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"No saguão do Guggenheim, Nan Goldin liderou um protesto contra os Sacklers, os principais doadores de museus que são donos do fabricante OxyContin, Purdue Pharma" Foto: Elizabeth Bick para The New Yorker

Em janeiro de 2020, o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque – MoMA recebeu uma carta de 45 veteranos de guerra estadunidenses que demandava a interrupção do recebimento, por parte do museu, de financiamentos vindos de fontes “tóxicas”. Os signatários compõem o chamado Veteran Art Movement, um coletivo que se descreve como uma “rede descentralizada de veteranos e membros do serviço militar” que usa a arte para confrontar “uma sociedade que enfrenta uma guerra sem fim, militarismo e desumanização”. 

O envio da carta não se dá ao acaso, já que o MoMA PS1 apresenta, no momento, a exposição coletiva de grande escala Theater of Operations: The Gulf Wars 1991–2011 (Teatro de Operações: As Guerras no Golfo 1991-2011), cuja proposta é examinar os legados do envolvimento militar liderado pelos EUA no Iraque nos últimos 30 anos e seu “impacto indelével na cultura contemporânea e no trabalho de artistas de todo o mundo”. A elaboração da mensagem dos veteranos, no entanto, vai além da aproximação temática com a exposição. Ela foi enviada em solidariedade a outro manifesto trazido a público por cerca de trinta expositores da mostra no PS1, com apelo para que o museu corte laços com membros controversos do conselho. 

Em sua carta, os veteranos de guerra – cujos nomes aparecem ao lado do seu tempo e local de serviço – explicam que assumem a responsabilidade por suas ações passadas e, como tal, optam por serem “solidários com artistas iraquianos e todos os ativistas que pedem ao MoMA PS1 que ‘assuma uma posição verdadeiramente radical, desinvestindo-se de quaisquer curadores e fontes de financiamento que lucram com o sofrimento de outros’”. Como um caminho de legitimação do seu protesto, os signatários apresentam também uma espécie de mea culpa: “Reconhecemos nosso próprio papel na criação das condições para mortes e turbulências contínuas no Iraque e continuamos a lidar com essa realidade por meio de nossa arte, ativismo e vida”.

Os protestos de ambos se direcionam principalmente a Larry Fink, membro do conselho administrativo do museu, e a Leon Black, do grupo de conselheiros do MoMA. Eles são, respectivamente, ligados à companhia BlackRock, cujos investimentos em complexos prisionais privados “representam uma guerra doméstica contra pessoas de cor e pobres”, segundo os signatários; e à Constellis Holdings, uma empresa de segurança privada e empreiteira de defesa anteriormente conhecida como Blackwater, que teve um papel importante na guerra liderada pelos EUA no Iraque, “lucrando muito com a exploração coercitiva dos iraquianos, enquanto operavam sob a égide das forças armadas dos EUA, usando os membros do serviço como material de trabalho e marketing descartáveis”.

As reivindicações chegam em um momento de crescente escrutínio da fonte do dinheiro das instituições culturais, sendo que as controvérsias de tais instituições estão lançando-as nas discussões políticas que assolam os Estados Unidos. Os protestos – bem sucedidos ou não – acabam encorajando outros movimentos que também exigem a partição entre as instituições e determinados doadores ou curadores. Por exemplo, ao final de julho de 2019, Warren B. Kanders, vice-presidente do Whitney Museum, renunciou seu cargo depois de meses de protestos em razão da sua posição na Safariland – uma fabricante de material militar e de aplicação da lei, incluindo coletes à prova de balas, coldres de armas, robôs que desarmam bombas, e gás lacrimogêneo. Os protestos se intensificaram após relatos de que essas granadas de gás lacrimogêneo haviam sido usadas contra imigrantes na fronteira entre Estados Unidos e México e outros lugares durante manifestações. Um dos movimentos de maior impacto na onda de protestos foi a retirada de suas obras por oito artistas que participariam da prestigiada exposição da Bienal do Whitney Museum.

Não aos produtores de opiáceos!

Antes do caso Whitney, no entanto, os museus Guggenheim e Metropolitan (MET), ambos de Nova Iorque, anunciaram que não mais aceitariam doações de membros da família Sackler, associados à Purdue Pharma, fabricante do analgésico OxyContin, após alegações de que a empresa ocultou deliberadamente seu potencial de dependência. Nos últimos anos, os EUA têm vivido uma crise de saúde pública graças ao uso indiscriminado dos opiáceos (família de medicamentos derivados da papoula, dos quais o OxyContin faz parte). No país, o vício em opiáceos chegou a custar 400 mil vidas entre 1999 e 2017

Podemos ressaltar a atuação da fotógrafa Nan Goldin e seu grupo PAIN (Prescription Addiction Intervention Now) como precursores dos protestos à Purdue Pharma e família Sackler: há dois anos eles lideram uma campanha para expor o papel da empresa, tendo Goldin se envolvido com a causa depois de ter sido viciada em um medicamento do tipo durante o processo de recuperação de uma lesão na sua mão em 2014. O PAIN em si é ainda um grupo diminuto, seu núcleo conta com apenas 12 pessoas, embora o alcance de suas ações tenha sido consideravelmente amplo. 

Uma das suas primeiras manifestações foi no MET – cuja ala que contém o Templo de Dendur recebe o nome de Sackler -, em 10 de março de 2018, quando Goldin e os outros integrantes do PAIN realizaram um “die-in” e encheram a fonte do templo com vidros de remédios. Depois do MET vieram os protestos no Guggenheim de Nova Iorque e na National Portrait Gallery de Londres, onde era negociada com a própria fotógrafa uma retrospectiva de sua obra, que seria aceita apenas se a galeria rejeitasse uma doação de um milhão de libras do Sackler Trust. Em 19 de março daquele ano, um comunicado conjunto da National Portrait Gallery e do Sackler Trust informava o acordo comum de não prosseguir com a doação naquele momento. Tal vitória ecoou dias depois com a decisão do grupo Tate e do Guggenheim em tomarem a mesma atitude. 

O dilema 

Em outra ocasião a fotógrafa argumentou que as instituições devem “parar de dar legitimidade cultural e estatura social” aos patronos como a família Sackler. O grande dilema é como mexer nesse vespeiro sem que a situação toda se transforme em um “Ardil 22” (um problema em que a própria resolução gera novos problemas). Se a arte sempre dependeu de patronos endinheirados, vide Medicis, Frick e Morgan, a situação é agravada nos EUA, onde os museus recebem fundos estatais irrisórios, ao contrário da Europa (mesmo que em queda). Em sua carta de resignação, Warren B. Kanders escreve que “o ambiente politizado e muitas vezes tóxico no qual nos encontramos em todas as esferas do discurso público, incluindo a comunidade artística, coloca o trabalho deste conselho em grande risco”; por outro lado, seria melhor, então, nos tornamos surdos-mudos num campo de centeio?

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