Mural de Marcelo Eco no NaLata Festival Internacional de Arte Urbana. Foto: Divulgação/NaLata
No dia 20 de agosto, 3689m² de arte serão entregues à cidade de São Paulo. A ação é parte da 1ª edição do NaLata Festival Internacional de Arte Urbana. Quinze artistas consagrados nacional e internacionalmente se dedicam à produção de murais na região do Largo da Batata. Os grafiteiros realizarão doze obras de diferentes estilos e correntes culturais.
Em respeito ao isolamento social, parte da programação presencial do festival foi adiada para 2021, mas a organização optou por não cancelar o evento. “Percebemos que não teria um momento mais importante para essas obras estarem na rua do que logo após o período de isolamento social”, explica o curador Luan Barbosa. Com isso, adaptaram-se para, neste ano, difundir arte pelas empenas, trazendo mais vida à cidade.
Obras de Gleo e Pri Barbosa. Foto: Divulgação/NaLata
“Somos seres sociais, constantemente moldados por nosso ambiente. Num momento como esse, em que os nossos espaços são limitados, parece-me muito importante que alguma expressão domine as ruas – esse espaço que por lei pertence a todos, mas não é propriedade de ninguém”, compartilha a artista colombiana Gleo.
Ela é uma das muralistas que participa do evento, e uma das poucas estrangeiras que conseguiu entrar no país em meio à pandemia e o fechamento das fronteiras. Junto à Gleo, a mexicana Paola Delfín ocupa a cidade com mais uma de suas obras, conhecidas pelo caráter social. Já o time de artistas nacionais é composto por Marcelo Eco, Alex Senna, Pri Barbosa, Pri Barbosa, Enivo, Evol, Mari Mats, Mateus Bailon e Rafael Sliks; além de cinco grafiteiros selecionados pelo concurso “Novos Talentos Murais SP”.
Com realização da Agência InHaus e curadoria de Luan Cardoso, o evento propõe a criação de um momento democrático, dando acesso irrestrito às obras, que podem ser vistas gratuitamente por quem passa pela cidade. “Essa arte é para todo mundo. Ela é para os trabalhadores que não puderam parar durante a pandemia, é para quem está no ônibus, ou na moto fazendo uma entrega, e é também para quem está ainda em casa, em quarentena, e pode acompanhar pelo digital”, explica Luan.
Obra de Alex Senna em andamento na Rua Artur de Azevedo. Foto: Divulgação/NaLata
Mais do que apenas grafite
Nesta edição, o NaLata pretende criar o maior museu brasileiro de grafite a céu aberto. Mas, como explica o curador, “não queremos ser taxados como um festival de grafite, apenas. Nossa proposta é um festival de arte pública”.
Para isso, o NaLata realizaria workshops, debates, esculturas e projeções que também ocupariam o espaço urbano. “Teríamos também uma grande escultura de contêineres, que receberia intervenções de dois artistas. Seria uma obra escultórica com pinturas e com projeções a noite”, conta Luan Barbosa. Porém, para evitar aglomerações durante a pandemia, as atividades tiveram que ser adiadas para 2021.
Mural do artista urbano Enivo. Foto: Divulgação/NaLata
“A arte tem o poder de transformar a vida das pessoas e o nosso objetivo é trazer um pouco de esperança e cores depois de tantos momentos difíceis que passamos coletivamente”, comenta Luan Cardoso. Ao que o artista Enivo complementa: “A sensação que tive enquanto pintava, era de estar reinterpretando o pós-apocalípse que estamos vivendo. No meu mural tem a bandeira do Brasil, mas ao invés de ‘ordem e progresso’, está escrito ‘tempo novo’, porque é o que eu acredito: que essas artes são um portal para um novo tempo”.
As obras podem ser conferidas nos seguintes endereços:
Rua dos Pinheiros, 1474 (Artistas: Mateus Bailon, Paola Delfin, Gleo e Pri Barbosa)
Av Faria Lima, 1134 (Artistas: Selon e Marcelo Eco)
Rua Artur de Azevedo, 985 (Artistas: Alex Senna e Selon)
Após quatro anos à frente do MuBE (Museu Brasileiro de Escultura e Ecologia), Cauê Alves acaba de assumir a curadoria do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP) no lugar de Felipe Chaimovich. O curador, escolhido após um longo processo seletivo, entra em meio à pandemia de Covid-19, com o museu de portas fechadas, mas já tem planos para colocar em prática uma série de iniciativas e propostas.
Entre elas estão um cuidado especial com o acervo – são quase 5.700 obras, principalmente de arte contemporânea brasileira – que independa da programação de exposições, além de um trabalho que aproxime melhor as áreas de curadoria e o educativo. Para Alves, o educativo do museu, uma área historicamente de atuação muito forte, pode se integrar mais intensamente em um diálogo com a curadoria e com artistas.
Uma novidade, panejada para breve, é uma grande ação do museu (junto à agência África) de levar arte para fora do Parque Ibirapuera, espalhando imagens de obras pela cidade em pontos de ônibus, relógios de ruas e empenas cegas de prédios (com QR codes que possibilitem ao espectador escutar áudios sobre os trabalhos).
Alves, que é doutor em Filosofia pela USP e professor do departamento de Arte da PUC-SP, já foi curador do Clube de Gravura do MAM, co-curador do 32º Panorama da Arte Brasileira e curador assistente do Pavilhão Brasileiro da 56ª Bienal de Veneza. Ele assume o novo cargo após a mudança de gestão no museu paulistano, que tem Mariana Guarini Berenguercomo nova presidenta desde 2019.
Assim como Berenguer, Alves ressalta a proposta de trabalhar ainda com questões urgentes como as pautas raciais, indígenas e de gênero. Ele se preocupa, no entanto, que isso seja feito com cuidado e profundidade, não apenas ligado à certo “modismo” do mercado visto nos últimos tempos. “Porque se for isso não tem poder transformador nenhum, é contraproducente. Vira oportunismo, e brincar com isso é muito perverso.” Neste sentido, portanto, é preciso perceber a importância do lugar de fala. “Então não sou eu, homem branco, que vou fazer uma exposição sobre o artista negro. Vamos trazer curadores negros para fazer isso.”
Alves falou ainda sobre a importância de a arte ser mais do que um meio para propagar discursos – “ela pode ser o lugar da ação direta sobre as pessoas” -, sobre a atuação digital do museu e as estratégias para aproximar o público do MAM em um período tão conturbado para o país. Leia a seguir a íntegra.
ARTE!✱ – Você assume a curadoria do MAM-SP logo após se desligar do MuBE, onde passou quatro anos. O que você acha que traz dessa experiência anterior para o novo trabalho no MAM?
Cauê Alves – Antes de ir pro MuBE eu trabalhei dez anos como curador do Clube de Gravura do MAM. Então eu tinha essa vivencia no museu, mas como colaborador, não como alguém que está no dia a dia da instituição. E no MuBE eu de fato tive uma experiencia institucional, de gestão, de ser o curador-chefe, tendo que lidar com diversas áreas do museu. Então acho que trago um amadurecimento profissional, além de um reconhecimento maior de grande parte do nosso meio de que o MuBE, apesar de todas as suas fragilidades, se inseriu no circuito da arte contemporânea. Acho que o museu ganhou uma relevância neste meio que ele não tinha anteriormente. Então é um trabalho do qual tenho muito orgulho, e que acho que me ajuda muito nesta chegada no MAM, mesmo que sejam instituições com ordens de grandeza diferentes.
ARTE!✱ – Na sua proposta de trabalho há uma atenção especial tanto para o trabalho com o acervo quanto com o educativo. Queria que você explicasse um pouco melhor essas propostas e como elas se relacionam.
A ideia é dar mais visibilidade ao acervo, que tem quase 5700 peças e que eu acho que muita gente não conhece bem, ou conhece apenas uma parte. Há muito a se explorar, a pesquisar. Eu acho também que este acervo sempre esteve muito submetido à programação do museu e agora a ideia é que ele passe a ter um protagonismo. Por isso, iniciamos um novo inventário de todas as peças, um trabalho enorme que vai durar nove meses, com uma documentação do acervo. Então é um trabalho interno, de diagnóstico do que precisa ser restaurado, do que está em boas condições… Ou seja, é uma atenção para o acervo que independe das exposições. E esse trabalho compreende também entender onde estão as maiores lacunas, digamos assim, e mostrar que o MAM está aberto para receber doações e incrementar este acervo através de coleções que possam se integrar ao museu.
ARTE!✱ – E aquisições também estão no foco?
Sem dúvida. O MAM é um dos poucos museus no país que também adquire obras, não só recebe doações. Mas nesse ano, pelo menos, a gente suspendeu as aquisições, porque acho que eu preciso primeiro fazer um estudo mais completo e consistente deste acervo para, a partir daí, traçar uma política de aquisições mais sólida e bem estruturada.
ARTE!✱ – Em uma entrevista sua, já há alguns anos, você falou do quão produtivo é trabalhar a curadoria de exposições junto aos artistas. Ou seja, fazer curadoria não como alguém que olha de fora, mas alguém que dialoga com os artistas. No caso do trabalho com acervo isso se torna difícil, certo? Então eu queria te perguntar de que modo você pretende aproximar também os artistas do trabalho no MAM?
Olha, é engraçado, mas nesse lado da documentação tem uma coisa interessante. Às vezes o museu guarda uma peça que comprou ou recebeu de algum artista e que tem algum detalhe que não se sabe exatamente como realizar, como montar. Por exemplo, será que tal trabalho é um conjunto de cinco peças ou ele pode ser mostrado separadamente? Claro que não são tantos casos assim, mas como temos um acervo bastante contemporâneo, contar com a participação dos artistas que ainda estão ativos para reconstruir essa documentação vai ser importante. Mas, sem dúvida, o trabalho do curador institucional é diferente do trabalho de um curador de uma bienal, ou de um curador independente, dada essa responsabilidade com o acervo. Agora, eu também tenho como uma das metas reaproximar os artistas do museu, fazer com que seja um museu que se relacione com o meio.
ARTE!✱ – E nisso entra também algo que você já falou sobre o trabalho com o educativo, de trazer artistas para atuarem junto ao museu…
Exatamente. Queremos integrar mais o setor educativo na curadoria, fazer esses dois campos terem uma proximidade maior, a ponto de que artistas possam também trabalhar como educadores. A premissa fundamental é que a arte nos educa. Nós aprendemos a nos relacionar com o mundo porque a arte nos proporciona uma sensibilização. Então a ideia é valorizar a arte no seu sentido educativo e fazer com que artistas que têm uma prática de se relacionar com o público possam também ir para a linha de frente, fazer oficinas, ter esse trabalho direto. É trazer o artista para perto do museu não apenas como aquele que faz obras, mas aquele que contribui na formação do professor, na formação do público. Então a proposta é de uma integração maior entre esses setores de curadoria e do educativo, para que eles possam dialogar de maneira íntima.
“O museu é uma escola: o artista aprende a se comunicar; o público aprende a fazer conexões”, de Luis Camnitzer, na fachada do MAM. Foto: Rafael Roncato
ARTE!✱ – Falando sobre arte e educação, me parece que são dois setores bastante ameaçados no Brasil atualmente. Então pensando um pouco mais sobre esse contexto político, queria saber como você enxerga o momento e como é trabalhar em um museu na situação atual, em que a cultura é muitas vezes vista como inimiga pelo próprio governo.
Sim, acho que você tem razão, é um momento de crise muito grande que o Brasil está atravessando. Mas eu acho que grande parte dessa crise se deve a uma crise de sensibilidade. A crise de não conseguir se relacionar com o outro, com a diversidade. E eu acredito muito no poder da arte – e não é uma utopia transformadora, de uma revolução – de agir sobre as pessoas diretamente, de proporcionar experiências transformadoras que, ao agir sobre os sentidos, nos formam. A gente é formado também a partir de experiências estéticas. E eu tenho visto parte dos artistas que tem enxergado a arte mais como um meio para propagar discursos. Mas eu acho que a arte pode ser mais do que isso. Ela pode ser mais potente do que isso. Ela pode ser, mais do que um meio para difundir ideias, o lugar da ação direta sobre as pessoas. Então o papel educativo que um museu tem, e que o artista tem, é um papel muito potente. Há uma força de promover experiências significativas e atingir as pessoas que eu acho que é papel do museu fazer, e espero que a gente consiga.
E eu acho que a ideia de museu é uma ideia republicana né, ele nasce com esse ideário. Não que tenha conseguido se realizar plenamente, mas a origem dos museus é essa. O museu deixa de ser o lugar só dos nobres, após a Revolução Francesa, para que todos possam ter acesso a arte. Claro que esse ideal iluminista nunca se realizou plenamente, e que está bastante em crise, é verdade, mas eu ainda aposto que o museu tem um papel de formação. Vejo assim como um parceiro da universidade, um lugar da pesquisa, da reflexão. E acho que não tem outro caminho para o Brasil que não seja investir na educação. Não tem outro lugar para atuar.
ARTE!✱ – Agora, apesar de esforços de vários museus, instituições, centros culturais, coletivos e artistas nas últimas décadas, a arte contemporânea segue muitas vezes restrita a um circuito mais elitista da sociedade. Como mudar isso?
Olha, pensando no MAM, isso é uma missão do museu desde sempre. Se você olhar no site está lá, é missão do museu levar a arte para o maior número de pessoas possível. E isso independe do curador. Agora, é claro que o meu projeto é criar estratégias para que isso aconteça, para aproximar as pessoas de uma área que parece tão especializada – a da arte moderna e contemporânea. Que talvez seja o campo da cultura menos procurado, se comparado com cinema, música. Mas isso tem mudado também. A gente tem visto, já há algum tempo, exposições com filas na porta, lotadas. Quer dizer, as massas têm interesse, querem ver artes visuais. Então isso tem se transformado. Mas também, meu interesse não é só criar quantidade de público, não é bater recordes ou ter filas na porta do museu, ainda mais agora com a pandemia. A ideia é levar a arte para um maior número de pessoas, mas com qualidade, propriedade. Eu não tenho nada contra o grande público, pelo contrário, mas nós queremos fazer com que as exposições sejam produtos de pesquisa relevantes. Acho inclusive que essa era das grandes mostras blockbusters, que vêm de fora prontas, acabou, pelo menos por um tempo. A pandemia vai nos obrigar, a todas as instituições, a pensar muito mais do ponto de vista da qualidade do que da quantidade. E aí temos que aproximar o público, as escolas por exemplo. Essa é uma questão fundamental.
ARTE!✱ – Nesse sentido, a atuação online parece ser uma chave, não é? Muitas instituições pareciam não estar preparadas para isso antes da pandemia, mas perceberam agora que o universo digital será fundamental também quando isso passar…
Com certeza. O MAM já tinha uma boa experiência nisso, mas estamos aprendendo muito. Acabamos de fazer esse convênio com o Google Arts and Culture e as mostras do Antonio Dias e do Clube de Fotografia já estão online. É claro que temos esperança de abrir o museu ainda esse ano, dependendo das orientações das autoridades. Mas mesmo se abrir, vai ser para um público pequeno. Aquelas vernissages, com muita gente, isso não vai mais ter. Então a importância da comunicação é ainda mais fundamental. E estamos trabalhando em várias frentes, de cursos online, de mostras que possam ter uma versão na web. Mas nunca com a ideia de substituição. Não é porque a pessoa viu a exposição online que ela não precisa ir no museu. A experiência direta com a obra e sua escala, esse impacto é fundamental. Mas o MAM tem tido várias frentes de trabalho e está ganhando muitos seguidores nas redes, inclusive. Então acho que isso vem pra ficar, não é uma coisa passageira, mas não veio para substituir. É para ser um lugar a mais, até para aprofundar nos assuntos.
ARTE!✱ – A Mariana Berenguer falou também de uma ação que será feita na cidade…
Sim, que é levar parte do acervo do museu, em imagens, para o mobiliário urbano, em relógios, pontos de ônibus e com projeções em empenas cegas. Acho que isso vai ser muito interessante, no sentido de ter uma presença do MAM também na cidade em um momento em que o museu está fechado. Não é uma exposição, nem quer ocupar esse espaço, mas também não é só a imagem. Eu fiz um texto para cada uma destas imagens, e a pessoa vai lá no QR code, fotografa e escuta no Spotify artistas que leem textos que estimulem a reflexão. Então é a vontade de o museu estar além do parque, extrapolar seus limites físicos. Quer dizer, acho que são duas frentes. Essa virtual, de comunicação nas redes, e essa de ir para a cidade mesmo, dar materialidade para isso, por mais que seja só em imagens, mas de estar na cidade. Estou apostando muito nisso, algo que estamos fazendo junto a uma grande agência, que é a Africa.
ARTE!✱ – Falando com a Mariana, ela falou também de uma preocupação do MAM de tratar questões muito atuais na sociedade e no mundo da arte como as temáticas indígenas, raciais, de gênero e meio ambiente, entre outras. Isso tem sido pauta de muitas instituições e até do mercado nos últimos tempos. Como trabalhar para que não seja apenas um modismo, uma onda passageira?
Sim, isso tende a se tornar um modismo ou uma mera ação de marketing. Por isso temos que tomar muito cuidado, perceber a importância do lugar de fala. Então não sou eu, homem branco, que vou fazer uma exposição sobre o artista negro. Vamos trazer curadores negros para fazer isso. Vamos trazer curadores e artistas indígenas. Para que não seja só um modismo, tem que ser trabalhado na estrutura interna inteira. E há uma força muito grande neste tema, no mundo. Especialmente depois do assassinato do George Floyd isso está muito evidente. E a gente está muito preocupado com esses temas, como todos devemos estar. É obrigação de todo cidadão prestar atenção. Porque não falar nada já é compactuar com essa estrutura. Claro que também me preocupa o fato de todas as instituições fazerem a mesma coisa, porque aí é modismo mesmo. E por vezes desprezando, ou se sobrepondo, por exemplo, ao trabalho que o Museu Afro vem fazendo há muito tempo. Então acho que o MAM tem que olhar para a sua história, para sua origem, e encontrar sua identidade sem ter que imitar as modas e as ações dos outros. Mas, claro, se posicionando, sem fechar os olhos para o mundo. Então é fazer um programa curatorial consistente que seja de fato respeitoso, e não simplesmente uma coisa que possa ser classificada como uma ação de marketing. Por isso a gente está muito preocupado em fazer as coisas de modo consistente, não seguindo a onda do mercado. Porque é preocupante que seja uma onda do mercado. Porque se for isso não tem poder transformador nenhum, é contraproducente. Vira oportunismo, e brincar com isso é muito perverso.
Os motoristas que dirigiam na Avenida Paulista na terça-feira à noite se espantaram ao ver carros na contramão. Das janelas dos prédios da movimentada via, as pessoas podiam avistar o trânsito habitual à região. Porém, dessa vez, algo diferia: mais de 100 veículos andavam em marcha à ré.
Foi às dez horas da noite que o Teatro da Vertigem deu início à performance-fílmica MARCHA À RÉ, idealizada em colaboração com o artista visual Nuno Ramos. A carreata ocupava a via emitindo uma sinfonia incomum. Não buzinas, nem músicas, mas o som alto dos respiradores utilizados nas unidades de tratamento de Covid-19. “No Brasil, a gente está assistindo a uma marcha triunfal da violência e do descaso [com o coronavírus], acho que o que propomos com a performance é uma pequena reversão dessa energia”, explica Nuno Ramos. “É como se a performance ajudasse a instaurar um afeto de solidariedade dentro de uma sociedade cada vez mais anestesiada. Me apropriando um pouco do que Judith Butler e Vladimir Safatle tem falado: a solidariedade se torna um afeto revolucionário”, complementa o dramaturgista do processo, Antonio Duran.
Enquanto ocorria, a performance era filmada por Eryk Rocha. O cineasta a transformara no curta-metragem a ser exibido na Bienal de Berlim, que acontece de 5 de setembro a 1 de novembro de 2020 na Alemanha.
Still de "H2" de Nurit Sharett. Cortesia Videobrasil.
Aarte!brasileiros inaugura uma nova parceria com a Associação Cultural Videobrasil. A cada 15 dias publicaremos, em nossa plataforma e em nossas redes sociais, uma parte de seu importante acervo de obras, reunido em mais de 30 anos.
A instituição foi criada em 1991, por Solange Farkas, fruto do desejo de acolher um acervo crescente de obras e publicações, que vem sendo reunido a partir da primeira edição do Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil (ainda Festival Videobrasil, em 1983). Desde sua criação, a associação trabalha sistematicamente no sentido de ativar essa coleção, que reúne obras do chamado Sul geopolítico do mundo – América Latina, África, Leste Europeu, Ásia e Oriente Médio –, especialmente clássicos da videoarte, produções próprias e uma vasta coleção de publicações sobre arte.
O novo projeto Acervo Comentado contribui para “redescobrir e relacionar obras do acervo Videobrasil, e vertentes temáticas, na voz de críticos, curadores e pensadores iluminando questões contemporâneas urgentes”, afirma Farkas. Na nossa primeira publicação trazemos o episódio do Acervo Comentado em que o crítico e coordenador de jornalismo da PUC-SP Fabio Cypriano discorre sobre a obra H2, de Nurit Sharett.
A obra é um relato do tempo em que a artista passou em Hebron, na Cisjordânia, dando aulas de vídeo para jovens palestinas. O título alude à condição de uma cidade dividida em duas seções de comunicação controlada, uma governada pela Autoridade Nacional Palestina, a outra, por Israel, apesar de habitada por 99,98% de palestinos. Sharett dirige seu olhar ao cotidiano das mulheres com quem convive, atenta aos aspectos culturais e políticos de viver numa cidade partida. H2 foi apresentado em 2011, na 17ª edição do festival Videobrasil.
Vencedor de Melhor Curta-Metragem e Prêmio Mistika em 2019, "Marie" recebeu R$14 mil em serviços de finalização. Foto: Divulgação/Cine Ceará
Desde 1991, o Cine Ceará – Festival Ibero-americano de Cinema ocorre todos os anos de forma ininterrupta. Em sua 30ª edição, não seria diferente. Com mostras competitivas, exibições especiais, debates e oficinas, o evento acontece entre os dias 28 de novembro e 4 de dezembro, mas assume novo formato para se adaptar ao período de distanciamento social.
Com presença online e offline, o Cine Ceará produz conteúdos exclusivos para mídias digitas e fecha uma parceria com o Canal Brasil. Assim, será transmitido pela plataforma Canal Brasil Play, enquanto tudo ocorre presencialmente em Fortaleza, seguindo as orientações das autoridades sanitárias de forma a manter a segurança em meio à pandemia de coronavírus.
Cinema Ibero-americano em foco
Priorizando trabalhos inéditos, a curadoria se prepara para as mostras competitivas. Inteiramente gratuitas, as inscrições estão abertas até 8 de setembro e devem ser feitas diretamente no site do Cine Ceará.
Na Competitiva Ibero-americana de longa-metragem serão aceitos filmes de produtores ou diretores de Portugal, Espanha e países da América Latina e Caribe. Já a Competitiva Brasileira é aberta a curta-metragens de até 25 minutos dirigidos por brasileiros ou pessoas radicadas no país há mais de três anos. Para participar do festival, as produções devem ser recentes, concluídas a partir de janeiro de 2019.
Em 2019, o filme peruano “Canção sem nome” levou 4 troféus para casa. Foto: Divulgação/Cine Ceará
As obras cearenses inscritas que não forem selecionadas, serão submetidas à nova análise para participar da Mostra Olhar do Ceará.
Premiação
De melhor direção à melhor fotografia, quinze modalidades serão avaliadas pelo júri e premiadas com o Troféu Mucuripe durante o evento. O melhor filme da Competitiva Ibero-americana de Longa-metragem receberá também um prêmio no valor de R$20 mil, a ser pago sob a forma de recursos para distribuição da obra no Brasil.
Com o objetivo de estimular a nova geração de cineastas, o Canal Brasil, parceiro do evento, também oferecerá uma premiação. Os vencedores na categoria curta-metragem dos mais representativos festivais de cinema do país – incluindo o Cine Ceará – serão contemplados com um prêmio no valor de R$ 15 mil.
Artistas premiados no Cine Ceará 2019. Foto: Chico Gadelha/Divulgação
Todos os detalhes sobre as inscrições, processo seletivo e premiação das mostras competitivas podem ser consultados no regulamento do festival.
O 30º Cine Ceará – Festival Ibero-americano de Cinema é uma realização do Ministério do Turismo e da Associação Cultural Cine Ceará. Tem o apoio institucional da Universidade Federal do Ceará, do Governo do Estado e da Prefeitura de Fortaleza. Com produção da Bucanero Filmes, conta com a parceria do Canal Brasil e o patrocínio da Cegás e de outras empresas públicas e privadas, através da Lei Estadual de Incentivo à Cultura (SIEC) e da Lei Federal de Incentivo à Cultura.
Interior da Galerie Tanit depois da explosão. Cortesia do fotógrafo.
Uma série de explosões no porto de Beirute, capital do Líbano, causou, ao menos, 145 mortes e deixou cinco mil pessoas feridas. Segundo o primeiro ministro Hassan Diab, as explosões foram causadas por 2.7 toneladas de nitrato de amônio armazenadas no local. O composto químico é comumente utilizado como fertilizante sendo também encontrado em explosivos utilizados em mineração. Os proprietários do armazém teriam supostamente sido avisados em 2014 sobre os perigos de armazenar o material sem as devidas precauções.
Um dia depois da tragédia, o governo do Líbano declarou 5 de agosto como uma data para lamentar as perdas provocadas pelo incidente. Ao mesmo tempo, as buscas por pessoas desaparecidas e os esforços para tratar os feridos continuam. Ainda neste dia, o presidente Michel Aoun destinou ao fundo de recuperação emergencial 100 bilhões de libras libanesas (equivalente a R$ 353 milhões).
Entre os espaços severamente danificados pelas explosões estão galerias de arte como Mark Hachem, Sfeir-Semler e Janine Rubeiz. A Marfa Gallery, a Galerie Tanit, e a Opera Gallery em Beirute foram completamente destruídas, segundo o The Art Newspaper. Além das galerias, a catedral Catedral Maronita de São Jorge, arquidiocese da cidade de Beirute, e o Museu Sursock também foram atingidos pela rajada. “Muitos danos foram causados à estrutura do edifício em um momento em que o dólar no Líbano é tão alto que não sei se teremos recursos para comprar vidro novo para as clarabóias, janelas e portas de saída”, conta Zeina Arida, diretora do Sursock, ao The Art Newspaper. O acervo do museu, advindo da coleção de arte moderna e contemporânea do aristocrata libanês Nicolas Sursock, inclui mais de quatro mil obras de cerca de 400 artistas de todo o mundo árabe. O museu foi central para a vida cultural de Beirute na década de 1960. Em 2008 ele iniciou um projeto de renovação e expansão, planejado desde o ano 2000, que foi finalizado em 2015, quando o museu foi reaberto.
Interior do Museu Sursock depois da explosão. Foto: Marie Nour Hechaime, curadora do Museu Sursock.
O desastre ocorre em um momento complicado para o Líbano. Em outubro do ano passado, protestos foram escalando contra corrupção, a decadência dos espaços públicos e a dívida considerável do país. À época, museus, galerias e entidades culturais do país fecharam suas portas como gesto de solidariedade aos protestantes. Desde então, a moeda do país foi desvalorizada em 80%, a eletricidade foi limitada a várias horas por dia e o desemprego aumentou. “Nos 29 anos que passei no Líbano, nunca vi nada assim”, disse Laure d’Hauteville, fundadora e diretora da Feira de Arte de Beirute, ao The Art Newspaper. A feira acontece anualmente na Seaside Arena, antiga BIEL, perto do local onde ocorreram as explosões.
A tragédia do dia 4 de agosto se soma à crise política e econômica e traz a tona a insatisfação e os medos da população. “Quando algo como isso acontece, você reencontra um pânico antigo e as feridas da guerra se abrem novamente. Você se sente desorientado e desesperado para se esconder em algum lugar, mas não sabe onde”, desabafa a artista Katya Traboulsi ao The Art Newspaper. “Nós todos temos tanta raiva que tudo que queremos é nos expressar. Acho que a arte é a melhor forma de fazer isso”, disse ao veículo o fotógrafo Tarek Moukaddem, que teve estúdio e casa destruídos pela explosão.
Take do vídeo de Bita Razavi, Bosphorus: a trilogy que foi originalmente apreendido pela polícia islâmica. Foto: Divulgação
Foi em meados da década de 1990 que a urgente junção entre arte e política ganhou um de seus mais importantes espaços no contexto das mostras mundiais. Nascida dentro do Festival Videobrasil com o intuito de inserir artistas com dificuldade de acesso ao circuito mainstream, a proposta curatorial Panoramas do Sul se consolidou como uma vitrine para criadores que estivessem engajados no âmbito de tensões multiculturais e geopolíticas, tendo o vídeo como principal ferramenta poética. “O foco é o pensamento do sul emergente. Uma geografia política que tem sua potência amplificada pelo discurso de artistas que tradicionalmente estão em regiões de pouca inserção”, explica Solange Farkas, curadora e criadora do Festival Videobrasil.
Nesta 18a edição, quando o festival celebra seus 30 anos, é impossível passar despercebida a produção de algumas mulheres que escancaram suas visões de mundo em um cenário de inquietações, que são típicas desse eixo da mostra. As obras da afegã Jeanno Gaussi e da iraniana Bita Razavi são dois exemplos. Jeanno deixou sua cidade natal, Kabul, quando ainda era criança, fugindo de uma guerra civil iniciada em 1987, resultado da ocupação soviética no país. Em 2007, após 20 anos, a artista retornou à capital afegã para realizar a obra Kabul Fragments, série de quatro trabalhos em diferentes suportes que abordam seu expatriamento e os resultados da guerra recente contra os EUA no país.
Vivendo em Berlim, Jeanno apresentou a série na última Documenta de Kassel, em 2012, e agora traz para o Brasil a última parte, Kabul Fragments 4, onde apresenta 20 fotografias de um artista de rua afegão. “Em julho de 2011, eu estava visitando o zoológico de Kabul pela primeira vez na vida. Vi um homem vestido com roupas militares e se oferecia para tirar fotos dos visitantes em cenários falsos de guerra. Então, perguntei a ele se aceitaria expor seu trabalho que ele me vendeu as imagens”, conta Jeanno em entrevista por e-mail à revista ARTE!Brasileiros.
Já a artista iraniana Bita Razavi apresenta o vídeo Bosphorus: a Trilogy, que aparentemente mostra cenas de casais em um passeio de barco pelo estreito de Bósforo, canal localizado em Istambul que liga a Ásia à Europa. O trabalho mostrado no Videobrasil não é o original. “Quando tentei voltar ao Irã, em 2012, a polícia islâmica apreendeu quase todo o material que comporia esse vídeo. Então, o que está sendo mostrado é um fragmento do material junto a uma parte refilmada por um amigo que estava em Istambul”, conta Bita, que assim como Jeanno vive no exílio, em Helsinki, Finlândia.
Historicamente, o Festival sempre evidenciou a problemática geopolítica por meio da produção de artistas mulheres do mundo islâmico, constante que se renova nesta última edição. Na videoteca disponibilizada no SESC Pompeia, o público pode acessar outras obras importantes desse contexto e mostradas em edições anteriores, como Shameless Transmissions of Desired Transformations per Day, realizado em 2000 pela libanesa Mahmoud Hojeij, onde a artista mostra três mulheres encenando questões relacionadas a liberdade sexual nas ruas da cidade de Beirute, e Vue Panoramic, de 2006, de autoria da franco-marroquina Bouchra Khalili, cujo vídeo aborda a questão da imigração ilegal em uma longa tomada do estreito de Gibraltar a partir Tânger, cidade do Marrocos. “Nós sempre quisemos dar destaque à produção feminina que estivesse longe de um circuito. Artistas como essas trazem questões que acabam indo muito além do conflito cultural ou político, já que a presença feminina ainda não atingiu um equilíbrio de igualdade no mundo das artes. No Festival, tentamos observar essa questão também”, observa Farkas que, junto a uma comissão de curadores, selecionou 94 artistas, entre mais de dois mil inscritos de seis continentes, sendo grande parte mulheres.
Uma das últimas séries realizadas por Mira Schendel ficou conhecida como Monocromáticos (1986/1987). Tratava-se de superfícies de madeira trabalhadas com gesso, formando ligeiros desníveis, e pintadas com têmpera branca ou negra. A leve sombra criada pelos relevos produzia linhas ópticas que se diferenciavam sutilmente de outras linhas, traçadas com bastão a óleo. À época Mira já tinha quase 70 anos e precisava da ajuda de assistentes para fazer obras maiores. O artista Fernando Bento, um de seus auxiliares, conta que ela costumava apontar os traços brancos deixados no céu pelos aviões, na tentativa de mostrar-lhe mais claramente o tipo de relação que procurava estabelecer entre as superfícies e as duas espécies de linha que corriam por elas.
Penso que esse episódio revela com precisão e lirismo a noção de forma que presidia as obras de Mira Schendel e os vínculos que buscava entre os diferentes elementos utilizados para produzi-las. Por mais que a condição física dos Monocromáticos se diferenciasse do espaço natural e de seus fenômenos, dentro de certos limites eles visavam à obtenção de conexões semelhantes.
Os desenhos em papel de arroz que realizou em meados dos anos 1960 – mais de dois mil e a meu ver equivocadamente identificados como monotipias – estão entre os trabalhos de Mira que melhor revelam essas preocupações. Até sua técnica de realização ressalta a preocupação de não operar sobre a superfície dos papéis, exteriormente. Feitos “por trás”, os desenhos surgiam da própria trama do papel poroso, como um material orgânico – fungos, por exemplo – que se confundisse com sua textura. No entanto, poucas vezes linhas tão frágeis produziram intervenções com tanta intensidade.
Nesses desenhos a sensação de pertencimento – de algo que não foi imposto ao suporte – só se cumpria pela sua capacidade de acentuar a presença do meio que os abrigava (o papel de arroz), algo que a tradição do desenho poucas vezes levou em conta. Nesse período, Mira praticamente trabalhava para si mesma e para um círculo restrito de amigos que apoiava aquelas experiências. Em 1989, após a morte da artista, esses trabalhos ainda eram vendidos a US$ 100!
Em certo sentido, seria Paul Klee – cuja obra Mira conhecia bem – o artista moderno mais próximo de suas preocupações. Mira compartilha com ele a modéstia das dimensões, a presença discreta, a economia das intervenções e um encanto pelas relações sábias, capazes de aproximar serenamente elementos díspares. E então as linhas dos desenhos se viam conduzidas a se aproximar da escrita. A busca de significação por meio de inscrições tão precisas aproximava um movimento singular – a mão individual que age no papel – de sentidos mais amplos, que levariam do grafismo à letra e à palavra. Experiências intensas almejam um âmbito público, e a universalidade da linguagem se desdobrava então naturalmente, como se aos poucos expressão e significação tendessem a coincidir.
No entanto, quando as palavras adquirem maior autonomia, deixando de lado seu vínculo com os movimentos da mão e adquirindo a generalidade dos conceitos, novamente Mira Schendel as devolve a uma situação repleta de ambiguidades.
Em 1959 – com a publicação do Manifesto Neoconcreto -, vários artistas que haviam tomado parte do movimento concretista passam a criticar seu dogmatismo racionalista e defendem uma arte que dê maior importância ao empírico, ao sensual e ao subjetivo. Contudo, acredito que, mesmo se afastando do dogmatismo de Max Bill, vários artistas neoconcretos permanecem operando com uma noção de forma apoiada em concatenações lógicas claramente apreensíveis. As Droguinhas revelam muito bem as relações que a artista buscava entre experiência e significado. Mira já havia transformado a escrita em quase-coisas, em seus grafismos sobre papel de arroz. Para depois transpô-las para o espaço nos Objetos Gráficos.
No entanto, acredito também que estabelecer filiações fáceis entre seus trabalhos e a história da arte brasileira pode conduzir a equívocos. Uma história da arte tão esparsa como a nossa deve aceitar com serenidade os caminhos solitários, as rotas que não têm origem facilmente identificável nem desdobramentos claros: Oswaldo Goeldi, Guignard, Bakun, Iberê Camargo e tantos outros.
Por mais que Mira volta e meia retornasse ao tonalismo e à busca de uma aproximação amena entre seres e coisas, me parece claro que, dos desenhos em diante – ou seja, posteriormente à metade da década de 1960 -, são outros os critérios que a orientam. Os Sarrafos – que, junto com os Monocromáticos, fazem parte de seus últimos trabalhos – guardam a lembrança dos desenhos dos anos 1960: preto sobre branco, ambiguidades entre plano e superfície, uma certa morosidade na diferenciação das coisas. São, com os Monocromáticos, seus trabalhos de maiores dimensões. Mas parecem ser também um testamento: naqueles anos conturbados – em que as manifestações contra a ditadura militar ganhavam força e em que uma esfera pública mais poderosa começava a se constituir no País -, a possibilidade de aproximar não violentamente os seres exigia a configuração de individualidades com uma potência maior.
Em 1987, após a realização dos Monocromáticos e dos Sarrafos, Mira começa a realizar trabalhos com pó de tijolo e cola, em dimensões semelhantes às das duas últimas séries, num espaço cedido pelo galerista Paulo Figueiredo, seu marchand e amigo. E então voltam as leves passagens tonais e a fatura encrespada de algumas regiões. A artista parecia querer expiar uma falta, e numa escala semelhante àquela em que se deixou levar pelas tentações.
A fotografia inicia o século XX como a arte revolucionária. Não à toa ela foi abraçada pelos vanguardistas, que viam em sua forma de representação de mundo uma maneira de renovar o olhar. As várias vanguardas se apropriaram da fotografia como forma de quebrar cânones. E assim também acontece com o artista russo construtivista Aleksandr Ródtchenko (1891-1956) que leva a fotografia para a ideologia artística da época num dos seus maiores expoentes.
A energia criativa da época é espantosa. Assim como seus colegas na Alemanha, França e Estados Unidos, Ródtckenko abusa – no bom sentido – das possibilidades de experimentar: múltiplas exposições, composições em diagonal, quebra de regras, fotomontagens, cartazes publicitários.
Parte deste seu pensamento fotográfico pode ser visto pela primeira vez no Brasil de forma bem didática. A exposição, organizada pela Moscow House of Photography, com curadoria de Olga Sviblova (diretora do museu), apresenta 170 obras entre fotografias, cartazes, fotomontagens, capas de livros e revistas, realizadas entre 1924 e 1954, dois anos antes de sua morte.
Ródtchenko nasce quando a fotografia já é popular no mundo todo e a escolhe como forma de expressão quando ela começa a ser vista como expressão de arte, linguagem autônoma, e quando, na década de 1920, muitos artistas discutem a importância da fotografia para a sociedade da época.
Experimentar é a palavra mote para todos eles. Câmeras de pequeno formato apresentam a possibilidade de maior movimentação dos fotógrafos. A câmera se torna uma extensão do olho, da mão, e novos ângulos, composições, são possíveis. O cotidiano e a banalidade se tornam o tema das imagens. Escreve Ródtchenko: “Vou resumir: para acostumar as pessoas a ver a partir de novos pontos de vista, é essencial tirar fotos de objetos familiares, cotidianos, a partir de perspectivas e de posições completamente inesperadas. Novos assuntos têm de ser fotografados de vários pontos, de modo a representar o assunto completamente”. Isso em 1928. E suas perspectivas diferentes são maneiras de distorcer o horizonte, fotografando na diagonal – um questionamento às regras estáticas de composição. Um porque estilístico e que, nos últimos anos, tem reaparecido na fotografia contemporânea muito mais como modismo do que como linguagem.Na mesma época ele também reflete: “Os pontos mais interessantes hoje são os de cima para baixo e os de baixo para cima, e devemos trabalhá-los. Quem os inventou não sei. Eu gostaria de afirmar esses pontos de vista, expandi-los e acostumar as pessoas a eles”. Quem os inventou, realmente não dá para saber. Mas sabe-se que na mesma época, na Alemanha, mais precisamente na Bauhaus, o fotógrafo húngaro Moholy-Nagy escrevia um texto sobre a nova visão e apontava esses mesmos ângulos. Alguns críticos chegaram a afirmar que Ródtchenko havia plagiado seu colega. Sua resposta foi o texto acima. Irrequieto e curioso, transforma a fotografia documental em arte. Redefine conceitos como o do retrato, registrando, além de seus familiares, seu círculo de amigos artistas. Inesquecíveis as fotos do poeta russo Vladímir Maiakóvski. Suas fotografias são influenciadas por todas as formas de arte que proliferam neste início do século XX, não só por conta do abstracionismo geométrico, mas também pela influência do cinema, do novo fotojornalismo e pelas inovadoras possibilidade do fazer fotográfico – decorrência do desenvolvimento tecnológico da fotografia.
Sem dúvida, ele nos ajuda a compreender a importância comunicadora da fotografia e sua força como mola propulsora de um novo pensar. Incômodo, no fim da vida, é abandonado e traído por seus amigos, impedido de trabalhar e de participar de exposições. Sua primeira mostra é organizada um ano após sua morte. Mesmo assim, não conseguiram calá-lo: sua fotografia, que se apresenta hoje atual e mais contemporânea do que muitas imagens que se vêem por aí, é ainda um exemplo a ser seguido, ou pelo menos conhecido.
A Sé Galeria traz a individual de Edu de Barros, descrita pela curadora Clarissa Diniz como "uma contraproposta ao caos que se anuncia como o fim do mundo. Edu provocativamente engrossa o coro dos que esperam o regresso dos mitos e dos messias do passado, celebrando a criação em meio à convulsão em curso”. A Sé busca também formar novos públicos para artistas e obras que expressem uma visão conceitual e processual de arte contemporânea. Ela representa 19 artistas brasileiros.
Seguindo o desejo de fortalecer o diálogo entre entidades culturais atuantes no país, a Fortes D’Aloia e Gabriel lança, em 4 de agosto, a plataforma digital Transe. O projeto, situado no site da galeria, funcionará como uma rede de colaboração e exposição de trabalhos artísticos que se renovará a cada três meses. Sua primeira interação foi delineada a partir do circuito paulistano, mas a plataforma receberá também instituições de outras cidades do país.
Para estimular a reflexão acerca das mostras sediadas na plataforma, uma série de conversas entre diretores dessas entidades, curadores e artistas convidados será incorporada ao longo de cada ciclo. Celebrando a inauguração de Transe, o site da galeria será dedicado por 24 horas exclusivamente para o projeto. Confira na galeria abaixo um pouco mais sobre os participantes:
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O 01.01 é uma plataforma de arte com foco na produção de artistas africanos e afro-diaspóricos. Para Transe, a 01.01 destaca a residência internacional "Death & Life" cujo objetivo é promover uma imersão criativa, durante 16 dias, na cidade que foi o maior porto da América Latina durante tráfico de escravos nos séculos XVIII e XIX. O projeto procura conectar artistas diretamente afetados pelo colonialismo que o entendem como um crime contra a humanidade.
A Galeria Estação compartilha um panorama da primeira individual de Santídio Pereira, apresentada em 2016. Nascido em Curral Comprido, um pequeno povoado no Piauí, Santídio tem apenas 24 anos e trabalha com xilogravura, incisões, recortes e encaixes. Nas obras, camadas espessas de tintas agrupadas por impressões sobrepostas revelam paisagens, pessoas, animais e memórias afetivas de um tempo que o artista insiste em não apagar. A Galeria Estação se consagrou por promover a arte não erudita brasileira e os artistas emergentes na arte popular nacional. Sua atuação contribuiu para a inclusão dessas linguagens no circuito artístico internacional, através da edição de publicações e da realização de exposições.
Com a exposição "Acauã e o Fantasma", o auroras, espaço de arte independente, apresenta um diálogo entre a obra de Rivane Neuenschwander e do escultor José Bezerra, com curadoria de Gisela Domschke.
A Galeria Superfície expõe o trabalho de Lotus Lobo, uma ressignificação de marcas litográficas industriais, que perpassa a experimentação de diferentes bases (pedra, papel, plástico, acrílico e folha de flandres), culminando na intervenção e releitura das marcas. A Superfície se destaca pelo desenvolvimento de não apenas um trabalho comercial, como também a manutenção de estreita relação com instituições e museus. Tem entre suas atividades, a pesquisa e produção de publicações.
O Olhão, que acaba de anunciar também um programa de "web residência", mostra o trabalho "Boa Tarde às Coisas Aqui em Baixo", de Tiago Mestre e Dudi Maia Rosa. Sua narrativa se debruça sobre a relação do indivíduo com a paisagem, remetendo para a ligação profunda e ancestral entre a forma construída e a forma natural. Com foco na arte contemporânea, o Olhão é um espaço cultural independente, sem fins lucrativos, na Barra Funda, gerido pela artista Cléo Döbberthin. Também age como um ponto de encontro entre os artistas e o público em geral.
A Sé Galeria traz a individual de Edu de Barros, descrita pela curadora Clarissa Diniz como "uma contraproposta ao caos que se anuncia como o fim do mundo. Edu provocativamente engrossa o coro dos que esperam o regresso dos mitos e dos messias do passado, celebrando a criação em meio à convulsão em curso”. A Sé busca também formar novos públicos para artistas e obras que expressem uma visão conceitual e processual de arte contemporânea. Ela representa 19 artistas brasileiros.
O centro cultural Casa do Povo, criado em 1946 por parte da comunidade judaica progressista, reúne para o Transe trabalhos que chegaram em comissionamentos específicos ao longo dos últimos sete anos, alguns efêmeros, outros mais permanentes, para dar conta do caráter híbrido desse espaço comunitário que também é um lugar de memória.
O Pivô, espaço de arte autônomo fundado em 2012, participa do Transe com dois projetos: Pesquisa e o Satélite. Com a pandemia, o Pivô suspendeu suas atividades presenciais e desenvolveu uma programação voltada para o digital. Em julho, foi lançada a plataforma de projetos em ambiente virtual, o Satélite, desenvolvida pela curadora Diane Lima. Já o Pivô Pesquisa é o programa de residências artísticas da instituição, atualmente apoiado em diversas atividades online - encontros, grupos de trabalho, aulas, palestras - algumas delas abertas ao público. O Ciclo II de 2020 acontece entre os dias 30 de junho e 21 de setembro, sob condução da curadora, crítica de arte e pesquisadora convidada Clarissa Diniz.
Em Transe, o Projeto Vênus apresenta sua primeira exposição virtual: "Nine out of Ten". Ela reúne seis artistas representados pelo Vênus: Adriana Coppio, Camile Sproesser, Flora Rebollo, Janina McQuoid, Luiz Queiroz e Paula Scavazzini. E mais três convidados: Giulia Puntel, Olga Carolina e Yan Copelli. "Nine out of Ten" é uma referência à música de Caetano Veloso, onde ele relata a beleza de estar vivo caminhando pela Portobello Road, em Londres, e encontrar o som do Reggae no início dos anos 1970.