa, um dos mais importantes das artes visuais no país, e concedeu entrevista à ARTE!Brasileiros.

ARTE!Brasileiros – Para começar, queria te perguntar de onde vem esse nome, Guerreiro do Divino Amor, e o que ele significa para você.

Guerreiro do Divino Amor — Guerreiro é meu sobrenome mesmo. Já Divino Amor foi uma brincadeira que surgiu quando eu era adolescente e meu pai namorava uma pastora. Ela queria me colocar para dentro da igreja, e foi um pouco uma provocação, eu queria montar uma banda de heavy metal para atuar na igreja. Nunca aconteceu, mas gostei muito do nome, Guerreiro do Divino Amor. Depois foi ganhando muitos significados ligados ao meu trabalho e à vida, até que hoje ele representa como que minha missão de vida.

Nunca conseguiram te cooptar para a igreja?

Não. Na verdade eu fiquei muito curioso com aquele universo, neopentecostal, que eu não conhecia bem. Foi um dos motores do meu trabalho, tentar entender aquela fé arrebatadora e ao mesmo tempo com uma estética muito forte, colorida. Era envolvente.

Me parece que várias dessas suas vivências e experiências de vida estão muito presentes no seu trabalho. Você já falou de outra parte da família que vem de uma aristocracia decadente, além de sua formação na Europa…

Sim, acho que foi um motor. Morava na Europa, num contexto onde todos eram relativamente misturados, e volta e meia frequentava a família no Brasil, uma gente profundamente racista, muito fúteis, mas com certo verniz culto, uma obsessão por poder, hierarquia e status e a certeza de saber que tudo e todos estão em seu devido lugar. Queria entender quais eram os mecanismos de perpetuação dessa casta que continuava vivendo na época do Brasil colônia sem ser perturbada. E também desse mundo evangélico. São mundos fechados em si, com respostas para tudo. Comecei a analisar, a cavar, e foi aparecendo como um buraco sem fundo com raízes muito antigas e profundas, lógicas de dominação complexas e perversas. O trabalho é todo de desemaranhar essas estruturas, que por serem tão antigas e familiares formam como um ecossistema, uma coisa dada, atemporal. E ver o papel das mídias, da família, das genealogias, da herança, do capital simbólico nessa manutenção. O SuperRio, segundo capítulo do Atlas, é um retrato mais direto dessa tentativa de entender o que se encontrava ao meu redor e a relação com fenômenos mais globais de marketing, lógicas corporativas, e como isso influi na mente, na forma de agir das pessoas, quais são suas estratégias e como isso se traduz em todas as escalas, da individual à geopolítica. Depois fui explorando outros fenômenos adjacentes. Assim começou, ao tentar entender esses universos e os cruzamentos entre eles, e até hoje trabalho essas questões.

E como é que essas Superficções, esses capítulos, se relacionam entre si, neste grande Atlas Mundial?

No começo cada projeto tinha sua independência, explorava temáticas próprias. Só depois é que eu fui entender isso como um Atlas. São capítulos que vão se relacionando, com questões que atravessam o trabalho todo, como as ideias de império e galáxia, a guerra entre civilizações em suas diferentes facetas sociais, religiosas, econômicas, simbólicas, estéticas, as diferentes estratégias de embranquecimento da população. No primeiro capítulo, em Bruxelas, era uma coisa mais estritamente analítica. É uma cidade bastante pobre e suja para os padrões da Europa, mas com uma tentativa de se construir como cenário de cidade mundial, capital da Europa. E eu, quando estudava arquitetura, comecei a perceber muito um discurso bélico, de conquista das mentes e do espaço. Essa ideia atravessa todo o trabalho, de modos diferentes. E a ideia de superficção mesmo veio no trabalho seguinte, no Rio, que eu escrevi em 2005 e retomei em 2013, no período pré-Copa e Olimpíadas, o ápice de superficção carioca. Muitas vezes, nos meus vídeos, eu parto de filmes turísticos, propagandas, que é como a cidade quer se vender, qual ficção ela vai criar para se exportar, essa criação da imagem.

Mas você parte do que a cidade quer mostrar para expor o que a cidade não quer mostrar…

É, como são construções muito bem elaboradas e antigas procuro identificar as raízes simbólicas e históricas e as suas diferentes manifestações, de como essas ficções acabam sendo incorporadas no imaginário coletivo da cidade, e como elas agem e são instrumentalizadas nas diferentes guerras pelo poder. No caso de Minas isso também é muito forte. Minas é um pouco a “fofura encarnada”. Ninguém vai falar mal de MG, que tem aquela comida, um ideal de hospitalidade. Mas fora isso é um lugar de poder, de dinheiro, é um dos poucos estados que não tem Dia da Consciência Negra, apesar de seu passado, é tudo muito velado.

Nas superficções você trabalha com vários planos e camadas de poder que caracterizam as sociedades como política, religião, mídia, polícia, mercado. Como escolhe estes temas trabalhados?

É bem natural, chegando nos lugares e observando, sentindo, conversando. Claro que todas estas camadas estão presentes em todos os lugares, mas em cada um elas agem de uma forma diferente, com outras narrativas. Por exemplo, a religião funciona de modos distintos em cada lugar, até com construções físicas muito distintas e com estilos de pregação diferentes. Mas, no fundo, com a mesma vontade de conquista. No caso da mídia também. No Rio, por exemplo, tem uma construção midiática muito forte através tanto das novelas quanto dos noticiários policiais, criando essa narrativa esquizofrênica, representada pela rosa dos ventos no SuperRio. Em MG você vê sempre uma narrativa de uma “volta para a terra”, uma imagem mais rural, uma ideia mais de pureza, e isso é exaltado na mídia.

E seu trabalho está sempre questionando essas narrativas oficiais, trazendo coisas ocultas.

Sim, a ficção da democracia racial, por exemplo, que em cada lugar é narrada de um jeito. E é uma das ficções centrais da construção do Brasil, que serve ao apaziguamento, à exploração. Essa negação do passado escravagista. Falando de Minas de novo, que é o que está mais fresco para mim, tem toda essa instrumentalização do mito de Chica da Silva. Em todo lugar que você vai tem essa narrativa que diz “olha, tem a Chica da Silva, escrava rica, linda”. E aí parece que está tudo certo. A coisa fica mais sútil, mas talvez por isso mesmo mais perversa. Com essa camada de mel, de glacê doce.

Para além de tratar de cidades reais, surgem também muitas figuras reais. Como é que escolhe esses personagens e como eles se inserem nos trabalhos?

São ícones né? São como totens. Por exemplo, Silvio Santos, a vida dele, a trajetória dele, é como um totem de São Paulo. É a encarnação do mito da meritocracia. E trabalhando no photoshop vi que ele e João Doria tem traços muito parecidos. Então no trabalho eles se juntam, como se fossem um só. Se complementam. Porque Doria também é como uma caricatura, um arquétipo do herdeiro, do capitalismo selvagem. Você vê essas figuras e já sabe do que se trata, elas já trazem todo um universo junto. E não são fenômenos abstratos. São pessoas que estão lá agindo, um exército. Claro que têm muitas outras, é muito mais complexo que isso. 

Você disse certa vez que seu trabalho procura lidar com a complexidade do apocalipse. Também disse que o trabalho todo trata de guerra, em diferentes planos. Enfim, estamos no apocalipse? Estamos em guerra?

Existe essa percepção de que há um apocalipse, em todos os níveis, na questão dos recursos naturais por exemplo. E o trabalho tenta ver esses detalhes, como isso é uma construção, é uma guerra que vem de muito longe. No trabalho de Brasília, por exemplo, fui vendo esses ciclos, como na inauguração de Brasília reencenaram a primeira missa do Brasil, da época da conquista. É um apocalipse que vem se preparando há muitos séculos, mas agora é como se fosse o momento apoteótico, que veio para valer. E trabalhar com isso, mexer nessas coisas às vezes é assustador. Foi ficando mais nítido no decorrer dos capítulos, tendo seu ápice em Brasília, onde a pesquisa foi feita na época das eleições de 2018. Parece que os senhores escravocratas conseguiram a fórmula perfeita. A junção da força da fé com o marketing emocional e as tecnologias da informação é arrebatadora.

Ao mesmo tempo em que temos esse quadro apocalíptico, o meio artístico tem dado reconhecimento para trabalhos que lidam com questões raciais, indígenas, de gênero etc. Você acaba de ganhar o Pipa, por exemplo. É uma resistência ao apocalipse?

Acho que talvez o mundo das artes tenha despertado mais agora também porque as coisas começaram a atingir uma “branquitude” que estava tranquila, protegida, presa num romantismo. Mas tem gente que já estava acostumada com a perseguição, que tem sabedoria do que é estar em guerra. E acho que as artes agora talvez se voltem mais para estes, os que já sabem do que se trata. Quando há necessidade, tudo se aprende mais rápido.

Repasse de R$ 451 mil garante funcionamento do MAR até o fim do ano

O MAR, na Praça Mauá, Rio de Janeiro. Foto: Divulgação

Em meio a uma grave crise financeira e política que envolve o Museu de Arte do Rio (MAR) – junto a tantas outras instituições culturais da cidade e do país –, a Prefeitura do Rio repassou a quantia de R$ 451 mil para o museu carioca, garantindo seu funcionamento pelo menos até o fim deste ano.

O dinheiro depositado para o MAR garante também o fim do aviso prévio dado aos funcionários em novembro. Segundo as informações divulgadas, a pauta agora é o pagamento do R$ 1,5 milhão que ainda está atrasado e a renovação do contrato de concessão do Instituto Odeon por mais um ano.

Para 2020, o órgão já tem uma série de atividades programadas, como explicou o crítico e curador Paulo Herkenhoff em depoimento à ARTE!Brasileiros (leia aqui). Os patrocínios privados e apoios para o próximo ano – o instituto Itaú Cultural, por exemplo, além de emprestar a obra “Spider”, de Louise Bourgeois, vai aportar R$ 500 mil para a inauguração da exposição – não suprem ainda as despesas de custeio, que têm que ser garantidas pela Prefeitura.