"Refúgio" (2020), Arissana Pataxó. "Uma obra que remete ao luto, mas também à luta, pois mesmo em meio ao caos das mortes e sofrimento do luto, muitos povos foram atingidos por conflitos e tensões por conta da luta pelo território. No centro, traz uma pessoa como se tivesse de saída, procurando um refúgio", conta. Foto: Cortesia da artista/Divulgação

Ameaças de invasão territorial, desmatamento e exploração de recursos ambientais são apenas alguns dos muitos conflitos listados no Mapeamento de Violações dos Direitos Indígenas no Nordeste do Brasil. A pesquisa é um dos componentes de Um outro céu, projeto que une arte a estudos de ecologia política e antropologia para colocar em foco a luta indígena brasileira. Realizado por uma organização em rede, ele é ligado a professores e estudantes das Universidade Federal da Bahia (UFBA), Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e Universidade de Sussex na Grã-Bretanha.

Um mapa interativo repleto de símbolos que remetem a grafismos indígenas é o nosso primeiro contato com o projeto, ao entrar no ambiente virtual onde está exposto. Elaborados pelo artista e designer Denilson Baniwa, os desenhos designam diferentes tipos de conflito, e nos permitem localizar especificamente as batalhas vividas pelas populações de cada território. Ao lado delas, pequenas imagens nos permitem enxergar outro aspecto dessas mesmas localidades: a arte. É clicando em cada uma dessas fotografias que somos redirecionados às obras que compõem a exposição Um outro céu.

“Onde há conflito, também há arte. Territórios indígenas são territórios de guerra contra a conquista, de resistências anticoloniais, de retomadas, de reocupações, de criação e recriação de mundos, de arte”, apontam os coordenadores na descrição da plataforma online. E assim ocorre. Para a artista e professora Glicéria Tupinambá essa relação estabelecida entre arte e luta por território é um dos grandes diferenciais da iniciativa. “A visão de fora, geralmente é só para o belo, para a arte indígena. Mas assim não entendem quais conflitos influenciam ou acabam com esse belo.” 

Jurema Machado, Felipe Tuxá e Felipe Milanez, professores e coordenadores do projeto, contam que essa foi uma das maiores preocupações durante a elaboração do site. Era importante que os visitantes fossem além da contemplação das obras e entendessem os contextos que envolvem esses artistas, principalmente no momento atual. “Você olha os trabalhos artísticos e tem acesso a uma narrativa de muita dor, uma narrativa da Covid-19 dentro de um contexto extremamente conflituoso que não começou com a pandemia e nem vai acabar com ela. Você vê a exposição e depois fecha o site, segue com a sua vida. Mas aqueles conflitos não cessaram de acontecer”, explica Felipe Tuxá. Por isso, os coordenadores julgavam importante unir as imagens das obras às suas explicações e relacioná-las às tensões e ao momento de pandemia. Para Glicéria, é isso que dá ainda mais força ao projeto, pois é pela arte que ele consegue dar mais visibilidade às causas ali retratadas: “A arte tem uma linguagem mais acessível, então chega a um outro contexto, a um outro grupo, a um outro olhar”. 

Entre academia e ação política

Porém, não foi com a arte que Um outro céu teve início. Ainda muito antes do resultado que vemos hoje, um grupo de professores conseguiu financiar pela Academia Britânica uma pesquisa em rede internacional: o Desenvolvimento “Sustentável” e Atmosferas de Violências, coordenado por Felipe Milanez (UFBA) e Mary Menton (Universidade de Sussex). Nas discussões dentro do projeto, surgiu a ideia do Mapeamento das Violações aos Direitos Indígenas no Nordeste do Brasil, hoje financiado pela Universidade de Sussex, na Grã-Bretanha, e coordenado por Felipe Cruz Tuxá (Uneb), Felipe Milanez (UFBA), Jurema Machado (UFRB) e Mary Menton (Universidade de Sussex). “Quando estávamos no auge do mapeamento fomos atravessados pela Covid-19”, conta Machado. 

A iniciativa então crescia. À princípio, passaram a desenvolver uma nova frente, um plano de pesquisa emergencial para investigar os impactos da Covid-19 entre os povos indígenas. Mas, para os envolvidos, algo ficava ainda mais claro neste momento, os conflitos, unidos ao descaso frente as populações indígenas na pandemia de coronavírus, tinha (e tem) nome: genocídio. O momento intensificava a necessidade de visibilizar as violências sofridas e eles trabalhavam neste sentido. Porém, um ponto não era abarcado pelo projeto: “A gente precisava pensar: no meio de um processo de genocídio, como os povos indígenas vão sair disso e se reconstruir?”, compartilha Felipe Milanez. “Não teria como trabalhar pensando numa alternativa que não fosse em diálogo com as artes. Então passamos a trabalhar com artistas das comunidades indígenas como interlocutores, como pessoas com um pensamento de enfrentamento a esse genocídio, com uma visão de outros mundos, de um outro céu”, conclui. 

Desse diálogo, nasceu a exposição que dá nome ao projeto interdisciplinar. Quinze artistas de diferentes etnias foram convidados a participar e receberam um prêmio de 2 mil reais por suas produções. “Quisemos ter pessoas que são conhecidas e se reconhecem como artistas, bem como artistas que são vistos nas suas comunidades como aquelas pessoas que são muito especiais em fazer coisas se encantarem”. Hoje, a exposição conta com Arissana Pataxó, Eduarda Yacunã Tuxá, Glicéria Tupinambá, Olinda Yawar Tupinambá, Edivan Fulni-ô, Leide Pankararu, Lindaura Xukuru-Kariri, Ziel Karapotó, Benício Pitaguary, Reginaldo Kanindé, Arawi Suruí, Irekran Kayapó, Kryt Gavião Akrãtikatejê, Isael Maxakali e Ailton Krenak; e traz obras diversas, com cantos, desenhos, vídeos, mantos sagrados, poemas, cerâmicas, entre outros, caminhando entre expressões artísticas, políticas e espirituais, cruzando essas esferas e as costurando em uma só expressão.  

Entre arte e guerra

“É muito pungente que não é uma coisa apenas de uma expressividade artística. Acho que tem muito mais do que essa dimensão. Tem essa dimensão da guerra, é essa dimensão da luta, é essa dimensão do cotidiano que se repete na pandemia, dia após dia de quarentena”, diz Felipe Tuxá. E destaca: “Não dá para pensar Covid num mundo indígena sem pensar autodeterminação, soberania dos territórios e extrapolar todos esses limites do formato clássico do que é considerado arte”.   

Como explica o professor, ao pensarmos os conflitos vividos pelas populações indígenas, os territórios tornam-se centrais – são unidade comum tanto das lutas com garimpeiros, dos desmatamentos, como da pandemia. “Uma coisa que é importante marcar é que os conflitos que mapeamos vem principalmente da luta pela terra, da disposição dos povos indígenas de não abandonarem nunca seus territórios. Então se você perceber, as obras também têm muita relação com isso”, explica Jurema Machado. A exposição de certa forma reflete e intensifica essa busca por um outro céu – mais apurado nas realidades indígenas e menos genocida – sobre essas mesmas terras.

“Acho que não existe exposição de arte indígena, feita por um indígena, descontextualizada. A partir do momento que fazemos uma exposição, já estamos lutando contra uma sociedade que acha que não podemos ser artistas”, afirma Benício, participante da mostra e liderança jovem do povo Pitaguary. Para ele, a arte une-se à luta diretamente. “Acho importante mostrar que os indígenas estão presentes e ocupando esses espaços. A arte é mais um meio de estar ocupando, resistindo e fazendo uma luta”, explica. 

Mas outro aspecto de Um outro céu corrobora essa ocupação. Todos os estudantes pesquisadores bolsistas envolvidos nas propostas acadêmicas são de etnias indígenas. “Nos últimos dez anos, percebemos muita entrada de estudantes indígenas nas universidades, mas eu, particularmente, via os estudantes ali, mas não os via nos grupos de pesquisa, com bolsa de iniciação científica, por exemplo”, conta Jurema Machado. Felipe Tuxá faz coro. “De um modo geral a gente passa por um processo de marginalização muito forte na universidade e de uma lógica que tenta definir quais são os lugares previstos para nós lá dentro”, conta o professor universitário, que ingressou na faculdade em 2005, sendo um dos primeiros dentro de políticas afirmativas. Mas explica que a decisão de optar por apenas bolsistas indígenas é mais complexa do que parece. 

“No Giro do Maracá”, de Benício Pitaguary. “O maracá é como se fosse um universo dentro de uma cabaça, e as sementes como se fossem os planetas e as estrelas. Quando giramos o maracá, estamos agitando esse universo e gerando energia. Então, pra gente, o maracá é um artefato de muito poder, porque ele tem essa capacidade de afastar as energias ruins e chamar os espíritos bons. Eu quis representar que nesse momento de pandemia, o que une os povos indígenas são as orações desse giro do maracá”, conta. Foto: Cortesia do artista/Divulgação

“Fazemos isso não só por ser um projeto sobre indígenas, mas por entender o potencial de enunciação de um sujeito indígena falar sobre sua própria realidade. Ninguém está criando nada novo, a gente está apenas adequando essas ferramentas que foram tão excludentes no passado e continuam sendo. Vemos isso como uma potência de criação de um outro tipo de conhecimento”, diz. Felipe Milanez explica que na própria proposta apresentada à Universidade de Sussex, a escolha por bolsistas indígenas não foi uma política afirmativa, mas uma escolha metodológica, uma proposta de agregar uma nova forma de conhecimento e uma outra qualidade de olhar ao projeto. Ao lado de colaboradores não bolsistas (entre indígenas e não indígenas), os estudantes foram responsáveis pelo mapeamento das violações dos direitos das comunidades, conversando com lideranças dos diferentes povos, com contatos que já tinham nas regiões e, por vezes, com antropólogos que trabalham nas áreas. Além disso, fizeram contato com outras aldeias para entender os impactos da Covid sobre as diferentes etnias. Sempre em atividades coletivas, “porque nós, povos indígenas, sempre pensamos e trabalhamos na coletividade. Essa coletividade é o que nos fortalece a sempre seguir”, explica a bolsista Daniela, monitora do Museu Indígena Jenipapo-Kanindé, de seu povo, graduanda do curso de Museologia na UFRB e membro do Coletivo de Estudantes Indígenas na universidade.

“Acho isso um ponto muito importante, no sentido de dar autonomia dos povos indígenas fazerem suas próprias pesquisas e artes da maneira que achamos que deve ser feito, não em uma forma colonial”, aponta Benício Pitaguary. “Por muitas vezes somos só sujeitos de estudo. Hoje, com todo o nosso conhecimento fora e dentro das aldeias, sabemos que podemos ser os próprios agentes da nossa história”, afirma Daniela Jenipapo-Kanindé. E complementa: “Essa experiência me fez entender que nós é que temos que contar a verdadeira história dos nossos povos e não apenas ouvi-las vindo de outros pesquisadores não indígenas. Nós conhecemos as dores, porque muitas vezes passamos por situações parecidas, e isso faz com que tenhamos a liberdade de contar com mais precisão.”

Para Raquel Jenipapo-Kanindé, graduanda em Serviço Social pela UFRB e membro do coletivo identitário na universidade, a participação de indígenas tanto na exposição quanto no levantamento de dados é essencial para fortalecer a luta pelos territórios. “Esse projeto é também enfrentamento, porque a partir do momento que a gente registra e estuda isso, cria nossas próprias estratégias para que possamos ir de encontro com os homens brancos, com as pessoas que querem tomar nossa terra, nossas águas e nossas matas”.

Frame do filme “Equilíbrio”, de Olinda Yawar Tupinambá. “Equilíbrio foca na problemática ambiental e em como a civilização tem usado do planeta de forma hostil e desarmônica. ‘Equilíbrio’ é um alerta do espírito das matas para a humanidade”, conta a jornalista, cineasta, performista e ativista ambiental. Foto: Reprodução

Para um outro céu, um olhar sobre a terra

É nesse intercâmbio entre artistas e pesquisadores; entre academia, política e arte que traçam-se as possibilidades de visibilização das lutas e das expressividades. Mas Um outro céu segue em aberto. Hoje, o mapeamento cobre algumas das violações na área de atuação da Apoinme (territórios do nordeste, Espírito Santo e Minas Gerais), além do sul e sudeste do Pará. A perspectiva é de expandir: “É importante justamente para trazer à tona todas as violações que esses povos vêm sofrendo, porque muitas comunidades muitas vezes são invisibilizadas pelos próprios violadores. Eles tentam calar o nosso povo”, conta Daniela Jenipapo Kanindé. 

Se interessou? Acesse o projeto clicando aqui.

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