Flávio de Carvalho, 'Experiência n. 3', 1956 Photograph, b/w Source: Fundo Flávio de Carvalho/CEDAE-UNICAMP, Campinas © The Heirs of Flávio de Carvalho
“O peixe dentro do mar nada sabe do voo nupcial da abelha, nem das ideias de um comandante de navio, mas poderá um dia entrar em contato com os ossos de um homo sapiens e ponderar sobre os ossos.
Uma coleção de ossos é, portanto, mais importante a um observador do que os ossos do próprio observador. A luz sobre o passado é o único tipo de luz capaz de iluminar o presente, e de ajudar a derreter o véu da cegueira; o passado colecionado em museu apresenta mais sugestibilidade que o tumulto de uma geração, e é eminentemente capaz de concorrer ao desabrochar do indivíduo”.

 

O trecho acima é parte do livro Os ossos do mundo, publicado em 1936, portanto há mais de 80 anos, e escrito por Flávio de Carvalho, após seis meses de viagem na Europa, entre 1934 e 1935. Exp. 1: Os Ossos do Mundo é justamente o título da atividade que dá início à 11ª Bienal de Berlim, nesta sexta, dia 6 de setembro, com curadoria de María Berríos, Renata Cervetto, Lisette Lagnado e Agustín Pérez Rubio.

O arquiteto e artista transgressor Flávio de Carvalho (1899 – 1973), que em 1956 saiu de saias em São Paulo, foi um dos que inspiraram o projeto vencedor para a Bienal de Berlim, no ano passado, e suas propostas surgem agora como referência para o processo curatorial do time majoritariamente latino-americano, exceção do espanhol Rubio.

“Parece uma exposição, mas não é. É apenas uma abertura pública do processo curatorial enquanto experiência. Não encontramos uma palavra para traduzir “experiência”. Em alemão, nem “erfahrung”, nem “erlebnis”, nem “experiment”, conseguiu satisfazer o grupo mais a equipe da bienal”, escreveu Lagnado por e-mail, respondendo a duas perguntas sobre a mostra.

Experiência é um termo usado por Carvalho em várias de suas ações consideradas hoje precursoras da performance, como Experiência n. 2, em 1931, quando atravessou uma procissão de chapéu, no centro de São Paulo, para fúria de religiosos católicos. No mesmo ano, ele publicou um livro relatando o caso e fazendo uma longa análise de suas implicações com referências na psicanálise.

A Bienal de Berlim tem início agora ocupando o ExRotaprint, um edifício em um bairro periférico com alta população de imigrantes em Berlim, escolhido pelos curadores para iniciar um processo de vivências, encontros e reuniões com artistas em residência.

Lagnado observa o momento de escritura de Os Ossos do Mundo (disponível online em https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/2769), em 1934, “ano paradigmático para a ascensão do nacionalismo” em consonância com a situação atual: “Estamos chegando agora, trinta anos após a queda do Muro de Berlim, com nossas referências de casa na bagagem.”

Segundo a curadora, o espaço funciona como um laboratório, já que não tem condições museológicas. A exp.1, de fato, sequer terá obras propriamente ditas, “mas rastros de uma coleção de ideias amadurecidas nos últimos seis meses durante as conversas internas”.

A proposta reflete um pouco outra iniciativa de Flávio de Carvalho, o Clube dos Artistas Modernos – CAM, criado em 1932,  que, como aponta Lagnado,  “promoveu apresentações paradigmáticas de Osório César, como o mês das crianças e dos loucos, a conferência de Mário Pedrosa sobre Käthe Kollwitz, sem contar o Teatro da Experiência que acabou fechando o espaço”.

Bienais têm de fato se prolongado no tempo para além da mostra, e a própria Como Viver Junto, que teve à frente Lagnado, na 27ª Bienal de São Paulo, em 2006, começou antes com um extenso programa de seminários. A proposta agora é muito mais radical. O espaço será aberto ao público de quinta a sábado, em horários definidos, quando os curadores estarão lá trabalhando, recebendo quem quiser ir, com uma programação para escolas da vizinhança. “Importante deixar claro que essas experiências são nossas e não uma réplica do percurso do Flávio”, defende a curadora.

Outra inovação da Bienal de Berlim é evitar o sigilo em torno dos participantes da mostra. O convite de exp.1 já anuncia contribuições de cerca de 30 participantes, eles o próprio Flávio de Carvalho, além do Teatro da Vertigem e da artista Virgínia de Medeiros, ambos também do Brasil, Cecília Vicuña, do Chile, e o Mapa Teatro, da Colômbia.

“Coletivos, artistas, educadorxs, palestrantes, coreógrafxs, poetas, todxs são igualmente integrantes da 11th Berlin Biennale for Contemporary Art. Não há uma separação entre exposição e programa público, ou entre exposição e educativo”, escreveu ainda Lagnado.

 

 

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