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A Gentil Carioca apresenta “Lost in Translation”

Laura Lima, "Desejo". Foto: Divulgação.

Com o circuito de arte fechado ao público por conta da Covid-19, o espaço expositivo deu lugar a lives e outras propostas que fervilham na internet. Mostrar agora é pensar o presente e o futuro, trocar ideias, conhecimento, conteúdo. Esse caminho trilhado por Lost In Translation, a primeira exposição virtual da galeria A Gentil Carioca, é fluído, utópico, com liberdade de indagação total.

Marcio Botner, artista e um dos proprietários da galeria, quer entender o momento e aliar-se, conceitualmente, aos artistas, intelectuais, galeristas para encarar essa travessia. A mostra pode ser entendida como algo que ainda deve acontecer, como o projeto Desejo, de Laura Lima, que está em sua cabeça, meio em suspensão, como ela diz. “Se conseguir fazer, será um trabalho com pessoas. Quando penso neste projeto, lembro de Dennis Oppenheim desenhando sobre a parede e seu filho fazendo simultaneamente o mesmo desenho nas suas costas.” A era espacial marcou profundamente o imaginário artístico, não só no cinema. Desejo inclui um astronauta flutuando sem gravidade, com o corpo enviesado quando visto da terra, como nas imagens da Nasa, com o tripulante fora da espaçonave. Laura quer se conectar com o espaço sideral e promover a observação de seus desenhos, feitos na web, a partir da terra. 

Sopro e meditação se entrelaçam na obra de Maria Laet, uma artista que trabalha o silêncio como medida de seu tempo. A coletiva destaca uma instalação sonora imersiva, além do filme/obra A Medida da voz, que pensa o espaço e o tempo da voz. Com personalidade tranquila, ela constrói uma dinâmica físico psíquica de movimento e imobilidade, próxima aos modelos da cultura oriental. Oito vozes reverberam de dentro para fora de oito vasos de barro – dispostos em círculo e enterrados até a superfície -, criando sons contínuos e monitorando a respiração. Maria Laet faz poesia sem texto.

A questão relevante do videoclipe rap Ladainha do Morto, de Cabelo, são os fragmentos de ideias que formam um arquivo sociológico vivo de um Brasil desigual, racista e indiferente. Este é um dos melhores trabalhos de Cabelo que musica, grava e interpreta um poema de Gerardo Mello Mourão, pai do artista Tunga, criado para o projeto Luz com Treva, com disco, show e exposição.

Numa perspectiva poética, a performance Caminhada Silenciosa em Veneza, de Vivian Caccuri, explora várias formas de percepção de uma cidade. Vinte pessoas que não se conhecem, caminham juntas em silêncio, por oito horas. Tal operação, sem conversas, provoca mudanças na percepção dos participantes sobre o território onde circulam. O silêncio deles filtra o som do entorno, mesclado por um arranjo de vozes e ruídos diversos. O projeto já foi apresentado no Rio de Janeiro e essa troca de topografia agregou a ele novos territórios simbólicos e imagéticos.

Proximidade e afeto circundam o universo de Maxwell Alexandre, que também é levado às outras margens pelo cotidiano desafiante do lugar onde vive e trabalha. Ele tem ateliê na comunidade da Rocinha, frequentado por amigos, críticos e diretores de museus. Conhecido por suas pinturas de grandes formatos, coloridas e matéricas, em Lost in Translation ele propõe uma instalação limpa, com poucos objetos, contaminada por elementos constantes na paisagem familiar. Uma piscina de lona plástica azul Capri, muito vista nas lajes das casas da comunidade, e vários espelhos modelo Romeo. A instalação é interativa, com a participação do público que é convidado a ficar descalço e a caminhar pelas águas desse projeto de tom mítico, com narrativa construída a partir da experimentação do artista. 

Ideias possíveis giram em torno do projeto de Rodrigo Torres que sutura o tempo, estendido pelo isolamento, com uma produção manufaturada e terapêutica que mescla reflexão, religião e arte. Colar das Horas é uma espécie de terço ou cordão de meditação que se reporta também ao passado do artista, quando era religioso e via na oração um momento de introspecção. Cada conta é feita com argila e papel para enrolar maconha, com tamanho natural de um colar comum. ”Se transformado em instalação terá cerca de 30 metros de altura, adaptáveis ao espaço da galeria.”

Urbanismo, território e transformação espacial seguem na pauta de Jarbas Lopes. Seu projeto O Trecho Inaugural MAM, Rio Janeiro é uma versão evolutiva da proposta original de 2001, Cicloviaérea, “ciclovias elevadas do chão” e confirma a arte como agente para repensar cidades. Proposta diferente das ciclovias que cortam as cidades por todo o mundo, Cicloviaérea propõe o uso lúdico da bicicleta, em pista suspensa, tornando-se mais que um transporte, um prazeroso momento de lazer.

O conceito de inclusão da arte na cidade é bem mais amplo do que se imagina. João Modé escolheu o centrão do Rio de Janeiro para intervir com o projeto Extensores, que envolve cinco longas cordas que se conectam sobre a claraboia d’A Gentil Carioca e são amarradas a alguns prédios vizinhos, próximos ao mercado a céu aberto Saara. O trabalho do artista é constituído por materiais que possam se infiltrar pela cidade e provocar a percepção das pessoas para situações que não se revelam no tecido urbano. 

A opção de mostra virtual veio para ficar e Márcio Botner comenta que a iniciativa teve resposta positiva não só dos artistas, mas também de críticos e intelectuais. Com início o site da galeria em manutenção, as viewing rooms estão disponíveis neste link.

 

34ª Bienal de São Paulo é oficialmente adiada

Bienal
Foto: Pedro Ivo Trasferetti / Fundação Bienal de São Paulo

A 34ª edição da Bienal de São Paulo foi oficialmente adiada e deverá ocorrer entre os dias 4 de setembro e 5 de dezembro de 2021. A decisão, aprovada por unanimidade pelo conselho da instituição, é consequência direta da pandemia de coronavírus. Em março, a mostra já havia sido postergada por um mês, mas as incertezas em torno do retorno à rotina regular acabaram levando a um reescalonamento mais seguro. Segundo o presidente da Fundação, José Olympio da Veiga Pereira, seria necessário começar em breve os trabalhos de montagem da mostra, o que colocaria muitas pessoas em risco. Além disso, a enorme paralisia no turismo nacional e internacional desestimula a realização de um evento de tamanha dimensão. 

Esse adiamento exigiu também a tomada de outras medidas de adaptação, como a alteração do calendário geral da mostra, que volta a ocorrer oficialmente em anos impares, como aconteceu entre sua inauguração até 1991, e o prolongamento do mandato da atual diretoria, que foi estendido até dezembro de 2021. Iniciativa semelhante já havia sido tomada em maio pela Bienal de Veneza.

O conceito norteador da Bienal, intitulada “Faz Escuro, Mas Eu Canto” permanece o mesmo. A mostra se estruturará em torno de algumas linhas temáticas que se entrelaçam, como as noções de resistência, circulação, opacidade e enclausuramento. Questões que, quando vistas a partir da nossa situação atual, adquirem novos e complementares significados que, segundo o curador Jacopo Crivelli Visconti, devem ser incorporados ao projeto da 34ª Bienal. “Existem aspectos que já estavam presentes nas obras, que apontavam nessas direções, mas que se tornaram mais evidentes agora”, explica ele. “Insistir no planejado seria um erro, temos que estar abertos”, acrescentou. Apesar de a lista definitiva de artistas estar praticamente pronta, ela só deverá ser divulgada em sua versão definitiva em março ou abril de 2021, dando aos curadores um tempo extra de reflexão e para possíveis alterações.

Infelizmente, não será possível realizar os eventos programados para acontecer ao longo do ano. De acordo com o calendário original seriam organizadas três mostras e três performances ao longo do ano, mas só foi possível concretizar a mostra de Ximena Garrido-Lecca, inaugurada em fevereiro, e a performance de Neo Muyanga. Para manter ativa a discussão em torno da mostra e o intercâmbio com um circuito amplo, a Bienal planeja fazer uso das ferramentas virtuais, continuar as publicações de correspondências curatoriais (divulgadas no site) e promover uma série de encontros online envolvendo artistas, estudiosos e curadores. “Nosso objetivo é trabalhar a exposição como se fosse um ensaio aberto, compartilhado com o público”, explica Visconti. 

Também está programado o lançamento de uma publicação digital, que funcionará como uma espécie de livro de artista, que congregará uma série de trabalhos comissionados. Outra proposta, a ser avaliada conforme a evolução do quadro epidêmico, é realizar ainda este ano uma pequena mostra coletiva, reabrindo o Pavilhão ao público, substituindo assim os eventos cancelados e fortalecendo uma das ambições do projeto: criar uma Bienal que se estenda no tempo e no espaço, permitindo ao público vivenciar uma mesma produção artística em diferentes contextos e momentos. Em relação à ampla rede de parcerias que a Bienal havia criado para a realização de cerca de 25 exposições paralelas ao evento principal, Visconti explica que os casos serão trabalhados individualmente, avaliando as circunstâncias de cada projeto individual. 

Do ponto de vista orçamentário, José Olympio afirma que a pandemia afetou as contas da Bienal, mas não de maneira insuperável, pois a instituição conta com mais de 20 parceiros estáveis e vem ampliando sua rede de apoio. Segundo ele, o principal obstáculo, até agora, foi a impossibilidade de alugar o espaço do Pavilhão, que responde por parcela importante das receitas. 

 

“Claudius”, de Gerard Richter, no MAC USP: Finalmente!

"Claudius", de Gerard Richter

Apreendido pela Receita Federal em 2009, a obra Claudius, 1986, do artista alemão Gerard Richter, foi passada para o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) que, em abril do ano seguinte, concedeu a guarda provisória da peça pelo Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP), justamente quando eu assumia a direção do Museu.

Durante algum tempo o museu solicitou que a obra lhe fosse doada ou então recolhida pelo IPHAN. Uma obra valiosa como Claudius, sob a guarda provisória de um museu público como o MAC USP é sempre uma grande responsabilidade. O IPHAN, no entanto, ignorou nossas demandas, levando-nos a manter a pintura na Reserva, conservando-a com o cuidado devido, porém sem exibi-la (como exibir a obra sobre a qual o museu não tinha nenhum direito, apenas obrigações?) Passados alguns anos, porém, chegamos à conclusão de que a melhor maneira de continuar preservando Claudius era exibi-la, torna-la visível para o público do museu dentro de um espaço com segurança e condições ideais de iluminação, temperatura etc.; e dentro de uma exposição que deixasse claro para todos o quanto seria importante que aquela obra passasse a pertencer ao acervo da instituição – sobretudo naquele momento em que saíamos da Cidade Universitária para nosso novo espaço, o antigo edifício do Detran, no Parque Ibirapuera.

Para a inauguração, o MAC USP organizou uma série potente de exposições em que o acervo da instituição seria o grande protagonista. Nossa ideia (minha e da equipe que coordenava) era mostrar a todos a robustez das coleções que o museu abrigava (e abriga), cujas peças vinham do final do século XIX, início do século XX, até aquelas produzidas nos primeiros anos da segunda década do século XXI. Dentro desse universo estavam inclusas, igualmente, as obras sob a guarda provisória do museu. Foi assim que Claudius pôde ser integrada a uma das mostras que inaugurariam os novos espaços do MAC USP no Ibirapuera e que estava sob minha responsabilidade: O Artista como Autor/ O Artista como Produtor.

Essa exposição – em cartaz entre 15 de junho de 2013 e 13 de setembro de 2015 – colocava em debate duas formulações artísticas típicas dos séculos XX e XXI e, dentro dela, causava muito prazer rever Claudius, de Gerard Richter, ao lado de peças de Cesar Baldaccini, Mônica Nador, Waltercio Caldas e Carmela Gross, entre outros.

Como meu mandato acabou em meados de 2014, deixei o MAC USP com a exposição em cartaz. Terminada a mostra, Claudius voltou para a reserva técnica do museu. Somente no final de 2019 foram iniciadas novas tratativas entre o IPHAN e o MAC, visando a possível doação da obra, o que se tornou real agora, em 2020.

Como é perceptível, dez anos se passaram, entre o início da guarda provisória da obra de Richter pelo MAC USP e sua doação definitiva. Sempre nos surpreende a morosidade das nossas instituições públicas, a capacidade que elas possuem de postergar aquilo que poderia ser resolvido de forma mais ágil. No entanto, estou certo de que, neste caso, valeu a pena a espera. Ao invés de, quem sabe, estar decorando a casa de alguém que só a veria como um investimento financeiro, Claudius agora faz parte de um acervo público que irá continuar conservando-a, estudando-a em suas relações com as outras obras do acervo do museu e, principalmente, exibindo-a para o público de São Paulo e do Brasil.

A empatia como experiência estética

Pintura de Carl Spitzweg. Foto: Reprodução

* texto originalmente publicado em dezembro de 2017 

Na recente mostra organizada pelo Museu da Empatia, em curso no MAM de São Paulo, pessoas são convidadas a vestir sapatos aleatoriamente oferecidos. O visitante é então convidado a andar enquanto escuta histórias dos virtuais donos dos sapatos. A ideia é uma espécie de literalização da expressão “walk with other shoes”, isto é colocar-se nos sapatos do outro, no lugar do outro e assumir seu ponto de vista.

A experiência inclui-se em uma série de iniciativas que procuram trazer o universo museológico mais perto das pessoas, diminuindo a impressão popular de que a apreciação de obras de arte é uma tarefa para pessoas muito cultas. Trata-se de tentar reverter a expectativa média de que aqueles que não dominam elementos de história das artes, sociologia, filosofia ou crítica social estão confinados a uma experiência estética na qual apenas confirmarão sua exclusão de classe, de raça ou de origem. Uma atitude similar, ainda que inversa, ocorre quando o encontro com a obra de arte resulta apenas em um relato inautêntico usado apenas como signo de pertinência de classe ou como espetáculo de consumo.

É fato que a experiência com a arte contemporânea pelo público não especialista é frequentemente vivida como um confronto com o incompreensível confirmando o sentimento de inferioridade cultural. É certo também que desde o renascimento tal experiência adquiriu esta função de marcador simbólico das classes altas.

Particularmente a partir das revoluções francesa e americana e da queda do antigo regime, baseado na nobreza e na aristocracia, a capacidade de ler, entender e possuir obras de arte tornou-se um fato de distinção de classe. Um sinal confirmador que confere autenticidade e legitimidade social para a riqueza que se possui. Não basta mais ser filho de ou neto de uma linhagem familiar, é preciso também possuir dotas de educação e cultura, e isso se exprime ao modo de um saber.

Pierre Bordieu mostrou: assim como o capital financeiro tende a se concentrar, reproduzindo-se de modo acumulativo, o capital social, formado pelos laços, amizades e relações de pertinência e o capital cultural seguem esta mesma rota reprodutiva. Isso pode nos ajudar a entender a recente onda de repúdio a certos artistas e suas exposições (como a Queermuseu de Porto Alegre), de ódio aos intelectuais e professores, (como a fogueira pública na qual a imagem de Judith Butler foi queimada como “bruxa”), de ataques a universidades e centros de pesquisa (com redução de verbas e sucateamento programado).

Tudo se passa como se estivéssemos atacando posições, que têm por dever de ofício fornecer meios e cuidar dos processos de tratamento de conflitos. Esta é a função das diferentes formas de curadoria, termo que associamos com a prática da montagem de exposições museológicas, mas que tem uma origem filosófica antes de se tornar uma metáfora médica. A cura é antes de tudo cuidado consigo.

Uma das vertentes que formaram a noção de cultivo, educação ou de formação são justamente as práticas de cuidado.  Cuidar é cuidar do conflito, não é suprimi-lo ou silenciá-lo. Cuidar é um percurso, não uma condição ou um ato isolado. Cuidar e controlar podem andar perigosamente juntos, difícil saber quando uma prática está parasitando a outra. 

O termo empatia foi introduzido por Robert Vischer em Sentimento ótico da Forma (1873), definido como “projeção do sentimento humano para o mundo da natureza”. Foi na tradução ao inglês que o psicólogo Tietchner, passou o termo alemão “Einfüllung” introduzindo assim a derivação grega de pathos, em “empathy”.  É certo que pathos em grego remete tanto a paixão, quanto sofrimento e ainda capacidade de afetar-se com o outro, contudo o termo alemão acrescenta o radical ein (um) ao verbo fullen (sentir) o que nos leva o sentimento de unidade.

Vischer tentou discernir este sentimento de unidade de experiências conexas como o sentir com (Mifüllen), o sentir junto (Zuzamenfüllen) e o sentir próximo (Nachfüllen). Ele também tentou separar sentimentos (Füllen) de sensações (Empfindung). A participação do corpo, a presença do humor comum e a compaixão ficam pouco representadas quando olhamos para a separação mais tradicional entre a empatia e a simpatia. A simpatia envolve o processo de identificação e simultaneidade, sentir junto ou o mesmo que o outro.

A polêmica terminológica seria apenas um preciosismo senão atentássemos para a importância da diferença entre estes processos. Uma cultura da simpatia dissemina-se pela popularização de imagens digitais e pela condição, cada vez mais importante, de uma afinidade estética preliminar como condição para a produção de sentimentos de admiração, respeito e interesse. Mas o que podemos esperar da simpatia é a experiência moral da tolerância pela partilha das identificações. Substância que anda em falta, mas parece muito pouco para tratar nosso cenário de conflitos.

Sabe-se que Freud leu Lipps, que leu Vischer, e que o fundador da psicanálise usava amplamante o termo Einfüllung para designar os encontros mais promissores entre analista e analisante. Mas como aprender a desenvolver esta aptidão tão necessária para o cuidado, para a curadoria e para a cura?

Poderíamos pensar na empatia, combinando sua versão alemã com a inglesa, como um percurso. Ela não é uma feto, mas uma pequena gramática do encontro com o outro. Uma gramática que é ao mesmo tempo psicológica, política e estética.

Notemos que a definição de Vischer parte da ideia muito simples, ainda que poderosa, de que a empatia é a atribuição de traços humanos a natureza. Longe de referir-se apenas à expressão do ideário romântico, no qual Vischer bebia, ele introduz como primeiro passo da empatia o reconhecimento de si naquilo que é inumano por definição, a natureza, com suas expressões paisagísticas, com seus mares convulsivos, com suas naturezas mortas.

Este é um critério importante, pois a empatia não é apenas colocar-se no lugar do outro, (another shoes) mas perceber o outro como outro e não apenas como um duplo de si mesmo. Colocar-se no ponto de vista do outro confia demais na noção perspectiva de ponto de vista. Ponto de vista é um ponto geométrico, ele não tem corpo, não tem pedras no sapato ou calos que você não percebe quando se translada ao ponto de vista reflexivo do outro.     

Tomemos a pintura de Carl Spitzweg (1808-1885) que exemplifica a paisagem estética que Vischer tinha à sua disposição. Ele consegue despertar extrema simpatia ao produzir a ilusão de um mesmo ponto de vista quando o espectador também contempla solitário as nuvens e a paisagem distante. O franco contraste com as plantas que mimetizam a vida no campo, estabelecem a saudade como sentimento empático projetado na natureza. Uma vida simples, com relações orgânicas, sem tanta preocupação, despertará certamente simpatia. 

Pintura de Carl Spitzweg. Foto: Reprodução

A mesma solidão que se perceberá nesta tela na qual o personagem é esmagado pelo peso dos livros e por sua improvável posição de leitura em cima de uma escada. Mas ocorre que ele não se percebe em perigo, absorto que está em sua tarefa. Colocar-se no ponto de vista do outro, sim, mas para depois separar-se dele, enigmatizá-lo, perceber que ele mesmo não percebe seu ponto de vista, nem o olhar de quem o espreita em sua privacidade.

O terceiro movimento da empatia refere-se ao retorno dos traços de não identificação, os traços inumanos ou desapercebidos ao próprio sujeito.  Aqui está a relação com este outro que Lacan chamou de inconsciente. O Outro no outro, e não o outro do Outro. Isso retroage sobre o espectador produzindo distância ou aproximação, envolvendo uma primeira fase do que pode ser compartilhado. É o que se observará nas telas que fazem da paisagem uma estratégia de aproximação entre os personagens.

O quarto tempo da empatia é a retribuição do percurso ao próprio outro que se produziu nestas três passagens anteriores. A partilha do sensível não é necessariamente uma partilha amorosa, nem mesmo de admiração ou aprovação. Empatia é justamente uma experiência que envolve um momento de “desidentificação” e estranhamento. Este último momento envolve, portanto, uma espécie de crítica do juízo, uma suspensão da determinação que encerra o outro em sua imagem.

Um recurso ou sinal de que isso se efetua pode ser encontrado na emergência do humor e do cômico. Afinal é em sua teoria sobre os chistes que Freud desenvolve a noção de empatia (Einfüllung). Não seria por outro motivo que o quadro preferido dos alemães, em uma recente enquete, é justamente a obra de Spitzweg chamada “Pobre Poeta” (1839):

Pintura de Carl Spitzweg. Foto: Reprodução

Reduzido a um cubículo com goteiras, com sua caneta e seu roupão amarrotado ele tem uma face compenetrada, que nos faz pensar no ridículo da situação daquele que quer pensar os problemas mais grandiloquentes tendo diante de si as mais óbvias e iminentes limitações.

Mas não é essa a condição e todos nós? Vê-se assim como a empatia parte do particular, descobre dentro dele a sua singularidade própria para terminar em um movimento de universalização, que bem se expressa na vertente da compaixão.

Os limites de nossa capacidade de empatia são também os limites de nossa experiência de linguagem, de nossa forma ótica e mais ainda, de nossa própria condição. Por isso quando encontramos uma figura grotesca, meio homem, meio mulher, meio velha tentando se fazer jovem, macrocéfala com mãos desproporcionais e vestuário inapropriado, estamos aí sim diante da ocasião para a construção estética da empatia.

Esse era também o desafio que a arte bruta, transformada por Hitler em arte degenerada, propunha. Este, aliás é um dos aspectos mais interessantes da teoria de Judith Butler, a saber, a ideia de que longe de existirem apenas dois gêneros há muitos gênero indiscerníveis, gêneros que foram historicamente tratados como abjetos. O quadro de Quinten Metsys (1465-1530), provavelmente retrata uma pessoa que sofria de osteíte deformante, informação que parece bastar para mudar nosso sentimento inicial com a personagem. 

Obra de Quentin Matsys. Foto: Reprodução

Aqueles que queimam bruxas em nossa época, valendo-se do cristianismo para perseguir formas novas de empatia, aqueles que veem pedofilia em qualquer nudez, ou os que julgam uma pintura pelo seu tema, estão destruindo a experiência, mas extensa da empatia. Com isso se privam de um recurso fundamental para tratar conflitos em geral de modo a torná-los produtivos. O cuidado é difícil de ensinar, mas sabemos quando ele está sendo maltratado.

Vida e obra de Vladimir Herzog são homenageadas

Vladimir Herzog
Vladimir Herzog entrevista Helene Weigel em 1965, Londres. Foto: Cortesia Acervo Vladimir Herzog.

Mais 1700 itens do Acervo Vladimir Herzog serão disponibilizados em uma plataforma digital a partir do dia 26 de junho. São fotografias, correspondências e outros elementos que fazem parte da trajetória profissional e pessoal do jornalista e intelectual. 

O lançamento ocorre na comemoração ao 83º aniversário de vida de Vlado e pretende preencher uma lacuna histórica, disponibilizando à sociedade sua obra e vida para além de seu trágico assassinato por agentes da ditadura militar em outubro de 1975.

Em decorrência da estreia virtual do acervo, o Instituto Vladimir Herzog fará uma live, também no dia 26 de junho, com participação de Rogério Sottili (diretor executivo do Instituto), Ivo Herzog (presidente do Conselho do Instituto e filho de Vladimir), Luis Ludmer (coordenador técnico do Acervo Vladimir Herzog) e Bianca Santana (jornalista e escritora).

O projeto tem apoio do Itaú Cultural, cuja parceria anterior foi a Ocupação Vladimir Herzog, mostra exibida no Itaú Cultural com público total de 98,5 mil pessoas, recorde para o ano de 2019. 

Entre os itens que compõem o acervo estão tanto a documentação pessoal – preservada por mais de quatro décadas por esforço da família de Vlado -, quanto outros materiais mapeados por pesquisadores em mais de 20 instituições e acervos públicos e privados.

Além de mais de mil fotografias, muitas delas registradas pelo próprio Herzog como pesquisa documental, também podem ser conferidas 78 matérias escritas ou editadas por ele ao longo da carreira; 131 periódicos da Revista Visão, da qual Vlado foi editor; mais de 60 cartas escritas e/ou endereçadas a ele; e uma série inédita em parceria com o Museu da Pessoa com 12 depoimentos de familiares e amigos do jornalista, entre eles a viúva Clarice Herzog, o cineasta João Batista de Andrade e o arquiteto Ruy Ohtake. 

A plataforma levou dois anos para ser erguida, entre pesquisa e organização, seguindo rigor arquivístico, fazendo uso de descritores bibliográficos, dados contextuais e textos que amparam o usuário na navegação e na consulta. Nela todos os itens são apresentados de forma didática, agrupados por tipos de documentos ou atividades exercidas por Herzog. 

“Lançarmos o acervo neste momento é também um gesto simbólico de enfrentamento ao revisionismo histórico e de negação dos horrores promovidos pela ditadura militar no Brasil”, afirma Rogério Sottili, diretor executivo do Instituto Vladimir Herzog. Complementa que: “Essa ação faz parte de um projeto maior do Instituto que é promover a memória, a verdade e a justiça – para que possamos conhecer nosso passado e assim romper com os ciclos de violência que se perpetuaram em nossa história”.

 

CCBB disponibiliza na web visitas mediadas às suas exposições

CCBB
Modelo do Templo de Debod na exposição "Egito Antigo - do Cotidiano à Eternidade". Foto: divulgação.

Em uma nova ação que começa nesta quinta-feira, 25 de junho, as visitas virtuais online às mostras do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) somam-se ao programa #CCBBEducativoEmCasa, que vem trazendo conteúdos produzidos por artistas e arte-educadores para toda a família, especialmente as crianças, em seus lares.

No site do CCBB é possível acessar os conteúdos como as Historietas, as lições em libras e as atividades do Lugar de Criação, que geralmente ocorre aos finais de semana nas sedes do Centro Cultural e, como o restante da programação, também foi para a web. No site é possível conferir também as visitas patrimoniais pelos prédios dos quatro centros. São duas visitas patrimoniais por sede, sendo que as primeiras já estão no ar e as outras estão previstas para as próximas semanas.

A novidade agora são as visitas mediadas, uma oportunidade para aqueles que não conseguiram ir – antes do início do distanciamento social – ou para quem deseja ver novamente as exposições, que continuam em cartaz nas quatro unidades do CCBB, mas com acesso presencial suspenso.

Em Belo Horizonte, Vaivém apresenta mais de 300 obras que representam as redes de dormir na cultura e arte brasileiras. Através de obras produzidas por artistas indígenas e não indígenas – do século XVI até os dias de hoje -, a exposição traz reflexões sobre identidades brasileiras partindo desse símbolo cultural, um fruto da tradição ameríndia que foi preservado em nossos modos e costumes.

CCBB
“Beyond Memory” de Chiharu Shiota. Foto: Sunhi Mang.

A artista multidisciplinar japonesa Chiharu Shiota apresenta cerca de 70 obras na exposição Linhas da Vida, no CCBB Brasília. A mostra é dividida em cinco núcleos e reúne trabalhos que datam do início da carreira de Shiota até algumas instalações inéditas. Seu trabalho é conhecido por ser realizado em contextos específicos e em grande escala, frequentemente compostos por emaranhados de linhas.

Também haverá um passeio guiado pela exposição Ivan Serpa – A Expressão do Concreto, em cartaz no CCBB Rio de Janeiro. Na mostra, é possível conhecer grande parte do repertório de experimentações do artista, que não se limitou a uma única linguagem e nem a fazer arte explorando um conjunto de materiais tradicionais. São pinturas, colagens, desenhos, objetos e gravuras diversas entre si.

Por fim, Egito Antigo – do Cotidiano à Eternidade, exposição do CCBB São Paulo, percorre a história do Egito Antigo através de 140 peças vindas do Museu Egípcio do Turim. O acervo do museu é considerado o segundo maior do mundo em arte egípcia. Além das esculturas, pinturas, e objetos cotidianos, também estão expostos os ostracons (fragmentos de cerâmica ou pedra usados para escrever mensagens oficiais), sarcófagos e múmias (humanas e de animais). A exibição se divide em três seções – vida, religião e eternidade – que ilustram o cotidiano das pessoas do vale do Nilo, revelam características do politeísmo egípcio e abordam suas práticas funerárias.

As ações do programa CCBB Educativo – Arte e Educação, foram desenvolvidas pelo JA.CA Centro de Arte e Tecnologia, de 2018 a abril de 2020. Relembre matéria sobre o JA.CA que está na edição #50 da arte!brasileiros.

O pantheon dos imortais de São Paulo: delírio tropical no Pátio do Colégio

O Pátio do Colégio na segunda metade do sáculo XIX. Foto: Reprodução

No rastilho dos protestos contra o assassinato de George Floyd pelo policial racista nos Estados Unidos, prosperaram ações iconoclastas, naquele e em outros países. No Brasil, se a iconoclastia (ainda) não vingou como corolário dos protestos contra a morte de Floyd (e de centenas de outros Floyds, mortos e mortas todos os dias por aqui), pelo menos o debate foi reiniciado. Volta-se a discutir a pertinência de se manter monumentos a notórios predadores e traficantes de seres humanos em nossas praças.

Se hoje lembramos do bandeirante quando tratamos de morte e tráfico de pessoas, não faz muito tempo sua figura era associada ao que de mais intrépido podia existir na “alma brasileira” (e não apenas paulistana). Para muitos, o Brasil deveria agradecer ao bandeirante pois teria sido por sua “bravura” que o país conseguiu estender seu território para além do antigo Tratado de Tordesilhas[1].

O bandeirante – atuante nos primeiros trezentos anos da colonização –, foi recuperado no início do século XIX quando, frente à chegada e rápido empoderamento de adventícios, os paulistas encetaram seu resgate. Essa recuperação acabou se ampliando com o tempo por dois motivos: primeiro, devido à chegada cada vez mais intensa de hordas de imigrantes vindos de todos os lugares do mundo e não apenas de Portugal. Contra esses “invasores” que ameaçavam as tradições locais, o culto aos antigos. Também era necessário justificar o protagonismo da elite paulista nos destinos do Brasil já do início do século XX. Assim, nada mais adequado do que associar a “audácia” dos bandeirantes de ontem àquela dos “novos” bandeirantes. Vários membros dessa elite acreditavam nessa narrativa que os unia aos antigos pioneiros. Assim, diante das más influências do “imigrantismo” e daqueles que contestavam a supremacia “histórica” dos paulistas, eles entendiam que era necessário tornar palpável aquela ficção. Foi o que ocorreu a Adolfo Augusto Pinto[2].

Celebrado por Almeida Jr. em pintura pertencente à Pinacoteca – Cena de família de Adolfo Augusto Pinto, 1891 –, esse engenheiro integrou as gerações dos “novos bandeirantes” paulistas, pois, após ter sido o responsável por obras de infraestrutura na cidade de São Paulo, ele galgou alta posição como responsável pela expansão da Companhia Paulista de Estrada de Ferro. Um “desbravador”, Pinto também se destacou como ideólogo da “paulistaneidade”: embriagado de orgulho por São Paulo, queria que a cidade fizesse jus ao fato ter sido o berço dos antigos e dos novos bandeirantes.

Já tive a oportunidade de arrolar (leia aqui) os monumentos escultóricos realizados em São Paulo que contaram com o engajamento e, muitas vezes, com a intervenção direta de Pinto[3]. Seu empenho pela tradução em granito, mármore e bronze da história idealizada de São Paulo, no entanto, nem sempre resultou em monumentos que de fato foram construídos. Porém, mesmo aqueles projetos não realizados reiteram a potência da ideologia que plasmaram, no plano simbólico, o papel de São Paulo e do paulista, como primeiros e únicos responsáveis, segundo essa visão, por tudo o que de positivo teria ocorrido no Brasil, desde 1500.

O interesse de Adolfo Pinto por São Paulo não ficou restrito à sua infraestrutura. Como corolário das benfeitorias que os governos realizavam na cidade, Pinto refletia sobre a necessidade de “aformosear” a capital, projetando soluções que, ao unir facilidade de fluxo, lazer e deleite estético, transformaria o berço dos bandeirantes num sonho, uma condensação tropical de Versailles, Roma e Florença.

Em conferência pronunciada em novembro de 1917[4], Adolfo A. Pinto tornou pública a ideia de transformar em Centro Cívico o núcleo histórico da cidade, o Pátio do Colégio[5]. Como a cidade havia nascido justamente naquele lugar – onde os padres Manoel da Nóbrega e José de Anchieta haviam fundado o Colégio dos Jesuítas, com o apoio do cacique Tibiriçá –, o Largo do Palácio, a seu ver, deveria ser transformado em um Centro Cívico que reverenciasse os heróis nascidos em São Paulo.

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Adolfo Pinto inicia a conferência de 1917 estranhando a ausência de monumentos em São Paulo que homenageassem a cidade e seus heróis. Comparava a capital do Estado à situação de outras cidades brasileiras. O Rio de Janeiro, por exemplo, apresentava em suas praças, parques e museus, as efígies dos grandes brasileiros. São Paulo, nada. Segundo ele, contudo, a situação estava prestes a mudar devido ao concurso para escolher o monumento em homenagem ao centenário da Independência a ser instalado em frente ao Museu Paulista. Para o conferencista, como a independência do país ocorrera em território paulista, nada mais justo que o monumento fosse construído na cidade. Porém:

…seria fazer muito pouco do nosso passado supor que ele nasceu do grito do Ipiranga, quando é certo que então já contava três séculos de idade, e durante o maior trecho desse prazo teve a perlustra-lo a valorosa estirpe dos fundadores do Brasil colonial, nossos bravos conterrâneos dos séculos XVII e XVIII.
É igualmente certo que a epopeia bandeirante teve a sua flama na potencialidade dos elementos étnicos que colaboraram na fundação e no desenvolvimento inicial de Piratininga.
(…) havemos nós, os paulistas, de solenizar o centenário da Independência, (…) deixando que continuem sepultados em negro e desolado olvido os seus grandes fatores atávicos?[6]

Essa era uma pergunta retórica porque todos sabiam que, em 1910 ocorrera o concurso para a ereção de um monumento em homenagem à fundação da cidade de São Paulo, ganho por Amadeo Zani. A obra, produzida na Itália, já se encontrava em São Paulo, mas, encaixotada, aguardava uma solução para o Largo do Palácio, onde seria instalada.

Existiam duas possibilidades para o devir do Largo: ou os edifícios ali instalados seriam reformados ou demolidos, aumentando o espaço do largo para receber o monumento de Zani[7]. Para Adolfo Pinto a segunda alternativa era a que mais o agradava, pois ia ao encontro de seu desejo de ali constituir o Centro Cívico a que aspirava.

Palácio do Governo e o monumento Glória Imortal aos Fundadores de São Paulo, de Amadeo Zani, em 1926. Foto: Reprodução

Para ele, aquele sítio era o símbolo da nacionalidade brasileira, constituído pela junção do português e do indígena, sob a tutela do Cristianismo e da Igreja Católica. Fora dali que São Paulo começara estender-se por outros recantos até alcançar, graças à audácia de seus filhos, territórios antes estrangeiros.

Além desse valor histórico, Adolfo Pinto chamava a atenção para outra singularidade do Largo do Palácio: de um de seus lados se descortinava uma paisagem especial, composta pela várzea do Tamanduateí – que, em breve, seria transformada no Parque do Carmo[8] –; mais adiante “a operosa colmeia industrial que hoje é o Bráz” e, em dias especialmente límpidos, as “encostas azuladas da Cantareira”:

Assim enobrecido pela natureza e pela história – como se em S. Paulo devêssemos ver reunidas em um só sítio as recordações e as belezas que Roma venera e contempla no Capitólio e no Pincio – o antigo largo do Colégio está naturalmente fadado a ver a arte levantar sobre o seu chão sagrado o monumento glorificador das figuras principais da fundação de S. Paulo[9].

Instalado no centro daquele “chão sagrado”, o autor propunha que o Monumento de Zani fosse envolto por um fabuloso jardim, à la Versailles, com fontes luminosas e bacias d’água mas com uma diferença: aproveitando o fato de São Paulo possuir uma grande capacidade hidráulica, seriam ali erguidos jatos d’água a mais de cem metros de altura, transformando os jardim francês e suas fontes, em “miniaturas”:

As famosas grandes águas de Versailles – com jatos obtidos à custa de pressão artificial e alcançando quando muito uns vinte metros de altura – […] as famosas grandes águas não passariam de modesta miniatura dos incomparáveis efeitos do mesmo gênero que aqui se poderiam obter com insignificante dispêndio.[10]

Para completar espaço tão extraordinário, Pinto propunha ainda a construção de um belvedere. Sua função seria propiciar aos paulistanos o gozo da vista panorâmica em direção a Cantareira e, ao mesmo tempo, em determinadas datas, “o prazer de admirar os mais notáveis jogos de água do mundo”. Porém, o belvedere teria uma outra atração, esta sim fundamental para a glória da cidade: uma galeria de esculturas onde estariam representados os paulistas mais ilustres!

A fonte de inspiração para esse “Pantheon dos imortais de S. Paulo” era a Galleria degli Uffizi, em Florença que, em meados do século XIX, completara um antigo projeto de colocar em sua fachada nichos com esculturas retratando os principais personagens nascidos e/ou atuantes na cidade. Para Adolfo Pinto aqueles elementos da Galleria, retratando figuras como Michelangelo, Dante Alighieri, Da Vinci e Galileo, entre outros, era um exemplo de civismo a ser seguido:

Como vedes, senhores, são brilhantes, admiráveis as figuras que povoam a galeria dos imortais de Florença, e o culto que a bela cidade italiana presta à memória de seus filhos ilustres não é só um preito às suas virtudes, é também uma sábia lição prática, intuitiva de civismo. O nobre gesto de Florença é digno de ser imitado em S. Paulo. É que, como os florentinos, também nós podemos nobremente nos orgulhar dos heróis da nossa história.[11]

Adolfo Pinto tinha dúvidas se um dia essa grande homenagem aos paulistas seria concretizada, embora não tivesse dúvida quanto à sua pertinência:

“o que (…) em minha alma de paulista, em minha consciência de patriota, eu tenho a gratíssima satisfação de reconhecer e sinto a necessidade de proclamar é que, para a glória de minha terra, nenhum povo se honra com ascendência mais digna da egrégia homenagem”[12].

Se atentarmos para os florentinos homenageados, veremos que ali abundam poetas, escritores, artistas, médicos, demais cientistas e chefes militares[13]. Já a lista de paulistas previstos para serem representados no Centro Cívico idealizado por Adolfo Pinto, teria outras características. Ela se inicia com a figura de Tibiriçá, cacique de Piratininga e guia “da sagrada falange”:

Se um dia se construir o nosso Pantheon, no chão sagrado em que nasceu a cidade, e as relíquias de um dos seus mais dedicados fundadores forem reconduzidas para o sítio do seu jazigo histórico, dirá tudo esta simples inscrição no pedestal da estátua que se erguer sobre o sarcófago: Tibiriçá, primeiro cidadão de S. Paulo.[14]

A partir de Tibiriçá, o autor elenca os paulistas que se evidenciaram como caçadores de pedras preciosas e/ou seres humanos e desbravadores de territórios: Affonso Sardinha, o primeiro dos pioneiros, responsável pela exploração das jazidas do Jaraguá; Antonio Raposo, invasor das reduções espanholas; Fernão Dias Paes Leme, possuidor de cinco mil índios escravizados, mas “com alma profundamente religiosa”; Domingos Jorge Velho, responsável pela “conquista definitiva dos Palmares”; Paschoal Moreira Cabral Leme, conquistador do território de Mato Grosso; Bartholomeo Bueno da Silva, conquistador de Goiás; Amador Bueno da Ribeira que recusou sua aclamação como rei de São Paulo[15]; Balthazar de Borba Gatto, um típico paulista, fruto da miscigenação entre os elementos indígena e português, repleto de “altivez nativa”; Belchior de Pontes, o “Anchieta do século XVII”, padre que acompanhava as bandeiras; Pedro Vaz de Barros, responsável pelo aprisionamento de dois mil e trezentos indígenas na Bahia[16].

O monumento Glória Imortal aos Fundadores de São Paulo, de Amadeo Zani. Foto: Reprodução

Arrolados esses onze nomes ligados direta ou indiretamente à empresa bandeirista, Afonso Augusto Pinto dá início à listagem de outros paulistas que teriam se destacado em diversas atividades e que mereceriam ter suas esculturas no Pantheon. Embora não se esqueça de alguns cientistas, escritores e artistas[17], chama a atenção em sua lista o setor formado por políticos que, sobretudo a partir da segunda metade do século XIX tinham contribuído para sedimentar a posição do estado de São Paulo como líder no contexto brasileiro. Neste sentido, se Adolfo A. Pinto imagina o início de seu templo com esculturas dedicadas aos antigos bandeirantes, ele o arremata com a representação dos novos. Assim, as imagens de Prudente de Morais, Campos Salles, Eduardo da Silva Prado, Francisco Glycerio e Bernardino de Campos, entre outros[18], fechariam essa fantasia grandiloquente de sabor florentino, implantado nas bordas de um jardim a la Versailles, um Centro Cívico para invocar e pedir a benção dos antepassados paulistas, “espinha dorsal” do Brasil:

Perante vós, (…), paraninfos do renascimento cívico da Pátria, (…) curvamo-nos todos, nós, os vossos descendentes, os vossos legítimos herdeiros, os legatários viscerais de vosso incomparável espólio, para render-vos o preito reconhecido da nossa mais profunda admiração e referência, e pedir-vos que sejais (…) os espíritos guiadores da diretriz que há de conduzir a seu alto destino a nossa estremecida terra paulista, a terra que conquistastes com o vosso valor, que fecundastes com vosso trabalho, que dignificastes com o vosso patriotismo, a fim de que seja ela nos tepor porvindouros, como foi nos que passaram, o fator máximo da grandeza e felicidade do Brasil[19].

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Como epílogo, gostaria de salientar que, para o olhar atual, chama a atenção, tanto no caso paulistano quanto no florentino, a ausência de mulheres homenageadas, fato que pouca ou nenhuma importância poderia ter para a sociedade paulistana de então, em que as mulheres tinham pouco reconhecimento[20]. Digno de nota, no entanto, é o fato de Adolfo Pinto ter colocado um indígena – Tibiriçá – como o primeiro dos paulistas. Essa precessão do cacique de Piratininga como o patriarca maior, seria seguida no texto por uma série de referências à presença do indígena na formação do bandeirante paulista. Podemos entender essas referências aos indígenas como um reconhecimento da importância ou da igualdade do índio em relação ao português? Claro que não, eu diria. A alusão aos indígenas e ao seu sangue que corria nas veias dos “verdadeiros” paulistas, funciona no discurso de Pinto apenas como um marcador da diferença entre esses “autênticos” paulistas e os imigrantes que chegavam de todas as partes do mundo.

Quanto à ascendência africana de Carlos Gomes ou de outros paulistas, nem um pio.

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[1] – Durante o século passado, o bandeirante deixa de ser um mito paulista para tornar-se um mito brasileiro. Para tal transformação contribuíram, tanto os textos de um intelectual como Cassiano Ricardo, entre outros, como a imagem de Juscelino Kubtscheck.
[2] – Sobre Adolfo A. Pinto, consultar, entre outros: “O doutor e os monumentos”, de Tadeu Chiarelli. ARTE!Brasileiros. 18 de dezembro de 2019. artebrasileiros.com.br/opinião/conversa-de-bar
[3] – Ver nota 2.
[4] – A conferência, “Os imortais de S. Paulo”, foi ministrada por ocasião de um festival promovido pela Liga Nacionalista de S. Paulo no dia 15 de novembro de 1917 e posteriormente publicada no livro: PINTO, Adolpho A. PINTO. Homenagens. São Paulo: Casa Vanorden, 1926 pág. 57 e segs.
[5] – Então Largo do Palácio.
[6] – Idem página 65.
[7] – O Monumento à Fundação de S. Paulo será instalado somente em 1925 (ler “O doutor e os monumentos”, de Tadeu Chiarelli. ARTE!Brasileiros. 18 de dezembro de 2019. artebrasileiros.com.br/opinião/conversa-de-bar). O edifício do Palácio do Governo não foi demolido naquele período e passa, em 1930 a sediar a Secretaria de Educação. Somente em 1953 o edifício será derrubado para preparar o local para as comemorações do IV Centenário da cidade. Em 1979 é inaugurado o Museu Padre Anchieta naquele local. Em um edifício que recorda aquele ali construído em 1556, assim como uma igreja que, em 1980, passa ser conhecida como Igreja do Beato José de Anchieta (sobre o assunto, consultar: pateodocollegio.com ). É claro que, quando proferiu a palestra em análise, Adolfo A. Pinto não fazia ideia do tempo que transcorreria para que o edifício fosse demolido e que nada do que ele previra seria construído.
[8] – Depois, Parque D. Pedro II.
[9] – PINTO, Adolpho A. Homenagens. São Paulo: Casa Vanorden, 1926 pág. 68.
[10] – Idem, pág. 70.
[11] – Idem, pág. 72. Em tempo: na galeria de notáveis florentinos, além daqueles citados pelo autor, figuram as representações de: Cosme de Medici (Grande Duque da Toscana), Lorenzo de Medici (político); Andrea Organa (arquiteto); Nicola Pisano (escultor); Giotto (pintor); Donatello (escultor); Leon B. Alberti (arquiteto); Francesco Petrarca (poeta); Giovanni Boccaccio (escritor); Nicolo Macchiavelli (escritor); Francesco Guicciardini (historiador); Amerigo Vespucci (cartógrafo); Farinata degli Uberti (militar); Pier Caponi (político); Giovanni dalle Bande Nere (militar); Francesco Ferruccio (militar); Per Antonio Micheli (botânico); Francesco Redi (médico); Paolo Mascagni (médico); Andrea Cesalpino (médico); St. Antonio (teólogo); Accurio (jurista); Guido Aretino (escritor).
[12] – Idem pág. 73.
[13] – Veja nota 8.
[14] PINTO, Adolpho A. Homenagens. São Paulo: Casa Vanorden, 1926 pág. 74.
[15] – Interessante que, complementando o verbete dedicado a Amador Bueno da Ribera, Adolfo Pinto, cita o que Saint-Hilaire escrevera sobre aquele antigo habitante de São Paulo e o que teria ocorrido caso o mesmo tivesse aceitado ser aclamado rei de São Paulo: “Com tal chefe, que se deve qualificar como o maior vulto dos tempos primitivos, os paulistas se constituiriam independentes, e, em breve, o mais formidável povo da América do Sul”. (Apud: PINTO, Adolpho A. Homenagens. São Paulo: Casa Vanorden, 1926 pág.81). A meu ver, é elucidativo sobre o orgulho paulista, o autor chamar a atenção para esse trecho do texto do cronista francês que inflava o orgulho dos locais.
[16] – As informações sobre os personagens citados foram retiradas do texto de Adolfo Pinto, o que demonstra o quanto, para o autor, estavam naturalizadas as atividades bandeiristas.
[17] – Bartolomeu de Gusmão, Jesuíno de Monte Carmelo, Álvares de Azevedo, Almeida Jr. e Oswaldo Cruz, entre outros.
[18] – No pantheon florentino, foram homenageadas 28 personalidades. Se a proposta de Adolfo Augusto Pinto fosse levada adiante, seriam homenageados 43. Já citados os paulistas ligados ao bandeirismo “histórico”, seguem seus “herdeiros”, arrolados por Pinto: Gaspar da Madre de Deus; Alexandre de Gusmão; Bartolomeu Lourenço de Gusmão; Pedro Taques de Almeida Paes Leme; José Arouche de Toledo Rendon; Jesuíno do Monte Carmelo; José Bonifácio de Andrada e Silva; Antonio Carlos de Andrada e Silva; Martim Francisco de Andrada; Diogo Antonio Feijó; José Feliciano F. Pinheiro; José Joaquim Machado de Oliveira; Nicolau P. de Campos Vergueiro; Francisco de Paula Souza; Antonio Joaquim de Mello; Francisco Adolfo Varnhagen; Gabriel José Rodrigues dos Santos; José Antonio Pimenta Bueno; Manoel Antonio Alvares Azevedo; Arthur Silveira da Motta; Clemente Falcão de Souza Filho; Antonio de Queiroz Telles; Antonio Carlos Gomes; José Ferraz de Almeida Jr.; Prudente José de Moraes Barros; Manoel Ferraz de Campos Salles; Francisco Glycerio; Bernardino de Campos; Cesario de Azevedo Motta Magalhães; Eduardo da Silva Prado; Oswaldo Cruz e Francisco de Paula Rodrigues.
[19] – PINTO, Adolpho A. Homenagens. São Paulo: Casa Vanorden, 1926 pág. 128.
[20] – Não podemos esquecer, no entanto, que a menos de um mês dessa conferência, Anita Malfatti iria inaugurar uma exposição na qual seria a protagonista e que estaria destinada a, com o tempo, colocar a artista em um patamar significativo no âmbito da arte e da cultura do país.

Skateboard Help junta esporte e arte para um fim social

Skateboard Help
Fabiano Rodrigues, junto com Akira Shiroma, estampam o trabalho da série RATSREPUS em prancha para o Skateboard Help

Inspirada na proposta estrangeira The Skateroom, a iniciativa brasileira reúne obras inéditas assinadas por artistas e entusiastas do esporte. Os convidados para o projeto devem estampar seu trabalho em uma série limitada de 25 pranchas de skate. 20% do valor arrecadado com as peças será destinado à Social Skate.

A Social Skate foi criada em 2011 pelo skatista e ativista Sandro Testinha Soares. Desde então, ela realiza atividades esportivas e promove a inclusão social, educacional e cultural de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social em Poá, município da extrema zona leste de São Paulo.

Para o lançamento do Skateboard Help, o próprio Fabiano, junto com Akira Shiroma, estampam o trabalho da série RATSREPUS nas pranchas. Fabiano é um artista autodidata que começou a fotografar observando os profissionais que registravam suas manobras enquanto se dedicava ao esporte de forma profissional, o que fez por 15 anos.

As peças serão numeradas e assinadas, e cada uma será comercializada pelo custo de R$ 600. Para a primeira edição, 100% do cachê do artista Fabiano Rodrigues será doado para a ONG.

Os artistas das próximas edições ainda serão revelados aos poucos, mas pelo momento Paulo Nimer Pjota, representado pela Galeria Mendes Wood DM, é um dos nomes já confirmados. O perfil do Instagram Skateboard Help é a plataforma de divulgação do projeto, para apresentar os artistas, trazer informações. As vendas serão feitas por meio da Galeria Kogan Amaro.

Conheça outros projetos artísticos com cunho social desenvolvidos durante a quarentena neste link.

Relembre: Entrevista com Mauricio Lima, primeiro brasileiro a ganhar um Pulitzer

Mauricio Lima
SERVIA Membros da família Majid acalentam suas crianças num campo de trigo em Horgos, perto da fronteira da Hungria - Foto: Maurício Lima

Por: Simonetta Persichetti

No ano do seu centenário, o Prêmio Pulitzer tem, entre seus vencedores, o fotógrafo brasileiro Mauricio Lima, free-lancer para o The New York Times, pela cobertura da crise de refugiados na Europa. Esta é a primeira vez na história do prêmio que um brasileiro recebe a distinção. Mauricio Lima foi o vencedor na categoria Fotografia Breaking News, com o russo Sergey Ponomarev, o americano Tyler Hicks e o alemão Daniel Etter, pela série Exodus. Os quatro receberam também, pela mesma série, o The John Faber Award do Overseas Press Club of America.

Mauricio Lima
DESCARTE Coletes salva-vidas e botes de borracha descartados por migrantes que conseguiram chegar à Grécia pelo mar – Foto: Mauricio Lima

O Pulitzer foi criado por obra e desejo do jornalista americano Joseph Pulitzer, que acreditava no jornalismo. No bom jornalismo. Antes de sua morte, em 1911, ele fez uma doação em dinheiro para a Universidade de Columbia, em Nova York, que foi usada para abrir o curso de Jornalismo, inaugurado no ano seguinte, e para o prêmio – o primeiro em 1917. A partir daí, a cada ano jornalistas e escritores são reconhecidos por seus trabalhos.

O lema do Pulitzer era: “Iluminar os lugares es­curos e, com um profundo senso de responsabilidade, interpretar esses tempos difíceis”. É com esse espírito que anualmente a imprensa norte-americana premia trabalhos de excelência que fazem diferença no mundo.

Aos 40 anos, Mauricio Lima é um profissional humanista e independente. Formado em Comunicação Social pela PUC de São Paulo, começou fotografando esportes em 1999. Depois foi convidado para integrar a agência France Press, onde permaneceu até 2011, partindo, então, para a carreira solo, como free-lancer.

Nestes 17 anos, Lima foi construindo um trabalho sério, consistente e, acima de tudo, impregnado de ética e responsabilidade, respeitando o que vê e o que fotografa. Não é à toa que, neste ano, seu trabalho tenha obtido tanto reconhecimento: coube a ele também o prêmio do World Press Photo, na categoria General News, pela reportagem publicada, em agosto de 2015, no mesmo The New York Times, sobre um jovem combatente do Estado Islâmico de 16 anos.

O brasileiro está presente em lugares onde existem histórias para serem contadas. Ele narra biografias de vítimas da incompreensão, do ódio e das guerras. Imagens profundas, de um olhar crítico que quer compreender. Um legado imagético que procura ser poético dentro do caos. O que seus olhos viram as palavras não exprimem. Silencioso, ele não gosta de holofotes nem de protagonismos.

Mesmo assim, de Nova York, concedeu esta entrevista exclusiva para a Brasileiros. Desta vez, a voz não é a dos seus retratados, mas a dele. Mauricio Lima, que no Brasil é representado pela DOC Galeria, de São Paulo, nos convence de que um jornalismo feito com seriedade e profundidade ainda é possível e tem espaço para ser visto.

Brasileiros – O jornalista Andrei Netto, do jornal O Estado de S.Paulo, fez um perfil seu, em que o chama de “lobo solitário”. Eu também escrevi sobre seu trabalho, quando pontuei a eloquência do seu silêncio. Você já disse que espera ser invisível nas reportagens que faz. Quem é realmente Mauricio Lima? O que move você para o fotojornalismo?

Mauricio Lima –Sou movido incessantemente pela curiosidade do comportamento humano, suas nuances, ambiguidades, pelo poder de conscientização que a fotografia pode atingir e pelo desejo de contribuir para a transformação de uma realidade por meio de uma narrativa visual.

Como foi a transição de um jovem que começou fotografando esportes e, de repente, estava na guerra do Iraque e depois no Afeganistão?
Foi uma transição necessária, uma fase importante de amadurecimento como ser humano, de percepção de valores essenciais que devaneiam da racionalidade entre o pós-adolescência e o momento em que você adquire um diploma universitário. Um momento decisivo na vida. E, ao imergir em outra cultura, talvez suprimisse minha incapacidade de expressar sentimentos por meio da fotografia.

Mauricio Lima
AYAD Retrato (tirado em Bagdá, 28 de janeiro de 2004) de Ayad Ali Brissam Karim, cuja visão havia sido danificada (20% funcional) em um dos olhos e perdida completamente no outro, decorrência de um ataque aéreo em abril de 2003 – Foto: Mauricio Lima

Uma das suas primeiras reportagens, creio eu, como fotógrafo de conflitos foi sobre o menino que teve o rosto machucado por estilhaços de bomba. Ele ficou cego. Essa apuração comoveu parte do mundo. Qual é o impacto dessa experiência em você como vetor de informação e de estar onde muitos não podem estar para narrar essas histórias?
Extremamente gratificante. Meu objetivo era claro quando o vi com seu pai em frente à Zona Verde de Bagdá com uma receita médica na mão para o tratamento de córnea: ajudar Ayad Karim. Diante das mentiras e do interesse geopolítico que motivaram a invasão do Iraque, era o mínimo que poderia realizar para minimizar aquela tragédia consumada.

Já vi você entrar e sair de lugares sem ser notado. Essa “invisibilidade” faz parte do seu dia a dia?
Sim. É algo que quero preservar. Quero ser tratado como uma pessoa comum, sem rótulos nem privilégios.

Você é um fotógrafo que assume posições políticas e usa as redes sociais para isso. Por quê? O quanto isso o expõe e o quanto é necessário?
Porque é preciso resgatar a ideologia, crer e lutar por algo. E, inegavelmente, pelo fato de ser uma nova forma de comunicação. Essas plataformas são potentes, não podemos nos cegar a isso quando nos preocupamos com a realidade. Atingem as pessoas de forma imediata e, por isso, podem levar a uma reflexão. A liberdade de expressão deve ser uma conquista inviolável para nossa maturidade civil como sociedade.

Acredita que o trabalho do fotojornalista é dar voz aos que não podem falar?
Também. É um canal recíproco de comunicação, seja da voz do fotografado, seja do sentimento do fotógrafo, de como e o porquê aquilo foi fotografado e deva ser visto.

Maurício Lima
GRÉCIA Soldados macedônios levantam uma barreira de arame farpado para impedir a entrada de refugiados no País – Foto: Mauricio Lima

Neste ano, seu trabalho ganhou vários prêmios. Você é o primeiro brasileiro a ganhar o Pulitzer no 100º ano do prêmio. Essas premiações ajudam os “invisíveis” a se tornarem “visíveis”?  
É impossível prever ou controlar a reação, o sentimento do outro, mas, se a fotografia causar um questionamento, ela já cumpriu um papel importante.

Ao contrário de muitos, neste momento, você nunca se colocou como protagonista. Prefere se apresentar como “mensageiro” de notícias.
Sou fascinado por contar histórias. Além disso, me tocou bastante um pedido que ouvi de Gabriel García Márquez quando tive a oportunidade de jantar ao lado dele: “No te olvide de iluminar a las personas ignoradas por la sociedad jamás”.

Por que devemos continuar acreditando no fotojornalismo?
Porque devemos acreditar em nós mesmos, em um mundo melhor. Ser fotógrafo é estar insatisfeito com o presente e preocupado com o futuro. Não levamos esse modo de vida em busca de acumular riqueza, a não ser a da experiência e do que não deveríamos repetir com nosso semelhante. Quando nos deparamos com uma fotografia, esse momento deve ser de reflexão, causar questionamentos, talvez de possíveis conclusões, não de afirmações.

E agora? O que vem por aí?
A vida segue da mesma forma, sob os mesmos princípios. Não podemos perder a generosidade nem a simplicidade jamais, mesmo diante de um cruel mundo movido sistematicamente por consumo e de forma assustadora por individualismo.

Cinco galerias brasileiras participam de versão online da Art Basel

Art Basel Online
Antonio Obá, Stranger Fruits (2020). Foto: Divulgação.

A Gentil Carioca, Fortes D’Aloia & Gabriel, Mendes Wood DM, Bergamin & Gomide e Galeria Luisa Strina são as galerias brasileiras que participam da edição online da Art Basel, que acontece do dia 19 ao dia 26 de junho. A feira internacional, que ocorreria na Suíça, teve que adaptar sua forma presencial para a web por conta da pandemia de Covid-19. O evento será realizado pelas salas de visualização criadas pela organização para possibilitar a visita virtual e venda das obras. 

Junto com as cinco casas citadas acima, participam ao todo 282 galerias que apresentarão um total de quatro mil obras. A integração das galerias brasileiras se dá pelo Projeto Latitude, uma parceria da ABACT (Associação Brasileira de Arte Contemporânea) e a Apex-Brasil (Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos).

 

 

Confira abaixo um pouco do que cada galeria brasileira preparou para o evento:

A Gentil Carioca

As formas triangulares, as trindades e tríades predominam no projeto Ode ao Triângulo apresentado pela artista Vivian Caccuri junto com A Gentil Carioca. O trabalho resulta em uma coexistência de assuntos contrastantes e traz também fatos históricos e geopolíticos.

Fortes D’Aloia & Gabriel

Com trabalhos produzidos durante a quarentena, em sua casa, Ernesto Neto está entre os artistas apresentados pela galeria. O artista traz obras que criam espaços que possibilitam interação física e experiências sensoriais, utilizando novamente o crochê. 

Mendes Wood DM

A exposição Estruturas Orgânicas traz uma seleção de trabalhos dos artistas Antonio Obá, Paulo Nazareth, Sonia Gomes, Patricia Leite e Marina Perez Simão, entre outros.

Bergamin & Gomide

A galeria participa na Art Basel Online com uma exposição inédita criada especialmente para a feira. O Projeto Um Estande Imaginário traz obras que transmitem organicidade – através de materiais como madeira, pele, lona e juta, muito utilizadas pelos indígenas brasileiros – e despertam a memória coletiva ao dialogarem com nossos ancestrais. Entre os artistas que participam da exposição estão Abraham Palatnik, Alexander Calder, Amadeo Luciano Lorenzato, Amélia Toledo, Artur Barrio, Celso Renato, José Leonilson, José Resende, Lygia Clark, Mira Schendel, entre outros.

Galeria Luisa Strina

O estande da galeria traz trabalhos de artistas como Lygia Pape, com a obra Relevo, da série Grupo Frente (1954/1956); Pedro Reyes, com uma edição em jadeíta da sua cadeira Metato; e Renata Lucas, com o trabalho Quebra. Ainda serão mostradas as obras de Anna Maria Maiolino; Jorge Macchi; Leonor Antunes, entre outros