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A Graça da Fé

"Aladas", max wíllà morais. Foto: Guilherme Sorbello/Cortesia Sé Galeria

Entre nós, um extenso aparato cultural, ideológico, legislativo, religioso e midiático foi criado para justificar, atender e garantir a permanência de privilégios daquela parcela da população que deles direta ou indiretamente sempre se beneficiaram. E isso, é claro, à custa da desumanização, da coisificação dos que não participam desse grupo, sejam eles negres, indígenas ou os que demonstram identidade de gênero diferente da dominante. Na raiz do reacionarismo brasileiro estão acomodados a heteronormatividade, o machismo tóxico, o ódio de classe, o racismo e a aversão patológica ao diferente, ao corpo divergente que não reflita o ideal que consagra no poder o homem adulto, branco, burguês.
Essa realidade fica explicita em tempos de pandemia e necropolítica, em tempo de contar os mortos que estão na base da pirâmide social brasileira, contabilizar o resultado de séculos de desprezo à vida daqueles que não pertencem ao que entre nós se convencionou chamar “elite”. Mas como escreveu Castro Alves no épico Navio Negreiro: “E existe um povo que a bandeira empresta para cobrir tanta infâmia e covardia”. O poema é de 1868 e o auriverde pendão da nossa terra continua servindo ao povo de mortalha. Contudo, a depender de onde venha, a resposta do excluído tem a força do falo fertilizador de Exu, a vida invoca Eros, recusando o pensamento utilitarista que vê no indígena um preguiçoso e no negro uma besta de carga.

Certo pensamento periférico (periferia aqui é entendida como potência, não carência e estrutura deficitária) sempre enalteceu a festa como lugar privilegiado para elaboração de subjetividades vibrantes. Daí a satanização das festas pelos arautos da necropolitica. A carioca, nascida em 1993, Tadaskia Wíllà Oliveira Morais, mais conhecida como max wíllà morais, é artista visual, escritora, performer, educadora, pesquisadora, mulher trans e negra. Fui apresentado à sua obra pela clarividente curadora pernambucana Clarissa Diniz.

A artista é representada em São Paulo pela Sé Galeria e a conheci pessoalmente no Pivô, onde esteve em residência e participou, a convite da curadora colombiana Catalina Lozano, da mostra coletiva Uma história natural das ruínas – em exibição até 17 de abril. Recentemente alguns de seus trabalhos também estiveram presentes no Auroras, onde através da sensível articulação da curadora Gisela Domschke estiveram em diálogo com obras do cearense José Leonilson. O MAR (Museu de Arte do Rio) também já acolheu sua produção recente.

Vista da exposição “Uma história natural das ruínas”, no Pivô. Foto: Everton Ballardin/Cortesia Sé Galeria e artista

O crescente interesse em torno do trabalho da artista é resultado do avanço das lutas contra a invisibilização e decorrente epistemicídio dos corpos divergentes e é também plenamente justificado pela espessura poética expressa nessa produção. São desenhos, bidimensionais, costuras, pinturas, instalações, fotografias e ações que a artista denomina de “aparições”, que elaboram um universo lastreado no invisível e no visível, isto é, no resgate ritualizado da sua ancestralidade negra, afro-diaspórica, da sua religiosidade sincrética e na organização de um mundo material que dá significado novo e sensual as matérias sobre as quais a artista atua. São particularmente possantes os desenhos a que tive acesso e que podem ser conferidos no Pivô. São, suponho, a expressão de um corpo que não se deixou domesticar, distinguem uma atitude, são fluidos, atmosféricos, às vezes dão a impressão de volatilidade sem, no entanto, serem incorpóreos. Estão perfeitamente contidos nas margens tortas do papel que a artista recorta com as mãos. Existe algo de Tropicalista na artista e no seu projeto, as operações que ela realiza são graves, contundentes e incisivas, contudo não trazem traço qualquer de sisudez. Pelo contrário, há um senso lírico de humor, algo ácido talvez, atravessando essas narrativas que não raro no caso dos seus desenhos e costuras se apresentam em composições de enorme delicadeza e frescor. Delicadeza que, aliás, é conferida aos desenhos pelo emprego sensível que a artista faz dos materiais de que lança mão, o lápis de cor, a aquarela, canetas, o esmalte para unhas. O núcleo familiar da artista é às vezes engajado em algumas de suas ações que implicam na construção e uso de objetos híbridos, relacionais, que investigam e propõem relações entre aqueles corpos e a arquitetura proletária que eles habitam.

Brutalidade jardim – A Tropicália e o surgimento da contracultura brasileira (São Paulo, Editora UNESP, 2009, tradução Cristina Yamagami) é o resultado da pesquisa do professor estadunidense Christopher Dunn, pesquisador da prestigiada Tulane University de Nova Orleans. Conheci o professor quando este visitou o Museu Afro Brasil instituição em que na ocasião trabalhava como coordenador do Núcleo de Educação. Como escreve o professor: “O projeto Tropicalista manifestou-se num período de intensos conflitos políticos e culturais no Brasil, criticando simultaneamente o regime militar e o projeto nacional-popular da esquerda”. Tenho a impressão que o trabalho de max wíllà morais inscreve-se nessa “tradição” de insubmissão quando a artista refuta o engajamento político explícito tão marcado em certa parcela da produção artística afro-brasileira em favor de uma retórica de liberdade e lirismo sensualista. Esse hedonismo antes de qualquer inconsequência trabalha a favor de uma política do corpo bem ao sabor da contracultura mencionada por Dunn no título de sua obra. E pensando bem, o corpo e a obra coincidem em max wíllà morais e são, num certo sentido, um pronunciamento a favor da vida e uma ofensa e um antídoto a necropolitica e suas práticas.


*Claudinei Roberto da Silva é artista visual, curador e professor de Educação Artística na USP. Foi coordenador do Núcleo de Educação no Museu Afro, cocurador da 13ª edição da Bienal Naïfs do Brasil e curador de diversas mostras, entre elas PretAtitude.

O [não] mercado da inclusão: o capacitismo no mundo das artes

Foto horizontal, preto e branco. Em meio à coreografia, João Paulo Lima tem as duas mãos e o único joelho apoiados no chão, mantendo as costas alinhadas, em uma prancha sobre o joelho. Está de perfil. Ele utiliza um figurino que remete às práticas de bondage e sadomasoquismo, com a maioria da pele exposta, semi-nu. Essa foto é um still do espetáculo DEVOTEES, apresentado no programa Zona de Criação, do Hub Cultural do Ceará PORTO DRAGÃO.
João Paulo Lima no espetáculo "Devotees", apresentado no programa Zona de Criação do Hub Cultural do Ceará Porto Dragão. Foto: Reprodução. #PraTodosVerem Imagem com recurso de texto alternativo

No Brasil, mais de 12 milhões de pessoas têm alguma deficiência física ou intelectual, o que corresponde a 6,7% da população segundo dados do IBGE. O número aumenta para 24% quando consideradas pessoas que apresentam alguma dificuldade em menor grau de locomoção, visão ou audição. Entretanto, ainda é pouco comum vermos esses corpos ocupando os palcos, ou as plateias, sendo os responsáveis pelas obras de uma exposição ou por admirá-las nos corredores dos museus, em especial quando saímos do eixo Rio-São Paulo.

“Não são as pessoas com deficiência (PCD) que não têm interesse em arte, são os produtores artísticos e culturais que não têm interesse em produzir um conteúdo que seja acessível”, afirma Moira Braga. Para a bailarina, atriz e professora, o processo é cíclico: se a produção artística não é acessível para PCDs, torna-se mais difícil delas desenvolverem interesse ou se tornarem artistas. O escultor Rogério Ratão faz coro e complementa que em qualquer caso as pessoas só gostarão das artes se forem estimuladas. “E quando temos deficiência, tem muito uma coisa das pessoas acharem que sabem o que é e o que não é necessário pra nós.”

Porém, o estímulo artístico não está em apenas sinalizar aspectos concretos de uma pintura, ou na transmissão das palavras de uma canção através da Libras. Deficiente visual, Ratão exemplifica com a acessibilidade nas artes plásticas: “Se você descreve A noite estrelada do Van Gogh, precisará explicar as pinceladas, o acúmulo de tinta e outros aspectos da obra”, pois é pela descrição que ele consegue compreender o quadro. Em seu caso, como pessoa que já enxergou, ele cria a imagem na cabeça, como quem lê um livro, mas compartilha que pessoas que nasceram cegas tendem a construir a obra em suas mentes a partir de outras referências sensoriais. Logo, se você descreve A noite estrelada apenas como uma cena de uma cidade noturna, com céu estrelado, árvores no primeiro plano e as casas na parte inferior do quadro, “a casinha que vem à mente é o mesmo desenho que uma criança poderia fazer na escola. Então quero entender qual é a casinha do Van Gogh, qual é a casinha do Cézanne, qual é a especificidade de cada artista?”.

É ao sinalizar as técnicas, o estilo e as características do pintor que se permite de fato o acesso à obra e não a um desenho qualquer. O escultor compartilha que em muitas viagens foi aos museus na companhia de seu irmão, para que esse pudesse descrever as pinturas mais detalhadamente. Em alguns casos, quando os museus tinham tempo limitado de visita frente a determinadas obras, permitiam que eles tomassem mais tempo, para que Ratão pudesse de fato admirá-las. Em outros casos, deparou-se com instituições que contavam com estruturas táteis que através de relevos o permitiam sentir os trabalhos, ou com espaços expositivos que liberavam horários específicos para que pessoas cegas ou com baixa visão pudessem tocar algumas esculturas e dessa forma melhor compreendê-las.

Em sua experiência profissional, Leonardo Castilho nos dá outros exemplos sobre o estímulo artístico. Seja na peça Cidade de Deus – apresentada em linguagem de sinais no Brasil e na França -, nas suas atividades como educador no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP), no Slam do Corpo, ou nos shows de música – nos quais trabalhou com a interpretação em Libras -, ele buscou ir além da simples informação, permitindo que pessoas surdas (como ele) tivessem acesso àquela arte em forma e conteúdo. Como explica Castilho, a acessibilidade precisa ir além do protocolar. Não se trata apenas de incluir Libras ou audiodescrição, mas de transmitir a experiência estética que a arte propõe – o que envolve um refinamento dos recursos, um maior preparo sobre eles e uma consultoria constante com PCDs. “Os realizadores de eventos dificilmente pensam em públicos mais amplos quando estão concebendo o projeto e o orçamento”, explica. “Isso pode acarretar num sucateamento”, acrescenta Moira, que também tem deficiência visual, referindo-se a verba destinada aos recursos, que muitas vezes é menor do que a necessária. “O recurso de acessibilidade é uma possibilidade que você está dando de um espectador usufruir aquela obra, então se você faz de qualquer jeito quer dizer que você não se importa com esse público”, pontua.

Foto horizontal, colorida. Leonardo Castilho está de pé sobre um palco sem cenário, com paredes pretas. Está iluminado por um refletor. A mão direita está sobre o peito, com os dedos apontados para baixo. A mão esquerda, aberta, também sobre o peito, cobre a direita. Tem os ombros levemente elevados e tensionados, intensificando a expressão de dor estampada em seu rosto. Ele está vestido com uma regata preta e uma saia cinza, tem os pés descalços. Fotografia de apresentação de um poema no Slam do Corpo.
Leonardo Castilho apresentando um poema no Slam do Corpo. Foto: Arquivo pessoal. #PraTodosVerem Imagem com recurso de texto alternativo

De forma a garantir uma melhor transmissão de seus conceitos e propostas estéticas, a performer e videoartista Estela Lapponi agiu de outro modo. Nas primeiras oportunidades com recursos, os construiu em diálogo com os profissionais da área e, em um de seus últimos projetos, o filme Profanação, fez da audiodescrição não ferramenta de acessibilidade, mas linguagem, parte constituinte da obra. Porém, ela aponta que essa responsabilidade em alguns casos vai além dos produtores e artistas, está ligada às leis de incentivo e aos editais. “Penso que o que recebo ainda é muito pouco dependendo do projeto. Se não aumentar a verba, vai virar evento: é um dia só de recurso, porque não consigo tê-lo sempre.”

Seja bem-vindo ao mundo bípede

Esta postura, para Estela, tem uma raiz estrutural: vivemos em um mundo bípede. O termo está ligado ao conceito largamente utilizado pelo diretor, dançarino e coreógrafo Edu O., que não se restringe apenas à definição científica da palavra, mas à ideia estrutural de que todo corpo anda sobre suas próprias pernas, vê e ouve, desconsiderando outros corpos possíveis de existência – ou vendo-os como algo que precisa de conserto.

A experiência de João Paulo Lima corrobora com essa visão. Aos 26, ingressou no curso técnico para Intérpretes Criadores em Dança Contemporânea da Escola Porto Iracema das Artes em Fortaleza. Amputado de uma das pernas desde os 12 anos de idade, o artista conta: “Lá precisei me desvencilhar do corpo bípede. Por memória, já tinha me desvencilhado, mas socialmente não, porque acho que mesmo se você nasce com uma deficiência, é socialmente cobrado a ser bípede”. Para Moira também foi a dança que a permitiu ir além das possibilidades que entendia para si: “A gente começa a trabalhar o corpo e vai se entendendo melhor nos libertando das nossas crenças limitantes”.
Foi durante os estudos artísticos que tanto Estela quanto João passaram a se identificar com o conceito de “corpo intruso”, um corpo dissidente que causa estranhamento ao ocupar os diferentes espaços. Para eles, é por essa invisibilização da não bipedia que frequentemente não são vistos como simplesmente artistas, mas como artistas com deficiência, e assim “somente são lembrados na arte em datas comemorativas ligadas à deficiência, como a Virada Inclusiva, o Dia do Surdo etc.”, pontua Castilho. Para Estela, isso se dá porque “a inclusão é unilateral. Não existe relação de troca, pois não tem autonomia nenhuma do outro lado. Não tem desejo, é um objeto e é mercantilizado. Quem ‘inclui’ gera lucro, se põe bem na fita e isso corrobora para um pensamento da caridade – que é uma construção que alivia o Estado e que as pessoas privilegiadas se sentem garantindo seu espaço no reino dos céus”.

Por isso, como continuidade de sua pesquisa sobre o corpo intruso, a artista cria o manifesto anti-inclusão. “Quando Boaventura de Sousa Santos traz a ideia de que o pensamento ocidental é um pensamento abissal, que cria distinções, ele elucida muito bem a problemática da inclusão; porque existe uma linha que separa o mundo visível – a bipedia, a branquitude, a heterocisnormatividade – e o invisível”, explica. A performer acredita que o mundo em que vivemos – e a arte não está isenta dessa estrutura – se baseia na lógica visível e padrão. “A inclusão faz com que a gente queira cruzar essa fronteira. Só que a lógica que prevalece ainda é a privilegiada, e nós nunca vamos rompê-la se continuarmos pensando que é neste mundo que queremos estar”, explica.

Seja bem-vindo ao corpo intruso

Com hemiparesia (uma paralisia parcial), causada por um AVC aos 24 anos, Estela Lapponi se questionou por muito tempo sobre os significados de deficiência e inclusão, o que a fez transitar do teatro à dança, à dança-inclusiva, e por fim à performance e ao audiovisual. Assim ela se contrapôs à ideia de que deveria interpretar papéis com pouca movimentação, ou de que existiria um lugar específico para si de acordo com a sua “capacidade”. Em seus projetos, põe o corpo intruso em foco, como construtor de narrativas.

Para Rogério Ratão, o capacitismo se mostra claro quando alguns comentários insinuam que ele não cria as esculturas sozinho ou mostram a dificuldade de compreensão de que sua criação escultórica não se baseia no visual. O artista explica que parte do tátil para toda sua construção artística. “Toda a minha pele me dá alguma informação. Meu corpo é meu gabarito. Uso meus dedos e as minhas mãos como unidade de medida e a mim mesmo como modelo anatômico”, conta. E é essa importância do tátil que ele transmite para seus alunos – que enxergam ou não – nos cursos que leciona no MAM-SP.

João Paulo Lima também se viu frente à crença capacitante com os colegas do curso técnico, sendo constantemente questionado sobre sua capacidade de participar de determinadas aulas ou executar certos movimentos. Após iniciar suas criações autorais, ele também parte da ideia de corpo intruso e das relações que esse estabelece com o mundo e com a sociedade, seja em No’Tro Corpo – em que o artista leva sua prótese ao palco e a ressignifica ao encaixá-la de formas incomuns, contrapondo-se à pressão de usá-la -, ou em Devotees – espetáculo no qual mostra o corpo com deficiência como capaz de ser desejado e desejante.

Talvez, o que se esteja propondo nestes diferentes casos seja não mais uma inclusão, mas um outro ponto de partida, que não uma perspectiva bípede. Ou seja, a compreensão de que as identidades dissidentes são também construtoras de narrativas e conhecimentos. Como finaliza Estela: “Um corpo intruso vem pra poder modificar o sistema. Se ele não modifica, permanece intruso; se modifica, deixa de ser. Eu quero que o corpo intruso desapareça”.

Um vasto arquivo público sobre a curadoria no Brasil

Após cerca de quatro meses de isolamento social observando a movimentação nas redes sociais, o curador carioca Raphael Fonseca, 33, deu início a um projeto de fôlego. Estreou, no mês de julho de 2020, a série intitulada “1 curadorx, 1 hora”, com entrevistas gravadas com curadores e curadoras de variadas idades, regiões e áreas de interesse. Ao invés de transmitir ao vivo, Fonseca preparava as entrevistas, realizava a gravação, fazia pequenas edições se achasse necessário e postava o vídeo em seu canal no Youtube – e o áudio em formato de podcast nas plataformas. Oito meses depois, é assim que ele segue fazendo.

O resultado é o impressionante número de quase 120 conversas realizadas, cerca de 70 delas já disponibilizadas e, deste modo, a formação de um vasto arquivo público sobre curadoria de arte. A grandiosidade do projeto, feito sem apoio público ou privado, não estava em mente no início do processo e o que surgiu de modo despretensioso, em parte até para apaziguar certa solidão gerada pela quarentena, agora chega a fazer parte da bibliografia de cursos universitários. Ainda assim, mesmo com conversas densas, “1 curadorx, 1 hora” não deixa de ter um clima de informalidade e uma linguagem coloquial que tornam o conteúdo acessível também ao público não especializado.

Nos diálogos, que perpassam os processos formativos, trajetórias, memórias, experiências profissionais e ideias sobre curadoria, Fonseca parece cumprir mais um papel de repórter, entrevistador, do que de um curador que está ali para debater. “Mas de certa forma isso já tem a ver com o meu trabalho de curador. Para mim o exercício de curadoria é um exercício de pesquisa e de escuta dos artistas. Claro que você também fala, intervém, mas eu principalmente estou ali para aprender sobre arte e sobre as pessoas”, afirma. É de se destacar também a atenção dada a questões bastante pessoais das trajetórias dos entrevistados: “Me interessa muito que a pessoa conte como começou sua relação com a arte. Temos ali desde filhos de artistas ou críticos de arte até pessoas com uma trajetória como a minha, de famílias extremamente periféricas, sem nenhuma relação com a arte. Então esse dado sociológico é muito importante para o projeto”.

O papel de curador é nítido também quando Fonseca precisa selecionar os convidados – desta vez não artistas para uma exposição ou projeto, mas curadores para as conversas. E os nomes são os mais variados possíveis, passando por jovens como Tiago Sant’Ana, Pollyana Quintella, Bernardo Mosqueira, Isabella Rjeille, Hélio Menezes e Paulete Lindacelva até figuras estabelecidas há décadas como Tadeu Chiarelli, Denise Mattar, Fernando Bini, Fernando Cocchiarale, Marília Panitz, Solange Frakas e Marcus Lontra. Estão ali também Marcello Dantas, Ayrson Heraclito, Júlia Rebouças, Kiki Mazzucchelli, Fernanda Pitta, Clarissa Diniz, Naine Terena e muitos outros.

Apesar da diversidade – ou até mesmo para alcançá-la – Fonseca diz ter estabelecido alguns critérios básicos para a seleção. Em primeiro lugar, trazer pessoas que, mesmo que jovens, tenham uma prática regular de curadoria, uma bagagem na área. “Percebo que muitos curadores que atuam há muito tempo não são tão conhecidos para uma geração mais nova. E tem gente que começa a fazer curadoria e se coloca como se estivesse inventando uma coisa totalmente nova. E quando você escuta os relatos dos mais velhos você vê que muito já estava lá, já foi feito”, comenta Fonseca. Para ele, portanto, era importante aprender com as trajetórias destes profissionais e “lançar luz a curadores que atualmente não estão, digamos assim, tão no holofote como pessoas da minha geração”.

Neste sentido, Fonseca comenta que se tornou mais comum, recentemente, “ver uma pessoa que fez curadoria de uma exposição na vida e se proclama curadora”. E ele segue: “Não vejo problema, mas não sei se renderia para essas conversas do projeto.” Na verdade, Fonseca inclusive constata que parece haver uma mudança importante para esta categoria profissional na contemporaneidade: “Acho bacana que as pessoas queiram ser e se dizer curadores. Até porque usualmente é uma profissão que tem um lastro tão elitista que eu acho muito bom uma geração nova, periférica, ver que ser curador é uma possibilidade. Isso é muito empoderador. Mas se a médio e longo prazo elas efetivamente desempenharão esse papel e conseguirão ganhar a vida assim, aí eu já não sei”.

A dificuldade de ser curador no Brasil, justamente, é um dos assuntos recorrentes em boa parte das entrevistas. Fonseca lamenta a falta de um mercado estável para a área, seja no setor público ou privado, diferente do que se vê nos Estados Unidos e em outros países do primeiro mundo. “Existe uma precarização tremenda do equipamento público, e mesmo internamente há uma enorme assimetria geográfica na economia da cultura, com muitas instituições concentradas no sudeste”. Este contexto, explica ele, resulta em algumas características predominantes na trajetória dos profissionais, entre elas o fato de boa parte dos curadores ter também alguma outra profissão. Resulta também que a maioria trabalha basicamente com arte contemporânea e  brasileira – “quem no Brasil paga para que a gente vá fazer uma viagem de pesquisa curatorial no exterior? E como financiar a vinda de um artista de fora para fazer uma exposição aqui?”.

Por fim, com “1 curadorx, 1 hora”, Fonseca também tenta desmistificar a ideia do curador como uma figura poderosa, por vezes autoritária. “Talvez por existir pelo mundo um tanto de pessoas que exercem a curadoria desta maneira, acaba surgindo essa apreensão. Mas, para mim, o curador é só mais um trabalhador da cultura. Especialmente no Brasil, a figura do curador poderoso é quase uma ficção. O que mais tem são profissionais batalhando para pagar suas contas, tendo que negociar o tempo todo com esferas do poder público ou privado, cheios de planos não realizados e vivendo aos trancos e barrancos”. Se o curador no Brasil é um persistente, as duas centenas de entrevistas que Fonseca pretende concluir com seu projeto parecem ser uma prova disso.

“Acontece que somos canibais!”, diz o pop tropicalista de Glauco Rodrigues

"Pau-Brasil", 1974, Glauco Rodrigues. Foto: Jaime Acioli/Cortesia Bergamin & Gomide

A mostra Acontece que Somos Canibais!, de Glauco Rodrigues (1929-2004), tem clima de escola de samba, cheia de cores e alegorias, nascidas sob a influência da arte pop. As pinturas expostas na galeria Bergamin & Gomide são como um gesto de resgate do artista que ficou esquecido por um tempo. Para Lilia Schwarcz, que assina o texto da mostra, isso ocorreu “talvez porque ele não correspondesse ou não se encaixava de maneira óbvia nos cânones do modernismo da época”. Thiago Gomide, proprietário da galeria junto com Antonia Bergamin, lembra que eles expuseram Glauco há quase dois anos na coletiva A Burrice dos Homens (2019), com curadoria de Fernanda Brenner, do Pivô, e que pretendem trabalhar com ele, sem exclusividade.

“Retrato de Henriette Amado”, 1970, Glauco Rodrigues. Foto: Ding Musa/Cortesia Bergamin & Gomide

O universo de Glauco é povoado de personagens díspares, vindos de várias épocas, convivendo simultaneamente no presente, passado e futuro. Tudo aparentemente desconectado, mas realizado genialmente dentro de uma lógica cognitiva com um mundo ora esfuziante, ora apocalíptico. Isso chama a atenção do crítico francês Nicolas Bourriaud, que dedicou uma sala a Glauco na mostra L’Ange de l’Histoire (Anjo da História), em 2013, na École Nationale de Beaux Arts, em Paris. Na ocasião, a revista Art Press publica matéria e coloca a obra de Glauco na capa. Em 2019, Bourriaud volta a expor Glauco na Bienal de Istambul, quando foi curador geral, e quebra o paradigma de que a arte brasileira tem sempre que passar pelo projeto construtivo, dos concretos e neoconcretos.

A exposição paulistana reúne, em sua maioria, obras dos anos 1960 e 1970 feitas no clima da contracultura, guerra do Vietnã e ditadura brasileira. As pinturas são singulares, progressistas e reafirmam o lastro de um artista múltiplo, aparentemente simples, mas conceitualmente sofisticado, que transitou por vários segmentos da arte. Pintor, artista gráfico, gravador, executou figurinos e cenários para teatro, capas de discos e revistas, colocando saberes a serviço de uma revolução pessoal com imagens incluídas cruamente sobre telas de fundo sempre branco, como fragmentos gravitando no espaço. Só começou a pintar a base de seus quadros no final da ditadura militar.

Todas as obras tratam da história do país carnavalizadas dentro de um universo eclético em que mescla desde a imagem de São Sebastião, padroeiro de Bagé, sua cidade natal, e do Rio de Janeiro até garotas de biquíni, natureza tropical, fotos de amigos, Corcovado, índios, cachos de banana e passistas de escola de samba. O ideário de Glauco é profano, mesmo quando retrata Cristo e alguns santos, tudo embalado com as cores da bandeira brasileira que tingem todos os seus quadros. Com isso, ele confirma suas intenções carregadas de críticas ao momento político social da época, como a tela Acontece, Que Somos Canibais! que nomeia a exposição.

Glauco nasce em 1929, em Bagé, Rio Grande do Sul, onde começa na arte como gravador, depois transfere-se para Porto Alegre e se junta aos gravadores Carlos Scliar e Vasco Prado. Em 1958 chega ao Rio e, um ano depois, integra a primeira equipe da revista Senhor (1959-1964), onde trabalha com Jaguar, Paulo Francis, sem deixar sua arte de lado. Com a premiação no IX Salão Nacional de Arte Moderna, viaja para a Europa e participa da Bienal Jovens de Paris, em 1961. Um convite o leva a viver em Roma de 1962 a 1965 e lá participa da Bienal de Veneza de 1964, quando conhece a pop art americana. Vê Robert Rauschenberg receber o Leão de Ouro e sagrar-se quase herói. Afinal, ele foi o primeiro artista norte-americano a receber o grande prêmio na Bienal mais antiga do mundo (1895). A pop art impacta Glauco. Ele volta ao Brasil e começa sua mitologia brasileira, com estética pop futurista misturada a um tropicalismo crítico.

No Rio integra a mostra Opinião 66, no MAM do Rio, ao lado de Lygia Clark, Hélio Oiticica, Antonio Dias e Carlos Vergara. Cria obras sobre o discutível “milagre brasileiro”, com a tela Nossa Comida Abundando Está! (1977). Denuncia o colonialismo e a exploração dos indígenas em Persona (1974). Faz crítica social por meio da lenda Coati-Purú, integrante da série Visão da Terra: A Lenda de Coati-Purú (1977). Em sua pintura O Derrubador Brasileiro – D’aprés Pedro Américo, Victor Meirelles, Almeida Junior e Pedro Moraes, ele revisita criticamente a obra desses artistas.

A arte de Glauco, teorizada por críticos como Frederico de Morais, Ferreira Gullar e Roberto Pontual ganha novos contornos com Bourriaud. Na entrevista ao cineasta José Teixeira de Brito para o documentário Glauco do Brasil, de 2015 (publicada depois no livro Glauco Rodrigues – Crônicas anacrônicas e sempre atuais do Brasil, de Denise Mattar), ele afirma: “O que fica evidente na obra de Rodrigues é que ele recupera fragmentos da história, restos de imagens que provêm de tempos e lugares heterogêneos. Desse ponto de vista ele é muito contemporâneo. A partir de um pequeno fragmento, reconstituir o edifício destruído é uma característica da arte atual que Glauco Rodrigues antecipou”, conclui Bourriaud.

Colaboradores da edição #54

Alexia Tala é curadora e crítica  de arte especializada em América Latina. Foi responsável por diversas mostras e bienais na região, é autora de uma série de artigos e atualmente é curadora chefe da Bienal de Arte Paiz – Guatemala e diretora artística da Plataforma Atacama, no Chile.


Claudinei Roberto da Silva é artista visual, curador e professor de Educação Artística na USP. Foi coordenador do Núcleo de Educação no Museu Afro, cocurador da 13ª edição da Bienal Naïfs do Brasil e curador de diversas mostras, entre elas PretAtitude.


Miguel Groisman é jornalista formado pela Faculdade Cásper Líbero e graduando em Cinema pela FAAP. Já escreveu sobre cinema e fotografia para a Revista Esquinas e foi pesquisador discente sob orientação de Simonetta Persichetti. Atualmente é repórter da arte!brasileiros.


Pollyana Quintella é curadora, professora e pesquisadora. Formada em História da Arte pela UFRJ, é mestre em Arte e Cultura Contemporânea pela UERJ e doutoranda pela mesma instituição. Colaborou com pesquisa e curadoria para o Museu de Arte do Rio (MAR) e escreve para diversas publicações Foi curadora adjunta da mostra FARSA – Língua, Fratura, Ficção: Brasil-Portugal, no Sesc Pompeia.


Tadeu Chiarelli é curador e crítico de arte. É professor titular no curso de Artes Visuais da USP. Foi diretor da Pinacoteca de São Paulo e do Museu de Arte Contemporânea da USP (MAC-USP). Também já atuou como curador-chefe do


Fotos: arquivo pessoal

Mapeando os papéis da subversão

impressos de propaganda comunista. Foto: Reprodução

Em um curioso paradoxo, os arquivos policiais reunidos pelo Departamento Estadual da Ordem Política e Social de São Paulo (Deops) com o intuito de reprimir e perseguir qualquer pessoa, movimento ou partido que se opusesse à ideologia dominante acabaram tornando-se um rico manancial de informações para um alentado estudo exatamente sobre as críticas que queria silenciar. Foi a partir dos dados reunidos ao longo de décadas pelas forças de espionagem e repressão que a historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro estruturou sua pesquisa Impressos Subversivos: Arte, Cultura e Política no Brasil 1924-1964, que procura mapear o trabalho cuidadoso, dedicado e muitas vezes anônimo de dezenas de artistas, artesãos e militantes, que lançaram mão das artes gráficas para denunciar desmandos e desigualdades, demonstrando uma tenaz resistência e desejo de transformação política e social. “Além de arquivarem os impressos subversivos, também preservaram, por ironia do destino, a memória da intolerância”, sintetiza a autora.

Impressos de propaganda comunista com legenda do Gabinete de Investigações do Deops. Foto: Reprodução

No livro, lançado este ano pela editora Intermeios, a pesquisadora analisa um amplo acervo documental, que veio garimpando ao longo de diversas pesquisas realizadas junto aos arquivos do Fundo Deops, liberado para consulta desde 1995 e revisitado por ela em diferentes ocasiões. Cópias dessas gravuras, panfletos, publicações e outros itens que pertencem ao universo dos impressos estavam guardados em uma gaveta de seu escritório, à espera de uma ocasião para um estudo mais aprofundado, momento trazido pela epidemia e o obrigatório recolhimento doméstico. Também contribuiu para a urgência em revisitar esse vasto acervo a sensação de que vivemos um momento no qual várias das situações denunciadas pelos artistas e artesãos parecem estar se repetindo e agudizando. “É uma provocação que eu faço. Convido o leitor a se indignar com o que estamos vivendo, cobro uma posição, nestes tempos de total anormalidade, contra todas as formas de violência perpetradas por um governo tão insensível”, explica.

Afinal, resistência, crítica e desejo de mudança parecem ser o ponto em comum entre uma produção tão diversificada como os impressos estudados por Tucci Carneiro. Se nos restringirmos a analisar apenas publicações que envolvam imagens – que constituem uma ampla parte, mas não exclusiva, do corpo de estudo, que apresenta também uma produção textual, de mais fácil circulação e disseminação –, a pesquisa da historiadora se subdivide em dois grandes grupos de autores: de um lado, estão aqueles que tiveram formação artística, pertenciam à classe burguesa, transitavam pelos círculos intelectuais ou eram reconhecidos como figuras importantes das artes e da política brasileira.

Também fazem parte desse primeiro grupo de artistas profissionais um leque amplo de exilados políticos, com destaque para os refugiados das perseguições nazistas que assolavam a Europa, sobretudo no período que antecede e durante a Segunda Guerra Mundial e que são tema de grande importância na trajetória da pesquisadora. Em seu livro, Tucci Carneiro faz um amplo levantamento desses artistas, apresenta sintéticas biografias, sempre procurando traçar as relações entre as poéticas em sintonia com as pesquisas de vanguarda no campo da arte e o ideário político que conduz tais ações.

Mas talvez a contribuição singular desse estudo seja o esforço feito em dar um lugar a um segundo grupo, os autores anônimos, provenientes das classes trabalhadoras, muitos deles operários, artesãos, sem formação artística ou, em alguns casos, tendo uma base formal adquirida nos Liceus de Arte e Ofícios do Rio e de São Paulo. São aqueles que Mário de Andrade chamou de “artistas proletários”, de origem humilde, filhos de imigrantes. “Permaneceram à margem dos principais movimentos culturais e artísticos da história da arte moderna, sem dispor de um ateliê e sem frequentar os circuitos dos vanguardistas de protesto”, explica Tucci Carneiro. Apesar da clandestinidade, essencial para aqueles que não dispunham de nenhum tipo de proteção, e da grande dispersão desse material (naturalmente, a imensa maioria dos impressos de protesto produzidos no Brasil foi esquecida ou perdida), a historiadora conseguiu reunir alguns vestígios capazes de identificar alguns autores dessa militância. Há, por exemplo, Moyses Kalinas, romeno, pintor e funcionário da fábrica de papel Klabin, que chegou a ter portaria de expulsão editada, mas que até 1948 permanecia no país. Outros nomes, como Angelo de las Heras, J. B. Pelayo, J. Matheus, Otávio Falcão e Novac foram identificados. Apesar das informações rarefeitas, seu reconhecimento é uma forma de – como diz Tucci Carneiro – “dar um lugar, um espaço de memória para eles”.

Definindo-se como “historiadora das ideias políticas”, Tucci Carneiro procurou sobrepor no livro diferentes camadas de interpretação. Propõe reflexões sobre o caráter altamente repressivo de uma ditadura como a de Getúlio Vargas, que se apropria da estética vanguardista, mas adota uma estratégia sistemática de perseguição contra comunistas, anarquistas, socialistas, estrangeiros e judeus. Mas as articula com um olhar atento às estratégias artísticas e políticas adotadas no período, na tentativa de transformar a arte e a sociedade, lançando mão de referências expressionistas e debruçando-se sobre dramas humanos como tema preferencial. “O discurso do Estado ordenador assumiu, através da propaganda e da repressão policial, um tom acusatório (maniqueísta) ao apontar os grupos de esquerda como inimigos da nação brasileira”, escreve ela, demonstrando como repressão e propaganda anticomunista eram face da mesma moeda. Isso torna-se evidente, por exemplo, com a constatação de que pouca ou nenhuma ação inibidora foi lançada contra os movimentos de extrema-direita.

Em contrapartida, figuras de proa como Lasar Segall – tachado como “artista judeu, produtor de arte degenerada” pelo serviço secreto da Policia Política – ou Tarsila do Amaral eram constantemente vigiados. Há um saboroso trecho no livro que reproduz os comentários de um agente infiltrado no Clube dos Artistas Modernos (CAM) após assistir uma palestra da pintora: “Incontestavelmente, Sra. Tarsila do Amaral é a maior e mais arrojada comunista dentre todas as comunistas nacionais. É a maior porque impressiona e quase converte todos que a ouvem. É também a mais arrojada, porquanto os seus parceiros procuram sempre arrabaldes e lugares ocultos para pregarem o comunismo, ao tempo que ela se serve de salões nobres onde, sem rodeios, ensina teórica e praticamente a doutrina vermelha”.

Infinito Vão: uma abordagem singular sobre a história da arquitetura brasileira

FAU-USP, 1961, Vilanova Artigas e Carlos Cascaldi. Foto: Leonardo Finotti/Acervo Casa da Arquitectura de Portugal

Infinito Vão: 90 anos de Arquitetura Brasileira, no Sesc 24 de Maio, subverte qualquer conceito de exposição do gênero. Cênica, sem ser teatral, tem narrativa centrada na hibridação de várias poéticas, como música, artes plásticas, literatura e vídeo, e deixa o visitante pluralizar esse encontro durante toda sua travessia.

Com curadoria de Guilherme Wisnik e Fernando Serapião, a mostra já foi exposta em 2019 na Casa da Arquitetura de Portugal e reúne projetos de 96 arquitetos. O arranjo temporal abarca desde os anos 1920, marcados pela Semana de Arte Moderna de 1922, até os dias atuais, com projetos de nomes já esperados como Oscar Niemeyer, Vilanova Artigas, Paulo Mendes da Rocha, Lucio Costa e Lina Bo Bardi, que se somam a outros menos conhecidos para juntos contarem uma história de nove décadas.

Visitar a mostra não é um convite, mas uma recomendação de Guilherme Wisnik, “porque ela dialoga com a nossa realidade”. Uma dose emotiva embala Infinito Vão pelo momento de obscurantismo sociopolítico e cultural que vivemos. A exposição prova que a arquitetura pode representar muito mais do que ela mesma. Na abertura da mostra, Paulo Mendes da Rocha diz que “a arquitetura é uma maneira de dizer quem somos nós e quem seremos nós”.

O título, Infinito Vão, vem dos versos de Drão (1982), música de Gilberto Gil: “O verdadeiro amor é vão, estende-se infinito, imenso monolito, nossa arquitetura”. Na linguagem dos arquitetos curadores, “vão é algo que se vence, um desafio a superar, é reduzir a quantidade de apoios, expandir as lajes horizontalmente, lançar-se no vazio aéreo abrindo uma imensa luz ao rés-do-chão. Na língua portuguesa é algo que não deu certo, foi feito em vão”.

Logo na entrada da exposição, sons de vídeos curtos com imagens de diferentes décadas dão o tom. Além da seleção de projetos escolhidos, músicas de Caetano, Gil, Arnaldo Antunes e Racionais MC’s se misturam com obras de artistas plásticos como Claudio Tozzi, Nelson Leirner, Rubens Gerchman, Paulo Bruscky e com os textos breves de Leminski, Rem Koolhaas, Álvaro Siza, Mário Pedrosa… Todos juntos estimulam a percepção e aumentam o prazer da visita.

Nelson Leirner na exposição Infinito Vão, no Sesc 24 de Maio. Foto: Vitor Penteado/Acervo Sesc

A chave de Infinito Vão são as músicas que abrem e contextualizam cada um dos seis núcleos em que a mostra está dividida, além dos projetos arquitetônicos que representam cada um deles. Do Guarani ao Guaraná (1924-1943) parte da marchinha carnavalesca de Lamartine Babo, História do Brasil, com a pergunta que anima gerações: “Quem foi que inventou o Brasil?…”. Neste período, o país, como observa Wisnik, “salta do romantismo indígena e da escravatura para a cultura industrial e urbana”. Foi o momento da Semana de Arte Moderna e do Manifesto Antropófago (1928), de Oswald de Andrade, preocupados com a construção da estética que incluía as raízes do Brasil. Destacam-se na mostra a primeira casa modernista do Brasil, de Gregori Warchavchik em São Paulo, marco inicial da exposição, passando pelo Ministério da Educação e Saúde, no Rio de Janeiro, até chegar ao conjunto da Pampulha, em Belo Horizonte.

A Base é uma Só (1943-1957) nasce da música Samba de uma Nota Só, de João Gilberto, que marca a criação da bossa nova, movimento carioca que colocou a música brasileira num patamar internacional. O período escolhido pelos curadores vai da Pampulha ao concurso para o plano piloto de Brasília e às novas cidades projetadas no Amapá e no Mato Grosso, que abrem o caminho para Brasília.

No núcleo Contra os Chapadões Meu Nariz (1957-1969), os arquitetos se inspiram no verso da Tropicália, música de Caetano Veloso feita em um momento de desbunde da música brasileira influenciada pela contracultura. Rubens Gerchman cria a A Bela Lindoneia (versão porta-retrato), de 1967. Na arquitetura surgem os primeiros esboços de Niemeyer antes do lançamento do concurso nacional para o plano piloto da Brasília. Em texto de 1970, e presente na mostra, Clarice Lispector diz que “Brasília é construída na linha do horizonte. Brasília é artificial. Tão artificial como devia ter sido o mundo quando foi criado”.
A mostra se ilumina no núcleo Eu Vi um Brasil na TV (1969-1985), com a trilha de Bye Bye Brasil, de Chico Buarque e Roberto Menescal. Marca o período da cassação dos arquitetos Artigas e Paulo Mendes da Rocha e de outros intelectuais que são exilados. As favelas se multiplicam em São Paulo e numa outra ponta social Lina Bo Bardi transforma uma fábrica de tambores no atual Sesc Pompeia e Eurico Prado Lopes e Luiz Telles projetam o Centro Cultural São Paulo, ambos espaços lúdicos, de cultura e convivência. Claudio Tozzi, um dos artistas que melhor retratou o período da repressão, pinta uma de suas obras emblemáticas, Multidão (1968).

Maquete da Praça das Artes, projeto do escritório Brasil Arquitetura construído no centro de São Paulo. Foto: Karin Yuri

O núcleo Inteiro e Não pela Metade (1985-2001) parte da música Comida, dos Titãs. “A gente não quer só comida…”, quando o rock brasileiro lança bandas por todo o país. Na arquitetura, em contraponto aos conjuntos habitacionais construídos pela ditadura, aparecem o programa Favela Bairro no Rio e, em São Paulo, as organizações cooperativas. Nas artes, dois artistas multimidias cujas obras pertencem ao Acervo Sesc de Arte Brasileira se destacam: Nelson Leirner, com Obra Sem Título da Série Sotheby’s (1999), e Paulo Bruscky, com Poema Linguístico (1992).

Fecha a exposição Sentimento na Sola do Pé (2001-2018), nome tirado do verso de um rap dos Racionais MC’s, que fala do cotidiano violento das grandes cidades. É quando surgem também os CEUs – Centros Educacionais Unificados, criados pela prefeitura de São Paulo, no governo de Marta Suplicy. Um vídeo traz cenas do cotidiano desigual que invade as cidades brasileiras e nos faz voltar ao sábio comentário de Paulo Mendes da Rocha ao abrir essa exposição: “A arquitetura é uma maneira de dizer quem somos nós e quem seremos nós”.

Parque Novo Santo Amaro, 2009, Vigliecca e Associados. Foto: Leonardo Finotti/Acervo Casa da Arquitectura de Portugal

Benjamin Seroussi: primeiro os gestos, depois as palavras

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Alimentos e sabão distribuídos na Casa do Povo. Foto: Robson Gonzaga/ Divulgação

Como a Casa do Povo tem sobrevivido em meio à crise? “A gente já é especialista em crise”, responde, em tom de brincadeira, Benjamin Seroussi, diretor da instituição paulistana. De fato, quando o centro cultural retomou suas atividades, a partir de 2012 e 2013, o Brasil estava iniciando um longo processo de crise econômica e política – do qual nunca saiu. Mais do que isso, antes da retomada, o espaço fundado em 1946 por judeus progressistas no bairro do Bom Retiro amargurava cerca de 30 anos de crise profunda, que implicou no encerramento de quase todas as suas atividades e abandono de boa parte de seu espaço – um edifício modernista projetado por Ernest Mange.

Nestes menos de 10 anos de retomada, iniciada com a reaproximação de ex-alunos do colégio que ali funcionou até 1981, com a chegada de Seroussi – curador e gestor vindo de experiências no Centro da Cultura Judaica e na Bienal de São Paulo – e, gradativamente, de outros coletivos e agentes culturais e sociais, a Casa se estabeleceu como um destacado e singular espaço cultural do país. Singular por sua atuação experimental e coletiva, pautada em uma noção de cultura que extrapola as práticas artísticas – incluindo ativismo, alimentação, moradia, saúde mental e esporte -, o que resultou, agora, em uma movimentação também peculiar frente à maior de todas as crises, a da pandemia de Covid-19.

“E esse movimento dos centros culturais de fechar as portas e ir para o online me pareceu uma espécie de abandono total do que fazemos. Era como se a gente pudesse se fechar no nosso privilégio, achar que bastava ir para as redes se comunicar apenas com as pessoas que podem acessar esses conteúdos e que tanto faz se o mundo acabou entre um ‘bunker’ e outro”, afirma Seroussi. Após decretada a quarentena e a necessidade de isolamento social, em março do ano passado, a Casa do Povo fechou as portas para o público, mas, em diálogo com a população e com os coletivos que usam o espaço, traçou novas linhas de atuação, entre elas a produção e distribuição de sabão e de máscaras e a arrecadação e doação de cestas de alimentos e refeições.

Também não ficaram parados, apesar do redirecionamento de verbas na instituição, projetos como a restauração do TAIB (Teatro de Arte Israelita Brasileiro, conhecido por ter sido um importante centro de contestação à ditadura militar), localizado no subsolo da Casa, e a reativação da biblioteca, reaberta em 2019 após 40 anos fechada e que reúne 8 mil livros (metade deles em ídiche) e um acervo documental. 

Em entrevista à arte!brasileiros, Seroussi comenta estes assuntos e fala também sobre as dificuldades de arrecadação financeira no contexto da pandemia e de um Brasil com um governo federal avesso à cultura. “Então acho que já vivíamos uma espécie de censura embutida no entendimento neoliberal do que é cultura, que era uma censura econômica. Agora a gente vê uma espécie de fantasma do passado, que é uma possível censura política”, afirma. “Mas precisamos lutar contra isso, com as ferramentas que temos, porque cultura é um direito básico. Não tem arrego”, conclui. Leia abaixo a íntegra da conversa.  

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Benjamin Seroussi, diretor da equipe da Casa do Povo. Foto: André Penteado

ARTE!✱ – Acabamos de completar um ano da pandemia de Covid-19 e a Casa do Povo foi uma das instituições culturais que teve uma atuação quase de “linha de frente” na luta contra os impactos trágicos dessa pandemia. Não se restringiu a fazer uma programação online, por exemplo, mas passou a distribuir alimentos, produzir sabão, máscaras etc. Queria que você contasse um pouco como foi esse processo.

Benjamin Seroussi – Acho que “linha de frente” é um vocabulário até meio complexo, porque temos tentado questionar também essa ideia de uma guerra. Acho que às vezes é usado um vocabulário muito bélico. É uma guerra contra quem, né? Contra um vírus? É como aquela campanha que afirma que “um mosquito não é mais forte que um país inteiro”. Só que não é bem assim… Porque teve o mosquito, teve o vírus, mas o problema somos nós.

ARTE!✱ – Porque na guerra se coloca a culpa em um inimigo externo…

Exato. E eu acho que precisamos menos da ideia de “vamos para a guerra” e mais da ideia de “vamos tecer solidariedades”. Então temos essa atuação que surgiu também de uma maneira quase óbvia. Porque estamos ali em um bairro que foi um dos mais atingidos de São Paulo, por ser denso, ter muitos cortiços, ocupações, uma favela. Uma matéria do G1 até mostrou que, proporcionalmente, o Bom Retiro foi mais atingido do que a Brasilândia, por exemplo. Então tínhamos uma realidade à nossa frente. E esse movimento dos centros culturais de fechar as portas e ir para o online me pareceu uma espécie de abandono total do que nós fazemos. Era como se a gente pudesse se fechar no nosso privilégio, achar que bastava ir para as redes se comunicar com o público e que estaria tudo bem. Como se bastasse se comunicar apenas com essas pessoas que podem acessar esses conteúdos e que tanto faz se o mundo acabou entre um bunker e outro. E eu acho essa visão questionável, tanto de um ponto de vista ético, quanto porque a nossa atuação já entende a cultura como algo que vai muito além da apresentação de práticas artísticas. Pensamos a cultura e arte como ferramentas de transformação social. A cultura tem a ver com cuidado, com cuidar do outro, com ensaiar outros mundos possíveis. Esse discurso que virou até chavão, que todos os espaços culturais falam, de repente foi colocado em cheque. E nós não quisemos ficar nessa sinuca, mesmo correndo o risco de não fazer o que era esperado de nós, ou de se perder em algo que não sabíamos fazer.

Fizemos também um exercício de olhar para a nossa história, para não fazer alguma coisa totalmente desconectada dela. Mas, como sempre, é menos a história nos autorizando e mais o passado visto como alavanca, com um olhar a partir do presente, um olhar não de historiadores, mas de curadores, gestores… E nesse caso, quando vimos fotos daquelas pessoas que fundaram a Casa do Povo em 1946, e que poucos anos antes estavam juntando mantimentos, costurando e mandando roupas para o front – aí sim para a Segunda Guerra – entendemos de fato que o que nós fazemos não é algo estranho à nossa história. Enfim, então agora na pandemia começamos a fazer essas coisas que não sabíamos fazer tão bem, mas usando as ferramentas que são nossas. Ou seja, vendo o que podíamos nós mesmos fazer e o que podíamos acolher (a Casa sempre funciona assim). Achamos importante trabalhar com as costureiras da região, começamos a levantar recursos para o bairro e ao mesmo tempo, inspirados no projeto lanchonete <> lanchonete, do Rio, passamos a fazer essas cestas abertas, onde as pessoas escolhem os alimentos que querem, ao invés de receber uma caixa fechada. E começamos também a escutar as pessoas do território, ouvir sugestões, e até oferecer o espaço da Casa para a prefeitura usar.

ARTE!✱ – E isso funcionou?

A Prefeitura respondeu mandando um formulário, nós preenchemos e não tivemos mais resposta. Mas tudo bem, sabemos que eles estavam no meio da loucura. E nos diálogos com os grupos que habitam a Casa surgiram coisas. A Adriana Sumi, do Coletivo de diálogo e diversidade de táticas, falou que poderia ensinar a fazer sabão; uma ONG do bairro precisava de espaço para deixar as cestas que recebia; uma agente social da região precisava de um espaço para guardar cobertores para doar para pessoas em situação de rua. Nós também abrimos uma chamada para voluntários e do dia para a noite conseguimos 120 pessoas cadastradas. E, como sempre, as coisas que fazemos e as que acolhemos foram se juntando, ficando mais borradas, assim como a separação entre quem ajuda e quem é ajudado. E isso é muito interessante, às vezes a pessoa que vai pegar a comida depois também fica do outro lado do balcão distribuindo comida; quem vai pegar sabão depois ajuda a encontrar costureiros na região e assim por diante. Então, respondendo sua pergunta em uma frase: foi uma reação muito orgânica, que partiu de uma necessidade ética, que foi se articulando com a nossa própria história e se desenvolvendo a partir das ferramentas que a gente costuma usar, escutando o território e propondo ações.                     

ARTE!✱ – Isso me lembra uma frase sua da entrevista que fizemos há dois anos: “A cultura não se limita às artes. Moradia é cultura, culinária é cultura, esporte é cultura. Então aqui tem criação, ativismo, gente em situação de vulnerabilidade social, mas a gente nunca deixa de entender isso também como um lugar de arte”. Isso ganhou ainda mais sentido na pandemia?

Porque de repente a gente se torna mais útil. A Casa do Povo é um lugar que se coloca em risco. Marília Loureiro [curadora da Casa] sempre fala isso, que as palavras vem depois dos gestos. Então a gente vai fazendo, a partir de premissas claras, mas sem saber aonde vamos. Existe um provérbio rabínico nesse sentido, mas a versão secular é da Clarice Lispector, que disse: “Perder-se também é caminho”. O que eu quero dizer é que a gente não se pergunta: “Será que isso é arte?”. Vamos encontrando o que a gente quer no caminho. E surgem coisas muito fortes. Por exemplo, a produção de sabão com óleo doado de restaurantes do bairro. E tem um restaurante que entrega suas comidas e envia junto um sabão, dizendo que aquele sabão foi feito com o óleo que fritou aquela comida. Isso fecha um circuito, e acho que essas coisas não deixam de ser, ao seu modo, intervenções artísticas.

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A produção de sabão na Casa do Povo. Foto: Robson Gonzaga/ Divulgação

Claro que tem algo muito delicado ali – de pensar quem é o artista e de entender que o monopólio da criação artística não está sempre na mão do artista. É um pouco tabu, porque o nosso trabalho é defender os artistas. Mas acho até que com a próxima Documenta, com o ruangrupa [coletivo selecionado para a curadoria do evento], de repente podemos começar a olhar mais para isso. Pensar, por exemplo, o que significa uma autoria compartilhada. E neste sentido, muitos artistas também têm se aproximado da Casa, porque acho que eles veem um contexto pulsante, vivo, e querem se aproximar. Então é interessante porque cria um contexto para as artes, que não é só de circulação de obras, mas de uma vivência inspiradora.       

ARTE!✱ – Tem alguns projetos específicos, que vêm de antes da pandemia, que eu gostaria de te perguntar em que ponto estão, se tiveram sequência neste momento crítico…

De forma geral a gente teve que pausar algumas coisas, porque fizemos um contingenciamento de verbas. Mas felizmente, de modo geral conseguimos captar relativamente bem, e acho que isso se deu porque a gente continuou trabalhando. Digo isso sem flertar com nenhum discurso negacionista – acho que tem pessoas que não têm que trabalhar e devem ser apoiadas por isso. Mas nós conseguimos inventar condições de continuar atuando e isso permitiu que a gente pudesse ir atrás de verbas sem ficar numa saia justa. Tivemos a campanha de arrecadação para o teatro, tivemos a captação via Lei de Incentivo à Cultura, teve o crowdfunding de captação para ajudar o bairro e depois um de arrecadação buscando apoiadores recorrentes. Então paramos algumas coisas, mas novas alianças surgiram, com moradores, instituições do bairro e com doadores. Foi interessante no sentido de colocar em prática esse discurso de que a captação de recursos não tem a ver só com dinheiro, mas com tecer alianças, criar dependências táticas. E dos projetos que foram contingenciados, alguns estão sendo retomados agora, porque antes não tinha condições físicas de fazer, outros vamos esperar mais um pouco, e outros não pararam mesmo.       

ARTE!✱ – Poderia começar então falando da reativação da Biblioteca da Casa, que foi reaberta em 2019 após ficar fechada mais de 30 anos…

Para a biblioteca a gente ganhou um edital, o Proac, para modernização de acervo, e contratamos um novo coordenador de acervo, o Jean Camoleze – que já trabalhou nos arquivos do MST e da Uneafro -, e que olha para os acervos da Casa não como o acervo de uma instituição, mas de um movimento social, propondo outras metodologias. Trabalhamos também com a artista Mariana Lanari e com o designer Remco van Bladel. E com esse time estamos repensando a catalogação, organização etc. Tem um projeto muito interessante de trazer a biblioteca para a internet das coisas, ou seja, a gente vai colocar chips em cada livro e criar um sistema de rastreamento, por meio de RFID (identificação por radiofrequência), para que a gente consiga registrar a maneira como as pessoas usam a biblioteca. E aí quando você pegar o livro você não terá apenas a ficha técnica, mas saberá como ele foi usado, perto de que outros livros foi colocado. E isso gera nuvens de conhecimento, que partem do usuário, e que quem pesquisa poderá ter acesso. Para isso teremos o público, grupos de estudo, um grupo de ídiche, pessoas ligadas aos movimentos negro e indígena e assim por diante – para, digamos assim, cutucar este acervo e dar a ele uma maior agência. A ideia é que a biblioteca e os acervos possam falar por si mesmos e que as pessoas possam ler não apenas os livros, mas também a biblioteca.

ARTE!✱ – E existe o projeto de restauração e reativação do TAIB, originalmente desenhado pelo Jorge Wilheim e agora com projeto do André Vainer, Ilan Szklo e Silvio Oksman. Como está esse trabalho?

O TAIB completou 60 anos no ano passado, não podia parar, mas tivemos que focar a captação de verbas para outras áreas mais urgentes. De qualquer modo, essa captação para o restauro deve retomar este ano. Mas nós já temos os projetos básicos prontos, estamos chegando nos projetos executivos. É uma intervenção que respeita muito o que o prédio é historicamente. E para além disso, fomos construindo camadas de sentido. Primeiro, a campanha de arrecadação contou com a participação da Fernanda Montenegro, falando da relação dela com a Casa, com o TAIB, com a comunidade judaica. Agora, nesse momento em que as pessoas ainda não podem visitar o teatro, nós decidimos lançar um chatbot, que é um robô que te recebe online e responde às suas perguntas, conta histórias da Casa. Esse robô tem personalidade, ele é um velho contrarregra mal-humorado do teatro judaico. Então a gente quer aproveitar as possibilidades virtuais para criar experiências outras que não só viewing rooms e lives. Tentar não apenas reproduzir uma experiência analógica no espaço digital, mas fazer algo diferente. Isso é uma coisa que a Ana Druwe, da nossa comunicação, tem falado muito. E também nesse sentido vamos ter uma peça, dirigida pela Martha Kiss Perrone – uma remontagem de Um Sonho de Goldfadn, enredo de Jakub Rotbaum dos anos 1940 – que está sendo filmada lá no teatro. E é uma loucura, montar uma peça em ídiche em plena pandemia! Isso vai virar uma espécie de instalação audiovisual projetada no segundo andar [com data a definir], uma experiência imersiva. É uma coisa mesmo para chacoalhar os fantasmas, porque estamos lá com a mão na massa, falando dessas várias gerações que por ali passaram.

ARTE!✱ – Você falou já do assunto, mas acho importante aprofundar um pouco na questão financeira e administrativa da Casa, considerando que se já era difícil captar recursos anteriormente, o quadro parece ainda mais complexo agora…

De modo geral, 2021 está parecendo com aquelas séries em que a segunda temporada é feita com menos dinheiro, sabe? Então estamos preocupados. Para 2020 nós tínhamos mais recursos captados, e agora em 2021 a crise está batendo de maneira ainda mais radical. Claro, temos a vacina, mas quando é que vamos ser vacinados? Então vai ser um ano difícil. E inclusive pensando nos mecanismos de incentivo à Cultura. O Proac ICMS foi cortado do dia para a noite em São Paulo, por um governo que inclusive tem um diálogo com a classe artística. Não era o governo federal, que não tem diálogo nenhum. Então nesse momento o meu jeito de ser otimista é se preparar para o pior.

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Livros e publicações distribuídos na Casa durante a pandemia. Foto: Camila Svenson

Ao mesmo tempo, ano passado tivemos picos de filantropia, de doações, e acho que isso pode se manter este ano. Se continuarmos sendo úteis, talvez a gente consiga levantar recursos. E também estão surgindo coisas. Tem um projeto que chama South South, e nós fomos uma das três instituições sem fins lucrativos do mundo escolhidas – ao lado do Raw material (Dakar, Senegal) e do Green Papaya Project (Manilla, Filipinas) – para receber uma porcentagem das vendas de obras de um leilão de arte. E é muito legal, porque a gente sempre fala para as pessoas do mundo da arte que nós somos um espaço de arte, mas costumam nos ver como uma coisa mais periférica. E de repente as pessoas estão reparando que de fato também fazemos parte desse universo. Na verdade, precisaremos cada vez mais também depender de associações internacionais. A gente recebeu recentemente apoio do British Council, do Relief Fund (do Ministerio das Relações Exteriores da Alemanha) e da Foundation for Art Iniciatives (Ffai).

Mas enfim, nós contingenciamos recursos e temos garantida a programação para este ano, com verba captada via Lei de Incentivo à Cultura, parcerias, associados e o programa de amigos. Então a minha preocupação maior é realmente 2022. Porque e se a gente não captar no fim desse ano, como vamos fazer? Vamos ter editais? Ao mesmo tempo, a Casa do Povo voltou a funcionar com tudo quando estava começando a crise econômica, por volta de 2012 e 2013. Então a gente é especialista em crise.

ARTE!✱ – Sem falar na crise da qual a Casa vinha há 30 anos né, quase fechada…

Sim… E no meio disso tudo, agora estamos fazendo algumas apostas ousadas. Contratamos novas pessoas, aumentamos algumas remunerações para consolidar a equipe. Então estamos apostando, mesmo em meio à crise, nessa consolidação. Porque a gente acha que é isso que vai salvar a instituição. A Casa do Povo funciona com pouco, o orçamento esse ano está estimando em R$ 1,9 milhão. Parece muito, mas não é. Então a gente tem espaço para crescer ainda, não tem gordura, e somos flexíveis o suficiente para nos adaptar.

ARTE!✱ – Por fim, eu queria fazer mais uma pergunta relacionada ao contexto político. Nós temos, já antes da pandemia, um governo federal que tem promovido fortes ataques ao setor cultural, tanto com corte de recursos quanto com atitudes que beiram mesmo a censura. Como é trabalhar, sendo um centro cultural, neste contexto?

Sim, isso é muito preocupante. O que aconteceu agora com o instituto Vladimir Herzog [que teve seu plano anual vetado para captação via Lei de Incentivo] é no mínimo curioso. Ao mesmo tempo que quando a gente estava com uma democracia funcionando melhor também não dá para dizer que a área cultural havia deixado de ser precária – mesmo com os pontos de cultura e outras políticas incríveis. Porque existe sempre esse mote de “consiga seus recursos, vá atrás de financiamento privado”. E a gente nunca pede para um físico ser popular, por que é que temos que pedir para um museu ser popular? Sendo que o museu também cria conhecimento, memória, não é apenas um espaço de espetáculo. Então acho que já vivíamos uma espécie de censura embutida no entendimento neoliberal do que é cultura, que era uma censura econômica. Agora a gente vê uma espécie de fantasma do passado, que é uma possível censura política. Mas, como tudo no Brasil, isso se dá numa espécie de legalidade, por meio de comissões que atrasam, recusam etc. Então fica difícil definir exatamente a censura, mas, que existe um clima geral de desconfiança, isso é nítido; que tem uma insegurança econômica e jurídica, tem.

Ainda assim, voltando à questão mais econômica, acho que a gente também já é “safo”. Diferentemente do que vejo na França, onde um centro cultural depende quase totalmente de um convênio com o Estado, nós aqui somos muito mais acostumados a sobreviver no ambiente adverso. E a criar estruturas, por mais frágeis e precárias que sejam. Então é claro que a gente deseja e precisa de melhorias e programas sólidos, mas quero dizer que a situação não é totalmente binária. Enfim, o contexto é nebuloso e nós estamos preocupados, mas não desesperados. Já costumam ser tão poucos apoios públicos que quando a gente cai não é de muito alto. Mas precisamos lutar contra isso, com as ferramentas que temos, porque cultura é um direito básico. Não tem arrego.

Editorial: Na debacle…

Foto vertical, preto e branco. Patrícia Rousseaux, Diretora Editorial da artebrasileiros, aparece em primeiro plano. Usa uma máscara branca com a silhueta de folhas e galhos como estampa. Os olhos passam uma expressão de calma. Tem os cabelos ondulados na altura dos ombros e a cabeça levemente inclinada para a esquerda. Mergulhados em um país à deriva, envolto na mentira e no cinismo, com mais de 2 mil mortes diárias e sem políticas decentes de proteção à população, descobrimos que o que nos permite estar em pé é possuir uma ética capaz de almejar um mundo melhor.

Todas as matérias desta edição mostram a pincelada singular que artistas e gestores jovens, fotógrafos, críticos e acadêmicos imprimem ao seu trabalho tentando superar o sofrimento e, através de iniciativas sensíveis, compreender o humano.

Há também uma leitura do passado, como no redescobrimento da obra de Glauco Rodrigues, onde suas imagens “transcendem as especificidades de sua época, forma ou conteúdo para abordar o presente de maneira inquietante”. Esta frase, dita pelo crítico Peter Eleey a respeito da exposição September 11, realizada no MOMA PS 1 (Nova York), é lembrada pelo filósofo Hal Foster em seu último livro, O que vem depois da Farsa. O crítico se referia a como imagens da fotógrafa Diane Arbus, de 1956, ali expostas, eram ressignificadas para o espectador quase 50 anos depois, após os acontecimentos da derrubada das Torres Gêmeas.

Aliás, o livro de Foster, comentado nesta edição por Fabio Cypriano, crítico de arte e jornalista, traça um panorama sobre os aspectos sombrios e as reações de artistas e instituições culturais a “um mundo que nos fugiu de controle”, onde “nada está garantido”. Ainda assim ele formula uma reflexão fundamental que nos convoca a ir em frente: “É aqui que meu outro termo ‘debacle’ entra em cena [o autor faz referência ao termo chave do livro, ‘farsa’]. Também deriva do francês ‘queda, colapso, desastre’ mas sua raiz é débâcler, ‘libertar’. Debacle poderia inclusive indicar uma dialética entre romper e fazer diferente em relação a convenções, instituições e leis. Tal é a oportunidade no período presente de convulsão política: transformar a emergência disruptiva em mudança estrutural, ou pelo menos, pressionar as brechas na ordem social em que é possível resistir ao poder e reelabora-lo.”

Como resposta a esta ambígua disrupção, resolvemos investir numa divisão de arte✱formação. Um Programa de Extensão Cultural de ensino a distância onde, com especialistas e professores renomados, possamos, além de informar, sistematizar conceitos fundantes da arte em conversa permanente com outras disciplinas como a psicanálise, a filosofia, a história e a ciência. O lançamento acontece em abril com o primeiro curso, ministrado pelo curador e pesquisador Moacir dos Anjos e pelo filósofo e professor Ernani Chaves. Serão 36 horas em 16 encontros ao longo dos meses de abril, maio e junho (saiba mais sobre o curso).

No atual contexto, é possível ver uma única vantagem em tanto tempo de isolamento. Tivemos acesso à tecnologia de forma a torná-la menos uma vilã e mais uma ferramenta de apoio na solidão, para podermos manter contato com os amigos, as equipes de trabalho, poder ver mostras virtualmente e ouvir palestras e debates e acesso a uma educação permanente.

Se há um espaço onde a mentira não se sustenta e podemos exercer nossa influência, é na arte e na cultura.

Um centenário passando em brancas nuvens

Enseada de Botafogo, 1928, de Ismael Nery, nanquim e aquarela sobre papel. Acervo do Museu de Arte Murilo Mendes.
Enseada de Botafogo, 1928, de Ismael Nery, nanquim e aquarela sobre papel. Acervo do Museu de Arte Murilo Mendes.

Enquanto estudiosos e pesquisadores se preparam para a série de eventos que, a partir deste ano, dá início às comemorações do centenário da Semana de Arte Moderna, ocorrida em São Paulo em fevereiro de 1922, vão passando em brancas nuvens as comemorações de um outro centenário, de um outro evento (se assim podemos chamá-lo) também fundamental para a arte e a cultura no país, ocorrido no Rio de Janeiro em 1921: o encontro e o início da relação entre o artista Ismael Nery e o poeta Murilo Mendes.

Enseada de Botafogo, 1928, de Ismael Nery, nanquim e aquarela sobre papel. Acervo do Museu de Arte Murilo Mendes.
Enseada de Botafogo, 1928, de Ismael Nery, nanquim e aquarela sobre papel. Acervo do Museu de Arte Murilo Mendes.

Essa tão profunda amizade que uniu ambos até 1934, ano do falecimento de Ismael, interessa a todos no Brasil e sob diversos aspectos. Dentre eles, caberia salientar a forte carga libidinal que envolveu os dois amigos e que fez com que, por exemplo, Murilo Mendes se tornasse o primeiro grande colecionador de obras do amigo, aquele que – como bem lembrou Adalgisa Nery, esposa do pintor – resgatava do lixo a produção que Ismael jogava fora, recuperava sua integridade física e a catalogava.

Por outro lado, sabe-se que essa coleção, ainda com o pintor vivo, tornou-se aos poucos uma das únicas e mais importantes coleções de arte moderna da antiga Capital Federal, acervo que permitiu a vários intelectuais – entre eles o então jovem Mário de Andrade – entrarem em contato com a obra de Ismael.

Além da importância de estudos mais específicos sobre essa coleção de obras de Ismael formada por Murilo (que bem exemplifica o desejo do jovem poeta manter para si pelo menos parte do amigo), cabe ressaltar as transformações pelas quais ele passaria após a morte de Ismael, transformações essas que se iniciaram ainda durante seu velório, quando Murilo foi levado a um verdadeiro êxtase místico, tendo sido possuído por Jesus Cristo através do espírito de Ismael Nery – episódio narrado por Pedro Nava em seu livro de memórias, O círio perfeito [1].

Essa experiência, que levaria o então jovem anarquista Murilo Mendes para o catolicismo de Ismael, também teria outra consequência: a partir de meados dos anos 1930 (após a morte do amigo), Murilo se apaixona ou deixa aflorar plenamente sua paixão por Adalgisa, que o rejeita várias vezes. 

Esses poucos dados me parecem de interesse suficiente para um estudo biográfico de Mendes, a partir de um ponto de vista psicanalítico. Afinal, se de início ele quer reter o amigo pela preservação das obras que este jogava fora, com sua morte o poeta (após o processo de possessão no velório) parece ter se transformado no próprio amigo, assumindo sua religião, suas preferências estéticas (como será mencionado ainda aqui) e a viúva. 

Mas, apesar de todo interesse dessa história, a meu ver, nela não reside a única importância dessa amizade que este ano completa cem anos de seu início. Embora até hoje tenha sido pouco estudado, sabe-se que Ismael Nery promovia várias reuniões em sua casa, onde desenvolvia seus talentos retóricos, dissertando sobre filosofia, religião, estética etc., tendo como ouvintes um grupo formado por amigos que, mais tarde, se transformariam em referências para a arte e para a cultura do país: o próprio Murilo Mendes, mas igualmente Jorge Burlamaqui, Mário Pedrosa, Antonio Bento, Alberto da Veiga Guignard e Jorge de Lima, entre outros.

“Gloria do artista”, 1933. Alberto da Veiga Guignard.

Foi durante essas reuniões que Ismael Nery teve a oportunidade de explicitar seus postulados filosóficos que, na sequência, eram registrados por seus “discípulos” Mendes e Burlamaqui. É dentro desses postulados que se percebe uma original e, ao mesmo tempo, bizarra conexão entre a estética surrealista e o catolicismo, proposição que já teve seus primeiros aprofundamentos no livro de Thiago Gil Virava, Uma brecha para o surrealismo [2].

Ao unir à sua prática pictórica, marcada pelo surrealismo, as especulações essencialistas/católicas, Nery desenvolverá uma poética em que o conceito de beleza surrealista – “o encontro fortuito de um guarda-chuva e uma máquina de costura numa mesa de operação”, de Lautréamont – ganharia uma dimensão mística, fato que o singulariza dentro do quadro geral da arte brasileira.

 

Um dado de interesse é que a articulação entre certos postulados surrealistas atrelados ao essencialismo “católico” também será perceptível na produção poética de Murilo Mendes. A essa poesia, marcada pelos ensinamentos do artista amigo, no entanto, Mendes irá atrelar um peculiar prosaísmo que, igualmente, irá singularizar sua produção poética no universo da lírica brasileira.

Fotomontagem do livro "A pintura em pânico", de Jorge de Lima.
Fotomontagem do livro “A pintura em pânico”, de Jorge de Lima.

Essa conexão entre as práticas de Nery e Mendes com os pressupostos do surrealismo “católico” ganhará desdobramentos após o falecimento do pintor. Se sua “presença” é visível na produção pictórica do então jovem Guignard (e estará ainda presente em suas foto-colagens nos anos 1940 e 1950) [3] , impossível não perceber como também está presente no trabalho que o poeta e pintor Jorge de Lima irá produzir ainda em meados dos anos 1930. Refiro-me a uma série de fotomontagens que Lima realizará, calcado no exemplo fortíssimo de Max Ernst, e tendo Murilo Mendes como parceiro.

Infelizmente parecem não ter sobrevivido exemplares dessas fotomontagens feitas em parceria pelo poeta e pelo poeta/pintor, o que não invalida, no entanto, a ação conjunta de ambos, no sentido de fazer expandir a produção de obras surrealistas no país. Sabe-se apenas que Jorge de Lima seguirá produzindo novas fotomontagens solitariamente e que, em 1943, publicará o livro de fotomontagens A pintura em pânico, com prefácio do próprio Mendes.

***

Passados cem anos do início da profícua amizade entre Nery e Mendes, nota-se que ainda há muito a se estudar e a se escrever não apenas sobre a particular relação que os unia, mas, sobretudo, pelo viés – ou brecha! – que ambos abriram para o desenvolvimento particular do surrealismo no Brasil, com ressonâncias claras nas produções de Guignard e Jorge de Lima.

Apenas esse fato já seria motivo para comemorar tão importante encontro ocorrido em 1921 e que agora completa cem anos.


 

[1] NAVA, Pedro. O Círio perfeito. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1983.
[2] VIRAVA, Thiago Gil de Oliveira. Uma brecha para o surrealismo. São Paulo: Alameda, 2014.
[3] Sobre Guignard e a fotomontagem, ler – CHIARELLI, Tadeu (cur.). Apropriações/Coleções. Porto Alegre: Santander Cultural, 2002