Wind, de Joan Jonas, 1968, no Pavilhão da Bienal
"Wind", de Joan Jonas, 1968, no Pavilhão da Bienal. Foto: Cortesia Bienal de São Paulo

Adentrar o Pavilhão Ciccillo Matarazzo para visitar Vento, na primeira saída de casa desde meados de março, provocou dois estranhamentos: um, de voltar, em pessoa, ao circuito das artes; outro, de procurar – em um costume programático – uma imensidão de obras e ser recebido por peças selecionadas, dispostas entre os silêncios arquitetônicos do pavilhão, a casa da Bienal de São Paulo desde 1957. Ora, Vento conta com apenas 21 artistas da 34ª edição, em uma exposição que não estava prevista.

No ano infernal, a organização do evento teve que dançar a dança de 2020 e fazer alterações no que fora inicialmente imaginado. Mesmo assim, a 34ª Bienal já havia sido concebida como uma espécie de ensaio aberto, uma exposição em processo; dessa forma, Vento não é um corpo alienígena dentro do conceito de uma mostra constantemente em construção, que “reflete sobre si mesma publicamente”. Aliás, após o curto período de estranhamento com os vazios, o esquema da exposição se revela orgânico e despista a suspeita do provisório.

Em Vento é proposta a ocupação do edifício sem o uso de nenhuma divisória construída, sem a inserção de espaços intermediários, mas em contato direto com a amplitude, monumentalidade e transparência do Pavilhão. As obras – quase dois terços delas sendo instalações sonoras e vídeos – “criam âncoras no espaço que nos convidam a ressignificar a ideia de espera, distância, vazio e perda, que está ao nosso redor. Elas crescem neste espaço criando caminhadas de reflexão, caminhadas de digestão das provocações trazidas pelos artistas”, como afirma o curador adjunto da Bienal, Paulo Miyada.

Nessa superfície indivisível, os sons acompanham o visitante pelas obras desmaterializadas, anunciam a chegada de algumas delas e, às vezes, também brigam entre si, se sobrepõem e disputam a concentração do visitante. São eles que ajudam a combater a melancolia das vacâncias e do distanciamento social necessário. Em um momento em que a segunda onda de Covid-19 era negada pela prefeitura e o status da crise, do dia para a noite, tinha sua gravidade alterada, de amarelo para verde e vice-versa, foi tranquilizante perceber que a Bienal havia respeitado as recomendações sanitárias; afinal o medo do invisível não vai embora tão cedo, mesmo inserto na contemplação das obras apresentadas em Vento.

O título da mostra vem do filme Wind, de Joan Jonas, que tenta fazer desse invisível, visível. Nele, a artista estadunidense registrou os esforços de um grupo de dançarinos para executar uma coreografia na praia de Long Island, em Nova York, em um dos dias mais frios de 1968. Ao mesmo tempo que executam seus movimentos, eles também resistem ao vento forte que se impõe contra seus corpos. Assim, o filme de Jonas mostra o invisível pelo contraste, colocando algo no vazio para revelá-lo.

Still de "Wind" (1968), de Joan Jonas. Cortesia da Bienal de São Paulo
Still de “Wind” (1968), de Joan Jonas. Cortesia da Bienal de São Paulo

“O vento carrega o eco, que é ao mesmo tempo a lembrança do que foi dito e sua reverberação futuro adentro. Vento, analogamente, funciona como o índice desta edição da bienal, no sentido de que aponta alguns dos temas que voltarão expandidos na exposição de setembro do ano que vem, e ao mesmo tempo se refere ao que já aconteceu”, escreveu Jacopo Crivelli Visconti, curador geral da edição, em uma das correspondências publicadas no site da 34ª Bienal.

A exemplo das palavras de Visconti, a obra Insurgencias botánicas, de Ximena Garrido-Lecca, que está em Vento, foi mostrada pela primeira vez na abertura da 34ª Bienal, em fevereiro, inaugurada com uma performance do sul-africano Neo Muyanga. Nela, a elaboração de um sistema de cultivo hidropônico que permite que as plantas cresçam ao longo do ano oferece ao público a oportunidade de acompanhar os diferentes momentos da transformação da instalação e confere longevidade ao trabalho.

“Insurgências Botánicas” (2017-2020), de Ximena Garrido-Lecca. Foto: Cortesia Bienal de São Paulo.

O trabalho de Garrido-Lecca é feito com sementes de feijão que eram utilizadas pela civilização pré-incaica moche em seu sistema de comunicação escrita (algo registrado nas cerâmicas deste povo). Essa mesma civilização desenvolveu entre os anos 100 e 850 um avançado sistema de irrigação ao qual a obra também se relaciona. O desenvolvimento ininterrupto da obra enfatiza o esforço curatorial da bienal de ser concebida como um processo: “A luz de novembro não é a mesma de fevereiro; agora cantos tikmũ’ũn ressoam ao redor das plantas, que cresceram, murcharam e voltaram a crescer”, afirma a organização.

A repetição e a recombinação não são por acaso. Ambas foram incorporadas desde os primeiros estágios do evento como uma estratégia conceitual para demonstrar que o  significado de uma obra se transforma, se multiplica, conforme são alterados os contextos sensíveis e sociais. Isso fica latente tendo em vista da revisitação à série Dilatáveis, de Regina Silveira, produzida durante a ditadura civil-militar brasileira, e à gravação de Palabras Ajenas, de León Ferrari, que se comunica, agora, com a manipulação de informações na era da internet das coisas.

Já a obra de Deana Lawson apresentada em Vento fará o percurso oposto, seguindo esse esquema de reincidências. Apresentada pela primeira vez agora, ela retornará para a mostra da artista no evento principal da bienal, programado para 2021. Neste trabalho em vídeo, a artista evidencia âmbitos distintos da cultura negra ao intercalar e sobrepor imagens de rituais religiosos no continente africano e registros de grandes eventos esportivos e musicais nos Estados Unidos. Como em suas fotografias, a observação da artista tem, ao mesmo tempo, o olhar de um insider e de um voyeur. Da mesma forma, ela também caminha entre o registro documental e uma perspectiva mística ou onírica, na qual o tempo pode até mesmo retroceder.

De modo geral, os trabalhos dentro da curadoria de Vento reforçam uma resistência não opcional refletida no título da 34ª Bienal: Faz escuro mas eu canto. Além da pandemia, para os brasileiros 2020 contou com incêndios criminosos no Pantanal, um apagão de 22 dias no Amapá e os desastres políticos intensificados pela caminhada das guerras culturais. Perto desse escuro, as adaptações da bienal não parecem trágicas. Como diria Joan Didion, “em um mundo perfeito, podemos ter escolhas perfeitas; no mundo real, temos escolhas reais, e as tomamos, e medimos as perdas contra o que poderiam ter sido os ganhos”.

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