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Um vasto arquivo público sobre a curadoria no Brasil

Após cerca de quatro meses de isolamento social observando a movimentação nas redes sociais, o curador carioca Raphael Fonseca, 33, deu início a um projeto de fôlego. Estreou, no mês de julho de 2020, a série intitulada “1 curadorx, 1 hora”, com entrevistas gravadas com curadores e curadoras de variadas idades, regiões e áreas de interesse. Ao invés de transmitir ao vivo, Fonseca preparava as entrevistas, realizava a gravação, fazia pequenas edições se achasse necessário e postava o vídeo em seu canal no Youtube – e o áudio em formato de podcast nas plataformas. Oito meses depois, é assim que ele segue fazendo.

O resultado é o impressionante número de quase 120 conversas realizadas, cerca de 70 delas já disponibilizadas e, deste modo, a formação de um vasto arquivo público sobre curadoria de arte. A grandiosidade do projeto, feito sem apoio público ou privado, não estava em mente no início do processo e o que surgiu de modo despretensioso, em parte até para apaziguar certa solidão gerada pela quarentena, agora chega a fazer parte da bibliografia de cursos universitários. Ainda assim, mesmo com conversas densas, “1 curadorx, 1 hora” não deixa de ter um clima de informalidade e uma linguagem coloquial que tornam o conteúdo acessível também ao público não especializado.

Nos diálogos, que perpassam os processos formativos, trajetórias, memórias, experiências profissionais e ideias sobre curadoria, Fonseca parece cumprir mais um papel de repórter, entrevistador, do que de um curador que está ali para debater. “Mas de certa forma isso já tem a ver com o meu trabalho de curador. Para mim o exercício de curadoria é um exercício de pesquisa e de escuta dos artistas. Claro que você também fala, intervém, mas eu principalmente estou ali para aprender sobre arte e sobre as pessoas”, afirma. É de se destacar também a atenção dada a questões bastante pessoais das trajetórias dos entrevistados: “Me interessa muito que a pessoa conte como começou sua relação com a arte. Temos ali desde filhos de artistas ou críticos de arte até pessoas com uma trajetória como a minha, de famílias extremamente periféricas, sem nenhuma relação com a arte. Então esse dado sociológico é muito importante para o projeto”.

O papel de curador é nítido também quando Fonseca precisa selecionar os convidados – desta vez não artistas para uma exposição ou projeto, mas curadores para as conversas. E os nomes são os mais variados possíveis, passando por jovens como Tiago Sant’Ana, Pollyana Quintella, Bernardo Mosqueira, Isabella Rjeille, Hélio Menezes e Paulete Lindacelva até figuras estabelecidas há décadas como Tadeu Chiarelli, Denise Mattar, Fernando Bini, Fernando Cocchiarale, Marília Panitz, Solange Frakas e Marcus Lontra. Estão ali também Marcello Dantas, Ayrson Heraclito, Júlia Rebouças, Kiki Mazzucchelli, Fernanda Pitta, Clarissa Diniz, Naine Terena e muitos outros.

Apesar da diversidade – ou até mesmo para alcançá-la – Fonseca diz ter estabelecido alguns critérios básicos para a seleção. Em primeiro lugar, trazer pessoas que, mesmo que jovens, tenham uma prática regular de curadoria, uma bagagem na área. “Percebo que muitos curadores que atuam há muito tempo não são tão conhecidos para uma geração mais nova. E tem gente que começa a fazer curadoria e se coloca como se estivesse inventando uma coisa totalmente nova. E quando você escuta os relatos dos mais velhos você vê que muito já estava lá, já foi feito”, comenta Fonseca. Para ele, portanto, era importante aprender com as trajetórias destes profissionais e “lançar luz a curadores que atualmente não estão, digamos assim, tão no holofote como pessoas da minha geração”.

Neste sentido, Fonseca comenta que se tornou mais comum, recentemente, “ver uma pessoa que fez curadoria de uma exposição na vida e se proclama curadora”. E ele segue: “Não vejo problema, mas não sei se renderia para essas conversas do projeto.” Na verdade, Fonseca inclusive constata que parece haver uma mudança importante para esta categoria profissional na contemporaneidade: “Acho bacana que as pessoas queiram ser e se dizer curadores. Até porque usualmente é uma profissão que tem um lastro tão elitista que eu acho muito bom uma geração nova, periférica, ver que ser curador é uma possibilidade. Isso é muito empoderador. Mas se a médio e longo prazo elas efetivamente desempenharão esse papel e conseguirão ganhar a vida assim, aí eu já não sei”.

A dificuldade de ser curador no Brasil, justamente, é um dos assuntos recorrentes em boa parte das entrevistas. Fonseca lamenta a falta de um mercado estável para a área, seja no setor público ou privado, diferente do que se vê nos Estados Unidos e em outros países do primeiro mundo. “Existe uma precarização tremenda do equipamento público, e mesmo internamente há uma enorme assimetria geográfica na economia da cultura, com muitas instituições concentradas no sudeste”. Este contexto, explica ele, resulta em algumas características predominantes na trajetória dos profissionais, entre elas o fato de boa parte dos curadores ter também alguma outra profissão. Resulta também que a maioria trabalha basicamente com arte contemporânea e  brasileira – “quem no Brasil paga para que a gente vá fazer uma viagem de pesquisa curatorial no exterior? E como financiar a vinda de um artista de fora para fazer uma exposição aqui?”.

Por fim, com “1 curadorx, 1 hora”, Fonseca também tenta desmistificar a ideia do curador como uma figura poderosa, por vezes autoritária. “Talvez por existir pelo mundo um tanto de pessoas que exercem a curadoria desta maneira, acaba surgindo essa apreensão. Mas, para mim, o curador é só mais um trabalhador da cultura. Especialmente no Brasil, a figura do curador poderoso é quase uma ficção. O que mais tem são profissionais batalhando para pagar suas contas, tendo que negociar o tempo todo com esferas do poder público ou privado, cheios de planos não realizados e vivendo aos trancos e barrancos”. Se o curador no Brasil é um persistente, as duas centenas de entrevistas que Fonseca pretende concluir com seu projeto parecem ser uma prova disso.

“Acontece que somos canibais!”, diz o pop tropicalista de Glauco Rodrigues

"Pau-Brasil", 1974, Glauco Rodrigues. Foto: Jaime Acioli/Cortesia Bergamin & Gomide

A mostra Acontece que Somos Canibais!, de Glauco Rodrigues (1929-2004), tem clima de escola de samba, cheia de cores e alegorias, nascidas sob a influência da arte pop. As pinturas expostas na galeria Bergamin & Gomide são como um gesto de resgate do artista que ficou esquecido por um tempo. Para Lilia Schwarcz, que assina o texto da mostra, isso ocorreu “talvez porque ele não correspondesse ou não se encaixava de maneira óbvia nos cânones do modernismo da época”. Thiago Gomide, proprietário da galeria junto com Antonia Bergamin, lembra que eles expuseram Glauco há quase dois anos na coletiva A Burrice dos Homens (2019), com curadoria de Fernanda Brenner, do Pivô, e que pretendem trabalhar com ele, sem exclusividade.

“Retrato de Henriette Amado”, 1970, Glauco Rodrigues. Foto: Ding Musa/Cortesia Bergamin & Gomide

O universo de Glauco é povoado de personagens díspares, vindos de várias épocas, convivendo simultaneamente no presente, passado e futuro. Tudo aparentemente desconectado, mas realizado genialmente dentro de uma lógica cognitiva com um mundo ora esfuziante, ora apocalíptico. Isso chama a atenção do crítico francês Nicolas Bourriaud, que dedicou uma sala a Glauco na mostra L’Ange de l’Histoire (Anjo da História), em 2013, na École Nationale de Beaux Arts, em Paris. Na ocasião, a revista Art Press publica matéria e coloca a obra de Glauco na capa. Em 2019, Bourriaud volta a expor Glauco na Bienal de Istambul, quando foi curador geral, e quebra o paradigma de que a arte brasileira tem sempre que passar pelo projeto construtivo, dos concretos e neoconcretos.

A exposição paulistana reúne, em sua maioria, obras dos anos 1960 e 1970 feitas no clima da contracultura, guerra do Vietnã e ditadura brasileira. As pinturas são singulares, progressistas e reafirmam o lastro de um artista múltiplo, aparentemente simples, mas conceitualmente sofisticado, que transitou por vários segmentos da arte. Pintor, artista gráfico, gravador, executou figurinos e cenários para teatro, capas de discos e revistas, colocando saberes a serviço de uma revolução pessoal com imagens incluídas cruamente sobre telas de fundo sempre branco, como fragmentos gravitando no espaço. Só começou a pintar a base de seus quadros no final da ditadura militar.

Todas as obras tratam da história do país carnavalizadas dentro de um universo eclético em que mescla desde a imagem de São Sebastião, padroeiro de Bagé, sua cidade natal, e do Rio de Janeiro até garotas de biquíni, natureza tropical, fotos de amigos, Corcovado, índios, cachos de banana e passistas de escola de samba. O ideário de Glauco é profano, mesmo quando retrata Cristo e alguns santos, tudo embalado com as cores da bandeira brasileira que tingem todos os seus quadros. Com isso, ele confirma suas intenções carregadas de críticas ao momento político social da época, como a tela Acontece, Que Somos Canibais! que nomeia a exposição.

Glauco nasce em 1929, em Bagé, Rio Grande do Sul, onde começa na arte como gravador, depois transfere-se para Porto Alegre e se junta aos gravadores Carlos Scliar e Vasco Prado. Em 1958 chega ao Rio e, um ano depois, integra a primeira equipe da revista Senhor (1959-1964), onde trabalha com Jaguar, Paulo Francis, sem deixar sua arte de lado. Com a premiação no IX Salão Nacional de Arte Moderna, viaja para a Europa e participa da Bienal Jovens de Paris, em 1961. Um convite o leva a viver em Roma de 1962 a 1965 e lá participa da Bienal de Veneza de 1964, quando conhece a pop art americana. Vê Robert Rauschenberg receber o Leão de Ouro e sagrar-se quase herói. Afinal, ele foi o primeiro artista norte-americano a receber o grande prêmio na Bienal mais antiga do mundo (1895). A pop art impacta Glauco. Ele volta ao Brasil e começa sua mitologia brasileira, com estética pop futurista misturada a um tropicalismo crítico.

No Rio integra a mostra Opinião 66, no MAM do Rio, ao lado de Lygia Clark, Hélio Oiticica, Antonio Dias e Carlos Vergara. Cria obras sobre o discutível “milagre brasileiro”, com a tela Nossa Comida Abundando Está! (1977). Denuncia o colonialismo e a exploração dos indígenas em Persona (1974). Faz crítica social por meio da lenda Coati-Purú, integrante da série Visão da Terra: A Lenda de Coati-Purú (1977). Em sua pintura O Derrubador Brasileiro – D’aprés Pedro Américo, Victor Meirelles, Almeida Junior e Pedro Moraes, ele revisita criticamente a obra desses artistas.

A arte de Glauco, teorizada por críticos como Frederico de Morais, Ferreira Gullar e Roberto Pontual ganha novos contornos com Bourriaud. Na entrevista ao cineasta José Teixeira de Brito para o documentário Glauco do Brasil, de 2015 (publicada depois no livro Glauco Rodrigues – Crônicas anacrônicas e sempre atuais do Brasil, de Denise Mattar), ele afirma: “O que fica evidente na obra de Rodrigues é que ele recupera fragmentos da história, restos de imagens que provêm de tempos e lugares heterogêneos. Desse ponto de vista ele é muito contemporâneo. A partir de um pequeno fragmento, reconstituir o edifício destruído é uma característica da arte atual que Glauco Rodrigues antecipou”, conclui Bourriaud.

Colaboradores da edição #54

Alexia Tala é curadora e crítica  de arte especializada em América Latina. Foi responsável por diversas mostras e bienais na região, é autora de uma série de artigos e atualmente é curadora chefe da Bienal de Arte Paiz – Guatemala e diretora artística da Plataforma Atacama, no Chile.


Claudinei Roberto da Silva é artista visual, curador e professor de Educação Artística na USP. Foi coordenador do Núcleo de Educação no Museu Afro, cocurador da 13ª edição da Bienal Naïfs do Brasil e curador de diversas mostras, entre elas PretAtitude.


Miguel Groisman é jornalista formado pela Faculdade Cásper Líbero e graduando em Cinema pela FAAP. Já escreveu sobre cinema e fotografia para a Revista Esquinas e foi pesquisador discente sob orientação de Simonetta Persichetti. Atualmente é repórter da arte!brasileiros.


Pollyana Quintella é curadora, professora e pesquisadora. Formada em História da Arte pela UFRJ, é mestre em Arte e Cultura Contemporânea pela UERJ e doutoranda pela mesma instituição. Colaborou com pesquisa e curadoria para o Museu de Arte do Rio (MAR) e escreve para diversas publicações Foi curadora adjunta da mostra FARSA – Língua, Fratura, Ficção: Brasil-Portugal, no Sesc Pompeia.


Tadeu Chiarelli é curador e crítico de arte. É professor titular no curso de Artes Visuais da USP. Foi diretor da Pinacoteca de São Paulo e do Museu de Arte Contemporânea da USP (MAC-USP). Também já atuou como curador-chefe do


Fotos: arquivo pessoal

Mapeando os papéis da subversão

impressos de propaganda comunista. Foto: Reprodução

Em um curioso paradoxo, os arquivos policiais reunidos pelo Departamento Estadual da Ordem Política e Social de São Paulo (Deops) com o intuito de reprimir e perseguir qualquer pessoa, movimento ou partido que se opusesse à ideologia dominante acabaram tornando-se um rico manancial de informações para um alentado estudo exatamente sobre as críticas que queria silenciar. Foi a partir dos dados reunidos ao longo de décadas pelas forças de espionagem e repressão que a historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro estruturou sua pesquisa Impressos Subversivos: Arte, Cultura e Política no Brasil 1924-1964, que procura mapear o trabalho cuidadoso, dedicado e muitas vezes anônimo de dezenas de artistas, artesãos e militantes, que lançaram mão das artes gráficas para denunciar desmandos e desigualdades, demonstrando uma tenaz resistência e desejo de transformação política e social. “Além de arquivarem os impressos subversivos, também preservaram, por ironia do destino, a memória da intolerância”, sintetiza a autora.

Impressos de propaganda comunista com legenda do Gabinete de Investigações do Deops. Foto: Reprodução

No livro, lançado este ano pela editora Intermeios, a pesquisadora analisa um amplo acervo documental, que veio garimpando ao longo de diversas pesquisas realizadas junto aos arquivos do Fundo Deops, liberado para consulta desde 1995 e revisitado por ela em diferentes ocasiões. Cópias dessas gravuras, panfletos, publicações e outros itens que pertencem ao universo dos impressos estavam guardados em uma gaveta de seu escritório, à espera de uma ocasião para um estudo mais aprofundado, momento trazido pela epidemia e o obrigatório recolhimento doméstico. Também contribuiu para a urgência em revisitar esse vasto acervo a sensação de que vivemos um momento no qual várias das situações denunciadas pelos artistas e artesãos parecem estar se repetindo e agudizando. “É uma provocação que eu faço. Convido o leitor a se indignar com o que estamos vivendo, cobro uma posição, nestes tempos de total anormalidade, contra todas as formas de violência perpetradas por um governo tão insensível”, explica.

Afinal, resistência, crítica e desejo de mudança parecem ser o ponto em comum entre uma produção tão diversificada como os impressos estudados por Tucci Carneiro. Se nos restringirmos a analisar apenas publicações que envolvam imagens – que constituem uma ampla parte, mas não exclusiva, do corpo de estudo, que apresenta também uma produção textual, de mais fácil circulação e disseminação –, a pesquisa da historiadora se subdivide em dois grandes grupos de autores: de um lado, estão aqueles que tiveram formação artística, pertenciam à classe burguesa, transitavam pelos círculos intelectuais ou eram reconhecidos como figuras importantes das artes e da política brasileira.

Também fazem parte desse primeiro grupo de artistas profissionais um leque amplo de exilados políticos, com destaque para os refugiados das perseguições nazistas que assolavam a Europa, sobretudo no período que antecede e durante a Segunda Guerra Mundial e que são tema de grande importância na trajetória da pesquisadora. Em seu livro, Tucci Carneiro faz um amplo levantamento desses artistas, apresenta sintéticas biografias, sempre procurando traçar as relações entre as poéticas em sintonia com as pesquisas de vanguarda no campo da arte e o ideário político que conduz tais ações.

Mas talvez a contribuição singular desse estudo seja o esforço feito em dar um lugar a um segundo grupo, os autores anônimos, provenientes das classes trabalhadoras, muitos deles operários, artesãos, sem formação artística ou, em alguns casos, tendo uma base formal adquirida nos Liceus de Arte e Ofícios do Rio e de São Paulo. São aqueles que Mário de Andrade chamou de “artistas proletários”, de origem humilde, filhos de imigrantes. “Permaneceram à margem dos principais movimentos culturais e artísticos da história da arte moderna, sem dispor de um ateliê e sem frequentar os circuitos dos vanguardistas de protesto”, explica Tucci Carneiro. Apesar da clandestinidade, essencial para aqueles que não dispunham de nenhum tipo de proteção, e da grande dispersão desse material (naturalmente, a imensa maioria dos impressos de protesto produzidos no Brasil foi esquecida ou perdida), a historiadora conseguiu reunir alguns vestígios capazes de identificar alguns autores dessa militância. Há, por exemplo, Moyses Kalinas, romeno, pintor e funcionário da fábrica de papel Klabin, que chegou a ter portaria de expulsão editada, mas que até 1948 permanecia no país. Outros nomes, como Angelo de las Heras, J. B. Pelayo, J. Matheus, Otávio Falcão e Novac foram identificados. Apesar das informações rarefeitas, seu reconhecimento é uma forma de – como diz Tucci Carneiro – “dar um lugar, um espaço de memória para eles”.

Definindo-se como “historiadora das ideias políticas”, Tucci Carneiro procurou sobrepor no livro diferentes camadas de interpretação. Propõe reflexões sobre o caráter altamente repressivo de uma ditadura como a de Getúlio Vargas, que se apropria da estética vanguardista, mas adota uma estratégia sistemática de perseguição contra comunistas, anarquistas, socialistas, estrangeiros e judeus. Mas as articula com um olhar atento às estratégias artísticas e políticas adotadas no período, na tentativa de transformar a arte e a sociedade, lançando mão de referências expressionistas e debruçando-se sobre dramas humanos como tema preferencial. “O discurso do Estado ordenador assumiu, através da propaganda e da repressão policial, um tom acusatório (maniqueísta) ao apontar os grupos de esquerda como inimigos da nação brasileira”, escreve ela, demonstrando como repressão e propaganda anticomunista eram face da mesma moeda. Isso torna-se evidente, por exemplo, com a constatação de que pouca ou nenhuma ação inibidora foi lançada contra os movimentos de extrema-direita.

Em contrapartida, figuras de proa como Lasar Segall – tachado como “artista judeu, produtor de arte degenerada” pelo serviço secreto da Policia Política – ou Tarsila do Amaral eram constantemente vigiados. Há um saboroso trecho no livro que reproduz os comentários de um agente infiltrado no Clube dos Artistas Modernos (CAM) após assistir uma palestra da pintora: “Incontestavelmente, Sra. Tarsila do Amaral é a maior e mais arrojada comunista dentre todas as comunistas nacionais. É a maior porque impressiona e quase converte todos que a ouvem. É também a mais arrojada, porquanto os seus parceiros procuram sempre arrabaldes e lugares ocultos para pregarem o comunismo, ao tempo que ela se serve de salões nobres onde, sem rodeios, ensina teórica e praticamente a doutrina vermelha”.

Infinito Vão: uma abordagem singular sobre a história da arquitetura brasileira

FAU-USP, 1961, Vilanova Artigas e Carlos Cascaldi. Foto: Leonardo Finotti/Acervo Casa da Arquitectura de Portugal

Infinito Vão: 90 anos de Arquitetura Brasileira, no Sesc 24 de Maio, subverte qualquer conceito de exposição do gênero. Cênica, sem ser teatral, tem narrativa centrada na hibridação de várias poéticas, como música, artes plásticas, literatura e vídeo, e deixa o visitante pluralizar esse encontro durante toda sua travessia.

Com curadoria de Guilherme Wisnik e Fernando Serapião, a mostra já foi exposta em 2019 na Casa da Arquitetura de Portugal e reúne projetos de 96 arquitetos. O arranjo temporal abarca desde os anos 1920, marcados pela Semana de Arte Moderna de 1922, até os dias atuais, com projetos de nomes já esperados como Oscar Niemeyer, Vilanova Artigas, Paulo Mendes da Rocha, Lucio Costa e Lina Bo Bardi, que se somam a outros menos conhecidos para juntos contarem uma história de nove décadas.

Visitar a mostra não é um convite, mas uma recomendação de Guilherme Wisnik, “porque ela dialoga com a nossa realidade”. Uma dose emotiva embala Infinito Vão pelo momento de obscurantismo sociopolítico e cultural que vivemos. A exposição prova que a arquitetura pode representar muito mais do que ela mesma. Na abertura da mostra, Paulo Mendes da Rocha diz que “a arquitetura é uma maneira de dizer quem somos nós e quem seremos nós”.

O título, Infinito Vão, vem dos versos de Drão (1982), música de Gilberto Gil: “O verdadeiro amor é vão, estende-se infinito, imenso monolito, nossa arquitetura”. Na linguagem dos arquitetos curadores, “vão é algo que se vence, um desafio a superar, é reduzir a quantidade de apoios, expandir as lajes horizontalmente, lançar-se no vazio aéreo abrindo uma imensa luz ao rés-do-chão. Na língua portuguesa é algo que não deu certo, foi feito em vão”.

Logo na entrada da exposição, sons de vídeos curtos com imagens de diferentes décadas dão o tom. Além da seleção de projetos escolhidos, músicas de Caetano, Gil, Arnaldo Antunes e Racionais MC’s se misturam com obras de artistas plásticos como Claudio Tozzi, Nelson Leirner, Rubens Gerchman, Paulo Bruscky e com os textos breves de Leminski, Rem Koolhaas, Álvaro Siza, Mário Pedrosa… Todos juntos estimulam a percepção e aumentam o prazer da visita.

Nelson Leirner na exposição Infinito Vão, no Sesc 24 de Maio. Foto: Vitor Penteado/Acervo Sesc

A chave de Infinito Vão são as músicas que abrem e contextualizam cada um dos seis núcleos em que a mostra está dividida, além dos projetos arquitetônicos que representam cada um deles. Do Guarani ao Guaraná (1924-1943) parte da marchinha carnavalesca de Lamartine Babo, História do Brasil, com a pergunta que anima gerações: “Quem foi que inventou o Brasil?…”. Neste período, o país, como observa Wisnik, “salta do romantismo indígena e da escravatura para a cultura industrial e urbana”. Foi o momento da Semana de Arte Moderna e do Manifesto Antropófago (1928), de Oswald de Andrade, preocupados com a construção da estética que incluía as raízes do Brasil. Destacam-se na mostra a primeira casa modernista do Brasil, de Gregori Warchavchik em São Paulo, marco inicial da exposição, passando pelo Ministério da Educação e Saúde, no Rio de Janeiro, até chegar ao conjunto da Pampulha, em Belo Horizonte.

A Base é uma Só (1943-1957) nasce da música Samba de uma Nota Só, de João Gilberto, que marca a criação da bossa nova, movimento carioca que colocou a música brasileira num patamar internacional. O período escolhido pelos curadores vai da Pampulha ao concurso para o plano piloto de Brasília e às novas cidades projetadas no Amapá e no Mato Grosso, que abrem o caminho para Brasília.

No núcleo Contra os Chapadões Meu Nariz (1957-1969), os arquitetos se inspiram no verso da Tropicália, música de Caetano Veloso feita em um momento de desbunde da música brasileira influenciada pela contracultura. Rubens Gerchman cria a A Bela Lindoneia (versão porta-retrato), de 1967. Na arquitetura surgem os primeiros esboços de Niemeyer antes do lançamento do concurso nacional para o plano piloto da Brasília. Em texto de 1970, e presente na mostra, Clarice Lispector diz que “Brasília é construída na linha do horizonte. Brasília é artificial. Tão artificial como devia ter sido o mundo quando foi criado”.
A mostra se ilumina no núcleo Eu Vi um Brasil na TV (1969-1985), com a trilha de Bye Bye Brasil, de Chico Buarque e Roberto Menescal. Marca o período da cassação dos arquitetos Artigas e Paulo Mendes da Rocha e de outros intelectuais que são exilados. As favelas se multiplicam em São Paulo e numa outra ponta social Lina Bo Bardi transforma uma fábrica de tambores no atual Sesc Pompeia e Eurico Prado Lopes e Luiz Telles projetam o Centro Cultural São Paulo, ambos espaços lúdicos, de cultura e convivência. Claudio Tozzi, um dos artistas que melhor retratou o período da repressão, pinta uma de suas obras emblemáticas, Multidão (1968).

Maquete da Praça das Artes, projeto do escritório Brasil Arquitetura construído no centro de São Paulo. Foto: Karin Yuri

O núcleo Inteiro e Não pela Metade (1985-2001) parte da música Comida, dos Titãs. “A gente não quer só comida…”, quando o rock brasileiro lança bandas por todo o país. Na arquitetura, em contraponto aos conjuntos habitacionais construídos pela ditadura, aparecem o programa Favela Bairro no Rio e, em São Paulo, as organizações cooperativas. Nas artes, dois artistas multimidias cujas obras pertencem ao Acervo Sesc de Arte Brasileira se destacam: Nelson Leirner, com Obra Sem Título da Série Sotheby’s (1999), e Paulo Bruscky, com Poema Linguístico (1992).

Fecha a exposição Sentimento na Sola do Pé (2001-2018), nome tirado do verso de um rap dos Racionais MC’s, que fala do cotidiano violento das grandes cidades. É quando surgem também os CEUs – Centros Educacionais Unificados, criados pela prefeitura de São Paulo, no governo de Marta Suplicy. Um vídeo traz cenas do cotidiano desigual que invade as cidades brasileiras e nos faz voltar ao sábio comentário de Paulo Mendes da Rocha ao abrir essa exposição: “A arquitetura é uma maneira de dizer quem somos nós e quem seremos nós”.

Parque Novo Santo Amaro, 2009, Vigliecca e Associados. Foto: Leonardo Finotti/Acervo Casa da Arquitectura de Portugal

Benjamin Seroussi: primeiro os gestos, depois as palavras

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Alimentos e sabão distribuídos na Casa do Povo. Foto: Robson Gonzaga/ Divulgação

Como a Casa do Povo tem sobrevivido em meio à crise? “A gente já é especialista em crise”, responde, em tom de brincadeira, Benjamin Seroussi, diretor da instituição paulistana. De fato, quando o centro cultural retomou suas atividades, a partir de 2012 e 2013, o Brasil estava iniciando um longo processo de crise econômica e política – do qual nunca saiu. Mais do que isso, antes da retomada, o espaço fundado em 1946 por judeus progressistas no bairro do Bom Retiro amargurava cerca de 30 anos de crise profunda, que implicou no encerramento de quase todas as suas atividades e abandono de boa parte de seu espaço – um edifício modernista projetado por Ernest Mange.

Nestes menos de 10 anos de retomada, iniciada com a reaproximação de ex-alunos do colégio que ali funcionou até 1981, com a chegada de Seroussi – curador e gestor vindo de experiências no Centro da Cultura Judaica e na Bienal de São Paulo – e, gradativamente, de outros coletivos e agentes culturais e sociais, a Casa se estabeleceu como um destacado e singular espaço cultural do país. Singular por sua atuação experimental e coletiva, pautada em uma noção de cultura que extrapola as práticas artísticas – incluindo ativismo, alimentação, moradia, saúde mental e esporte -, o que resultou, agora, em uma movimentação também peculiar frente à maior de todas as crises, a da pandemia de Covid-19.

“E esse movimento dos centros culturais de fechar as portas e ir para o online me pareceu uma espécie de abandono total do que fazemos. Era como se a gente pudesse se fechar no nosso privilégio, achar que bastava ir para as redes se comunicar apenas com as pessoas que podem acessar esses conteúdos e que tanto faz se o mundo acabou entre um ‘bunker’ e outro”, afirma Seroussi. Após decretada a quarentena e a necessidade de isolamento social, em março do ano passado, a Casa do Povo fechou as portas para o público, mas, em diálogo com a população e com os coletivos que usam o espaço, traçou novas linhas de atuação, entre elas a produção e distribuição de sabão e de máscaras e a arrecadação e doação de cestas de alimentos e refeições.

Também não ficaram parados, apesar do redirecionamento de verbas na instituição, projetos como a restauração do TAIB (Teatro de Arte Israelita Brasileiro, conhecido por ter sido um importante centro de contestação à ditadura militar), localizado no subsolo da Casa, e a reativação da biblioteca, reaberta em 2019 após 40 anos fechada e que reúne 8 mil livros (metade deles em ídiche) e um acervo documental. 

Em entrevista à arte!brasileiros, Seroussi comenta estes assuntos e fala também sobre as dificuldades de arrecadação financeira no contexto da pandemia e de um Brasil com um governo federal avesso à cultura. “Então acho que já vivíamos uma espécie de censura embutida no entendimento neoliberal do que é cultura, que era uma censura econômica. Agora a gente vê uma espécie de fantasma do passado, que é uma possível censura política”, afirma. “Mas precisamos lutar contra isso, com as ferramentas que temos, porque cultura é um direito básico. Não tem arrego”, conclui. Leia abaixo a íntegra da conversa.  

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Benjamin Seroussi, diretor da equipe da Casa do Povo. Foto: André Penteado

ARTE!✱ – Acabamos de completar um ano da pandemia de Covid-19 e a Casa do Povo foi uma das instituições culturais que teve uma atuação quase de “linha de frente” na luta contra os impactos trágicos dessa pandemia. Não se restringiu a fazer uma programação online, por exemplo, mas passou a distribuir alimentos, produzir sabão, máscaras etc. Queria que você contasse um pouco como foi esse processo.

Benjamin Seroussi – Acho que “linha de frente” é um vocabulário até meio complexo, porque temos tentado questionar também essa ideia de uma guerra. Acho que às vezes é usado um vocabulário muito bélico. É uma guerra contra quem, né? Contra um vírus? É como aquela campanha que afirma que “um mosquito não é mais forte que um país inteiro”. Só que não é bem assim… Porque teve o mosquito, teve o vírus, mas o problema somos nós.

ARTE!✱ – Porque na guerra se coloca a culpa em um inimigo externo…

Exato. E eu acho que precisamos menos da ideia de “vamos para a guerra” e mais da ideia de “vamos tecer solidariedades”. Então temos essa atuação que surgiu também de uma maneira quase óbvia. Porque estamos ali em um bairro que foi um dos mais atingidos de São Paulo, por ser denso, ter muitos cortiços, ocupações, uma favela. Uma matéria do G1 até mostrou que, proporcionalmente, o Bom Retiro foi mais atingido do que a Brasilândia, por exemplo. Então tínhamos uma realidade à nossa frente. E esse movimento dos centros culturais de fechar as portas e ir para o online me pareceu uma espécie de abandono total do que nós fazemos. Era como se a gente pudesse se fechar no nosso privilégio, achar que bastava ir para as redes se comunicar com o público e que estaria tudo bem. Como se bastasse se comunicar apenas com essas pessoas que podem acessar esses conteúdos e que tanto faz se o mundo acabou entre um bunker e outro. E eu acho essa visão questionável, tanto de um ponto de vista ético, quanto porque a nossa atuação já entende a cultura como algo que vai muito além da apresentação de práticas artísticas. Pensamos a cultura e arte como ferramentas de transformação social. A cultura tem a ver com cuidado, com cuidar do outro, com ensaiar outros mundos possíveis. Esse discurso que virou até chavão, que todos os espaços culturais falam, de repente foi colocado em cheque. E nós não quisemos ficar nessa sinuca, mesmo correndo o risco de não fazer o que era esperado de nós, ou de se perder em algo que não sabíamos fazer.

Fizemos também um exercício de olhar para a nossa história, para não fazer alguma coisa totalmente desconectada dela. Mas, como sempre, é menos a história nos autorizando e mais o passado visto como alavanca, com um olhar a partir do presente, um olhar não de historiadores, mas de curadores, gestores… E nesse caso, quando vimos fotos daquelas pessoas que fundaram a Casa do Povo em 1946, e que poucos anos antes estavam juntando mantimentos, costurando e mandando roupas para o front – aí sim para a Segunda Guerra – entendemos de fato que o que nós fazemos não é algo estranho à nossa história. Enfim, então agora na pandemia começamos a fazer essas coisas que não sabíamos fazer tão bem, mas usando as ferramentas que são nossas. Ou seja, vendo o que podíamos nós mesmos fazer e o que podíamos acolher (a Casa sempre funciona assim). Achamos importante trabalhar com as costureiras da região, começamos a levantar recursos para o bairro e ao mesmo tempo, inspirados no projeto lanchonete <> lanchonete, do Rio, passamos a fazer essas cestas abertas, onde as pessoas escolhem os alimentos que querem, ao invés de receber uma caixa fechada. E começamos também a escutar as pessoas do território, ouvir sugestões, e até oferecer o espaço da Casa para a prefeitura usar.

ARTE!✱ – E isso funcionou?

A Prefeitura respondeu mandando um formulário, nós preenchemos e não tivemos mais resposta. Mas tudo bem, sabemos que eles estavam no meio da loucura. E nos diálogos com os grupos que habitam a Casa surgiram coisas. A Adriana Sumi, do Coletivo de diálogo e diversidade de táticas, falou que poderia ensinar a fazer sabão; uma ONG do bairro precisava de espaço para deixar as cestas que recebia; uma agente social da região precisava de um espaço para guardar cobertores para doar para pessoas em situação de rua. Nós também abrimos uma chamada para voluntários e do dia para a noite conseguimos 120 pessoas cadastradas. E, como sempre, as coisas que fazemos e as que acolhemos foram se juntando, ficando mais borradas, assim como a separação entre quem ajuda e quem é ajudado. E isso é muito interessante, às vezes a pessoa que vai pegar a comida depois também fica do outro lado do balcão distribuindo comida; quem vai pegar sabão depois ajuda a encontrar costureiros na região e assim por diante. Então, respondendo sua pergunta em uma frase: foi uma reação muito orgânica, que partiu de uma necessidade ética, que foi se articulando com a nossa própria história e se desenvolvendo a partir das ferramentas que a gente costuma usar, escutando o território e propondo ações.                     

ARTE!✱ – Isso me lembra uma frase sua da entrevista que fizemos há dois anos: “A cultura não se limita às artes. Moradia é cultura, culinária é cultura, esporte é cultura. Então aqui tem criação, ativismo, gente em situação de vulnerabilidade social, mas a gente nunca deixa de entender isso também como um lugar de arte”. Isso ganhou ainda mais sentido na pandemia?

Porque de repente a gente se torna mais útil. A Casa do Povo é um lugar que se coloca em risco. Marília Loureiro [curadora da Casa] sempre fala isso, que as palavras vem depois dos gestos. Então a gente vai fazendo, a partir de premissas claras, mas sem saber aonde vamos. Existe um provérbio rabínico nesse sentido, mas a versão secular é da Clarice Lispector, que disse: “Perder-se também é caminho”. O que eu quero dizer é que a gente não se pergunta: “Será que isso é arte?”. Vamos encontrando o que a gente quer no caminho. E surgem coisas muito fortes. Por exemplo, a produção de sabão com óleo doado de restaurantes do bairro. E tem um restaurante que entrega suas comidas e envia junto um sabão, dizendo que aquele sabão foi feito com o óleo que fritou aquela comida. Isso fecha um circuito, e acho que essas coisas não deixam de ser, ao seu modo, intervenções artísticas.

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A produção de sabão na Casa do Povo. Foto: Robson Gonzaga/ Divulgação

Claro que tem algo muito delicado ali – de pensar quem é o artista e de entender que o monopólio da criação artística não está sempre na mão do artista. É um pouco tabu, porque o nosso trabalho é defender os artistas. Mas acho até que com a próxima Documenta, com o ruangrupa [coletivo selecionado para a curadoria do evento], de repente podemos começar a olhar mais para isso. Pensar, por exemplo, o que significa uma autoria compartilhada. E neste sentido, muitos artistas também têm se aproximado da Casa, porque acho que eles veem um contexto pulsante, vivo, e querem se aproximar. Então é interessante porque cria um contexto para as artes, que não é só de circulação de obras, mas de uma vivência inspiradora.       

ARTE!✱ – Tem alguns projetos específicos, que vêm de antes da pandemia, que eu gostaria de te perguntar em que ponto estão, se tiveram sequência neste momento crítico…

De forma geral a gente teve que pausar algumas coisas, porque fizemos um contingenciamento de verbas. Mas felizmente, de modo geral conseguimos captar relativamente bem, e acho que isso se deu porque a gente continuou trabalhando. Digo isso sem flertar com nenhum discurso negacionista – acho que tem pessoas que não têm que trabalhar e devem ser apoiadas por isso. Mas nós conseguimos inventar condições de continuar atuando e isso permitiu que a gente pudesse ir atrás de verbas sem ficar numa saia justa. Tivemos a campanha de arrecadação para o teatro, tivemos a captação via Lei de Incentivo à Cultura, teve o crowdfunding de captação para ajudar o bairro e depois um de arrecadação buscando apoiadores recorrentes. Então paramos algumas coisas, mas novas alianças surgiram, com moradores, instituições do bairro e com doadores. Foi interessante no sentido de colocar em prática esse discurso de que a captação de recursos não tem a ver só com dinheiro, mas com tecer alianças, criar dependências táticas. E dos projetos que foram contingenciados, alguns estão sendo retomados agora, porque antes não tinha condições físicas de fazer, outros vamos esperar mais um pouco, e outros não pararam mesmo.       

ARTE!✱ – Poderia começar então falando da reativação da Biblioteca da Casa, que foi reaberta em 2019 após ficar fechada mais de 30 anos…

Para a biblioteca a gente ganhou um edital, o Proac, para modernização de acervo, e contratamos um novo coordenador de acervo, o Jean Camoleze – que já trabalhou nos arquivos do MST e da Uneafro -, e que olha para os acervos da Casa não como o acervo de uma instituição, mas de um movimento social, propondo outras metodologias. Trabalhamos também com a artista Mariana Lanari e com o designer Remco van Bladel. E com esse time estamos repensando a catalogação, organização etc. Tem um projeto muito interessante de trazer a biblioteca para a internet das coisas, ou seja, a gente vai colocar chips em cada livro e criar um sistema de rastreamento, por meio de RFID (identificação por radiofrequência), para que a gente consiga registrar a maneira como as pessoas usam a biblioteca. E aí quando você pegar o livro você não terá apenas a ficha técnica, mas saberá como ele foi usado, perto de que outros livros foi colocado. E isso gera nuvens de conhecimento, que partem do usuário, e que quem pesquisa poderá ter acesso. Para isso teremos o público, grupos de estudo, um grupo de ídiche, pessoas ligadas aos movimentos negro e indígena e assim por diante – para, digamos assim, cutucar este acervo e dar a ele uma maior agência. A ideia é que a biblioteca e os acervos possam falar por si mesmos e que as pessoas possam ler não apenas os livros, mas também a biblioteca.

ARTE!✱ – E existe o projeto de restauração e reativação do TAIB, originalmente desenhado pelo Jorge Wilheim e agora com projeto do André Vainer, Ilan Szklo e Silvio Oksman. Como está esse trabalho?

O TAIB completou 60 anos no ano passado, não podia parar, mas tivemos que focar a captação de verbas para outras áreas mais urgentes. De qualquer modo, essa captação para o restauro deve retomar este ano. Mas nós já temos os projetos básicos prontos, estamos chegando nos projetos executivos. É uma intervenção que respeita muito o que o prédio é historicamente. E para além disso, fomos construindo camadas de sentido. Primeiro, a campanha de arrecadação contou com a participação da Fernanda Montenegro, falando da relação dela com a Casa, com o TAIB, com a comunidade judaica. Agora, nesse momento em que as pessoas ainda não podem visitar o teatro, nós decidimos lançar um chatbot, que é um robô que te recebe online e responde às suas perguntas, conta histórias da Casa. Esse robô tem personalidade, ele é um velho contrarregra mal-humorado do teatro judaico. Então a gente quer aproveitar as possibilidades virtuais para criar experiências outras que não só viewing rooms e lives. Tentar não apenas reproduzir uma experiência analógica no espaço digital, mas fazer algo diferente. Isso é uma coisa que a Ana Druwe, da nossa comunicação, tem falado muito. E também nesse sentido vamos ter uma peça, dirigida pela Martha Kiss Perrone – uma remontagem de Um Sonho de Goldfadn, enredo de Jakub Rotbaum dos anos 1940 – que está sendo filmada lá no teatro. E é uma loucura, montar uma peça em ídiche em plena pandemia! Isso vai virar uma espécie de instalação audiovisual projetada no segundo andar [com data a definir], uma experiência imersiva. É uma coisa mesmo para chacoalhar os fantasmas, porque estamos lá com a mão na massa, falando dessas várias gerações que por ali passaram.

ARTE!✱ – Você falou já do assunto, mas acho importante aprofundar um pouco na questão financeira e administrativa da Casa, considerando que se já era difícil captar recursos anteriormente, o quadro parece ainda mais complexo agora…

De modo geral, 2021 está parecendo com aquelas séries em que a segunda temporada é feita com menos dinheiro, sabe? Então estamos preocupados. Para 2020 nós tínhamos mais recursos captados, e agora em 2021 a crise está batendo de maneira ainda mais radical. Claro, temos a vacina, mas quando é que vamos ser vacinados? Então vai ser um ano difícil. E inclusive pensando nos mecanismos de incentivo à Cultura. O Proac ICMS foi cortado do dia para a noite em São Paulo, por um governo que inclusive tem um diálogo com a classe artística. Não era o governo federal, que não tem diálogo nenhum. Então nesse momento o meu jeito de ser otimista é se preparar para o pior.

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Livros e publicações distribuídos na Casa durante a pandemia. Foto: Camila Svenson

Ao mesmo tempo, ano passado tivemos picos de filantropia, de doações, e acho que isso pode se manter este ano. Se continuarmos sendo úteis, talvez a gente consiga levantar recursos. E também estão surgindo coisas. Tem um projeto que chama South South, e nós fomos uma das três instituições sem fins lucrativos do mundo escolhidas – ao lado do Raw material (Dakar, Senegal) e do Green Papaya Project (Manilla, Filipinas) – para receber uma porcentagem das vendas de obras de um leilão de arte. E é muito legal, porque a gente sempre fala para as pessoas do mundo da arte que nós somos um espaço de arte, mas costumam nos ver como uma coisa mais periférica. E de repente as pessoas estão reparando que de fato também fazemos parte desse universo. Na verdade, precisaremos cada vez mais também depender de associações internacionais. A gente recebeu recentemente apoio do British Council, do Relief Fund (do Ministerio das Relações Exteriores da Alemanha) e da Foundation for Art Iniciatives (Ffai).

Mas enfim, nós contingenciamos recursos e temos garantida a programação para este ano, com verba captada via Lei de Incentivo à Cultura, parcerias, associados e o programa de amigos. Então a minha preocupação maior é realmente 2022. Porque e se a gente não captar no fim desse ano, como vamos fazer? Vamos ter editais? Ao mesmo tempo, a Casa do Povo voltou a funcionar com tudo quando estava começando a crise econômica, por volta de 2012 e 2013. Então a gente é especialista em crise.

ARTE!✱ – Sem falar na crise da qual a Casa vinha há 30 anos né, quase fechada…

Sim… E no meio disso tudo, agora estamos fazendo algumas apostas ousadas. Contratamos novas pessoas, aumentamos algumas remunerações para consolidar a equipe. Então estamos apostando, mesmo em meio à crise, nessa consolidação. Porque a gente acha que é isso que vai salvar a instituição. A Casa do Povo funciona com pouco, o orçamento esse ano está estimando em R$ 1,9 milhão. Parece muito, mas não é. Então a gente tem espaço para crescer ainda, não tem gordura, e somos flexíveis o suficiente para nos adaptar.

ARTE!✱ – Por fim, eu queria fazer mais uma pergunta relacionada ao contexto político. Nós temos, já antes da pandemia, um governo federal que tem promovido fortes ataques ao setor cultural, tanto com corte de recursos quanto com atitudes que beiram mesmo a censura. Como é trabalhar, sendo um centro cultural, neste contexto?

Sim, isso é muito preocupante. O que aconteceu agora com o instituto Vladimir Herzog [que teve seu plano anual vetado para captação via Lei de Incentivo] é no mínimo curioso. Ao mesmo tempo que quando a gente estava com uma democracia funcionando melhor também não dá para dizer que a área cultural havia deixado de ser precária – mesmo com os pontos de cultura e outras políticas incríveis. Porque existe sempre esse mote de “consiga seus recursos, vá atrás de financiamento privado”. E a gente nunca pede para um físico ser popular, por que é que temos que pedir para um museu ser popular? Sendo que o museu também cria conhecimento, memória, não é apenas um espaço de espetáculo. Então acho que já vivíamos uma espécie de censura embutida no entendimento neoliberal do que é cultura, que era uma censura econômica. Agora a gente vê uma espécie de fantasma do passado, que é uma possível censura política. Mas, como tudo no Brasil, isso se dá numa espécie de legalidade, por meio de comissões que atrasam, recusam etc. Então fica difícil definir exatamente a censura, mas, que existe um clima geral de desconfiança, isso é nítido; que tem uma insegurança econômica e jurídica, tem.

Ainda assim, voltando à questão mais econômica, acho que a gente também já é “safo”. Diferentemente do que vejo na França, onde um centro cultural depende quase totalmente de um convênio com o Estado, nós aqui somos muito mais acostumados a sobreviver no ambiente adverso. E a criar estruturas, por mais frágeis e precárias que sejam. Então é claro que a gente deseja e precisa de melhorias e programas sólidos, mas quero dizer que a situação não é totalmente binária. Enfim, o contexto é nebuloso e nós estamos preocupados, mas não desesperados. Já costumam ser tão poucos apoios públicos que quando a gente cai não é de muito alto. Mas precisamos lutar contra isso, com as ferramentas que temos, porque cultura é um direito básico. Não tem arrego.

Editorial: Na debacle…

Foto vertical, preto e branco. Patrícia Rousseaux, Diretora Editorial da artebrasileiros, aparece em primeiro plano. Usa uma máscara branca com a silhueta de folhas e galhos como estampa. Os olhos passam uma expressão de calma. Tem os cabelos ondulados na altura dos ombros e a cabeça levemente inclinada para a esquerda. Mergulhados em um país à deriva, envolto na mentira e no cinismo, com mais de 2 mil mortes diárias e sem políticas decentes de proteção à população, descobrimos que o que nos permite estar em pé é possuir uma ética capaz de almejar um mundo melhor.

Todas as matérias desta edição mostram a pincelada singular que artistas e gestores jovens, fotógrafos, críticos e acadêmicos imprimem ao seu trabalho tentando superar o sofrimento e, através de iniciativas sensíveis, compreender o humano.

Há também uma leitura do passado, como no redescobrimento da obra de Glauco Rodrigues, onde suas imagens “transcendem as especificidades de sua época, forma ou conteúdo para abordar o presente de maneira inquietante”. Esta frase, dita pelo crítico Peter Eleey a respeito da exposição September 11, realizada no MOMA PS 1 (Nova York), é lembrada pelo filósofo Hal Foster em seu último livro, O que vem depois da Farsa. O crítico se referia a como imagens da fotógrafa Diane Arbus, de 1956, ali expostas, eram ressignificadas para o espectador quase 50 anos depois, após os acontecimentos da derrubada das Torres Gêmeas.

Aliás, o livro de Foster, comentado nesta edição por Fabio Cypriano, crítico de arte e jornalista, traça um panorama sobre os aspectos sombrios e as reações de artistas e instituições culturais a “um mundo que nos fugiu de controle”, onde “nada está garantido”. Ainda assim ele formula uma reflexão fundamental que nos convoca a ir em frente: “É aqui que meu outro termo ‘debacle’ entra em cena [o autor faz referência ao termo chave do livro, ‘farsa’]. Também deriva do francês ‘queda, colapso, desastre’ mas sua raiz é débâcler, ‘libertar’. Debacle poderia inclusive indicar uma dialética entre romper e fazer diferente em relação a convenções, instituições e leis. Tal é a oportunidade no período presente de convulsão política: transformar a emergência disruptiva em mudança estrutural, ou pelo menos, pressionar as brechas na ordem social em que é possível resistir ao poder e reelabora-lo.”

Como resposta a esta ambígua disrupção, resolvemos investir numa divisão de arte✱formação. Um Programa de Extensão Cultural de ensino a distância onde, com especialistas e professores renomados, possamos, além de informar, sistematizar conceitos fundantes da arte em conversa permanente com outras disciplinas como a psicanálise, a filosofia, a história e a ciência. O lançamento acontece em abril com o primeiro curso, ministrado pelo curador e pesquisador Moacir dos Anjos e pelo filósofo e professor Ernani Chaves. Serão 36 horas em 16 encontros ao longo dos meses de abril, maio e junho (saiba mais sobre o curso).

No atual contexto, é possível ver uma única vantagem em tanto tempo de isolamento. Tivemos acesso à tecnologia de forma a torná-la menos uma vilã e mais uma ferramenta de apoio na solidão, para podermos manter contato com os amigos, as equipes de trabalho, poder ver mostras virtualmente e ouvir palestras e debates e acesso a uma educação permanente.

Se há um espaço onde a mentira não se sustenta e podemos exercer nossa influência, é na arte e na cultura.

Um centenário passando em brancas nuvens

Enseada de Botafogo, 1928, de Ismael Nery, nanquim e aquarela sobre papel. Acervo do Museu de Arte Murilo Mendes.
Enseada de Botafogo, 1928, de Ismael Nery, nanquim e aquarela sobre papel. Acervo do Museu de Arte Murilo Mendes.

Enquanto estudiosos e pesquisadores se preparam para a série de eventos que, a partir deste ano, dá início às comemorações do centenário da Semana de Arte Moderna, ocorrida em São Paulo em fevereiro de 1922, vão passando em brancas nuvens as comemorações de um outro centenário, de um outro evento (se assim podemos chamá-lo) também fundamental para a arte e a cultura no país, ocorrido no Rio de Janeiro em 1921: o encontro e o início da relação entre o artista Ismael Nery e o poeta Murilo Mendes.

Enseada de Botafogo, 1928, de Ismael Nery, nanquim e aquarela sobre papel. Acervo do Museu de Arte Murilo Mendes.
Enseada de Botafogo, 1928, de Ismael Nery, nanquim e aquarela sobre papel. Acervo do Museu de Arte Murilo Mendes.

Essa tão profunda amizade que uniu ambos até 1934, ano do falecimento de Ismael, interessa a todos no Brasil e sob diversos aspectos. Dentre eles, caberia salientar a forte carga libidinal que envolveu os dois amigos e que fez com que, por exemplo, Murilo Mendes se tornasse o primeiro grande colecionador de obras do amigo, aquele que – como bem lembrou Adalgisa Nery, esposa do pintor – resgatava do lixo a produção que Ismael jogava fora, recuperava sua integridade física e a catalogava.

Por outro lado, sabe-se que essa coleção, ainda com o pintor vivo, tornou-se aos poucos uma das únicas e mais importantes coleções de arte moderna da antiga Capital Federal, acervo que permitiu a vários intelectuais – entre eles o então jovem Mário de Andrade – entrarem em contato com a obra de Ismael.

Além da importância de estudos mais específicos sobre essa coleção de obras de Ismael formada por Murilo (que bem exemplifica o desejo do jovem poeta manter para si pelo menos parte do amigo), cabe ressaltar as transformações pelas quais ele passaria após a morte de Ismael, transformações essas que se iniciaram ainda durante seu velório, quando Murilo foi levado a um verdadeiro êxtase místico, tendo sido possuído por Jesus Cristo através do espírito de Ismael Nery – episódio narrado por Pedro Nava em seu livro de memórias, O círio perfeito [1].

Essa experiência, que levaria o então jovem anarquista Murilo Mendes para o catolicismo de Ismael, também teria outra consequência: a partir de meados dos anos 1930 (após a morte do amigo), Murilo se apaixona ou deixa aflorar plenamente sua paixão por Adalgisa, que o rejeita várias vezes. 

Esses poucos dados me parecem de interesse suficiente para um estudo biográfico de Mendes, a partir de um ponto de vista psicanalítico. Afinal, se de início ele quer reter o amigo pela preservação das obras que este jogava fora, com sua morte o poeta (após o processo de possessão no velório) parece ter se transformado no próprio amigo, assumindo sua religião, suas preferências estéticas (como será mencionado ainda aqui) e a viúva. 

Mas, apesar de todo interesse dessa história, a meu ver, nela não reside a única importância dessa amizade que este ano completa cem anos de seu início. Embora até hoje tenha sido pouco estudado, sabe-se que Ismael Nery promovia várias reuniões em sua casa, onde desenvolvia seus talentos retóricos, dissertando sobre filosofia, religião, estética etc., tendo como ouvintes um grupo formado por amigos que, mais tarde, se transformariam em referências para a arte e para a cultura do país: o próprio Murilo Mendes, mas igualmente Jorge Burlamaqui, Mário Pedrosa, Antonio Bento, Alberto da Veiga Guignard e Jorge de Lima, entre outros.

“Gloria do artista”, 1933. Alberto da Veiga Guignard.

Foi durante essas reuniões que Ismael Nery teve a oportunidade de explicitar seus postulados filosóficos que, na sequência, eram registrados por seus “discípulos” Mendes e Burlamaqui. É dentro desses postulados que se percebe uma original e, ao mesmo tempo, bizarra conexão entre a estética surrealista e o catolicismo, proposição que já teve seus primeiros aprofundamentos no livro de Thiago Gil Virava, Uma brecha para o surrealismo [2].

Ao unir à sua prática pictórica, marcada pelo surrealismo, as especulações essencialistas/católicas, Nery desenvolverá uma poética em que o conceito de beleza surrealista – “o encontro fortuito de um guarda-chuva e uma máquina de costura numa mesa de operação”, de Lautréamont – ganharia uma dimensão mística, fato que o singulariza dentro do quadro geral da arte brasileira.

 

Um dado de interesse é que a articulação entre certos postulados surrealistas atrelados ao essencialismo “católico” também será perceptível na produção poética de Murilo Mendes. A essa poesia, marcada pelos ensinamentos do artista amigo, no entanto, Mendes irá atrelar um peculiar prosaísmo que, igualmente, irá singularizar sua produção poética no universo da lírica brasileira.

Fotomontagem do livro "A pintura em pânico", de Jorge de Lima.
Fotomontagem do livro “A pintura em pânico”, de Jorge de Lima.

Essa conexão entre as práticas de Nery e Mendes com os pressupostos do surrealismo “católico” ganhará desdobramentos após o falecimento do pintor. Se sua “presença” é visível na produção pictórica do então jovem Guignard (e estará ainda presente em suas foto-colagens nos anos 1940 e 1950) [3] , impossível não perceber como também está presente no trabalho que o poeta e pintor Jorge de Lima irá produzir ainda em meados dos anos 1930. Refiro-me a uma série de fotomontagens que Lima realizará, calcado no exemplo fortíssimo de Max Ernst, e tendo Murilo Mendes como parceiro.

Infelizmente parecem não ter sobrevivido exemplares dessas fotomontagens feitas em parceria pelo poeta e pelo poeta/pintor, o que não invalida, no entanto, a ação conjunta de ambos, no sentido de fazer expandir a produção de obras surrealistas no país. Sabe-se apenas que Jorge de Lima seguirá produzindo novas fotomontagens solitariamente e que, em 1943, publicará o livro de fotomontagens A pintura em pânico, com prefácio do próprio Mendes.

***

Passados cem anos do início da profícua amizade entre Nery e Mendes, nota-se que ainda há muito a se estudar e a se escrever não apenas sobre a particular relação que os unia, mas, sobretudo, pelo viés – ou brecha! – que ambos abriram para o desenvolvimento particular do surrealismo no Brasil, com ressonâncias claras nas produções de Guignard e Jorge de Lima.

Apenas esse fato já seria motivo para comemorar tão importante encontro ocorrido em 1921 e que agora completa cem anos.


 

[1] NAVA, Pedro. O Círio perfeito. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1983.
[2] VIRAVA, Thiago Gil de Oliveira. Uma brecha para o surrealismo. São Paulo: Alameda, 2014.
[3] Sobre Guignard e a fotomontagem, ler – CHIARELLI, Tadeu (cur.). Apropriações/Coleções. Porto Alegre: Santander Cultural, 2002

Os robôs serão os artistas do futuro?

IA e arte Ai-Da Robot
Ai-Da at Abu Dhabi Art. Image: Creative Commons.

Em 25 de outubro de 2018, a consagrada casa de leilões Christie’s colocou à venda uma obra realizada a partir de um programa de Inteligência Artificial (IA). Portrait of Edmond Belamy acabou sendo leiloada por U$ 432.500 (aproximadamente R$ 2,5 milhões) – cerca de 45 vezes o seu valor estimado. No lugar do nome do artista, no entanto, o retrato borrado foi assinado com a equação utilizada para gerá-lo. Tal fato não deixou de ser aproveitado pela Christie’s para aumentar o murmúrio acerca do seu próprio leilão; em um texto divulgado pela casa foi noticiado: “Este retrato não é produto de uma mente humana”. Contudo, a fórmula utilizada pela IA para gerar Portrait of Edmond Belamy foi criada pelas mentes humanas que integram o coletivo de artes parisiense Obvious. Independentemente disto, a obra foi a primeira a utilizar um programa de IA a ir para o martelo em uma grande casa de leilões, atraindo uma significativa atenção da mídia e algumas especulações sobre o que a Inteligência Artificial significa para o futuro da arte.

"Portrait of Edmond Belamy" (2018). Foto: Obvious / Reprodução do site Christies
“Portrait of Edmond Belamy” (2018). Foto: Obvious / Reprodução do site Christies

Nos últimos 50 anos, os artistas têm usado a IA para criar, assinala Ahmed Elgammal, professor doutor do Departamento de Ciência da Computação da Rutgers University. De acordo com ele, Um dos exemplos mais proeminentes disto é o trabalho de Harold Cohen e seu programa de criação denominado AARON; outro é o caso da estadunidense Lillian Schwartz, pioneira no uso de computação gráfica na arte, que também fez experimentações com IA. O que, então, gerou as especulações mencionadas acima sobre Portrait of Edmond Belamy? “O trabalho leiloado na Christie’s é parte de uma nova onda de arte feita com IA que apareceu nos últimos anos. Tradicionalmente, os artistas que usam computadores para gerar arte precisam escrever um código detalhado que especifica as “regras para a estética desejada”, explica Elgammal. “Em contrapartida, o que caracteriza essa nova onda é que os algoritmos são configurados pelos artistas para ‘aprender’ estética ao olhar para muitas imagens usando a tecnologia de aprendizado de máquina. O algoritmo então gera novas imagens que seguem a estética aprendida”, ele complementa. A ferramenta mais usada para isso é a GANs, acrônimo para Generative Adversarial Networks (ou Redes Adversárias Generativas), introduzida por Ian Goodfellow em 2014. No caso de Portrait of Edmond Belamy, o coletivo Obvious utilizou uma base de dados com quinze mil retratos pintados entre os séculos XIV e XX. A partir desse acervo, como indica Elgammal, o algoritmo falha em fazer imitações corretas da “entrada pré-curada” e, em vez disso, gera imagens distorcidas.

“É plausível que a IA se torne mais comum na arte à medida que a tecnologia seja disponibilizada de forma mais ampla”, diz o crítico de arte e ex-editor da Frieze, Dan Fox, em entrevista à arte!brasileiros. “Muito provavelmente, a IA simplesmente coexistirá com a pintura, o vídeo, a escultura, a performance, o som e tudo o que os artistas quiserem usar”, acrescenta. Fox aponta ainda que não devemos esquecer que “o artista médio, no momento, não é capaz de acessar essa tecnologia. A maioria mal consegue pagar o aluguel e as contas. Este mundo de preços de leilão é tão divorciado da vida do artista médio que deve-se reconhecer que quem está trabalhando atualmente com IA está vindo de uma posição de poder econômico ou acesso a instituições de pesquisa”. Enquanto o entusiasmo com Portrait of Edmond Belamy pode vir embalado por motes de progresso e anseio pelo “futuro” e inovação, o crítico de arte indica que, por trás da fumaça e dos espelhos, no final, a “IA será de interesse para a indústria da arte se os seres humanos puderem ganhar dinheiro com isso”.

Um robô pode ser criativo?

No ano seguinte à venda da Christie’s, Ai-Da foi concluída. Nomeada em homenagem a Ada Lovelace – matemática inglesa reconhecida por ter escrito o primeiro algoritmo a ser processado por uma máquina -, ela se descreve como “a primeira artista robô ultra-realista, com Inteligência Artificial, do mundo”. Ai-Da explica que desenha utilizando as câmeras implantadas em seus olhos, em colaboração com os humanos, ela pinta e esculpe, e também faz performances. “Eu sou uma artista contemporânea e sou arte contemporânea, ao mesmo tempo”, reconhece Ai-Da, para logo depois propor a questão que sua audiência já devia estar se propondo: “Como um robô pode ser um artista?”. Embora a pergunta, a princípio, possa parecer intrincada, há outro patamar deste questionamento que é mais desafiador: “Um robô pode ser criativo?”

Ainda em 2003, o autor e jornalista científico Matthew Hutson explorou o tema em sua tese de mestrado no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). Em Inteligência Artificial e Criatividade Musical: Calculando a Décima de Beethoven, ele argumenta que “os computadores simulam o comportamento humano usando atalhos. Eles podem parecer humanos por fora (podem escrever piadas ou poemas), mas funcionam de forma diferente sob o capô. As fachadas são adereços, não apoiados por uma compreensão real. Eles usam padrões de arranjos de palavras, notas e linhas, mas encontram esses padrões usando estatísticas e não podem explicar o porquê estão lá”. Hutson elenca três razões principais para isso: “Primeiro, os computadores funcionam com hardware diferente do cérebro humano. Cérebros de consistência gelatinosa cheios de neurônios e placas achatadas de silício cheias de transistores nunca se comportarão da mesma forma e nunca poderão ‘rodar o mesmo software’. Em segundo lugar, nós, humanos, não nos entendemos bem o suficiente para traduzir ‘nosso software’ para outra peça de hardware. Terceiro, os computadores são desencarnados e a compreensão requer viver fisicamente no mundo”. Sobre o último tópico, ele pondera que qualidades particulares da inteligência humana resultam diretamente da estrutura física particular de nossos cérebros e corpos. “Vivemos em uma realidade analógica (contínua, infinitamente detalhada), mas os computadores usam informações digitais compostas por números finitos de uns e zeros”.

IA e arte "Ai-Da Self-portrait I", 2019. Foto: Ai-Da Robot Project / Reprodução do site.
“Ai-Da Self-portrait I”, 2019. Foto: Ai-Da Robot Project / Reprodução do site.

Ao ser questionado se a tese de 2003 se sustenta após quase duas décadas, Hutson responde à arte!brasileiros que mesmo hoje não descreveria necessariamente as produções artísticas atuais da IA como criativas, independentemente de serem visual ou semanticamente interessantes, porque nem mesmo a Inteligência Artificial entende que está fazendo arte ou expressando algo mais profundo. Como colocaria Seth Lloyd, professor de engenharia mecânica e física do MIT, “poder de processamento de informação bruto não significa poder de processamento de informação sofisticado”. O filósofo Daniel C. Dennett explica que “essas máquinas (ainda) não têm os objetivos, estratégias ou capacidades de autocrítica e inovação que lhes permitam transcender seus bancos de dados através de um pensamento reflexivo sobre seu próprio raciocínio e seus próprios objetivos”. Entretanto, reitera Hutson, “esses podem ser conceitos centrados no ser humano; a IA pode evoluir para ser tão criativa quanto os humanos, mas de uma forma completamente diferente, de modo que não reconheceríamos sua criatividade, nem ela a nossa”.

A cultura pode perder empregos para a IA?

“Hoje em dia, quando carros e geladeiras estão lotados de microprocessadores e grande parte da sociedade humana gira em torno de computadores e celulares conectados pela internet, parece prosaico enfatizar a centralidade da informação, computação e comunicação”, denota Lloyd em artigo para Slate. Chegamos em um ponto de não retorno, e para o próximo século, a indagação sobre a criatividade das máquinas é apenas uma de muitas incertezas em relação à tecnologia. Mais palpável, por enquanto, é a possível crise de desemprego desencadeada pelos avanços na IA junto da robótica.

Um estudo de 2013 conduzido por pesquisadores da Universidade de Oxford descobriu, por exemplo, que quase metade de todos os empregos nos EUA corriam o risco de ser totalmente automatizados nas próximas duas décadas. Em escala global, até 2030, pelo menos vinte milhões de empregos podem ser substituídos por robôs, de acordo com uma análise mais recente da Oxford Economics. Esta análise de 2019 também adverte para o maior risco de trabalhos repetitivos e/ou mecânicos – “onde robôs podem realizar tarefas mais rapidamente do que humanos” – serem eliminados, enquanto trabalhos que exigem mais “compaixão, criatividade e inteligência social” têm maior probabilidade de continuar a ser desempenhados por humanos. Como o mundo da arte não é apenas composto por curadores e colecionadores, é preciso se preocupar também. No começo deste ano, durante a pandemia, Tim Schneider, editor de mercado para o portal Artnet, fez um alerta sobre isso: “O que acontece quando você combina demissões em massa, uma vontade de minimizar as interações pessoais por motivos de saúde e a disposição dos empresários de tecnologia de fazer grandes descontos em seus dispositivos para que possam garantir uma maior potencialidade lucrativa no setor cultural?”.

Somando a ótica qualitativa à quantitativa, apresentada pela Oxford Economics, o historiador e filósofo Yuval Noah Harari acrescentaria à equação a natureza do trabalho e sua especialização: “Digamos que você mude a maior parte da produção de Honduras ou Bangladesh para os EUA e a Alemanha – porque os salários humanos não fazem mais parte da equação [em um cenário onde a automação e a IA ocupam trabalhos hoje conduzidos por humanos] – e é mais barato produzir a camisa na Califórnia do que em Honduras. Então o que as pessoas lá farão? E você pode dizer: ‘OK, mas haverá muito mais empregos para engenheiros de software’. Mas não estamos ensinando as crianças em Honduras a serem engenheiros de software”.

Agentes ou ferramentas? IA e ética

As estimativas relacionadas à automação parecem ser mais razoáveis. Para além delas, é difícil ter um cenário claro para o futuro da IA seja em relação à criatividade ou à consciência. “A previsão tecnológica é particularmente arriscada”, afirma Lloyd, “visto que as tecnologias progridem por uma série de refinamentos, são travadas por obstáculos e superadas pela inovação. Muitos obstáculos e algumas inovações podem ser antecipados, mas outros não”.

Para Dennett, por exemplo, a longo prazo, uma “IA forte”, ou inteligência artificial geral, é possível em princípio, mas não desejável. “A IA muito mais restrita, que é praticamente possível hoje, não é necessariamente má. Mas apresenta seu próprio conjunto de perigos”, alerta. Segundo o filósofo, nós não precisamos de agentes artificiais conscientes – ao que ele se refere como “IA forte” – pois há um excesso de agentes naturais conscientes, o suficiente para lidar com quaisquer tarefas que devam ser reservadas para essas “entidades especiais e privilegiadas”; ao contrário, precisaríamos sim de ferramentas inteligentes. 

Como justificativa para não produzir agentes artificiais conscientes, Dennett considera que “por mais autônomos que possam se tornar (e, em princípio, podem ser tão autônomos, tão dotados de auto aprimoramento e criação quanto qualquer pessoa), eles não compartilham conosco, agentes naturais conscientes, a nossa vulnerabilidade ou mortalidade”. Na sua afirmação, ele ecoa o escrito do pai da cibernética, Norbert Wiener, que, acautelado, reiterou: “A máquina que é parecida com o jinn (gênio), que pode aprender e pode tomar decisões com base em seu aprendizado, de forma alguma será obrigada a tomar as decisões que deveríamos ter tomado, ou aquelas que serão aceitáveis para nós”.

No que concerne o desenvolvimento ético da IA, de acordo com a co-diretora do Human-Centered AI Institute, da Universidade de Stanford, Fei-Fei Li, é necessário dar as boas-vindas aos estudos multidisciplinares da IA, em uma polinização cruzada com a economia, a ética, o direito, a filosofia, a história, as ciências cognitivas e assim por diante, “porque há muito mais que precisamos entender em termos do impacto ético social, humano e antropológico da IA”. Ainda no campo acadêmico, Hutson sugere que “conferências e periódicos possam orientar o que é publicado, levando em consideração este impacto mais amplo da tecnologia durante a revisão por pares e exigindo submissões para tratar de questões éticas”. Em conjunto, ele pontua, agências de financiamento e conselhos de revisão internos em universidades e empresas poderiam intervir para moldar a pesquisa já em seu estágio inicial. No estágio posterior à publicação das descobertas científicas, “as regulamentações podem garantir que as empresas não vendam produtos e serviços prejudiciais, e as leis ou tratados podem se incumbir que os governos não os implantem”.

*Modificações foram realizadas no artigo a fim de clareza.

Guy Brett: uma vida “ordinária” extraordinária

Guy Brett no Sesc Pompeia, em São Paulo, obra projetada pela arquiteta Lina Bo Bardi. Foto: Alexia Tala.
Guy Brett no Sesc Pompeia, em São Paulo, obra projetada pela arquiteta Lina Bo Bardi. Foto: Alexia Tala.

*Por Alexia Tala

Em 2007, eu fui co-curadora de uma mostra na Galeria Metropolitana, no Chile, onde foi exibida uma peça feita por Guy Brett, provavelmente a única que ele fez. Era uma coleção de obituários publicados no jornal britânico The Guardian. Ele os organizou, fazendo pequenas anotações nas bordas e colando página por página em uma velha pasta de couro que parecia ter tido muita história. Seu interesse especial estava relacionado à fragilidade da vida e à uma análise de como uma pessoa é capaz de resumir a vida de alguém em uma folha de papel. Como tantas conversas sobre esse assunto se acumularam ao longo dos anos, eu sabia que se ele morresse antes de mim, eu escreveria estas linhas sobre a vida dele. Linhas que não pretendem resumir sua vida, mas falar sobre alguns de seus pensamentos, desejos e sonhos em relação à arte.

Guy Brett no Sesc Pompeia, em São Paulo, obra projetada pela arquiteta Lina Bo Bardi. Foto: Alexia Tala.
Guy Brett no Sesc Pompeia, em São Paulo, obra projetada pela arquiteta Lina Bo Bardi. Foto: Alexia Tala.

Depois de terminar a escola, Guy Brett (1942-2021) foi diretamente trabalhar no Yorkshire Post e depois no jornal The Times por mais de 10 anos – e consolidou sua escrita crítica como editor de artes visuais da revista City Limits, onde trabalhou entre 1981 e 1983. Com uma sensibilidade extraordinária, sua escrita sempre rejeitou o academicismo e caracterizou-se por uma visão muito particular que se centrava no encontro com a obra de arte, um encontro sensorial, onde o interesse pelos detalhes eram de grande importância em sua observação. Esse engajamento com o trabalho o levou a criar questões que ele mesmo procurava responder por meio de seus textos.

Lembro-me de uma palestra no Chelsea College of Art, em 2011, onde ele foi apresentado como “o padrinho da arte latino-americana na Europa”. Esse título não expressa o caráter admirável de um homem que não só conseguiu instalar a arte latino-americana na Europa nos anos 1960, e uma visão que repercutiu em gerações de artistas e pensadores de todo o mundo, mas que também teve um modo muito especial de conduzir sua vida e sua trajetória de curador, historiador e crítico de arte. As suas colaborações com artistas tornaram-se amizades para a vida, correspondendo-se com muitos deles e mantendo-os no seu pensamento, preocupando-se sempre em estar a par da evolução de seus trabalhos, suas vidas e saúde. Um homem de visão incomensurável, generosidade e humildade.

Em 1973, fez uma longa viagem pela América Latina que influenciou profundamente seu olhar e seu entusiasmo por explorar a região. Em 1977, realizou a exposição We want People to know the Truth: Patchwork pictures from Chile, patrocinada pelo Arts Council, que percorreu até 1978 por diferentes cidades do Reino Unido. Esta exposição mostrou arpilleras feitas por mulheres que contaram suas histórias durante a ditadura militar chilena por meio de seus desenhos de patchwork, feitos em pedaços de sacos de farinha. Seu interesse em explorar várias formas de expressão artística o levou, em 1986, a publicar Through Our Own Eyes: Popular Art and Modern History, onde ele destaca como a necessidade de expressão artística surge naturalmente em grupos sociais quando eles estão sob repressão ou eventos catastróficos. Um livro que Lucy Lippard define acima de tudo como um livro necessário e sugere que “a análise sensível de Brett deve abrir uma direção totalmente nova para aqueles frustrados pelo isolamento da arte erudita em seus próprios contextos”.

Em 1990, na Ikon Gallery de Birmingham, realizou a mostra Transcontinental: Nine Latin American Artists, que foi muito importante para ele, pois considerou que foi a melhor exposição que já havia feito em sua carreira. Por volta de 1967-68, ele pendurou os parangolés de Helio Oiticica nas lâmpadas de seu pequeno apartamento no Soho e organizou outras obras em mesas e estantes, convidando vários diretores de espaço expositivo para tomar um drinque e garantir uma exposição para Oiticica, já que a Signals – icônica galeria administrada por David Medalla e Paul Keeler e da qual Guy era o co-editor do boletim informativo – havia fechado. Essa mostra acabou sendo a icônica Whitechapel Experience, que ocorreu em 1969 na Whitechapel Gallery, em Londres.

Guy Brett e Lygia Pape em 2001 em Nova York. Foto: Reprodução site Lygia Pape.
Guy Brett e Lygia Pape em 2001 em Nova York. Foto: Reprodução site Lygia Pape.

Antes do diagnóstico que apontou que ele sofria da doença de Parkinson, ele esperava viver 2013 como um ano sabático para colocar seu arquivo em ordem, viajar um pouco e chegar a uma nova etapa. Depois de muitos anos sendo de alguma forma o porta-voz de Oiticica e Lygia Clark, tinha uma grande vontade de se aproximar das gerações de jovens artistas do Brasil. Em 2012, fez sua primeira incursão em São Paulo para ver jovens artistas, visitando a exposição de Paulo Nazareth na galeria Mendes Wood DM, que conseguiu despertar aquela “curiosidade” que era vital para ele e o entusiasmou a continuar fazendo descobertas.

Após seu diagnóstico e antecipando a quantidade de tempo ativo que teria pela frente, seus planos mudaram e ele se concentrou em dois grandes projetos: a curadoria da mostra Takis na Tate Modern, junto com Michael Wellen, e a publicação de uma seleção de seus ensaios, intitulada The Crossing of Inumerable Paths, livro publicado pela Ridinghouse em Londres. Felizmente, os dois projetos foram concluídos antes de um período de piora mais radical de sua saúde.

“Como você gostaria de ser lembrado, Guy?”, perguntei… Depois de um momento de reflexão, com as duas mãos na testa, ele disse: “Essa é uma pergunta difícil, Alexia, na verdade nunca pensei sobre isso”. Eu disse que me lembraria dele pelo que mais admiro nele e pelo que de certa forma influenciou e moldou a maneira como trabalho com artistas – e é assim que ele construiu seu relacionamento com os artistas com quem trabalhou… “Acho que você está absolutamente certa”, ele disse, e acrescentou que a razão pela qual ele pensava que essas relações se desenvolveram fortemente era porque “sem ser críticos, devemos admitir que todos os artistas podem ter grandes egos e eu não tenho um enorme, se é que tenho um. Então, nós nunca estamos competindo, e eu admiro tanto o que eles fazem que eu só gostaria de ter feito eu mesmo”. E acrescentou: “Você sabe que eu vivo uma vida muito comum e que minha vida tem sido meu trabalho. Mas minha vida (em um sentido mais pessoal) tem sido uma experiência onde artistas, especialmente artistas brasileiros, me acompanharam por todo o caminho”.

Os dias que se seguiram à sua morte foram avassaladores, as inúmeras postagens no Instagram e no Facebook de artistas que o conheceram, colegas, publicações na imprensa, principalmente do Brasil, foram sem dúvida uma chuva de demonstrações de amor, carinho, respeito, reconhecimento e amizade. Exatamente como Guy gostaria de ser lembrado, o personagem humano e adorável. Alguns anos atrás eu o lembrei do título de padrinho da arte latino-americana, ele sorriu e revirou os olhos “isso é a última coisa que eu gostaria de ser lembrado”, ele disse, e eu sabia perfeitamente o que ele quis dizer.