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arte!brasileiros ganha prêmio ABCA por difusão das artes visuais na mídia

Capas de algumas edições da revista.

Há dez anos, a arte!brasileiros busca retratar a pujança e a diversidade da arte contemporânea. Para isso, “investimos numa plataforma de cultura e arte contemporânea digital, capaz de falar tanto com a academia como com o mercado”, explica a editora Patrícia Rousseaux (leia o editorial da arte!brasileiros #50).

A revista, que hoje existe no impresso e no digital, defende a ideia de que a arte exprime as ideias e as angústias de seu tempo, sintetizando narrativas transversais. Por isso, nestes dez anos, retratamos a inovação no movimento, a busca por novos suportes, a experimentação, a pesquisa de materiais e de histórias na arte e na mídia, mas também tocamos nos temas que se tornaram essenciais para esse tempo e essa arte: a defesa da liberdade e as questões de gênero; a luta contra a discriminação racial, a segregação da mulher, a opressão econômica, social e política; os movimentos migratórios, as liberdades, a denúncia das agressões ao meio ambiente e ao planeta.

Ao lado dos conteúdos, a arte!brasileiros desenvolveu seu Seminário Internacional, que permitiu a interlocução com vários países. Desde 2012, os eventos colocam em pauta reflexões da atualidade e observa como a arte se posiciona no mundo contemporâneo. A iniciativa se expandiu ao lado de outras instituições, fomentando debate em novos seminários, promovidos ao longo dos anos (assista à gravação do seminário deste ano, feito em parceria com o Goethe-Institut).

Foi por essa ação em diversas plataformas que, no último dia 16 de outubro, a arte!brasileiros e sua editora Patrícia Rousseaux receberam o prêmio Antônio Bento da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA), pela difusão de artes visuais na mídia em 2019.

O prêmio

A premiação anual da ABCA contempla categorias que apontam os destaques do cenário das artes visuais que mais contribuíram para a cultura nacional. A categoria que diz respeito à difusão de artes visuais na mídia, pela qual a arte!brasileiros foi contemplada, leva o nome de Antônio Bento de Araújo Lima, uma das figuras mais relevantes da crítica de arte brasileira. O jornalista, crítico, poeta, cronista musical e contista teve um papel relevante na difusão das artes na mídia. Durante sua vida escreveu colunas sobre artes visuais – no Diário Carioca e no jornal Última Hora -, participou da criação da Associação Internacional de Críticos de Arte (AICA), tornando-se, posteriormente, presidente da seção brasileira da associação. Antônio Bento também teve papel importante nos museus do país, ao ser diretor do Teatro Municipal do Rio de Janeiro e participar da fundação do Museu de Arte Moderna da capital carioca, o MAM Rio. Sendo um dos críticos de artes mais conceituados do país, participou de três bienais realizadas em Paris e integrou o corpo de jurados das Bienais Internacionais de São Paulo e Veneza, do Salão Nacional de Arte Moderna e da Comissão Nacional de Artes Plásticas (1978-1980).

Com a premiação, gostaríamos de agradecer a quem nos acompanha por todos esses anos, à equipe responsável pelos conteúdos e eventos da arte!brasileiros, aos entrevistados, aos palestrantes que passaram por nossos palcos (presenciais e virtuais) e à Associação Brasileira de Críticos de Arte.

A ABCA também premia os artistas, críticos, curadores, exposições e instituições que mais contribuíram para a cultura nacional em 2019. Saiba quem foram os demais vencedores:

Prêmio Gonzaga Duque (crítico associado pela atuação durante o ano)
José Roberto Teixeira Leite

Prêmio Mario Pedrosa (artista de linguagem contemporânea)
Iran do Espírito Santo

Prêmio Ciccillo Matarazzo (personalidade atuante no meio artístico)
Luiz Ernesto Meyer Pereira

Prêmio Mário de Andrade (crítico de arte pela trajetória – filiado ou não)
Annateresa Fabris

Prêmio Clarival do Prado Valladares (artista pela trajetória)
Emanoel Araujo (leia nossa entrevista com o artista)

Prêmio Maria Eugênia Franco (curadoria pela exposição)
Cauê Alves; pela curadoria da exposição Burle Marx: Arte, Paisagem e Botânica, apresentada no MuBE (Museu Brasileiro da Escultura e Ecologia) – São Paulo (leia nossa entrevista com o curador)

Prêmio Rodrigo Mello Franco de Andrade (instituição pela programação e atividade no campo das artes visuais)
Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães (Mamam) – Recife – PE

Prêmio Paulo Mendes de Almeida (melhor exposição)
Tarsila Popular, no MASP (Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand)

Prêmio Antônio Bento (difusão das artes visuais na mídia)
arte!brasileiros – editora Patrícia Rousseaux

DESTAQUES
Casa da Cultura da América Latina da Universidade de Brasília – DF
Usina de Arte – Água Preta PE
Centro Cultural SESI/FIESP Ruth Cardoso

HOMENAGENS
Carlos Pasquetti
João Evangelista
Fábio Magalhães

Fotografia e modernidade no espelho turvo da literatura. Brasil, séc. XIX

Adolfo Caminha, Domingos Olímpio, José de Alencar, Aluisio Azevedo e Machado de Assis. Foto: Reprodução

Ainda precisam ser descritas e analisadas as relações entre a literatura brasileira do século XIX e a fotografia. Trazida para o Brasil em 1840 – um ano após sua descoberta “oficial” em Paris –, a fotografia logo foi disseminada por aqui, tanto em sua materialidade enquanto fotografia “mesmo” (cartões de visita e seus álbuns, cartões postais etc.), quanto pela imagem fotográfica traduzida em xilo e litogravuras, que rapidamente inundou as publicações jornalísticas do período.

Não saberia precisar qual o romance ou conto escrito por um autor brasileiro em que aparece pela primeira vez a fotografia ou a imagem fotográfica, embora creia que tal fenômeno ocorreu com mais força a partir da década de 1870. A presença da fotografia e da imagem fotográfica na literatura brasileira por certo é um dos índices mais precisos sobre o papel relevante que a fotografia aos poucos foi ocupando em vários setores da vida brasileira, quer junto às camadas brancas da população, quer no cotidiano de pessoas negras livres ou libertas (caso do personagem Amaro, de Bom Crioulo, de Adolfo Caminha). Não se trata de afirmar que a literatura da época tenha espelhado de forma direta a presença da fotografia na sociedade brasileira, mas que esse reflexo surge trabalhado e transformado pela própria literatura, entendida como um espelho turvo, que concederá à fotografia e à imagem fotográfica não apenas a posição de exemplo de “modernidade” no Brasil da época, mas, em alguns casos, lhe dará o papel de personagem importante (em O Mulato, de Aluísio Azevedo, por exemplo) ou de personagem fundamental (como em Dom Casmurro, em Machado de Assis).

Por outro lado, pensar a literatura e a fotografia no Brasil durante o século XIX é refletir também sobre as contradições de um país em que conviviam índices incontornáveis de arcaísmo – a escravidão – com signos explícitos de modernidade: a própria fotografia e sua multiplicação via os meios de reprodução. Por mais que tenha sido naturalizado, é difícil entender como um meio de reprodução de imagens tão moderno, tão afinado com os avanços tecnológicos do século XIX, pode ter servido para a documentação da escravidão em um país como o Brasil.

É claro que este artigo não tem e nem poderia ter como propósito esgotar assunto tão complexo, a ser levado adiante não por um, mas por vários estudiosos. Ele pretende apenas chamar a atenção dos leitores e leitoras para esse assunto tão sedutor, para que fiquem com água na boca e se debrucem (ou voltem a se debruçar) na literatura brasileira do século XIX, agora em busca de todas essas peculiaridades que a modernidade constituiu no Brasil.

***

Casa de Pensão, de Aluísio Azevedo, publicado como folhetim em 1883, pode ser um belo começo para o que quero discutir aqui: como a literatura brasileira do século XIX absorveu e filtrou a presença da fotografia no cotidiano da população. O romance narra a história de Amâncio Vasconcelos, que deixa seus pais em São Luiz do Maranhão para estudar medicina no Rio de Janeiro, onde se envolve com pessoas que o levam a desligar-se dos estudos, iniciando uma vida boêmia. Com a morte do pai em São Luiz, sua mãe, d. Ângela, lhe escreve pedindo para que volte para casa. No entanto, a senhora fica sabendo que o filho havia sido preso e, preocupada com Amâncio, toma um navio para o Rio de Janeiro acompanhada de uma mulher escravizada. Porém, o que a senhora nem desconfia é que, naquela altura, seu filho já havia sido solto e, logo depois, assassinado.

Aluisio Azevedo. Foto: Reprodução

Durante a viagem, d. Ângela conhece um senhor que, ao saber que ela, assim que chegasse ao Rio, pretendia seguir a pé pelo centro à procura do filho, decide acompanhá-la quando lá aportam. Ao chegarem, ele despacha as bagagens e pede à escrava da senhora que seguisse a condução com as malas, enquanto ele acompanhava a mãe de Amâncio.

Quando chegam à rua Direita, no centro da cidade, uma vitrine chama a atenção de d. Ângela: ali estavam à venda chapéus “à la Amâncio de Vasconcelos”. Seu acompanhante afirma que era tendência os comerciantes batizarem suas mercadorias com nomes de gente famosa. Vamos ao texto:

[…] É singular!… balbuciou a senhora.

– Por quê?

– É esse justamente o nome do meu filho.

– Oh! Não há só uma Maria no mundo!…

Mas d. Ângela fugira-lhe […] do braço para correr a uma nova vidraça. Eram agora bengalas e gravatas “à Amâncio de Vasconcelos” que lhe prendiam a atenção.

Acabavam de entrar na Rua do Ouvidor.– Vê?… interrogou ela, muito preocupada e procurando esconder a emoção. Ainda!

– Ah, fez o companheiro, já impaciente. V. Exa. vai encontrar o mesmo nome por toda parte. É o costume! Olhe! Se me não engano, lá está o retrato do tal Amâncio! Tenha a bondade de ver!

  1. Ângela aproximou-se do retrato, correndo, e soltou logo uma exclamação:

– Mas é ele! É meu filho! o meu Amâncio!

E começou a rir e a chorar muito perturbada.

O velho, meio comovido e meio vexado com aquela expansão […], principiava talvez a arrepender-se de ter sido tão cavalheiro com Ângela, quando esta, que estivera até aí a percorrer, como uma doida, outros mostradores, arrancou do peito um formidável grito e caiu de bruços na calçada.

Tinha visto seu filho, representado na mesa do necrotério, com o tronco nu, o corpo em sangue.

E por debaixo, em letras garrafais:

“Amâncio de Vasconcelos, assassinado por João Coqueiro no Hotel Paris, em tantos de tal”[1].
 

Desculpem o spoiler, mas o que chama a atenção neste final de romance é como Aluísio Azevedo sublinha a complexidade da sociedade brasileira no final do século XIX, dividida entre a instituição arcaica da escravidão – d. Ângela viajara acompanhada por uma mulher escravizada – e a moderna precessão dos meios de comunicação interpondo-se entre a senhora que chegava para salvar o filho e a notícia de seu assassinato. Com essa estratégia, Azevedo coloca a personagem Ângela em plena sociedade de massa, em que as relações sociais deixam de ser protagonizadas apenas por pessoas para serem mediadas por imagens produzidas por meio de comunicação de massa (o que não é pouca coisa, num país como o Brasil naquele final de século).

***

Joaquim Marçal Ferreira de Andrade, em História da fotorreportagem no Brasil, afirma que, na segunda metade do século XIX, era comum o uso retratos fotográficos de pessoas envolvidas em crimes. Como ainda não haviam prosperado técnicas de impressão direta da imagem fotográfica para a imprensa, essas fotografias preexistentes eram copiadas via litografia para que pudessem ser publicadas.[2] É o que parece ter ocorrido em Casa de Pensão: além do retrato do filho, Ângela também viu a imagem que descreve o cadáver no necrotério. Aluísio Azevedo não especifica a origem dessa imagem, mas podemos inferir que se tratava de uma fotografia de tipo forense, traduzida para a litografia. Como será visto, esse mesmo tipo de imagem fotográfica processada pela lito será personagem de outro importante romance brasileiro do período – o já citado Bom Crioulo. Mas a literatura brasileira não explorou apenas esse tipo de imagem fotográfica. Ela foi pródiga em abordar a fotografia com outras características.

***

O romance Senhora, de José de Alencar, publicado em 1875 – portanto, alguns anos antes de Casa de Pensão –, descreve a penetração da fotografia no cotidiano da elite branca carioca. Um trecho interessante do livro é quando a heroína, Aurélia, explica para Fernando Seixas (seu marido, uma espécie de herói/anti-herói) o lugar que ocupavam os três tipos de álbuns de fotografia em sua residência. Na sala de visitas ficavam dois: o primeiro, dedicado às personalidades europeias, e o segundo, em que eram colocadas as fotos dos conhecidos de Aurélia. Após essa explicação, ela comenta: “O álbum das pessoas de minha amizade, eu o guardo comigo.” Ou seja, as fotografias das pessoas que lhes eram caras, Aurélia as guardava em um álbum que não ficava à vista de quem a visitava socialmente. Ela continua: “Estes são álbuns de sala, tabuleta semelhante às que têm os fotógrafos na porta”[3].

José de Alencar. Foto: Reprodução

Na residência de Aurélia, portanto, existiam três tipos de álbuns: aquele que guardava as fotos de celebridades internacionais; outro que arquivava as imagens de conhecidos e um terceiro, dedicado aos seus entes queridos, conservado em um espaço privado da casa.

Essa descrição de José de Alencar registra uma prática corriqueira das camadas mais privilegiadas da população carioca da segunda metade do século XIX: colecionar e armazenar fotografias para exibi-las (ou não) publicamente. Por outro lado, é interessante a menção que Aurélia faz às tabuletas que ficavam nas portas dos estúdios fotográficos, repletas de fotografias dos clientes, pois amplia nossa compreensão sobre a presença da fotografia nas ruas do Rio de Janeiro, naquele período.

Outro dado interessante nesse diálogo é que, a certa altura, os personagens comentam a inexistência de fotografias de celebridades nacionais, capazes de formarem um álbum específico. Fernando faz a seguinte afirmação sobre o fato:

É verdade, celebridades europeias, pois ainda não as temos brasileiras; isto é, em fotografia que no mais sobram. Admira que nesta terra tão propensa à especulação e ao charlatanismo, ainda ninguém se lembrasse de arranjar uns álbuns de celebridades nacionais. Pois havia de ganhar muito dinheiro; não só na venda de álbuns, mas sobretudo na admissão dos pretendentes à lista das celebridades[4].

A inexistência de álbuns de celebridades locais, em meados dos anos 1870 no Brasil, não significou que algumas pessoas não se valessem da imagem fotográfica para divulgar a própria imagem. Dentro desse grupo destaca-se a principal figura brasileira do século XIX, o imperador D. Pedro II. Em As barbas do imperador[5], Lilia Schwarcz apresenta grande parte da iconografia do segundo imperador do Brasil, em que sobressaem litografias produzidas a partir de daguerreótipos e fotografias. Esse material era distribuído ou vendido como encarte de revistas e jornais para que o público pudesse guardá-lo ou emoldurá-lo para decorar os cômodos da casa.

Adolfo Caminha. Foto: Reprodução

Em Bom Crioulo, de Adolfo Caminha, romance publicado em 1895, é possível visualizar a presença da imagem de D. Pedro II nos aposentos dos personagens (o homem negro, Amaro, e seu amante, o jovem branco, Aleixo), atuando como uma espécie de um tipo de deus protetor dos mais pobres:

[Amaro] Pôs-se a olhar o teto, as paredes, um retrato do imperador, já muito apagado, que viera na primeira página de um jornal ilustrado, preso em caixilhos de bambu, um cromo de desfolhar, examinando com atenção o pequeno aposento, os móveis – a mesa e duas cadeiras –, como se estivesse num museu de coisas raras.[6]

Esta passagem descreve a origem daquela imagem do Imperador: tinha sido capa de um jornal ilustrado, produzida para ser destacada, emoldurada e colocada na parede. Por outro lado, é notável como, pela descrição do aposento, Pedro II surge pairando sobre o cômodo pobre, tornando-se um personagem na trama. Esta sensação ficará mais forte algumas páginas à frente onde se lê:

O retrato do imperador sorria-lhe meigo, com a sua barba de patriarca indulgente. Era o seu homem. Diziam mal dele, os tais ‘republicanos’, porque o velho tinha sentimento e gostava do povo…[7]

Este é um dos trechos mais importantes de Bom Crioulo por deixar claro não apenas a presença de imagens fotográficas em moradias das camadas mais pobres da população brasileira na segunda metade do século XIX, mas também pelo fato do autor ter sabido integrar a imagem fotográfica dentro do rol de personagens do livro, fazendo com que ela cumpra um papel importante para o entendimento da personalidade do personagem principal do romance. Para Amaro não importava o que os “republicanos” podiam pensar de D. Pedro II. Para ele, o imperador era seu protetor pois “gostava de seu povo” e era isso o que importava.

***

Vários artistas trabalhavam, tanto no processo de tradução de imagens fotográficas para a litogravura e a xilo – com o intuito de publicar essas imagens em jornais e impressos em geral –, quanto também no processo de produção de suas pinturas, no Brasil e no exterior. Ainda em Senhora, de José de Alencar, o autor apresenta o processo de produção dos retratos de Aurélia e Fernando Seixas, apontando o papel da fotografia nesse procedimento:

Aí foi Seixas encontrar dois grandes quadros, colocados nos respectivos cavaletes. Na tela viam-se esboços de dois retratos, o de Aurélia e o seu, que um pintor notável, êmulo de Vitor Meireles e Pedro Américo, havia delineado à vista de alguma fotografia, para retocá-lo em face dos modelos.[8]

Senhora apresenta a fotografia em duas funções: como item de coleção e como apoio visual para o artista produzir retratos pictóricos. Em ambas ela atua como receptáculo de memória e será a partir dessa função primordial que a fotografia, no caso, a imagem pictórica de origem fotográfica, também aparecerá como personagem importante de Senhora:

Fernando que a seguia com o olhar surpreso, viu-a aproximar-se de um quadro colocado sobre um estrado e contra a parede fronteira.

A cortina azul do dossel correu; à luz do gás que batia em cheio desse lado destacou-se do fundo do painel o retrato em vulto inteiro de um elegante cavalheiro.

Era o seu retrato; mas do mancebo que fora dois anos antes, com o toque de suprema elegância que ele ainda conservava, e com o sorriso inefável que se apagava sob a expressão grave e melancólica do marido de Aurélia.

– O homem que eu amei, a que amo, é este, disse Aurélia apontando para o retrato. O senhor tem suas feições; a mesma elegância, a mesma nobreza de porte. Mas o que não tem é a sua alma, que eu guardo aqui em meu seio e que sinto palpitar dentro de mim, e possuir-me quando ele me olha.[9]

Em Senhora, portanto, Alencar não apenas documenta dois usos que poderiam ser feitos da fotografia (item de coleção e base para a produção de pinturas), como também a apresenta em seus efeitos junto à subjetividade dos personagens, após ter passado pelo processo de tradução para a pintura.

***

Em O mulato, também de Aluísio Azevedo, publicado em 1891, a fotografia é assumida como elementos importante da trama[10]. É por meio dela que Ana Rosa, enamorada do primo Raimundo, toma consciência da existência de uma suposta rival a quem tentará aniquilar virtualmente pela destruição de seu retrato. Primeiro vejamos como Ana Rosa entra em contato com a imagem da concorrente:

Ao virar de uma folha deram de subido com um cartão fotográfico, que estava solto dentro do livro; um retrato de mulher, sorrindo maliciosamente numa posição de teatro; com suas saias de cambraia, curtíssimas, formando-lhe uma novem vaporosa em torno dos quadris; colo nu, pernas e braços de meia.

– Oh! – articulou a moça, espantando-se, como se o retrato fosse uma pessoa estranha que viesse entremeter-se no seu colóquio.

E, maquinalmente, desviou os olhos daquele rosto expressivo que lhe sorria do cartão com um descaramento muito real e uma ironia atrevida. Declarou-a logo detestável.

– Ah! Certamente… É uma dançarina parisiense – explicou Raimundo fingindo pouco-caso. – Tem algum merecimento artístico…

E tomando a fotografia com cuidado, para que Ana Rosa não percebesse a dedicatória nas costas do retrato, colocou-a entre as folhas já vistas do álbum[11].

Um pouco mais à frente, Raimundo encontra a foto da dançarina com índices de vandalismo, e o seu próprio retrato também vítima dos arroubos de Ana Rosa:

[…] uma vez encontrou toda riscada à unha a cara da dançarina, cuja fotografia ele, com tanto cuidado, escondera de sua prima, porque nas costas do cartão, havia a seguinte dedicatória: A mon brélilien bien-aimé, Raymond…

[…] lisonjeava-lhe aquele interesse, aquela espécie de revelação tímida e discreta; gostou de perceber que seu retrato era, de todos os objetos, o mais violado, e, como bom polícia, chegou a descobrir-lhe manchas de saliva, que significavam beijos[12].

***

Parece claro como Aluísio Azevedo, Adolfo Caminha e José de Alencar souberam usar as potencialidades da fotografia e da imagem fotográfica para desenvolverem suas tramas. Porém, aquele que explorou esse elemento típico da modernidade do século XIX, dentro de um padrão único foi Machado de Assis. Embora ele faça uso da fotografia já em seu romance Iaiá Garcia, publicado em 1879, será em 1900 que Machado construirá o seu romance principal, tendo a fotografia como personagem imprescindível da trama: Dom Casmurro[13].

Machado de Assis. Foto: Reprodução

A dúvida de Bentinho (o dom Casmurro do título) sobre o fato de sua mulher, Capitú, tê-lo traído com seu melhor amigo, Escobar, torna-se certeza quando compara seu filho Ezequiel, então uma criança, com a foto de seu amigo:

Palavra que estive a pique de crer que era vítima de uma grande ilusão, uma fantasmagoria de alucinado; mas a entrada repentina de Ezequiel gritando: – Mamãe! mamãe! é hora da missa! – restituiu-me à consciência da realidade. Capitu e eu, involuntariamente, olhamos para a fotografia de Escobar, e depois um para o outro. Desta vez a confusão dela fez-se confissão pura. Este era aquele; havia por força alguma fotografia de Escobar pequeno que seria o nosso pequeno Ezequiel. De boca, porém, não confessou nada[14];

A fotografia de Escobar é a certeza da traição da esposa, fato que se tornará cada vez mais inequívoco conforme o Ezequiel ia crescendo, tornando-se ainda mais parecido com o amigo de Bentinho.

***

Entrando no comecinho do século XX, 1903, foi lançado o romance Luzia-Homem de Domingos Olímpio, uma trama que se desenrola durante o início da segunda metade do século XIX no sertão do Ceará. Nela a fotografia é mencionada e, quando em uma única oportunidade, quando um sertanejo relembra a primeira vez em que viu uma fotografia, levada para o interior do Brasil por um grupo de cientistas que integrava a Comissão Científica de Exploração, que de fato existiu, criada pelo Instituto Histórico Geográfico Brasileiro que, entre 1859 e 1861, viajaram para o Ceará e para o Piauí:

[…] Era por volta da era de sessenta. Não me lembro bem o ano; só sei que eu era rapazote; pelo tope dos doze. Andava por estes sertões uma comissão de doutores, observando o céu com óculos de alcance, muito complicados, tomando medida das cidades e povoações e apanhando amostras de pedras, de barro, ervas e matos, que servem para mezinhas, borboletas, besouros e outros bichos. Os maiorais dessa comissão eram homens de saber, Capanema, Gonçalves Dias, Gabaglia, um tal de Frei Alemão, e um doutô médico chamado Lagos e outros. Andavam encourados como nós vaqueiros; davam muita esmola e tiravam, de graça, o retrato da gente com uma geringonça, que parecia arte do demônio. Apontavam para a gente o óculo de uma caixinha parecida gaita de foles e a cara da gente, o corpo e a vestimenta saíam pintados, escarrados e cuspidos, num vidro esbranquiçado como coalhada […][15]

Domingos Olímpio. Foto: Reprodução

***

São muitos os lugares onde a fotografia encontra a literatura produzida no Brasil durante o século XIX, esse período tão proteico da cultura do país. Quer como índice de modernidade ou como verdadeira personagem dessa modernidade problemática que é a brasileira, comumente a fotografia se encontra presente abrindo uma série de possibilidade para que se reflita sobre o país e a sociedade aqui engendrada. Neste texto foram pinçados apenas alguns exemplos desse universo à espera de quem o trafegue em busca de outros aspectos tão ou mais interessantes dos que aqui foram citados.

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[1] – AZEVEDO, Aluísio. Casa de Pensão. Porto Alegre: L&PM, 2002. Pág. 387/388.
[2] – ANDRADE, Joaquim Marçal F. História da fotorreportagem no Brasil. A fotografia na imprensa do Rio de Janeiro de 1839 a 1900. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, pág. 157 e seguintes.
[3] – ALENCAR, José de. Senhora. São Paulo: Ática, 1971, pág. 130 e segs.
[4] – Idem. pág. 130.
[5] – SCHWARCS, Lilia. As barbas do imperador. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
[6] – CAMINHA, Adolfo. Bom Crioulo. Editora Martin Claret, 2003. Pag. 62.
[7] – Idem. Págs.72/73.
[8] – ALENCAR, José de. Idem. Pág. 171.
[9] – Idem, pág. 180.
[10] – AZEVEDO, Aluísio. O mulato. Porto Alegre: L&PM. 2002.
[11] – Idem, pág. 123.
[12] – Idem, pág. 138.
[13] – ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Círculo do Livro, 1994.
[14] – Idem, pág. 152.
[15] – OLÍMPIO, Domingos. Luzia-Homem. São Paulo: Ed. Moderna, 1983, pág. 91.

O espetáculo deve continuar?

Exposição OSGEMEOS: Segredos, na Pinacoteca. Foto: Divulgação.

Escrevo este texto fora de São Paulo, onde estou passando a pandemia, um tanto abismado com as imagens nas redes sociais da reabertura das instituições de arte na capital.

Muitos artistas, intelectuais, curadores e até galeristas escreveram nos últimos meses que após esse momento o sistema da arte precisaria mudar, que chegava o momento de desacelerar o circuito, que era hora de se atentar para novas questões que se impunham dentro do contexto de crise sanitária.

Nas imagens que vejo, nada mudou. Seguem as mostras que estavam em processo de montagem no mês de março, às vésperas da abertura da feira SP-Arte, um ponto de inflexão no calendário de museus e galerias, quando a tendência ao espetáculo e à opulência costuma crescer sem pruridos.

Passaram-se sete meses e minha questão é: faz sentido a reabertura dos museus sem algum tipo de reflexão sobre essa pausa forçada? Afinal, durante esse período nada menos que 150 mil mortes ocorreram e seguem ocorrendo no país pela falta de um governo sensato, a Amazônia e o Pantanal estão em processo de destruição, negras e negros estão sendo assassinados brutalmente e manifestações contundentes sendo realizadas pelo mundo afora, e o fascismo cresce em popularidade no país.

Nesse contexto, as instituições de arte reabrem como se nada estivesse acontecendo e mantêm a mesma programação de março de 2020? Esses sete meses nos perpassaram como anos e suas consequências ainda são difíceis de prever, mas além do óbvio cuidado com higiene e formas de evitar a contaminação, essas instituições não conseguem ir além de “o espetáculo precisa continuar”?

Amigos que foram ver as mostras em cartaz, testemunharam que não há – seja na Pinacoteca, no Museu de Arte Moderna de SP ou no MASP, por exemplo – nenhum tipo de posicionamento sobre o momento atual. A lógica do cubo branco, que isolou o espaço expositivo do mundo ao redor, teria agora sido incorporada como política institucional de negacionismo do contexto?

Durante o VI Seminário Internacional que ARTE!Brasileiros organizou no início de outubro, totalmente pensado frente às questões urgentes deste tempo difícil, Ailton Krenak foi direto em um recado ao circuito da arte: “É como se a ideia das nossas bienais de arte, das nossas galerias estivessem todas ficado no passado, vencidas pelo tempo, pela urgência de uma nova mentalidade, de nós os humanos aprendermos a pisar com cuidado, a pisar suavemente na Terra profundamente marcadas pelas nossas pegadas, que nos puseram no limiar desse Antropoceno.”

Onde está a sensibilidade das gestões desses museus para encarar uma nova mentalidade?

Acervo Comentado Videobrasil: Rosana Paulino

"DAS AVÓS", 2019, videoinstalação de Rosana Paulino. Foto: Videobrasil.
"DAS AVÓS", 2019, videoinstalação de Rosana Paulino. Foto: Videobrasil.

No novo episódio do Acervo Comentado VB, a filósofa Alice Lino, professora de filosofia da Universidade Federal de Rondonópolis (UFR), no Mato Grosso, e pesquisadora de estéticas ameríndias e afro-brasileiras, comenta a obra Das avós (2019), de Rosana Paulino [1], descrita como “uma artista que vem se firmando como uma das principais de sua geração por sua capacidade em plasmar rigor estético/artístico aos questionamentos sobre a história dos afrodescendentes no Brasil e também sobre uma história da arte que se pretende hegemônica no país”, como colocou o crítico Tadeu Chiarelli.

Na obra em questão, Lino descreve que a performer Charlene Bicalho “entra no cenário completamente coberto de branco carregando com muito cuidado, envolto em um pano também branco, a sua ancestralidade”. Para a professora, o gesto é uma referencia à violência pela qual as mulheres negras aqui escravizadas passaram. Diante desse passado cruel, Bicalho abre o tecido branco, dentro do qual estão impressas, em transparência, imagens dessas mulheres negras, o que reverencia, então, a sua ancestralidade nesses termos. A performer, com cuidado, paciência e afeto, passa a costurar essas imagens junto à sua vestimenta que também é branca.

“Eu chamo atenção aqui pro fato de uma construção política da mulher negra quando ela se reconhece a partir da história de sua ancestralidade”, atenta Lino, completando que: “Ademais vale notar que há uma tessitura de um afeto, ela olha com muito carinho para as imagens que ela traz para próximo de si. Há na performance, portanto, a reconstituição desse afeto também direcionado à mulher negra. Onde há violência, não há afeto. A Rosana Paulino, portanto, subverte essa imagem assegurando essas mulheres negras o nosso respeito pela luta travada até os nossos tempos”. Para a filósofa, quando Charlene se levanta no final do vídeo, seu gesto simboliza, com altivez, a tomada de posição pela personagem para enfrentar o racismo cotidiano pelo qual as mulheres negras passam.

"DAS AVÓS", 2019, videoinstalação de Rosana Paulino. Foto: Videobrasil.
“DAS AVÓS”, 2019, videoinstalação de Rosana Paulino. Foto: Videobrasil.

Ainda não conhece o Acervo Comentado?

Acervo Comentado Videobrasil é uma parceria entre arte!brasileiros e a Associação Cultural Videobrasil. A cada 15 dias publicamos, em nossa plataforma e em nossas redes sociais, uma parte de seu importante acervo de obras, reunido em mais de 30 anos de trajetória. Confira os outros episódios neste link.

Sobre Videobrasil

A instituição foi criada em 1991, por Solange Farkas, fruto do desejo de acolher um acervo crescente de obras e publicações, que vem sendo reunido a partir da primeira edição do Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil (ainda Festival Videobrasil, em 1983). Desde sua criação, a associação trabalha sistematicamente no sentido de ativar essa coleção, que reúne obras do chamado Sul geopolítico do mundo – América Latina, África, Leste Europeu, Ásia e Oriente Médio –, especialmente clássicos da videoarte, produções próprias e uma vasta coleção de publicações sobre arte.

Este projeto contribui para “redescobrir e relacionar obras do acervo Videobrasil, e vertentes temáticas, na voz de críticos, curadores e pensadores iluminando questões contemporâneas urgentes”, afirma Farkas.


[1] Além de artista visual, pesquisadora e educadora, Paulino é doutora em artes visuais pela USP, com especialização em gravura pelo London Print Studio. Foi bolsista da Fundação Ford e da Capes, e em 2014, foi agraciada com a bolsa para residência no Bellagio Center, da Fundação Rockefeller, em Bellagio, Itália. Participou das individuais Atlântico Vermelho, na Galeria Superfície (2016), Mulheres Negras – Obscure beauté du Brésil, no Espace Fort Grifoon, Besançon (2014), Tecido Social, na Galeria Virgílio (2010); e das coletivas South­South: Let Me Begin Again, Cidade do Cabo, África do Sul (2017), La Corteza del Alma, Madri (2016) e Territórios: Artistas Afrodescendentes no acervo da Pinacoteca, São Paulo (2015), entre outras

Frieze London: evento local e adaptação ao virtual marcam edição 2020

Frieze London: "Huk Pacha", "Iskay Pacha", "Kimsa Pacha". Obras por Claudia Martínez Garay. Foto: Grimm Gallery.
Frieze London: "Huk Pacha", "Iskay Pacha", "Kimsa Pacha". Obras por Claudia Martínez Garay. Foto: Grimm Gallery.

A pandemia de Covid-19 forçou o cancelamento de quase todas as grandes feiras internacionais de arte neste ano. A Frieze London – realizada todo mês de outubro desde 2003 no Regent’s Park – não foi exceção. Com um formato híbrido em 2020 – entre virtual e uma edição física predominantemente local -, a feira apresenta seus viewing rooms até o dia 16 de outubro.

Segundo Victoria Siddall, diretora global da Frieze, cerca de 250 galerias pagaram para acessar a plataforma de visualização digital, contra 280 de costume em edições anteriores. A diretora relata: “Para o mundo da arte, foi uma rápida adoção ao digital, o que não teria acontecido sem a pandemia”, complementando que “sempre houve uma resistência em colocar arte de alto valor online. E tudo isso [a adoção do digital] aconteceu da noite para o dia.”

Ainda, de acordo com Siddall, no começo desse processo de adaptação “muitas galerias usavam seus estandes em feiras online da mesma forma que fariam em uma feira real e agora estão se adaptando e vendo que isso é na verdade uma maneira diferente de mostrar arte”. Ela reconhece que, nesse sentido, houve um enorme progresso vindo das galerias e dos colecionadores.

Ao The New York Times, Thaddaeus Ropac, fundador de sua galeria homônima, descreveu a Frieze Week deste ano como “um evento muito local” tendo em vista que não participam fisicamente representantes da América Latina, Ásia e Estados Unidos – embora presentes na plataforma virtual. Como resultado, para Ropac seria “ingênuo pensar que será algo comparável ao que normalmente é”.

Para Benjamin Sutton, editor de mercado para o Artsy, “as ofertas são tipicamente amplas: de objetos milenares oferecidos por negociantes de antiguidades na Frieze Masters a obras feitas por artistas emergentes durante o isolamento, nos estandes virtuais da Frieze London”. Ele nota que algumas galerias optaram por apresentações temáticas ou conceituais, enquanto outras se entregaram à tradição ao trazer de tudo um pouco.

Entre as galerias brasileiras participantes, A Gentil Carioca ganhou destaque por uma proposta inusitada, ao invés de exibir “em tempo real” com os viewing rooms, a galeria aproveitou o vão entre suas sedes no Rio de Janeiro para apresentar obras ao ar livre. Seu diretor, Marcio Botner, expressou ao portal Artnet que enquanto aqui não podemos visitar feiras de arte, museus, galerias e espaços culturais, a ideia d’A Gentil Carioca era “imaginar a rua como uma extensão dos próprios espaços da galeria de arte”.

Como parte da ação denominada Encruzilhada Gentil estão: Curupira (2020), uma obra em tecido pela artista Laura Lima; um par de pinturas de Arjan Martins que foi carregado pelas ruas; uma escultura de Vivian Caccuri (inspirada pela música A Woman’s Work de Kate Bush) pendurada em um balaústre; e um múltiplo feito a partir da obra Fantasma da Esperança, de Marcela Cantuária, colocado nas ruas como um sinal de trânsito que revela, de forma holográfica ao mudarmos a posição do olhar, a pergunta “com quantos mortos se faz uma democracia?”, em cima do escudo do personagem de quadrinhos Capitão América.

 

Coleção “Amigo EAV” do Parque Lage participa da ArtRio 2020

Iole de Freitas, O outro, 1973-2019, impressão fotográfica. Uma das obras participantes da ArtRio 2020 pela EAV Parque Lage. Imagem: Divulgação.
Iole de Freitas, O outro, 1973-2019, impressão fotográfica. Uma das obras participantes da ArtRio 2020 pela EAV Parque Lage. Imagem: Divulgação.

Na ArtRio, que começa em 14 de outubro e vai até o dia 18 do mesmo mês, serão apresentadas obras de acervo do programa de colecionismo “Amigo EAV”, cuja venda dos múltiplos, que têm tiragem limitada, será revertida para o programa público da instituição e para cessão de bolsas de estudos a jovens artistas periféricos. Os trabalhos, a partir de R$ 1.800, foram doados nos últimos anos por artistas comprometidos com a sustentabilidade e o futuro da escola carioca. Entre eles, Antônio Dias, Brígida Baltar, Cristiano Lenhardt, Ernesto Neto, Iole de Freitas, Laura Lima, Lucia Laguna, Luiz Zerbini e Rafael Alonso compõem a seleção de nomes consagrados com obras à venda. Para quem faz parte do programa Amigo EAV, a compra conta com até 20% de desconto.

Neste ano, a ArtRio acontece em dois modelos de evento: feira presencial, na Marina da Glória, em formato reduzido, e a feira online. Na Marina da Glória, a ArtRio conta com a presença de cerca de 40 galerias. Segundo a organização, serão seguidos todos os protocolos de segurança indicados pelos órgãos competentes, incluindo o número limitado de visitantes – com indicação de horário de entrada e tempo de permanência – a exigência do uso de máscara, a distribuição de álcool gel e o distanciamento social.

Em ambiente virtual, a ArtRio disponibiliza uma plataforma que permitirá não só a visitação da feira e das galerias presentes, mas também a visualização de detalhes sobre as obras, artistas e histórico. Além disso, um chat possibilita a conversa direta com os galeristas e até comunicação por vídeo, facilitando as negociações. Somando à plataforma de visualização, a feira organizou uma série de palestras, mesas redondas, performances e visitas guiadas que podem ser conferidas em seu site. Com a pandemia, as adaptações virtuais realizadas pelas feiras se tornaram comuns, mas o ambiente digital não é estranho para a ArtRio, que ainda em 2018 lançou um marketplace para venda online.

Lucia Laguna, Colagem nº 22 (jardim), 2019 e Colagem nº 23 (paisagem), 2019, díptico. Uma das obras participantes da ArtRio 2020 pela EAV Parque Lage. Imagem: Divulgação.
Lucia Laguna, Colagem nº 22 (jardim), 2019 e Colagem nº 23 (paisagem), 2019, díptico. Uma das obras participantes da ArtRio 2020 pela EAV Parque Lage. Imagem: Divulgação.

Inédita para 2020 é a inauguração da Casa ArtRio – um espaço fixo com programação permanente no Jardim Botânico. Para o novo espaço, está programada a realização de palestras, debates, conversas com artistas e curadores, além de exposições especiais. Confira aqui.

Outra novidade é o projeto de videoarte MIRA que será justamente abrigado na Casa ArtRio e acontece na semana da feira, sob curadoria de Victor Gorgulho. Os artistas participantes foram selecionados a partir de chamadas realizadas pela organização em seu Instagram, abrindo novas oportunidades para artistas independentes e para a interação com o virtual.

LEIA MAIS: Para Yole Mendonça, diretora da EAV Parque Lage, a Escola de Artes Visuais carioca segue sua missão histórica de ser um espaço de resistência, aproveitando inclusive as possibilidades de se nacionalizar em um momento de migração para o virtual. Acesse aqui.

Alguma coisa acontece no meu coração: as imagens de São Paulo

Maurício Nogueira Lima. "Não entre à esquerda", 1964, metal e esmalte sintético sobre aglomerado, 99,2 x 59,6 cm. MAM SP.
Maurício Nogueira Lima. “Não entre à esquerda”, 1964, metal e esmalte sintético sobre aglomerado, 99,2 x 59,6 cm. MAM SP.

Não entre à esquerda, 1964, de Maurício Nogueira Lima (Col. MAM SP) poderia ser enquadrada como uma obra para espaços domésticos e não propriamente para um museu. Mais próxima de uma placa de sinalização, ela obedece a uma estrutura formal ligada ao movimento concreto, do qual Nogueira fez parte[1]: o suporte é dividido ao meio por uma vertical que, surgindo na parte inferior, desaparece para ressurgir na representação do sinal de tráfego, desaparecendo em seguida. Paralelas a essa vertical, mais duas são indicadas, à direita e à esquerda. Nove horizontais, em conjunto com as verticais, estabelecem uma grade virtual na base, cuja estabilidade é comprometida pela curva formada pela palavra “não”, encimando a pintura. Outro parentesco importante de Não entre à esquerda é com a poesia visual que então era produzida em São Paulo.

Esse hibridismo – misto de placa de sinalização, poesia visual e pintura concretista – ganha complexidade maior, devido tanto à inclusão de duas pequenas peças de metal sobre a pintura quanto ao sinal de tráfego e às palavras inscritas. As duas peças podem sugerir o interesse do artista em conferir materialidade à abstração daquele “mapa” tão sucinto. Elas são e ao mesmo tempo representam a “engrenagem” que move São Paulo.

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As palavras inscritas na obra podem ser divididas em dois grupos. O primeiro segue a objetividade de uma placa de sinalização com frases de fácil entendimento para quem domine a língua portuguesa. Elas enunciam: “Não entre à esquerda”, “Conserve-se à direita”. Essas reforçam o sinal de trânsito – elemento principal do trabalho. Já a terceira, embora inteligível, traz um ruído. A frase “Entre pelo cano” somente ganhará sentido quando aliada a outras informações inscritas no trabalho.

O segundo grupo de palavras – concentradas na base da obra – apesar de aludir a determinados topônimos da cidade, estão inscritos de forma a não seguirem a topografia de São Paulo.

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Durante o cubismo (mas não apenas), o uso de letras, palavras e mesmo de frases foi estratégico para vários artistas para sublinharem a bidimensionalidade da pintura, e também – ou ao mesmo tempo – outorgarem a ela um caráter mais entranhado na vida cotidiana ou vice-versa. O mesmo pode ser dito sobre os cubistas também terem usado pedaços de papel na produção de suas pinturas[2].

Tarsila do Amaral. “São Paulo (Gazo)”, 1924, óleo sobre tela, 50 x 60 cm. Coleção Particular.

Se tal estratégia é visível na produção de alguns cubistas e entre outras vertentes do modernismo internacional, aqui no Brasil letras, palavras ou frases tiveram um uso mais parcimonioso: são raros os exemplos de obras que usaram desses dispositivos antes dos anos 1960. Na primeira metade do século XX, podem ser rememorados a pintura de Tarsila do Amaral, São Paulo (Gazo) (Col. Particular), de 1924, e algumas obras do artista paulistano Mick Carnicelli como raros exemplares desse tipo de procedimento. No caso da pintura de Tarsila, o uso da palavra “Gazo” testemunha sua adesão ao cubismo, ao mesmo tempo em que constata a modernidade de São Paulo (potencializada pela inclusão da palavra), convivendo com índices de seu caráter ainda provinciano. Já em Carnicelli, a palavra comparece em algumas de suas pinturas como mais um elemento que compõe o cenário urbano da cidade de São Paulo, captado por procedimentos ancorados numa tradição de feição naturalista.

Mick Carnicelli. Sem título, 1944, óleo sobre tela, 60 x 50cm. Coleção Particular, SP.

O que singulariza Não entre à esquerda é como Nogueira Lima lança mão dessa estratégia para conferir novos significados à cidade. Ele se vale de frases objetivas de orientação de tráfego ao lado de uma frase irônica – “Entre pelo cano” – e também dos nomes de alguns bairros da cidade para reposicioná-los fora da ordem que seria de se esperar de uma placa de sinalização de São Paulo. Tudo motivado por um fato conjuntural e traumático: o golpe civil-militar de 1964.

A partir daquela data fatídica – 31 de março de 1964 –, São Paulo passou a ser vista por Nogueira Lima como um território dividido em dois blocos: aquele que apoiava o golpe militar (à “direita”) e aquele que a ele se opunha (à “esquerda”). Reorganizando assim a cidade, Nogueira Lima junta à esquerda os nomes dos bairros que formam para ele um território específico: “Liberdade”, “Paraíso” e “Bela Vista”. Ou seja, à esquerda do cidadão que hipoteticamente se depara com aquela espécie de placa à sua frente existe em São Paulo um território de liberdade, paz, harmonia e beleza. Do outro lado, à direita, há outra organização, reunindo bairros cujos nomes possuem, além do sentido estrito, significados específicos entendidos apenas pelos paulistanos: “Consolação”, “Casa Verde” e “Carandiru”. “Consolação” refere-se ao bairro homônimo onde está localizado o cemitério que lhe deu o nome; “Carandirú”, por sua vez, reporta ao bairro que cresceu ao lado de uma penitenciária. E “Casa Verde” diz respeito a um outro bairro que também abrigava uma antiga prisão.

Apesar de todo maniqueísmo de Não entre à esquerda – compreensivo, aliás, se não nos esquecermos do impacto do referido golpe naqueles que possuíam outras expectativas para o Brasil –, não resta dúvida de que o artista empreendeu uma operação de contundente invocação poética ao propor outra possibilidade para registrar sua revolta frente à situação da cidade (e do país) por meio da reorganização de seu mapa. O que interessa salientar é que talvez pela primeira vez um artista se valeu da subversão dos códigos de representação estandardizado de uma cidade brasileira para propor um novo mapa, uma nova representação, no caso, de São Paulo: um mapa movido pela atitude revoltosa frente ao fato de ter visto solaparem seu projeto de país? Sem dúvida. Porém, não há como não reconhecer a carga de afeto pela cidade misturada àquela revolta. Um afeto que o leva a buscar entender a nova realidade do país a partir da rearticulação e reposicionamento de alguns topônimos de São Paulo, em sua representação mais imediata e objetiva: uma placa de sinalização, um tipo de mapa mais enxuto.

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Ao reinventar no plano da pintura um novo mapa para a cidade, Nogueira Lima traz para o âmbito da arte contemporânea local uma vontade de intervir na configuração estratificada de São Paulo, fornecendo-lhe outra configuração, expandindo sua consciência sobre a cidade e a circunstância que ela e todos seus habitantes viviam.

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São Paulo não teve sua fisionomia captada pelo desenho, pela aquarela, pela pintura e mesmo pela gravura com a mesma intensidade com que foram retratadas outras cidades brasileiras, como Rio de Janeiro e Salvador. Mesmo assim, a partir do século XIX ela foi registrada por artistas como Thomas Ender, Eduard Hildebrandt e outros. No entanto, nenhum pintor ou gravador que se saiba conseguiu assinalar o processo de transformação da cidade com tanta perspicácia como Militão Azevedo, com as fotografias que compõem seu Álbum Comparativo da Cidade de São Paulo. Justapondo imagens da cidade captadas em 1862 com outras dos mesmos lugares produzidas em 1887, Azevedo conseguiu – dentro dos limites da fotografia de sua época – sublinhar as transformações que já caracterizavam São Paulo como um contínuo vir a ser.

Obras de artistas como Benedito Calixto, Oscar Pereira da Silva e Antonio Ferrigno, entre outros, apresentam cenas pacatas da cidade, sempre interpretada por um viés naturalista, revelador de uma placidez interiorana e sossegada.

Tarsila do Amaral. “São Paulo”, 1924, óleo s/tela, 67 x 90 cm Pinacoteca do Estado de São Paulo.

Mesmo no âmbito do modernismo dos anos 1920 e depois, a São Paulo que aparece – e quando aparece –, é uma cidade destituída de dinamismo, de qualquer índice de seus aspectos transformadores. A cidade que emerge nas telas de Tarsila do Amaral, por exemplo, revela poucos sinais de transformação. Tanto em São Paulo (Pinacoteca) quanto na citada São Paulo (Gazo), ambas de 1924, a cidade – talvez subjugada demais pelos rigores pós-cubistas de linhagem purista –, aparece austera e cristalizada pelos conceitos de “equilíbrio, construção, sobriedade”[3].

Talvez o único modernista que captou a metrópole em potencial que era São Paulo nas primeiras décadas do século passado tenha sido Flávio de Carvalho, em seu Viaduto Santa Ifigênia à noite, (1934, Col. Particular). A São Paulo noturna de Carvalho, mesmo com a multidão ausente, apresenta-se possante, com o viaduto e os edifícios indicando seu crescimento e modernidade. Essa pintura não retrata uma cidade pacata, retida no torpor. Ela é a representação de uma metrópole que descansa, ao mesmo tempo em que revela sua pujança, a partir de linhas horizontais e curvas, repleta de vazados que se interpõem a formas verticais altivas.

Flávio de Carvalho. “Viaduto Santa Ifigênia à noite”, 1934, óleo sobre tela, 38×48 cm, Col. Particular.

Parecem existir duas São Paulo no período entre as duas guerras mundiais, e mesmo após 1945:

A primeira, a dos fotógrafos, flagra a cidade no seu crescimento até então inconcebível. Hildegard Rosenthal, Hans Gunter Flieg, Peter Scheier, Alice Brill, Georg Paulus Waschinski, dentre outros, captaram o rumor das ruas, fábricas e avenidas, a potência dos edifícios de concreto sendo erguidos, a multidão, a mercadoria tomando conta. Para esses fotógrafos imigrantes, as referências, os lugares, a São Paulo representada na fotografia é outra. Agora, a marca é a aceleração do tempo, do tempo como mercadoria.

Georg Paulus Waschinski. “Nylotex Tecelagem e Confecção S.A”, 1954, fotografia.

Em um álbum analisado pelas pesquisadoras Solange F. de Lima e Vânia C. de Carvalho[4], a foto Nylotex Tecelagem e Confecção S.A., de Georg Paulus Waschinski, esclarece a fusão entre homem e máquina, entre tempo e dinheiro. O primeiro plano – em que operárias se confundem com máquinas e fios – caminha para o fundo da cena, num continuum realçado pelas verticais das colunas da fábrica à esquerda. As diagonais produzidas pelas máquinas tomam a maior parte do campo da fotografia. Ao fundo, uma luz intensa vinda das janelas de vidro contrasta com o teto escuro da fábrica.

Hans Günter Flieg. “Pneus Pirelli”, São Paulo, S.d.

Se Waschinski sublinha a fusão entre homem e máquina com a própria fábrica representada dentro de uma mecânica formal que acentua o processo avassalador da produção industrial, já uma parte considerável da produção de Flieg tem outro objetivo: transformar o produto, a mercadoria saída daquele universo em objeto de cobiça. Em Pneus Pirelli, s.d., Flieg transforma as qualidades do produto em elementos de sedução do consumidor[5].

Nas fotos de Waschinski e Flieg não ficam evidenciados os índices exteriores de São Paulo. Nelas, é como se a cidade apresentasse suas entranhas ou, para seguir na metáfora fabril, suas engrenagens. Contextualizadas[6], elas tinham como função sublinhar a potência de São Paulo, atentando para o fato de que novos lugares e objetos podiam mapear outros significantes e significados para a metrópole.

Alice Brill. “Viaduto do Chá”, São Paulo, 1954. Coleção Pirelli-MASP.

Viaduto do Chá, São Paulo, 1954, de Alice Brill revê um local tradicional da cidade, mas flagra ali um momento em que, imerso em espaços de luz e sombra delimitados, o caos da cidade é desmentido pela ordem quase marcial dos componentes da foto: a multidão, a frota de autos, a avenida, as janelas no fundo da cena, o viaduto, nada diverge do sistema engendrado pela lente da artista. A não ser, talvez, o automóvel fora de foco, (e prestes a sair do enquadramento), passando sobre as inscrições no asfalto que cobre o antigo Anhangabaú, convocando a todos para as celebrações do Primeiro de Maio.

Hildegard Rosenthal. “Rua Direita, São Paulo”. 1939 Coleção Pirelli-MASP.

Se na foto de Brill impera a ordem, em Rua Direita, São Paulo, 1939, de Hildegard Rosenthal, surge, esvaziado de horizonte, outro pedaço do centro da cidade. Os edifícios fecham a cena, tornando o espaço claustrofóbico, os transeuntes caminhando para dentro e para fora da área mais iluminada parecem atores de uma peça de Beckett. No entanto, como nas encenações do dramaturgo irlandês, existe uma ordem ali estabelecida, dada pelas linhas que conduzem a multidão para lá e para cá. Uma ordem, no entanto, de natureza distinta daquela apresentada na imagem de Brill. Se nessa o espaço amplo, cortado por linhas cruzadas, implanta um sentimento de expansão e devir, na foto de Rosenthal a ordem subjacente parece ser da natureza do círculo ou elipse deformada, sugerindo nenhuma possibilidade de reversão.

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A segunda São Paulo, aquela dos pintores, é infensa a qualquer inquietação, a qualquer ruído do moderno. Foram poucos os artistas que no século passado deixaram os arrabaldes ermos, os confins longínquos de São Paulo. Poucos trouxeram para o campo da pintura o centro vigoroso da metrópole. E quando o fizeram, preferiram eternizá-lo na modorra das manhãs de domingo, ou então nos momentos breves em que a metrópole silencia, como se de repente ficasse exausta do barulho contínuo.

No primeiro caso, temos Francisco Rebolo. Em seu Arredores de São Paulo, 1938 (Col. MAM SP), a metrópole é evocada apenas no título e negada na sua realidade. O arrabalde da cidade é tudo o que ela não é: calmo, silencioso, onde a luz é o único ruído benfazejo, diga-se, a fertilizar, com o trabalhador em primeiro plano, a terra dadivosa.

Quando Rebolo pinta o centro de São Paulo, seus tons esmaecidos, delicados, parecem almejar mais o que vem depois do primeiro plano, em que os índices do urbano estão demarcados com singeleza e muita parcimônia. Em Praça Clóvis, 1944 (Col. Particular), por exemplo, a São Paulo ali descrita situa-se ainda entre a metrópole que se insinua por meio do edifício de concreto, do ônibus em primeiríssimo plano, e os índices do ontem ainda presentes: a igreja, o casario baixo que se alonga e esgarça até perder-se no campo, entre uma ou outra discreta chaminé, que também alude ao moderno que se avizinha cada vez mais.

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Mick Carnicelli foi um dos raros pintores que registrou São Paulo sistematicamente até o início dos anos 1960. Com formação veneziana, e estágios em Londres e Paris, o artista voltou e se estabeleceu em São Paulo no início dos anos 1920. Com a cidade manterá uma relação peculiar, optando por retratá-la por meio de recortes menos explorados, usando dessas imagens de São Paulo como subterfúgios para expressar uma visão pouco confiante não apenas na metrópole, mas na própria vida. Aderente a um naturalismo reanimado pelo apreço por alguns pós-impressionistas (Cézanne entre eles), Carnicelli, entretanto, não costumava juntar o cavalete e outros apetrechos e sair à caça de locais que chamassem sua atenção, quer pela luz, quer por outros aspectos pitorescos. Reservado, tendente à reclusão, o pintor atuou como um espectador que via São Paulo de sua janela, do pátio ou do quintal de seu ateliê ou moradia. Era desses postos de observação privilegiados, e à parte do embate direto com a cidade e com a arte de ponta, que ele a investigava a si mesmo.

Apesar de, desde o início, ter tido São Paulo como um dos estímulos para sua pintura, o que interessa sublinhar aqui é sua produção realizada a partir dos anos 1950, quando Carnicelli se instala na residência de seus pais, na Avenida Paulista. É daquele ponto privilegiado que o pintor anota o crescimento rápido da cidade moderna que avança.

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Nelson Leirner. “Você faz parte II”, 1964. Madeira, aço cromado e espelho, 111,3X111,3X10,2cm. Coleção Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, São Paulo.

No artigo mais recente aqui publicado[7], escrevi sobre a obra de Nelson Leirner, Você faz parte II que, como Não entre à esquerda, de Maurício Nogueira Lima, foi produzida em 1964. Chamo a atenção para essa coincidência: duas obras que representaram desvios significativos no campo da arte contemporânea – contribuindo para a sua introdução entre nós –, foram produzidas num ano tão fatídico para nossa história. Se a obra de Leirner pode ser entendida como uma crítica ao golpe e como introdutora entre nós da crítica institucional, Não entre à esquerda demonstra como a cidade pode ser pensada e reelaborada enquanto imagem, fora do âmbito da iconografia mais previsível.

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[1] – Um concretismo agora semantizado, mas, mesmo assim, concretismo.
[2] – Neste sentido também podem ser pensadas as peças de metal colocadas na pintura por Nogueira.
[3] – Esses seriam os focos que, segundo Mario de Andrade, Tarsila deveria perseguir. Trecho de uma carta do crítico à artista: “(…) Creio que não cairás no cubismo. Aproveita dele apenas os ensinamentos. Equilíbrio, Construção, Sobriedade. Cuidado com o abstrato (…”). Carta de 16 de junho de 1923, de Mario de Andrade para Tarsila do Amaral. In, AMARAL, Aracy. Tarsila, sua obra e seu tempo. Sobre as relações do modernismo brasileiro com o “pós-cubismo de linhagem purista”, consultar: CHIARELLI, Tadeu. Pintura não é só beleza. A crítica de arte de Mário de Andrade. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2007.
[4] – LIMA, Solange f. de/CARVALHO, Vânia C. de. Fotografia e cidade. Da razão urbana à lógica de consumo. Álbuns de São Paulo (1887-1954). Campinas: Mercado de Letras, 1997.
[5] – Em foto mais recente, o artista mantém o mesmo padrão de objetividade recorrendo, no entanto, a outro expediente: Calculadora Logos 270, Olivetti, Guarulhos, de 1970, apresenta não apenas o produto com seu desenho eficaz, objetivo, mas igualmente o resultado de toda essa eficácia: contrasta de maneira saborosa na imagem, a frieza com que é captada a calculadora e a sensualidade (acentuada pelo jogo sofisticado e sinuoso de luz e sombra) da fita de papel que sai da pequena máquina, marcada pelos registros da contabilidade empresarial.
[6] – Como visto, a foto de Wichinsk foi produzida para um álbum sobre São Paulo e as fotos de Flieg para o catálogo das indústrias mencionadas nos títulos das fotos de sua autoria. Em tempo: essas fotos hoje pertencem ao Instituto Moreira Salles.
[7] – “Para Nelson ou os perigos da fúria interpretativa”, dia 23 de setembro de 2020. https://artebrasileiros.com.br/opiniao/conversa-de-barr/para-nelson-ou-os-perigos-da-furia-interpretativa/

 

Ayrson Heráclito exibe obras no Videobrasil Online

O artista, professor e curador Ayrson Heráclito. Foto: Arge Lola

Ao desenvolver uma poética ligada à elementos da cultura africana e afrobrasileira – passando pelo universo mitológico do candomblé e levantando debates sobre escravidão e racismo -, o artista visual Ayrson Heráclito assistiu, ao longo de décadas, sua obra ser enquadrada basicamente como exótica e primitiva. Segundo o próprio artista, nascido em Macaúbas (BA) e atuante desde meados dos anos 1980, “o meu trabalho era visto, através de um filtro da tradição hegemonicamente masculina, patriarcal, branca e colonial, como uma produção demasiadamente regionalista e folclórica, distante da ideia de contemporâneo”.

Ao longo do tempo, especialmente nos últimos anos, temáticas ligadas às tradições africanas e afrodiaspóricas, assim como o debate sobre racismo estrutural, passaram a ocupar espaço crescente no mundo das artes, pautando – ainda que de modo incipiente – a programação de galerias, museus e instituições culturais. “E assim o sistema de arte brasileiro foi abrindo espaço para que eu me tornasse contemporâneo”, diz Heráclito. “Porque antes tudo que era produzido por pretos e índios era observado apenas pelos antropólogos. E eu sempre reivindiquei que a arte preta fosse reconhecida como uma produção do simbólico assim como todas as outras, e não vista com esse olhar etnográfico que estuda o ‘outro’ através de uma visão ocidental.”

Dentro do panorama descrito pelo artista, uma das poucas instituições do país que se voltou, ainda nos anos 1980 e 1990, para esta produção dita “exótica”, reconhecendo-a como arte contemporânea, foi a Associação Cultural Videobrasil. “Nenhuma outra instituição brasileira, pelo menos que eu tive contato, produziu tamanho debate neste sentido. Foi ela, inclusive, que possibilitou grande parte das conexões culturais que eu estabeleci com a Africa”, afirma Heráclito.

Layout do site com a exposição. Crédito: Nina Farkas

É justamente na nova plataforma da associação, o Videobrasil Online, que Ayrson Heráclito acaba de inaugurar sua primeira exposição virtual. Com dez obras audiovisuais produzidas pelo artista entre 2004 e 2018 e um vídeo inédito de apresentação, Sacudimentos tem curadoria de Solange Farkas, fundadora e diretora da instituição, e é a segunda mostra apresentada na plataforma (leia aqui sobre Abdoulaye Konaté – Cores e Composições). “O Ayrson tem uma trajetória extraordinária para o cenário das artes, com uma contribuição muito particular às práticas descoloniais”, diz Farkas. “Sacudimentos pontua o trajeto de um artista que mobiliza o sentido transformador dos ritos de matriz africana em resistência à herança colonial.”

Para Heráclito, a mostra virtual é uma experiência nova e desafiadora, “já que são trabalhos pensados para serem expostos em uma espacialidade física, por vezes com várias telas, e que agora são apresentados no universo online”. “Então estamos tentando, virtualmente, criar também jogos de telas, trazendo a ideia de instalação para dentro do site”, explica. Ele destaca, ainda, que obras muito pouco vistas, por vezes expostas apenas fora do Brasil, estão agora disponíveis no Videobrasil Online.   

A memória colonial no presente 

Um dos trabalhos criados originalmente em dois canais é justamente o que dá nome a mostra, a instalação Sacudimentos, produzida por Heraclito em 2015 a partir de uma residência artística concedida pelo Videobrasil em parceria com o Raw Material Company, em Dacar (Senegal). Filmado primeiramente na Casa dos Escravos na Ilha de Goré, no Senegal, e depois na Casa da Torre, sede de um grande latifúndio na Bahia, o trabalho registra rituais de limpeza e cura espiritual – os sacudimentos – realizados pelo artista em dois locais ligados ao comércio de escravos. Em uma espécie de performance de limpeza dos espaços arquitetônicos, na busca por afastar espíritos que seguem atormentando o presente, Heráclito traz à tona a necessidade de se olhar para o passado colonial que moldou sociedades nos dois lados do Atlântico. 

Imagem da instalação audiovisual “Sacudimentos”, de 2015. Foto: Divulgação

“No meu trabalho, o sacudimento é também uma tática de retornar ao passado afim de sacudir a história, promovendo uma ‘movência’ dos nossos traumas. É uma forma de gerar uma visibilidade para questões que tradicionalmente foram ocultadas, como o processo de desumanização da população africana escravizada”, explica o artista. “A ideia é que esse passado se cure, de certa forma, e que a lógica desse passado não se repita. Eu sempre digo que a minha tática de sacudimento é para afugentar esse monstro, esse fantasma que até hoje nos persegue, que é o fantasma do senhor de escravo”, conclui.

A ideia de enfrentar as mazelas “sem que você adoeça, mas, pelo contrário, para que você se cure” – inspirada no pensamento do artista alemão Joseph Beuys – se relaciona também à percepção de que o mito da democracia racial no Brasil sempre foi um discurso utilizado pelas elites contra a população preta. Em um contexto de intensificação das lutas antiracistas em diversos países, concomitante ao crescimento da extrema-direita ao redor do mundo, Heráclito ressalta que uma guerra que sempre existiu apenas está mais escancarada. “O que a gente vive hoje é um mundo de guerras e tensões. E não existe mais a ideia de que o Brasil é mestiço e pacífico. O Brasil está em luta, em guerra, como sempre esteve, e essas pessoas e instituições que defenderam esse tipo de apaziguamento estão tendo que se ajustar ou estão perdendo totalmente o sentido, sendo colocadas de escanteio.”

Em tempos de destruição acelerada de florestas e ecossistemas, em que debates sobre o Antropoceno ganham espaço, Heráclito reforça ainda que um olhar para as culturas de matriz africana fornecem outras formas de se relacionar com a natureza. Ao trabalhar, em vídeos e performances, a partir de materiais orgânicos e alimentos como o dendê, o açúcar e a carne, o artista apresenta um dos pilares das culturas de origem Iorubá, Bantu e Fon: “O mundo é como um corpo, um ser vivente. E em meu trabalho toda a utilização dos materiais orgânicos, que são associados às práticas de alimentar as divindades e a natureza, tem a ver com o fato de que a natureza é quem nos dá de comer, é esse sujeito maior que nos guia, nos orienta, nos propicia a vida. E são os elementos da natureza que nos deixam potentes para, por exemplo, transmutar essa ideia de cicatriz, de dor, desse passado colonial que reduziu todo esse conhecimento à ideia de feitiçaria e de macumba”.

O medo de perder o mundo se tornou amplo e irrestrito, diz nova curadora do MuBE

A curadora-chefe do MuBE Galciani Neves. Foto: Marcus Vinicius de Arruda Camargo
A curadora-chefe do MuBE Galciani Neves. Foto: Marcus Vinicius de Arruda Camargo

A primeira exposição curada por Galciani Neves no Museu Brasileiro da Escultura e Ecologia (MuBE) não foi pensada para ser vista pelos visitantes do museu paulistano. Tampouco foi criada direcionada ao ambiente virtual, como se tornou comum nos últimos tempos. Aberta no dia 5 de setembro, dois meses após Galciani assumir o cargo de curadora-chefe da instituição, O ar que nos une é direcionada aos pedestres, usuários de ônibus e motoristas que passam pela avenida Europa, na zona oeste de São Paulo, já que a instituição segue de portas fechadas em meio à pandemia de Covid-19. E, seja neste desejo de diálogo com a cidade, seja nas temáticas que levanta, a exposição já dá uma mostra de algumas das preocupações que devem pautar a gestão da nova curadora do museu.

“Convidamos artistas cujos trabalhos não exatamente tematizam a pandemia, mas de algum modo falam de uma espécie de conexão, do fato de que mesmo à distância as conexões e diálogos insistem em acontecer. Falam da forma como o planeta se comporta e da forma como a gente se comporta”, explica Neves em entrevista à arte!brasileiros. Questões referentes à destruição do meio ambiente, ao Antropoceno, à causa indígena e ao papel educativo da arte surgem, de diferentes modos, nas obras de Ana Teixeira, Artur Lescher, Laura Vinci, Motta & Lima, Paulo Bruscky e Yoko Ono.

Nascida em Fortaleza, doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP e professora na FAAP e na Universidade Federal do Ceará, Galciani assume o cargo após quatro anos de gestão de Cauê Alves, que recentemente se tornou curador do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP). Ela pretende dar sequência ao projeto de seu antecessor de construção de um acervo de “obras-projeto” – em que o artista disponibiliza ao museu o projeto da obra e a possibilidade de montá-la, mas não o trabalho em si – e afirma que suas prioridades são trazer maior diversidade para o museu e intensificar seu papel pedagógico.   

“Acho que deve ser ressaltada uma vontade de colocar a tarefa do museu na sua vocação como um lugar de educação. Meu maior desejo é esse. E quando digo educação é de uma maneira geral, entender a educação como uma prática de liberdade. Paulo Freire já dizia isso. Entender que o educar e o educar-se é um trânsito, uma ponte”, afirma. “Acho que o que a gente tem que fazer mesmo é abrir as portas do museu, fazer com que ele seja um espaço simpático e empático. Por isso é tão importante pensar nos processos educativos.”

Quanto às questões urgentes referentes ao meio ambiente, em um país que assiste à destruição acelerada de seus ecossistemas, Galciani fala de seu desejo de aproximar cientistas e pesquisadores do trabalho no MuBE e cita o antropólogo e filósofo francês Bruno Latour: “Há cerca de um ano ele falou em uma entrevista que finalmente o medo de perder o mundo não é mais só dos artistas e dos poetas. Eu fiquei muito chocada com isso. Então o medo de perder o mundo agora é amplo e irrestrito”. Nesse contexto, segue ela, é preciso entender que a tarefa da arte é de resistência, de questionamento. Leia abaixo a íntegra da entrevista.  

ARTE! – Você assumiu o cargo de curadora-chefe do MuBE em julho, ou seja, há pouco menos de 3 meses. Queria começar perguntando como tem sido o trabalho e o que foi possível fazer até agora, especialmente considerando que você assumiu em meio à pandemia e com o museu de portas fechadas.

Bom, desde o começo sabíamos que o museu estaria de portas fechadas por tempo indefinido. Então o início foi de um entendimento da instituição, do que poderia ser a vocação do museu. Como você sabe, o Cauê Alves, junto com a nova diretoria, já havia reposicionado o museu de uma forma muito diferente do que ele havia sido nos últimos dez anos. Então de quatro anos para cá existe um acervo sendo montado, exposições com consistência foram feitas, há uma equipe de educativo, cursos de história da arte e de arquitetura que já estavam sendo ministrados. O MuBE realmente foi adensando a programação. Então o começo foi em parte reconhecer esse terreno, ainda que à distância. Isso é muito difícil, até porque o prédio é encantador, é muito bom estar ali, naquele espaço aberto, em contato com a arquitetura do Paulo Mendes da Rocha. Realmente sinto falta deste convívio. 

E uma coisa que começamos a fazer foi intensificar a programação online, ver o que era possível produzir. Já existia uma programação chamada MuBE ao vivo – Conversa com Artista, e o que eu pude fazer de maneira um pouco mais profunda foi preparar séries para essa programação. Primeiro foi a série “hic et nunca: a cidade como espaço/tempo de experiências artísticas”. E nós convidamos cinco mulheres, cada semana uma artista brasileira: Regina Parra, Alice Shintani, Eleonora Fabião, Virginia de Medeiros e Abigail Campos Leal. E os debates foram super legais, com uma grande participação do público. Fizemos uma segunda série, que se chama “entre nós, uma ponte”, tentando montar diálogos entre arte e educação, com artistas cujos processos artísticos são indissociáveis de processos pedagógicos, como Jorgge Menna Barreto, Vânia Medeiros, Renata Felinto e Lia Rodrigues, entre outros. Agora estamos montando uma terceira série em que cada debate terá sempre um artista e um pesquisador/cientista discutindo as urgências do Antropoceno. Queremos colocar arte e ciência em diálogo.

Então essas atividades foram o foco principal. Além disso, o Educativo tem feito atividades que já existiam antes de eu entrar, como o “ateliê a distância”, geralmente mais voltadas ao público infantil. Tem também o “conhecendo o artista”, que é um video em que os educadores apresentam a produção de algum artista, em geral alguém que esteja na exposição que já estava montada – Obras-projeto: Novo Acervo do MuBE, que foi a última que o Cauê fez. E tem ainda o “conta o conto”. São as atividades online que pudemos fazer.           

Artur Lescher, Aerólito, 2003, na mostra “O ar que nos une”. Foto: Marcus Vinicius de Arruda Camargo

ARTE! – Vocês fizeram também a exposição O Ar que nos Une, já com sua curadoria, que não é uma mostra virtual. Poderia falar um pouco sobre ela?

Sim, foi o que conseguimos fazer, lembrando que a gente não abriu o museu para a exposição acontecer. Então ela foi feita na área externa para ser vista por quem passa na calçada, nos carros e ônibus. Ela parte do Conversa de Ar, da Yoko Ono, e a gente convidou artistas cujos trabalhos não exatamente tematizam a pandemia, mas de algum modo falam de uma espécie de conexão, do fato de que mesmo à distância as conexões e diálogos insistem em acontecer. Falam da forma como o planeta se comporta, e da forma como a gente se comporta, da maneira como o patrimônio cultural se constitui e se transmite.  

ARTE! – Em uma entrevista recente você falou sobre a proposta de trazer maior diversidade para o museu e de democratizar o acesso a ele. Você acha que essa mostra, ao se abrir para as ruas, já seria um passo neste sentido de desejo de maior integração com a cidade?

Acho que sim. E o desejo de integração eu acho que é algo de que vamos falar muito agora. Porque em tempos de isolamento o que a gente mais sonha é em ficar junto né? Isso se tornou muito caro para nós. Eu, antes de ser curadora, sou professora, então sinto muita falta da sala de aula. A gente sabe o quanto a experiência de aula é feita no convívio. E eu entendo também uma exposição como uma esfera pública de discussão.

Para mim, em primeiro lugar a vocação de um museu é a educação. E isso também tem a ver com o entorno mais imediato, com a cidade, com a rua, com o público. E quando penso em ampliação de público não estou falando apenas das pessoas que visitam o espaço, mas é super importante pensar no acesso aos meios de produção culturais, propondo uma possibilidade de trazer maior diversidade entre as pessoas que podem participar das exposições, palestras etc.

ARTE! – Poderia explicar um pouco melhor o que seria essa maior diversidade que você pretende trazer para o museu e de que modo isso pode ser feito na prática?

A gente já começou esse processo. Eu sei que a ideia de representatividade ainda é algo que a gente precisa ultrapassar. Quer dizer, precisamos sair da “síndrome de um negro só”, que é o que a gente vê na maioria dos espaços né? E eu não quero correr esse risco. Mas sei que pensar sobre isso é um trabalho fundamental, que tem que estar na pauta principal do MuBE. E temos que entender que uma exposição, uma curadoria, é um lugar de legitimação, e que a medida que uma curadoria olha, seleciona, legitima e coloca em exposição alguns trabalhos, ela também deixa de colocar outras coisas em circulação. Então eu acho que o trabalho parte principalmente de um processo de pesquisa, de diálogo, e aí sim de interlocução, de relação. Nós sabemos quantas iniciativas e plataformas de tentativas de mapeamento existem, por exemplo, de artistas negros, de profissionais e pesquisadores trans, mas talvez o grande desafio seja a nossa possibilidade de acessar e se comunicar com essas pessoas. E sendo franca, acho que ainda estamos engatinhando nesse sentido. O Brasil não se preparou para isso. Estamos muito acostumados a viver dialogando e expondo os grandes nomes, já hegemônicos e já cristalizados. E acho que é super importante ampliar os espaços, mas também ampliar a vista, entender uma diversidade de ação, de pontos de vista. E isso não deveria ser só uma plataforma de um museu, não teria que ser só a plataforma de arte, a gente tem que pensar em inclusão, que os meios de produção culturais tem que ser irrestritos para essas pessoas também.          

ARTE! – Você chegou já a citar essa proposta de trabalhar a ideia do Antropoceno, o que parece ter até uma relação com o nome do MuBE (Museu Brasileiro de Escultura e Ecologia). O que significa trazer o debate sobre o Antropoceno para o museu, inclusive pensando no atual contexto brasileiro de destruição de suas florestas?

Nós estamos vivendo uma crise que é humanitária, sanitária, política… Enfim, tornou-se uma pauta que a gente encara todos os dias, isso está em nossos corpos, vinculado aos nossos deslocamentos, aos nossos privilégios de ir e vir. Então temos no museu um planejamento que está começando a ser desenhado para o ano que vem, no qual estamos conversando com muitos pesquisadores e cientistas para entender as pautas urgentes para 2021. Entender os temas que não podem faltar. Então essa série de conversas que eu citei, por exemplo, já é fruto de um diálogo inicial com algumas pessoas. O Bruno Latour, por exemplo, é um pensador que está aqui na minha mesa, literalmente, o Diante de Gaia está aqui comigo. E no Brasil estamos começando a conversar com o S.O.S Mata Atlântica, a Marcia Hirota tem nos nutrido de pessoas e pesquisadores jovens que trabalham com agrofloresta, com o impacto no ecossistema da cidade – inclusive para entendermos a cidade como meio ambiente. Isso está presente também na formação dos educadores. Estamos tentando fazer com eles uma formação bem diversa e plural, passando pelas ideias de patrimônio cultural e educação ambiental, para que a gente também comece a preparar o público interno para receber esses conteúdos. Outro conteúdo importante é sobre as mudanças climáticas, o que envolve um maior entendimento do próprio funcionamento do museu, um engajamento com o cotidiano da instituição. Existe, por exemplo, a Agenda 2030, com vários protocolos e instâncias de funcionamento, e estamos tentando posicionar o museu em relação a essas estratégias.

Acho que uma coisa importante que eu tenho começado a aprender com os pesquisadores é que nós vamos, cada vez mais, assistir o planeta falar por si só, reagir. A ciência moderna tratou, por muito tempo, o planeta como um lugar de recursos que nunca iam acabar, mais passivo, uma espécie de mãe que tudo aceita e tudo nutre, tudo dá. E acho que maior lição que tenho aprendido agora são as interconexões, tudo está imerso, o planeta vai começar a reagir de maneira mais brusca, digamos assim. E temos que pensar em como tratar esses temas.                

ARTE! – Este debate inclui também tratar de questões indígenas, por exemplo?

Sim, porque a gente também entende que os povos originários, assim como nós, somos parte do meio ambiente. Mas é também um assunto que tem uma delicadeza. Não podemos apenas estetizar, entender como uma espécie de produção excêntrica. Acho que temos que ter um cuidado para lidar com essas coisas, estamos aprendendo a pensar sobre isso. Não podemos cair em erros de museificar as coisas, mas precisamos entendê-las em um plano de ação do imediato, do contemporâneo, de conexão cultural mesmo. Talvez a gente ainda tenha que sofrer um pouco para trabalhar com esse tipo de assunto.

ARTE! – Pensando no momento político conturbado que estamos vivendo, mais especificamente no Brasil, temos um governo que parece tratar arte, cultura, educação e meio ambiente quase como áreas inimigas. Queria que você falasse um pouco sobre como vê este contexto, pensando que essa são exatamente as principais áreas de atuação do MuBE…

Há cerca de um ano o Bruno Latour falou em uma entrevista que finalmente o medo de perder o mundo não é mais só dos artistas e dos poetas. Eu fiquei muito chocada com isso. Então o medo de perder o mundo agora é amplo e irrestrito. E é uma ameaça que se edificou com mais força e potência na nossa frente. Mas, partindo disso, eu entendo a arte como uma atividade social, embrenhada no meio social, nas nossas questões políticas, no nosso exercício efetivo como gente, por mais óbvio que seja falar isso. Então nesse momento é entender mesmo que a tarefa da arte é de resistência, de questionamento. Acho ainda temos alguma esperança se entendermos que a vocação principal da arte é a educação, o que pode trazer mudanças para as próximas gerações. E especificamente no MuBE e na minha atividade como curadora e professora, eu estou pensando nas gerações futuras, no que realmente pode acontecer de transformação. Talvez não sobre muita coisa para as próximas gerações, mas temos que tentar semear uma base, um outro solo, nossa obrigação é muito grande. E nesse sentido a arte também tem essa tarefa de desobediência, também num nível de engajamento coletivo, e estar à frente do MuBE é pensar em trazer tudo isso para dentro, mas é sobretudo convocar e fazer circular, ser uma espécie de centro nevrálgico para algumas pessoas. Para que a gente possa produzir e fazer circular informações que sejam mais humanitárias, que de alguma maneira distribuam justiça, não num sentido demagógico, mas de alguma equidade social, de algum sonho de equidade social. 

ARTE! – Por fim, falando sobre o acervo do museu, você entra após um período de quatro anos em que o Cauê se dedicou à criação de um acervo de projetos de artistas. Isso seguirá neste próximo período?

O acervo do museu é feito de obras-projeto, o que significa que as ideias do artista estão ali sendo cuidadas pelo museu. O que significa também que nós temos a possibilidade de remontar essas obras. Então, por exemplo, se nós fizermos um empréstimo de uma obra do MuBE, nós enviamos o projeto e aí a outra instituição é responsável pela montagem. E os artistas são super parceiros nisso, porque não é apenas um croqui, mas todo um memorial descritivo dos trabalhos. Os artistas fizeram vídeos, estão em diálogo com a conservadora, que é a Flavia Vidal. E acho que o que o Cauê iniciou foi muito importante para reposicionar o museu, colocá-lo também como detentor de um acervo. E sim, já estou conversando com pessoas que terão projetos incorporados como parte do acervo do MuBE. Em breve poderemos anunciar quem são.

CURA BH traz obras de arte para as fachadas da capital mineira

CURA BH. "Entidades", por Jaider Esbell. Foto: Divulgação.
"Entidades", por Jaider Esbell. Foto: Divulgação.

Desde 22 de setembro, Lídia Viber, Robinho Santana, Daiara Tukano e Diego Mouro vem trabalhando nas quatro empenas (com obras pintadas, afixadas nas paredes de prédios) espalhadas pela região da Rua Sapucaí, no Bairro Floresta, comissionadas para a quinta edição do CURA BH. Os três primeiros são artistas convidados, já Diego Mouro foi o vencedor da convocatória do CURA para 2020 – que recebeu cerca de 400 propostas. Devido à pandemia, o projeto está documentando todo o processo, com duração de 13 dias, em suas redes sociais.

“O CURA 2020 nasceu de um desejo em emergência de cuidar de nós e do que nos cerca, de nos unirmos e construirmos essa edição de mãos dadas. Um festival gestado por mulheres e que se tornou uma jornada de encontro e novas perspectivas”, afirma Janaína Macruz, uma das idealizadoras do festival, ao jornal O Estado de Minas.

Além das empenas, destacam-se a instalação Bandeiras na Janela e Entidades, escultura em grande escala de Jaider Esbell. Ao todo, são 18 obras de arte em fachadas, sendo 14 na região do hipercentro de Belo Horizonte e quatro na região da Lagoinha. O conjunto forma a maior coleção de arte mural em grande escala já feita por um único festival brasileiro. Também fica a crédito do CURA o primeiro e, até então, único Mirante de Arte Urbana do mundo.

Entidades é uma escultura inflável de duas cobras, cada uma com 18 metros de comprimento e 1,5 metro de diâmetro, nos arcos do Viaduto Santa Tereza, que traz consigo um registro da floresta amazônica, suas lendas e cultura. Entidades é inspirada pelo povo Makuxi, sendo uma representação da figura da “Cobra Grande”, considerada a “grande avó universal”.

O que ela representa não poderia vir em tempo mais oportuno: “A Cobra Grande está sempre trabalhando nos bastidores, sempre, incansavelmente, para nos alertar, nos proteger, nos manter vivos neste mundo enquanto povos originários dessas terras todas. A Cobra Grande representa várias simbologias, desde a fertilidade ao caminho das águas, da fartura, porque ela vive debaixo da terra, nos grandes rios subterrâneos, mantendo o movimento da água sempre pulsando para que sejam mantidas as fontes. Ela também está distribuída no universo através da Via Láctea, também no intermediário, através dos rios voadores”, explica Esbell. À noite, a escultura ganha outra face quando acendida com luzes neon.

“Bandeiras na Janela”. Foto: Divulgação.

A série Bandeiras na Janela, por sua vez, conta com painéis que reproduzem o trabalho de cinco artistas: Celia Xakriaba, #CóleraAlegria, Denilson Baniwa, Randolpho Lamonier e Ventura Profana. Até dia 1º de dezembro, as bandeiras ficam expostas na fachada da antiga Escola de Engenharia da UFMG, na Avenida do Contorno, cujo prédio encontra-se inativo desde 2010, quando foi cedido ao TRT (Tribunal Regional do Trabalho).

Nos cartazes agigantados surgem dizeres que se voltam a discussões contemporâneas e de relevância: na obra de Ventura Profana a palavra de ordem “Sem Senhor”; Randolpho Lamonier continua sua série Profecias prevendo “Em 2050 descobrimos: Brasil é América Latina!”; e Cólera Alegria chama a incorporar a reviravolta.