Foto vertical, colorida. Retrato de Grada Kilomba
A artista e escritora Grada Kilomba. Foto: Ute Langkafel

Por Ana Teixeira Pinto*

No passado dia 11 de novembro de 2021 a DGARTES (Direção Geral das Artes) anunciou o resultado do concurso para a representação oficial portuguesa na 59ª Bienal de Veneza em 2022. A candidatura da artista Grada Kilomba e do comissário Bruno Leitão com o projeto A Ferida foi preterida pelo júri. Esta decisão é chocante não só porque Grada Kilomba seria, segundo critérios objetivos, a melhor escolha – é uma artista plástica cuja obra abre horizontes críticos, em diálogo com os mais importantes movimentos intelectuais contemporâneos, com um percurso e trabalho singular, duma complexidade que se estende a registos literários e performativos –, mas porque o seu pavilhão teria um enorme valor simbólico: Grada Kilomba é uma artista com ascendência em São Tomé e Príncipe e Angola, duas ex-colônias portuguesas, sendo que Portugal carrega um brutal legado colonial que permanece sub-teorizado e o qual a maioria branca se recusa ostensivamente a reconhecer. Claro que um pavilhão em Veneza não pode pagar a imensa dívida colonial do país, essa dívida é impagável, mas é justamente por isso que esta reparação simbólica assumiria uma tão grande importância. Que melhor opção em termos de representação nacional do que representar a sub-representação da sociedade portuguesa na figura duma artista brilhante, reconhecida e respeitada internacionalmente?

grada kilomba
A artista e escritora Grada Kilomba. Foto: Ute Langkafel

Se o júri tivesse tomado a sua decisão, uma decisão que eu só posso classificar como racista e misógina, apenas por incapacidade de reconhecer o mérito da artista e a urgência do tema da sua candidatura, o caso seria grave. Questões de mérito e demérito não são questões subjetivas, são questões que revelam a dimensão racial das estruturas semióticas e semânticas. Mas esta história não é apenas uma história de negligência ou déficit intelectual. Esta história é uma história de manipulação maliciosa da pontuação atribuída de forma a impedir que Grada Kilomba fosse a artista escolhida: a sua candidatura foi literalmente boicotada por um dos elementos do júri, Nuno Crespo, professor da Universidade Católica Portuguesa.

Numa carta aberta, o comissário Bruno Leitão tornou público que esse jurado atribuiu uma pontuação aberrante à sua candidata, injustificável em termos de quaisquer parâmetros imparciais, atribuindo-lhe uma classificação de dez pontos (numa escala de zero a vinte) em diversas categorias, em flagrante discrepância não só com os outros elementos do júri mas também com as pontuações que atribui às demais candidaturas. O mesmo elemento do júri, justificou a sua pontuação dizendo:

“(…) a ideia de racismo como ferida aberta foi já objeto de inúmeras outras abordagens; de modo que a proposta apresentada não deixa perceber como numa exposição poderá rever, criticar ou prolongar, essa ideia tão já discutida e mesmo exibida de múltiplas formas (…).”

“(…) ainda que a equipe técnica e artística seja competente, o mérito artístico da artista Grada Kilomba (…) não é satisfatório.”

“Grada Kilomba é uma brilhante escritora e pensadora, e são inegáveis as suas competências em termos da famosa ‘narrativa oral’, contudo enquanto proposta expositiva, o projeto apresentado não possuí o alcance artístico que, a meu ver, a representação oficial tem obrigatoriamente de possuir (…).”

“(…) não está comprometido com a dinamização e internacionalização da ‘cena’ artística e cultural portuguesa.”

É difícil interpretar frases como “não está comprometido com a dinamização e internacionalização da ‘cena’ artística e cultural portuguesa” como não conotando uma ideia racial de cidadania: quem, exatamente, pode representar a cena artística portuguesa? Há portugueses mais portugueses do que outros? Ou numa bizarra inversão de causa e consequência, estará o jurado a usar o fato de Grada Kilomba nunca ter sido incluída na “cena” artística Portuguesa para justificar a sua exclusão do pavilhão nacional, ao invés de julgar a falta de inclusividade da dita “cena” artística um sintoma da assimetria e injustiça histórica que seria o seu dever retificar? Outro indício de disparidade sistêmica é o fato da artista Mónica de Miranda e a curadora Paula Nascimento terem tido a pontuação mais baixa do grupo de candidatos, tendo o júri mais uma vez selecionado uma representação branca.

Mais, é irônico que os argumentos avançados para rejeitar a candidatura de Grada Kilomba, A Ferida, cujo projeto tematiza as continuidades entre passado e presente, entre a colonialidade e a crise climática, entre a valorização de certas subjetividades e a desvalorização de outras, repitam o padrão sistemático de desvalorização, hierarquização, marginalização e trivialização que o projeto se dedica a questionar.

É também preciso sublinhar que esta história não é só uma história de preconceito individual: o restante do júri aceitou um resultado arbitrário sem se demitir ou questionar a decisão, embora a disparidade de votações fosse flagrante; a entidade tutelar, a DGARTES, declinou intervir demonstrando que a instituição é incapaz de reconhecer má-fé processual e não está equipada com os protocolos adequados para identificar dolo e prevenir que este tipo de problema recorra no futuro; o ministério da cultura não se pronunciou, num silêncio que grita que Portugal continua a investir na branquitude, no revisionismo histórico e no chauvinismo insular e isolacionista.

Talvez, como Djamila Ribeiro escreve na Folha de S.Paulo, Grada Kilomba seja grande demais para Portugal, ou talvez Portugal seja pequeno demais para Grada Kilomba, de qualquer forma, e para que Portugal cresça ao ponto de ter capacidade para representar de forma justa e equitativa, todos aqueles a quem continua a negar representação, é preciso lutar contra esta decisão tanto formalmente, exigindo uma intervenção da tutela, como informalmente, forçando o debate público que Portugal se recusa a ter.

✱ A autora publicou um artigo de opinião anterior no jornal Público sobre este assunto.


*Ana Teixeira Pinto é teórica e crítica de arte, professora no DAI (Dutch Art Institute) e AdBK Nürnberg. Edita a série On the Antipolical para a Sternberg Press, e está a organizar o projecto Whose Universal? na HKW em Berlin com Kader Attia e Anselm Franke. É membro da equipe artística que organiza a 12ª Bienal de Berlim, junto com o curador Kader Attia.

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