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Frantz Fanon, a força da linguagem

O psiquiatra, escritor e militante anticolonial Frantz Fanon
O psiquiatra, escritor e militante anticolonial Frantz Fanon. Foto: Arquivo Frantz Fanon/Divulgação

*Por Eugênio Lima

Reembarcar nesse mundo Fanon foi muito intenso. Lembrei de coisas que tinha esquecido e pouco a pouco fui reconstruindo tudo, desde a minha primeira leitura, em 2014, até hoje.

A primeira vez que voltei ao livro de Frantz Fanon foi quando resolvi que ele seria a minha preparação para a mediação do debate “Arte e Sociedade: a Representação do Negro”, em maio de 2015, no Itaú Cultural em São Paulo. O debate foi realizado em resposta às manifestações do público com relação à peça A Mulher do Trem, de Os Fofos Encenam, acusada de racismo. Quero deixar explícito que mediar tal encontro não foi uma atividade fácil, tampouco agradável. Em muitos momentos, os paradoxos e contradições da função “mediador” me deixaram muito desconfortável. Apesar de entender tudo como parte de um grande processo histórico e saber que o debate teve um impacto catalisador para a discussão do racismo na sociedade brasileira e sua relação com a cultura e a arte, tal evento me traz uma lembrança ácida e órfica.

Pele negra, máscaras brancas, de Frantz Fanon, publicado pela editora Ubu em 2020 (320 p.). Foto: Divulgação
Pele negra, máscaras brancas, de Frantz Fanon, publicado pela editora Ubu em 2020 (320 p.). Foto: Divulgação

É deste ponto de partida arbitrário que inicio a minha jornada com o livro Pele Negra, Máscaras Brancas, de 1952, que hoje tem uma nova edição em português feita pela Ubu Editora, que é primorosa. A leitura dessa edição, traduzida por Sebastião Nascimento com a colaboração de Raquel Barreto, começa com o prefácio da Grada Kilomba, segue com os textos complementares de Francis Jeanson e Paul Gilroy, o posfácio de Deivison Faustino e se encerra com o texto de Homi K. Bhabha. É um percurso incrível que cria uma malha intensa de contexto, reflexão, crítica e beleza e traz a magnitude e a complexidade da obra de Fanon. Ler este livro é uma imersão no pensamento do autor e não há como sair ileso. Sua escrita fere, queima e nos arremessa num turbilhão de pensamentos e sensações.

Além disso, existe a matéria do tempo que opera sobre a obra, tornando a leitura, às vezes, um exercício muito difícil, pois, diante de tanta conceituação, como encontrar uma leitura própria? Como buscar na própria obra algo que reverbere para além dela mesma? E, principalmente, se existem diversas leituras possíveis deste livro primoroso feitas a partir de escolas de pensamento e ação distintas, quem é você, leitor/leitora, neste diálogo com Fanon?

Não, cara leitora/caro leitor, eu também, como o autor, não venho armado com verdades definitivas, ou melhor, “não chego armado de verdades categóricas”. O que pretendo deixar explícito é que ler Fanon é estar diante da cisão, é caminhar num universo intenso de desejos, urgências, tensões entre cultura e classe, raça e sexualidade, ironia e poesia, voz e escritura, entre outras tantas coisas. É ser atravessado por tensões que precipitam a ruptura. Não há como buscar afirmações decisivas ou qualquer teoria geral da opressão colonial. Do meu ponto de vista, as questões levantadas são um jorro intelectual e poético. Refletir sobre elas é sempre lacunar, é perguntar: O que aconteceu? E depois juntar os inúmeros pedaços de si espalhados pelo chão. Como diz Homi K. Bhabha em seu brilhante texto Recordar Fanon, Eu, A Psique e a Condição Colonial:

“Essa alienação social extrema – esse fim da ‘ideia’ de indivíduo – produz, em Fanon, uma urgência incansável por uma forma conceitual apropriada para o antagonismo social da relação colonial. Sua obra se divide entre a dialética hegeliano-marxista, uma afirmação fenomenológica do Eu e do Outro e a ambivalência psicanalítica do inconsciente – sua passagem do amor para o ódio, do senhor para o escravo. Em sua malfadada e desesperada busca por uma dialética da salvação, Fanon explora os extremos desses modos de pensamento: o hegelianismo restaura a esperança na história; a evocação existencialista do ‘Eu’ recupera a presença do marginalizado; e a estruturação psicanalítica joga luz na “loucura” do racismo, no prazer da dor, na fantasia agnóstica do poder político” (p. 3).

Sei que o caminho ainda é longo até que possamos de fato desconstruir o ideário racista. Porém, reler Fanon é estar em pé na montanha dos horrores do mundo colonizado. É estar com olhar pousado numa sociedade que foi/é (?) escravocrata durante 400 anos, recebeu quase 40% do tráfico negreiro do mundo, teve o maior porto da história da escravidão moderna, que ainda hoje constrói apartamentos com quarto de empregada (senzalas nos apartamentos), que mata, mata, mata e continua matando suas crianças e sua juventude negra e que tem a maior população negra fora da África.

É estar diante do passado que não passa.

É ter a consciência que o “estado de exceção” em que vivemos é a regra.

É compreender cotidianamente que no mundo colonial em que vivemos a causa é a consequência, que mitos como o “Ser Humano” e a “Sociedade” perdem a sua base de sustentação e que a vida gira num círculo vicioso e delirante.

“É fato: os brancos se consideram superiores aos negros. Mais um fato: os negros querem demostrar aos brancos, custe o que custar, a riqueza de seu pensamento, o poderio equiparável da sua mente. Como escapar disso?” (Frantz Fanon)

O psiquiatra, escritor e militante anticolonial Frantz Fanon
O psiquiatra, escritor e militante anticolonial Frantz Fanon. Foto: Arquivo Frantz Fanon/Divulgação

Evidentemente, neste espaço, não será possível discorrer sobre como a escravidão e o racismo moldaram e moldam a sociedade brasileira, bem como todos os países do continente americano criados a partir da “mão-de-obra negra” escravizada, ou sobre por que o Haiti, o único país das Américas a declarar independência e abolir a escravidão ao mesmo tempo, sofreu enormes boicotes e foi destruído sistematicamente ao longo da história.

“O que é meu

um homem só, prisioneiro de branco

um homem só, que desafia os gritos brancos da morte branca

(TOUSSAINT, TOUSSAINT LOUVERTURE)”.

Aimé Césarie, Diário de um Retorno
ao País Natal (1939, p. 46)

Quero deixar “claro” que o meu maior desafio ao ler Fanon foi compreender o que significa uma identidade não existir na sua própria língua, seja ela escrita ou falada. Essa mesma língua na qual escrevo mantém praticamente intacta as relações de poder e violência que a constituíram. O português preserva a sua herança colonial e patriarcal branca no centro de sua dimensão política. As palavras que usamos definem o lugar de uma identidade e para nós, negros e negras e todas as humanidades subalternas e racializadas, a primeira batalha para existir é no campo da linguagem. Como já disse o Racionais MC’s: “Essa porra é um campo minado”.

É forte a percepção de que tenho que existir imerso em uma língua que me aparta, me “denigre” e me “judia”, em um idioma no qual o universal é masculino – aliás, o próprio Fanon foi bastante criticado pela universalização do masculino como o sujeito do pensamento humano. Todos esses mecanismos nos afastam do pleno reconhecimento das humanidades racializadas, as quais foram e são transformadas pela hierarquia racial do projeto colonial em humanidades subalternas, sem agência plena no mundo dos vivos.

Mas se a presença não está inscrita na língua, o extermínio está. O genocídio negro e indígena no Brasil é uma realidade.

Pele negra, máscaras brancas, de Frantz Fanon, publicado pela editora Ubu em 2020 (320 p.). Foto: Divulgação
Pele negra, máscaras brancas, de Frantz Fanon, publicado pela editora Ubu em 2020 (320 p.). Foto: Divulgação

Assim como eu nesse artigo, Fanon escreve na língua que o aparta, que tenta embranquecê-lo e que, em última análise, o aniquila. E isso, o nosso querido Lima Barreto já sabia:

“[…] A língua é a mais alta manifestação da inteligência de um povo, é a sua criação mais viva e original; e, portanto, a emancipação política do país requer como complemento e consequência a sua emancipação idiomática.”

Lima Barreto, Triste fim de Policarpo Quaresma (1915, p. 26)

Não é por acaso que Pele Negra, Máscaras Brancas começa com um poema/introdução, no qual conceitos, poéticas, manifestos e desejos se entrecortam. Não é à toa que o primeiro capítulo seja intitulado “Negro e a Linguagem” e que a sua primeira frase seja: “Conferimos importância fundamental ao fenômeno da linguagem”. A luta é, sobretudo, sobreviver diante da linguagem que denigre, seja para existir como sujeito (agente no mundo dos vivos), seja como representação simbólica.

A seguir, algumas das palavras fanonianas que atravessaram os tempos:

“Falar é ser capaz de empregar determinada sintaxe, é se apossar da morfologia de uma outra língua, mas é acima de tudo assumir uma cultura, suportar o peso de uma civilização.”

“[…] O problema que enfrentamos neste capítulo é o seguinte: tão mais branco será o negro antilhano, quer dizer, tão mais próximo estará do homem verdadeiro, quanto mais tiver incorporado a língua francesa. Não ignoramos que essa é uma das atitudes do homem diante do Ser. Um homem que possui a linguagem possui, por conseguinte, o mundo expresso por essa linguagem e implicado por ela. Pode-se ver aonde queremos chegar: existe no domínio da linguagem uma potência extraordinária.”

Por fim, deixo aqui o convite para que mergulhem nessa jornada sem volta que é ler e reler Pele Negra, Máscaras Brancas e suportem o atravessamento da força da linguagem.


*Eugênio Lima é Dj, ator-Mc, diretor de teatro, pesquisador da cultura afro-diásporica, membro-fundador do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, da Frente 3 de Fevereiro e do Coletivo Legítima Defesa.

Politizando o mercado de arte: como novas propostas têm trazido à tona questões de raça, gênero e orientação sexual para o circuito

Integrante da plataforma Piscina, Juh Almeida expôs a obra A woman speaks no SP-Foto VR
Integrante da plataforma Piscina, Juh Almeida expôs a obra "A woman speaks" no SP-Foto VR. Foto: Cortesia Piscina e artista

*Por Ana Letícia Fialho e Luciara Ribeiro

O resultado das últimas eleições, tanto no Brasil como nos EUA, foi marcado por presenças que, de alguma maneira, apontam um desdobramento dos atos antirracistas que cresceram no mundo a partir do mês de julho, quando o assassinato do afro-estadunidense George Floyd e o movimento Black lives matter mobilizou multidões de pessoas pelo mundo. Foi neste período também que, em meio a crise pandêmica da Covid-19, esse debate cresceu dentro do sistema das artes brasileiro, adentrando o espaço das instituições e exigindo posicionamentos e ações mais assertivos. De lá pra cá vimos o aumento de discussões que pautaram o revisionismo crítico dos museus, acervos e políticas de aquisição; a contratação de mais profissionais negros, indígenas e trans para cargos de coordenação, curadoria e gestão; abordagens em torno das linguagens e metodologias adotadas pela academia e as mídias artísticas, entre outras. Apesar do empenho de diversos agentes e da maior visibilidade alcançada por tais questões, poucas foram as alterações efetivas concretizadas.

Embora possamos nos deixar embalar por exemplos positivos que vêm se multiplicando, cabe destacar aqui pesquisas que evidenciam o longo caminho ainda a ser percorrido. Os primeiros resultados do Mapeamento de curadores negros, negras e indígenas, realizado de modo colaborativo através das redes sociais com a coordenação de Luciara Ribeiro e divulgado em parceria com o Projeto Afro e o Coletivo Trabalhadores de Arte, demonstra que mesmo com o aumento das contratações de curadores não brancos e com a abertura de exposições que contam com a participação desses profissionais, dos 76 curadores negros e dos 20 indígenas listados, 80% deles atuam de maneira independente/autonoma, sem vínculos efetivos com as instituições museais, artísticas e culturais. Sem desconsiderar as escolhas pessoais de cada um, esse dado revela baixa taxa de empregabilidade formal dos curadores negros e indígenas.

A MUNA, Mulheres Negras nas Artes, fundada por Fabíola Rodrigues e Mariana de Matos, lançou em 2017 uma pesquisa precursora em evidenciar a grande desigualdade de raça e gênero existente no sistema das artes no Brasil. Os resultados, divulgados na página da MUNA no Facebook, informam que nas 30ª, 31ª e 32ª Bienais de São Paulo, por exemplo, participaram 390 artistas, entre os quais 45 mulheres, das quais apenas quatro artistas negras. A pesquisa também levantou números do mercado de arte: uma amostra de 5 galerias do Sudeste (A Gentil Carioca, Celma Albuquerque, Mendes Wood DM, Nara Roesler e Vermelho) computava um total de 160 artistas representados, entre os quais 56 eram mulheres e apenas 1 artista negra.

Uma pesquisa mais recente, desenvolvida pelo artista, curador e pesquisador Alan Ariê, em 2019, mapeou as diferenças de gênero, raça e local de nascimento de 619 artistas representados por 24 galerias da cidade de São Paulo, e foi divulgada através de um perfil criado nas redes sociais, o Negrestudo. Um dado que diz muito sobre a reatividade do mercado de arte em tratar do tema foi a recusa expressa de algumas galerias contatadas em participar do levantamento. Quando da divulgação dos resultados, algumas das galerias marcadas nas redes sociais se desmascaram, evidenciando incômodo com o tema e os resultados, que apontam, por exemplo, que entre os “619 nomes levantados pela pesquisa, apenas 46 pessoas não são brancas. Destas, 27 são pessoas negras – 23 homens e apenas 4 mulheres; 14 são pessoas asiáticas – 9 homens e 5 mulheres; 4 são pardas – todos homens; e apenas 1 pessoa é indígena.”

Diante disso, não podemos fechar o ano de 2020 sem reforçar a importância de que esses debates sejam permanentes nas artes, assim como compromisso na construção de um sistema mais democrático e para todos. Se no plano institucional e curatorial esse debate já vinha ocorrendo há bastante tempo e se tornado mais recorrente e consistente nos últimos anos, no mercado de arte o fenômeno parece ser bem mais recente e ainda bastante embrionário no Brasil. Não obstante, embora possam ter temporalidades distintas, tendências observadas no campo institucional e no mercado não devem ser dissociadas, afinal, o sistema da arte é composto por instâncias distintas mas interdependentes, todas sujeitas a macrodeterminantes, como os movimentos sociais e o contexto pandêmico, que têm impulsionado e mesmo acelerado mudanças no setor.

Nesse sentido, vimos algumas ações ocorridas neste ano que merecem destaque. A p.art.ilha, que surgiu como um coletivo de galerias para pensar em estratégias coletivas e compartilhadas de âmbito comercial e institucional, hoje reúne cerca de 40 galerias de distintas localidades e propostas curatoriais. Além das ações pensadas para a atuação externa, são recorrentes discussões e contribuições colaborativas (crowdsourcing) para organização interna desse setor. Como exemplos podemos citar a criação de uma listagem unificada de curadores e suas linhas de pesquisa, uma planilha conjunta de prestadores de serviço e indicações de transportadoras e a possibilidade de dividir e planejar custos em traslados de obras para o mesmo destino, que têm sido frequentes e proveitosas em termos de custo, tempo e facilidade.

Outros setores dentro do circuito da arte se fortaleceram através da auto-organização; é o caso da Art Handler Brasil, que foi criada a partir da necessidade de ações emergenciais para auxiliar os montadores de exposições de arte, e que inclusive foi uma das beneficiadas pelas primeiras ações coordenadas das galerias da p.art.ilha.

Demandas político-sociais têm também instigado a criação de novas galerias já alicerçadas em prerrogativas mais inclusivas. Pioneira nesse quesito, a Diáspora Galeria, lançada em 2019, que também participa da p.art.ilha, enxerga o diálogo com o setor e as outras galerias e agentes culturais como um caminho necessário e incontornável para expandir a presença das pautas sociais dentro do sistema da arte. Yvette Mutumba, fundadora da revista Contemporary&, em uma matéria para a ArtForum, citou a galeria como um dos dez projetos de destaque para seu ano, o que apenas reforça a importância política de novas galerias para renovar o mercado.

Registro da performance Tálamo, no Crato (CE), da artista Foto: Jaque Rodrigues/Cortesia Levante Nacional Trovoa e artista
Registro da performance Tálamo, realizada no Crato (CE) pela artista Maria Macedo, integrante do Levante Nacional Trovoa. Foto: Jaque Rodrigues / Cortesia Levante Nacional Trovoa e artista

A HOA, galeria de Igi Ayedun, também precisa ser mencionada como uma boa novidade. Lançada neste ano de 2020, a galeria se define como uma organização de arte liderada por artistas, dedicada à arte contemporânea latino-americana, e visa romper a noção de atraso e dependência do sistema europeu e norte-americano nas artes. Em seu elenco, consta apenas artistas não brancos.

Essas movimentações também reverberaram nas edições anuais da SP-Arte, que ocorreu online durante o mês de agosto, e da ArtRio, que ocorreu presencialmente no mês de outubro. Ambas, possibilitam a entrada de projetos que não se configuram especificamente como galerias de arte, mas que abrem caminhos na criação de novos modelos para a circulação e comercialização das artes. Entre eles estão a Plataforma 0101, a Nacional Trovoa e a Piscina, que, além de surgirem como propostas de renovação para o mercado, possuem como base o fato de serem  coletivos pautados em debates não hegemônicos, como o feminismo interseccional e as lutas antirracistas.

As edições Viewing Rooms da SP-Arte e SP-Foto demonstraram que com a virtualidade é possível alcançar não apenas outros públicos de compradores e galerias, mas democratizar o acesso à feira, e, em alguma medida, descentralizando-a do sudeste. Em live do dia 11 de agosto, no canal do instagram do Arte que Acontece, a diretora da feira, Fernanda Feitosa, comentou sobre o desejo de expandir a SP-Arte para outras regiões do país, descentralizando-a do eixo sudestino e contribuindo para outras noções da produção nacional. Promover o debate sobre a geopolítica das artes no campo nacional e internacional em uma feira com a projeção da SP-Arte se faz fundamental, visto que em sua estrutura ainda se mantém a presença majoritária de galerias dos eixos economicamente favorecidos. Talvez, entender a configuração das artes por via dos Sul-Sul’s geopolíticos possibilite a ampliação de perspectivas para as artes, tendo a inclusão das regiões do norte, nordeste e centro-oeste brasileiros, assim como Ásia, África e América Latina na mesma medida que as demais.

"Azul Profundo II', do duo Takeuchiss, representado pela Pisicina, plataforma para mulheres artistas, no SP-Foto VR
“Azul Profundo II”, do duo Takeuchiss, representado pela Pisicina, plataforma para mulheres artistas, no SP-Foto VR. Foto: Cortesia Piscina e artista

A ativação do virtual como espaço para a comercialização não foi utilizado apenas pelas feiras. Na busca de alternativas acessíveis, artistas se reuniram em coletivos para comercializar suas obras. Uma dessas experiências foi o Birico, uma plataforma digital organizada por 40 artistas de diversas regiões do país e com condições sociais diferentes, que vendem impressões gráficas de seus trabalhos com o intuito de gerar um fundo emergencial para seus participantes e para ações na Cracolândia, como uma “Residência Artística Social” oferecendo moradia e formação em diferentes áreas, podendo as produções realizadas serem comercializadas e contribuírem na geração de renda.

Ação do Birico na Cracolândia. Foto: Cortesia Birico
Ação do Birico na Cracolândia. Foto: Cortesia Birico

Não há uma previsão segura sobre quando as atividades do mercado de arte, fortemente ancorado em relações pessoais e atividades presenciais, poderão se restabelecer plenamente. Mudanças significativas estão em curso, relacionadas à forma de produção, exibição, circulação e consumo de arte, exigindo adaptações e transformações dos modelos de negócios, onde as estratégias digitais assumem uma relevância inédita. Dessa capacidade de reinvenção e de ação dependem a sustentabilidade e mesmo a sobrevivência de empresas e agentes que atuam no mercado de arte, enquanto a pandemia durar, e também a recuperação do setor num cenário pós-pandêmico no qual o contexto econômico mais amplo seguirá bastante adverso. Acreditamos que uma das mais relevantes e positivas transformações em curso se dá na direção de um sistema das artes mais diverso, includente e colaborativo. Iniciativas como p.art.ilha, Diáspora, Birico e todas as demais citadas, já estão apontando para esses novos caminhos.


*Ana Letícia Fialho é gestora, professora e pesquisadora nas áreas de economia da cultura e mercado de arte. Doutora em Ciências da Arte e da Linguagem, é assessora para o projeto do Novo Museu do Ipiranga.
*Luciara Ribeiro é educadora, pesquisadora e curadora. É mestra em História da Arte pela Universidade de Salamanca e pelo Programa de Pós-Graduação da UNIFESP. É técnica em Museologia pela ETESP e diretora de conteúdo da Diáspora Galeria.

Arte!Afro-Brasileiros

O professor Renato Araújo da Silva. Crédito: Rosana Gonçalves
Por Renato Araújo da Silva

Ainda com crise de identidade e às margens do centenário da Semana de 22 e do período africano de Picasso, a arte brasileira, em sua “virada cultural”, continua o seu rumo procurando possíveis respostas para o velho desafio modernista. Como a arte do início do século XXI poderia fazer frente ao seu uso instrumental asfixiante dentro do multiculturalismo, identitarismo e a aflição de se tornar uma mera inclusão social (financeira) de alguns artistas e instituições, quase todos ciclicamente à beira da insolvência, quer seja econômica, moral ou existencial? Cem anos percorridos, aboliu-se mesmo o futuro primitivo?

Para o nacional modernismo, parece que o desafio estrutural era uma busca sincera por uma identidade brasileira distinta das imposições externas, ainda que vagamente identificada às culturas mestiça, indígena e negra nacionais. Como técnicos, os modernistas quiseram organizar essa equipe, naquilo que os atletas tinham de mais “primitivo”, “genuíno” e “autêntico” – isso a despeito da agressividade e violência com que foram tratados no país desde sempre. Enquanto o fundamento dessa identidade afro-indígena brasileira no flerte próprio das classes médias culturais esteve continuamente em ebulição, não supúnhamos que também estivesse em jogo.

Passado esse tempo, o que impediu a realização da vitória modernista neste jogo da arte e da sociedade? Dito de outra forma, por que o “herói da nossa gente” e a divisa tupi or not tupi deixaram rapidamente de fazer sentido já lá atrás, em seu lapso histórico original, porém isolado, quase idealista? Os historiadores sociais que se debruçaram sobre esse problema culparam acertadamente as modificações advindas da segunda grande guerra (a política da boa vizinhança), as ditaduras Vargas e a militar, o fado provinciano daquele Brasil “país do futuro” eternamente agrário, atado ao passado colonial, oligárquico, clientelista, entre outros atrasos que tanto nos definem. No entanto, há algo de extremamente notável na arte brasileira, ainda difuso e mesmo assim bastante óbvio e que, tão logo emerge, vai sendo constantemente varrido para debaixo do tapete: no campo onde se joga a arte, uma das regras do jogo é o racismo.

Tal como aquela agressividade que o ego (identidade) introjeta, internaliza no sentido de si próprio criando o superego e o sentimento de culpa, a agressividade contra a identidade mestiça ou afro-indígena na civilização brasileira – ou seja, o nosso racismo – expressou-se na forma de uma necessidade de punição e autopunição. Como o indígena foi absolvido dentro de nós citadinos ou fora expulso do jogo e desde o início desterritorializado, como é extemporâneo, isto é, já nasceu assassinado, que se puna, então, o negro! 

Antes das rupturas e interrupções “por falta de luz”, o jogo modernista prosseguia com excelentes jogadores que explicitaram a identidade afro-indígena brasileira; na “zaga”: Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Caio Prado Jr.; tivemos poucos bons goleiros!, mas atacantes, sim, muito bons: Guerreiro Ramos, Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro, Mário Pedrosa, Antônio Cândido, Joel Rufino, entre tantos outros. Mas hoje, com estes jogadores física e ideologicamente mortos e com este jogo sem possibilidades de prorrogação, quão gigante deverá ser o peso para a consciência da historiografia da arte brasileira se o negro e o índio tiverem de ser incluídos “por cotas” ou apenas na forma do sentimento de culpa?! Pior ainda, que reedição de um desastre social emergiria se essa inclusão acontecesse no mundo artístico apenas por pressão forçada a partir do multiculturalismo (em sua contraditória evocação pós-racial)? Que estratégia de negócios acolheriam os negros em museus e galerias senão a mesma dos algoritmos e anúncios focais – a dos números? No momento desse massacre cultural da sociedade digital –, esta que ajudou a dar o último golpe para fazer desaparecer não só a identidade negra dentro da brasileira, mas o próprio interesse numa identidade qualquer que não fosse a consumidora – o fundamento afro-índio-mestiço-luso-brasileiro é vislumbrado agora na forma desse game over deprimente que nos acorda: a perda da bela partida antropofágica que parecia de vitória tão certa aos olhos joviais de um Mário e um Oswald
de Andrade.

Os Macunaímas das ruas, assim como os Timótheos e Estevam Silvas dos museus, estão sendo cirurgicamente exterminados na raiz. Premia-se o garrancho na estética da sociedade de consumo, porque o escândalo foi deglutido e naturalizado. É por isso que hoje, apesar do noticiário mainstream e dos “mapas da violência”, o racismo na era digital volta à esfera da indiferença ou do tabu. Na era da pós-verdade e do “salve-se quem puder” impostos pelas grandes corporações e novas oligarquias, a diminuição da dignidade humana é proporcional ao aumento da dignidade da máquina, assim como a elite negra e os negros artistas ora chamados ao gueto pelas ondas de valorização institucionais das quais participam como alimentos, o fazem dentro de um risco calculado: não por dignidade e talento, mas pela vazão deste sentimento de culpa mesclados ao cumprimento das ordens do politicamente correto.

Como falar agora de arte brasileira, corpo negro, consciência negra, arremedos de cidadania, resquícios da dialética do senhor e do escravo se todos nós somos mais ou menos escravos dos números e dos algoritmos? Apenas para falar o óbvio ululante de que “uns são mais iguais que outros”? De que negros também fazem arte? De que Black lives matter? A única resposta possível é que tendências sociais muito mais profundas advindas da trágica (ou patética) lógica cultural do capitalismo tardio impuseram a todos nós, seres biológicos, que joguemos no mesmo time: o dos derrotados; mas sem crises de identidade, porque não há como falar de uma arte brasileira se ela não for realmente brasileira.

Arte afro-brasileira, a propósito, não é um estilo, não é uma vanguarda, sequer mesmo um movimento social ou artístico; é a arte do Brasil – senão pleonasmo. Mas, neste caso, ter vergonha do que somos ou tentar nos livrar do prefixo “afro”, deste substantivo composto, união semântica de palavras tão sinonímias, supondo que com isso aliviaríamos tensões sociais, pesos de consciência ou pressões temáticas sobre uma certa “liberdade do artista”, seria o mesmo que refrear aquela pulsão carnavalesca que reside em cada brasileiro e força-la de volta para o inconsciente de onde invariavelmente ela voltará a gritar: Arte!Afro-Brasileiros!

Geração em diálogo

Detalhe da obra "Parede da Memória", de Rosana Paulino. Foto: Isabella Matheus/Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Doação APAC, 2018

*Por Claudinei Roberto da Silva

A julgar por aquilo que observamos à partir da movimentação de museus, instituições culturais, galerias, espaços formais e informais, a produção de artistas negros e negras do país vem confirmando a característica resiliência daquela parte da população da qual esses artistas fazem parte. Pois suas realizações vêm ganhando visibilidade e proeminência na mesma proporção em que avançam as ações antirracistas e anti-colonialistas que pretendem mitigar as mazelas sociais derivadas do racismo que asfixia e mata, e que ainda hoje é negado por aquela parcela da população que dele sempre se beneficiou.

Seria possível cogitar uma família artística afro-brasileira contemporânea? Sobre uma genealogia qualquer capaz de agrupar artistas em linhagens de projetos que por algum motivo se imantem? Essa genealogia seria de confecção tão arredia quanto qualquer outra que se refira ao povo preto brasileiro. Mas, no intuito de conter ou denunciar o epistemicidio que corre paralelo ao genocídio da população negra, a prospecção das memórias e ancestralidades dos descentes dos escravizados africanos vem se constituindo em uma das tarefas a que tem se dedicado uma parte expressiva de artistas afro-brasileiros que têm na sondagem da história, na construção de identidades e na desconstrução de preconceitos o mote de suas poéticas. Este talvez seja um índice.

Quando vivo, Sidney Amaral (1973-2017) esteve muito próximo de Rosana Paulino, que ele chamava de “madrinha”. Partilhavam ideais estéticos e a crença no poder transgressivo e transformador da educação. Sidney Amaral, a despeito de sua ascensão artística, permaneceu professor da rede pública de ensino até sua morte. Essa dupla jornada de trabalho que intercalava o ateliê e as salas de aula não contrariava Amaral ou Paulino. O magistério sempre esteve em suas cogitações e na perspectiva de ambos, o que apenas confirma a complexidade e as exigências da prática artística atravessada por preocupações de ordem social. Em comum, Paulino tinha com Amaral o interesse pela história pretérita e atual da diáspora afro-brasileira; Rosana Paulino é uma artista pesquisadora, fundamenta suas proposições a partir de diligentes investigações e isto não tem significado um esfriamento de sua poética. Pelo contrário, ela parece extrair das verdades prospectadas a contundência de trabalhos como Assentamento, e não por acaso a artista mantém em seu ateliê uma alentada biblioteca replicando a mesma atitude que, quando vivo, acalentava Sidney Amaral – que, além disso, procurava organizar uma hemeroteca onde arquivava imagens e textos os mais variados, que costumavam abastecê-lo de ideias e alimentavam sua indignação.

“Imolação”, de Sidney Amaral. Foto: Romulo Fialdini/Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Doação APAC, 2016

Em 2018 Rosana Paulino teve sua obra contemplada em uma mostra retrospectiva na Pinacoteca do Estado de São Paulo, instituição que foi dirigida pelo curador Tadeu Chiarelli, que era professor titular do Departamento de Arte da Universidade de São Paulo quando da passagem da artista por lá; foi ali que, em 1994, ainda como discente, a artista elaborou uma obra que é até agora central na sua história – A parede da memória, trabalho que seria adquirida muito posteriormente pela mesma Pinacoteca que, aliás, também adquiriu uma importante coleção de obras de Amaral.

Tanto Rosana Paulino quanto Sidney Amaral realizaram obras que exibem grande apuro técnico na sua execução. Em suas cogitações residia a ideia de que os trabalhos deveriam permanecer, resistir à passagem dos anos, como um testemunho de um tempo de transição e de transe que eles protagonizaram. Rosana Paulino além do mais é restauradora por formação, o que também explica seu rigor na execução dos seus trabalhos. Para um e outro, a técnica apurada e as formas que ela faz surgir estão à serviço de um projeto poético – são atravessados por ética e política e não dizem de virtuosismo, embora ele seja evidente, mas realçam aquela competência às vezes negada ao artista afro-brasileiro.


*Claudinei Roberto é artista visual, curador e professor de Educação Artística na USP. Foi coordenador do Núcleo de Educação no Museu Afro, cocurador da 13ª edição da Bienal Naïfs do Brasil e curador de diversas mostras, entre elas PretAtitude.

Colaboradores da edição #53

Ana Letícia Fialho é gestora, professora e pesquisadora nas áreas de economia da cultura e mercado de arte. Doutora em Ciências da Arte e da Linguagem, é assessora para o projeto do Novo Museu do Ipiranga.


Claudinei Roberto da Silva é artista visual, curador e professor de Educação Artística na USP. Foi coordenador do Núcleo de Educação no Museu Afro, cocurador da 13ª edição da Bienal Naïfs do Brasil e curador de diversas mostras, entre elas PretAtitude.


 

Eugênio Lima é Dj, ator-Mc, diretor de teatro, pesquisador da cultura afro-diásporica, membro-fundador do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, da Frente 3 de Fevereiro e do Coletivo Legítima Defesa.


Luciara Ribeiro é educadora, pesquisadora e curadora. É mestra em História da Arte pela Universidade de Salamanca e pelo Programa de Pós-Graduação da UNIFESP. É técnica em Museologia pela ETESP e diretora de conteúdo da Diáspora Galeria.


Maria Hirszman é jornalista e crítica de arte. Trabalhou no Jornal da Tarde e no Estado de São Paulo. É pesquisadora em história da arte, com mestrado pela USP. Para este número, entrevistou a crítica e pesquisadora Aracy Amaral.


Renato Araújo da Silva é pesquisador e curador. Graduado em Filosofia pela USP, é consultor pela Coleção Ivani e Jorge Yunes e pertence ao grupo de crítica de arte contemporânea do CCSP. É autor de livros como África, Mãe de Todos Nós.

Fotos: arquivo pessoal | Sérgio Silva

10ª Mostra 3M de Arte, em conversa com a natureza

"Geografia", de Cinthia Marcelle, na Mostra 3M de Arte. Foto: Karina Bacci
"Geografia", de Cinthia Marcelle. Foto: Karina Bacci

A persistência das relações entre a arte, a natureza e a cidade encontra elementos simbólicos e narrativos na coletiva Lugar Comum: travessias e coletividades na cidade, a 10ª Mostra 3M de Arte. Com curadoria bem conduzida por Camila Bechelany, as dez instalações inéditas, desenvolvidas por seis artistas convidados e quatro selecionados por edital, foram distribuídas pelo Parque Ibirapuera, colocando o visitante em estado de imersão progressiva em um campo de escuta e percepção. Um dos trunfos da coletiva foi situar as intervenções em um contexto de confronto e sentido com as diferentes correntes existentes nesta área. O campo expandido da imagem e do som se encontra no trabalho de Lenora de Barros, dentro do contexto da earcology, obra para se ouvir, com caixas de som perfiladas e drone falante que voa sobre cinco pontos do parque. Lenora criou um poema especial para esta obra: O QUE OUVE É JÁ/ONTEM É JÁ/ HOJE, AMANHÃ É JÁ. “Nas cinco diferentes leituras que faço no percurso das caixas de som, uso entonações e alturas diversas, busco gerar vários significados, focando na mensagem de que cada momento é resultado do anterior e o futuro é resultado do ontem, do agora, do momento-já”. O ponto de partida é a frase de John Cage: “O mundo se transforma em função do lugar onde fixamos a nossa atenção”, falada por ela e emitida pelo drone que dialoga com o poema O QUE OUVE. A palavra “já”, segundo Lenora, é o fio condutor da performance vocal e é repetida durante o trajeto, até se tornar um “som invertido” em que se ouve a frase “age já”. Lenora trabalhou com Cid Campos, músico e compositor, e juntos criaram uma obra sem recursos digitais, tendo só a voz da artista como matéria prima.

"O QUE OUVE", de Lenora de Barros na Mostra 3M de Arte
“O QUE OUVE”, de Lenora de Barros. Foto: Jones Kiwara

As instalações desaceleram e esticam o tempo. Camila Bechelany conduz a curadoria levando em conta que cada indivíduo é participante ativo e receptivo no meio urbano. “Nesse sentido, a questão do acesso à arte se torna imperativa e urgente diante da crescente exclusão social no mundo contemporâneo.” Lugar Comum é vivida como um ecossistema cultural com personagens já consagrados, outros menos, e há os emergentes em que ela apostou. Projeto compartilhado, traz a arte para dentro do fluxo cotidiano com a instalação Geografia, da série Unus Mundus de Cinthia Marcelle. Dezenas de metros de mangueira jogam água no lago, fazendo o caminho inverso do esperado. Inúmeras reflexões são suscitadas. Uma delas é dispor da água, elemento vital, como construção subjetiva do silêncio, dentro da narrativa da ecologia acústica. Marcelle reforça o pensamento de Argan: “A natureza é o material com que os homens fabricam o espaço”.

Também nesse sentido, Camila Sposati cria território singular com seu Teatro Parque Arqueológico, uma intervenção prospectiva que observa o Ibirapuera como território fundante, criando uma obra sonora, performática e de impermanência. Ela promove combinações entre as relações complexas que se sobrepõem em um mesmo ambiente com seus instrumentos-esculturas em cerâmica, inspirados em dois trabalhos anteriores – Teatro Anatômico da Terra e Phonosophia. Onde é o melhor lugar da palavra? O Púlpito Público, de Maré de Matos parece responder o óbvio ao discutir o espaço “palco” como um átrio onde a coletividade pode e deve ter voz. A frase “Viver é muito perigoso”, de João Guimarães Rosa, encontra seu equivalente em O Brilho da Liberdade Diante de seus Olhos e Alto Astral trabalho de Rafael RG inspirado na vida de Harriet Tubman, ativista norte-americana que em 1820 salvou dezenas de escravos, como ela, traçando uma rota de fuga a partir da observação da constelação Estrela Norte. A carta celeste foi produzida no parque em backlight, como processo de compreensão das esferas de energia luminosa. A história de Harriet virou filme e, em homenagem ímpar, seu rosto foi estampado na nota de 20 dólares.

O trabalho de Luiza Crosman é de hipóteses, O Mundo Versus o Planeta tangencia as distintas funções da ciência, propõe o entendimento sobre a diferenciação entre terra e planeta e a observação entre a arte e a ciência. Os temas de renovação estética e política materializam o presente revisitando o passado com questões como gentrificação e apagamento. O assunto é o gatilho da intervenção Entre o Mundo e Eu – A Caminho de Casa, de Diran Castro, que tem amigo cujos parentes humildes moravam no terreno do Ibirapuera antes da construção do parque para os festejos do quarto centenário de São Paulo, em 1954. A artista estuda temas da decolonização e sua instalação, uma cidade em escala reduzida, foi feita com desobediência estética e civil como alerta à gentrificação generalizada.

O distanciamento generoso entre as instalações cria pontes para experiências perceptivas, especialmente as soundscapes ligadas à ecologia acústica, teorizada por Murray Schafer, músico e ambientalista canadense. O hibridismo entre som, imagem e tempo norteia a instalação Objeto Horizonte, do Coletivo Foi à Feira, composto por Clarissa Ximenes, Gabriel Tye, Luís Felipe Porto, Matheus Romanelli e Raysa Mucunã. Uma esfera transparente de autorreflexão convida o visitante a gravar um áudio com mensagem sobre a cidade do futuro, que é enviado a um receptor que transforma as vozes em inserções aleatórias, como uma máquina do tempo. Fazendo uso de elementos primordiais à sobrevivência, vários artistas se dedicam à agro arte realizando intervenções gigantescas (land art) ou reduzidas como o Canteiro Suspenso, de Narcíso Rosário, um conjunto de caixas sobre cavaletes onde o vegetal faz parte de um acervo sensorial e orgânico. A arte é um fermento de combustão imediata e de energia criativa. Ao criar uma padaria no parque, a dupla Gabriel Scapinnelli e Otávio Monteiro atraiu o observador-performer introduzindo-o na arte de fazer o pão, criando assim um sistema que se inicia na arte e termina no que Joseph Beuys definiu como escultura social. Lugar Comum: travessias e coletividades na cidade contribui para uma reflexão crítica sobre o lugar da arte na esfera pública de uma cidade.

"Objeto Horizonte", do Coletivo Foi à Feira na Mostra 3M de Arte
“Objeto Horizonte”, do Coletivo Foi à Feira. Foto: Karina Bacci

Carta da editora

Moisés Patrício, Sem título, série: "Álbum de família", 2020. Foto: João Liberato/Cortesia Galeria Estação

Terminamos o ano com uma única certeza. Mesmo quem teve sorte e não adoeceu – física ou psiquicamente – ou perdeu o emprego, está esgotado.

Os esforços para sustentar um ano de isolamento levaram as instituições culturais a criar alternativas através do desenvolvimento de projetos virtuais, gerenciando marchas e contramarchas. Alguns desses projetos conseguiram abrir para o público presencialmente e ainda subsistirão até março/abril de 2021.

Já o Estado, na cultura, cortou investimentos, demitiu, diminuiu residências, prêmios e editais.

Estamos pessimistas. O obscurantismo que se instalou no governo brasileiro, que começou com a negação da história colonial, defendendo a inexistência de racismo no Brasil, a imunidade das milícias, a politização da justiça e a devastação do meio ambiente, luta agora abertamente contra a ciência, proclamando-se contra a necessidade de investimentos e logística em prol da vacinação.

Chacotas do presidente contra o destino de quase 200 mil mortes não foram suficientes para criar vergonha em parte da população que ainda acha que esta gestão não é responsável pelos resultados do descaso. Que insensibilidade é essa?

Partindo da arte, estamos empenhados em mostrar o quanto é possível se rebelar contra o negacionismo e a necessidade de apagar a história. A arte contemporânea se insere neste ethos. A estética e a ética não permitem se alienar desta realidade.

O final do ano foi coroado com várias manifestações específicas resultantes do incentivo a esta violência. A maioria da população brasileira que morreu vítima da violência, de Covid-19 ou da fome foi a população negra.

Nesta edição fizemos questão de ouvir colaboradores especialistas, pesquisadores, acadêmicos, curadores e artistas negros capazes de denunciar e pronunciar-se contra todo este ataque desvairado, marcando o enraizamento secular desta violência.

Se há algo que podemos fazer é incentivar a memória. Desvelar o mito da miscigenação cordial e colaborar mostrando o quanto a arte afro-brasileira e indígena somos nós.

Queremos no encerramento do ano agradecer especialmente a aquelas e aqueles que apoiam este projeto, cujo objetivo continua sendo difundir e respeitar a diversidade.

Desejamos a todos um bom descanso, com saúde, e um ano de 2021 mais esperançoso.

Pinacoteca do Estado: Acervo radical

Vista da primeira sala da Pinacoteca: Acervo, parede com retratos e autorretratos de artistas. Foto: Levi Fanan/Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo

Inclusiva e arrojada. A nova disposição do acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo, aberta no final de outubro passado, é um salto de qualidade da instituição. Na versão anterior, o acervo estava disponível em 400 obras ocupando 11 salas e outras 150 obras acessíveis em arquivos, totalizando 550 no total.

Agora, o acervo ocupa 19 salas, tanto do primeiro como do segundo andar do edifício sede, com cerca de mil obras de mais de 400 artistas. As artistas mulheres passaram de 17 para 95, e os artistas afrodescendentes de 7 para 26. Não são ainda números suficientes para dar conta de uma história da arte brasileira verdadeiramente plural, mas não há dúvida de que é um avanço a se notar, algo difícil de se perceber em outras instituições.

A disposição anterior tinha um princípio de que menos é mais, buscando dar mais visibilidade ao que estava exposto. Funcionou, e por isso é possível agora uma outra organização muito mais radical, que abandona a ordem cronológica, o que outros museus importantes como o Centro Pompidou (Paris) e a Tate Modern (Londres) já fazem há tempos.

Essa quebra na ordem temporal é substituída por três eixos: Territórios da Arte; Corpo e Território; Corpo individual/Corpo coletivo. São como grandes temas que permitem exercícios curatoriais mais livres e, ao mesmo tempo, sintonizados com reflexões contemporâneas. Aí está um dos trunfos dessa nova ordenação, que de fato parte de uma constatação bastante necessária: só é possível rever o passado com os olhos do agora. Um acervo é, afinal, o arquivo de um museu, e como ensina Jacques Derrida, “o arquivo será sempre lacunar, toda leitura será diferente”. A equipe da Pinacoteca que fez a mudança levou a sério esse princípio e deixou escolas, movimentos e termos rígidos de lado para permitir um novo olhar reflexivo – que já tem um prazo definido para terminar: 2025.

Outro diferencial importante é que a curadoria assume uma atitude realmente propositiva, onde a disposição de obras alcança um modo instalativo, já que em cada sala criam-se ambientes não só surpreendentes, como bastante contundentes.

É o caso da parede sobre autorretratos, que faz parte do eixo Territórios da Arte, onde se veem artistas acadêmicos, modernos e contemporâneos mesclados, mas o destaque acaba sendo a pintura de Sidney Amaral (1973-2017), artista negro que sempre abordou questões relativas à raça e é visto na cortante obra Imolação (2009). A imagem dele com uma arma no pescoço acaba repercutindo em todas as demais, como a apontar para o drama de ser artista negro no Brasil. É um dos momentos emocionantes da mostra e que aponta para um forte diálogo com 2020, ano em que o movimento negro conquistou grande visibilidade.

"Imolação", de Sidney Amaral. Foto: Romulo Fialdini/Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Doação APAC, 2016
“Imolação”, de Sidney Amaral. Foto: Romulo Fialdini/Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Doação APAC, 2016

Sidney Amaral, aliás, está presente em vários outros momentos da exposição, característica reservada a algumas figuras chaves nessa reorganização do acervo, o que ocorre também com Claudia Andujar, que comparece com várias imagens dos Yanomamis, por exemplo. Há uma dupla de obras que criam um diálogo genial, quando se vê a pintura Proclamação da República (1893), de Benedito Calixto, ao lado do conjunto de desenhos e aquarelas Incômodo (2014), de Amaral: a primeira a versão oficial, a segunda a visão do racismo estrutural que decorre da República.

Outra sala icônica na nova disposição é a que abriga a instalação de Jonathas de Andrade Cartazes para o Museu do Homem do Nordeste próxima de obras-primas de artistas que retrataram o povo brasileiro, como as pinturas Caipira picando fumo, de Almeida Júnior (1850-1899), Bananal, de Lasar Segall (1889-1957) e Mestiço, de Candido Portinari (1903-1962). Essa transversalidade na seleção não só revê a narrativa que costuma construir a história da arte no país como também ajuda a questionar o discurso um tanto paulista da centralidade da Semana da Arte Moderna de 1922.

Essas misturas realmente provocantes trazem um grande frescor ao museu, como que atualizando boa parte do acervo da Pinacoteca que se concentra no século 19. Uma vitrine que mistura trabalhos de Jean-Baptiste Debret (1768-1848) – um dos fundadores da Academia Imperial de Belas Artes, no Rio de Janeiro, tendo antes trabalhado na corte de Napoleão – com obras do artista indígena Denilson Baniwa é o exemplo de um gesto de descolonizar o museu efetivamente em seu coração, isto é, seu acervo.

Véxoa

A remodelação do acervo no segundo andar do museu transformou também a disposição das salas para mostras temporárias. Antes alocadas nos quatro cantos do prédio, agora elas se concentram em três salas centrais no mesmo piso. Junto com o novo acervo, a exposição que inaugura o espaço é Véxoa: nós sabemos, com curadoria de Naine Terena, a primeira mostra dedicada à arte indígena na Pinacoteca.

É significativo que uma mostra sobre a produção indígena seja organizada por uma indígena, que selecionou 23 artistas e coletivos de diferentes regiões do país. Também é digno de menção que em seus 115 anos, somente no ano passado a Pinacoteca adquiriu obras de indígenas.

A mostra parte de um princípio questionador dos limites entre arte e artesanato, revendo assim os cânones tradicionais, assim como aborda temáticas distintas: seja da defesa dos direitos humanos dos povos indígenas, seja dos processos de cura utilizados nestas comunidades.

"Tatu", Ailton Krenak. Foto: Isabella Matheus/Pinacoteca do Estado de São Paulo
“Tatu”, Ailton Krenak. Foto: Isabella Matheus/Pinacoteca do Estado de São Paulo

Cerâmicas tradicionais estão dispostas junto a novos trabalhos, como pinturas recentes de Ailton Krenak – sim, ele mesmo, o líder na Assembleia Constituinte de 1988 e uma das vozes mais potentes durante a pandemia – que retrata macacos e tatus.

Padronagens, que são marcas dos povos indígenas, são vistas em obras de Daiara Tukano, sejam em telas de pequenas dimensões, seja em uma pintura mural que retrata uma cobra.

Com a nova disposição do acervo e uma mostra indígena potente, a Pinacoteca dá sinal de que a renovação ocorre em sintonia com novos tempos e abrindo espaço não só para quem não tinha a representatividade, mas trabalhando junto com esses grupos.

 

Serviço

Pinacoteca: Acervo 

Pinacoteca de São Paulo |Praça da Luz, 2, Luz.

De quarta-feira a segunda-feira, das 10h às 18h.
Entrada gratuita

Véxoa: nós sabemos

De 31 de outubro de 2020 a 11 de abril de 2021

Pinacoteca de São Paulo | Praça da Luz, 2, Luz.

De quarta-feira a segunda-feira, das 10h às 18h.
Entrada gratuita

 

Aracy Amaral: uma pesquisadora movida pela curiosidade e pelo rigor

Aracy Amaral: “É uma batalha permanente”. Foto: Antonio Henrique Amaral/ Divulgação

Irrequieta, Aracy Amaral continua encarando o desafio de buscar caminhos para uma maior compreensão da arte e da cultura nacional. A despeito das enormes dificuldades impostas pela pandemia, vem trabalhando intensamente nos últimos tempos para dar corpo a uma exposição ambiciosa, que procura iluminar os vários modernismos que brotaram no Brasil nas primeiras décadas do século XX. A mostra, feita a quatro mãos, em parceria com Regina Teixeira de Barros, promete revelar uma trama interessante entre história, arte e pensamento nas primeiras décadas do século passado. Trama essa que, por contraste, deixa evidente uma das marcas do Brasil atual: a ausência de qualquer projeto coletivo, de superação da desigualdade e proposição de novas bases para o desenvolvimento nacional.

Pesquisadora, crítica, curadora, professora e, sobretudo, observadora atenta e curiosa da cena cultural brasileira desde a década de 1950, Aracy viveu com intensidade e vivacidade a segunda metade do século XX e as duas primeiras décadas do século atual. É, portanto, do ponto de vista privilegiado de quem se dedicou a investigar o passado e perscrutar o presente que ela conversou com a ARTE!Brasileiros. Na entrevista a seguir, ela fala sobre seus anos de formação, sobre a experiência à frente de instituições como a Pinacoteca do Estado e o Museu de Arte Contemporânea da USP, sobre alguns dos diversos temas de pesquisa aos quais se dedicou com rigor e curiosidade (como a preocupação social na arte; arte construtiva; arte contemporânea; as relações entre as culturas brasileira e latino-americana; o modernismo em geral – e Tarsila do Amaral em particular) e sobre a agonia e as adversidades decorrentes da pandemia.

ARTE! – Vamos começar falando da exposição que você e Regina Teixeira de Barros estão preparando para o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP) no ano que vem, antecipando as celebrações em torno do centenário da Semana de 1922.

Aracy Amaral – Nós vamos falar dos vários modernismos no Brasil. A ideia é ampliar, cobrindo o período entre 1900 e 1937, quando se dá o golpe de Getúlio Vargas. Abordamos então o pré-modernismo, a chegada dos modernismos propriamente ditos na década de 1920 e depois, com a queda da bolsa de Nova York, a alteração de rumos, com a federalização, o surgimento de um nacionalismo de outro gênero. Vamos passar por toda essa transformação que vive o Brasil nesse período, a eletrificação, a reconstrução de várias cidades como São Paulo e sobretudo Rio de Janeiro, enfim, o que vai acontecendo no país. As artes, nesse aspecto, são apenas uma ilustração. E nós vamos querer que no catálogo haja ensaios. Já tratamos com vários autores: Felipe Chaimovich, que vai escrever sobre o pré-modernismo; Ana Maria Belluzzo, que vai escrever sobre modernismo; sobre poesia e literatura vai escrever a  professora Flora Süssekind; o Ruy Castro vai falar sobre o Rio de Janeiro; Cacá Machado vai escrever sobre música; e Luis Felipe de Alencastro vai escrever sobre a problemática política econômica e social no país nesse período. Nós queremos que seja como um debate, um catálogo sobre o que se passou nesse período.

ARTE! – É uma mostra histórica então, com uma trama bem complexa. Você disse que nunca tinha feito uma curadoria tão difícil. Por que?

O interesse é que seja histórico. Agora, estamos tendo muita dificuldade de conseguir as obras porque as instituições se fecham, cada uma quer fazer o seu. O MAM-SP quis fazer um ano antes (das comemorações de 22) justamente para não enfrentar essa competição de obras. Mas acontece que todos recusam, pensando no que farão no ano seguinte. Claro que a Pinacoteca não abre mão da Antropofagia, e agora estamos pendentes da resposta do Museu Nacional de Belas Artes. Enfim, é uma batalha diária. Nunca fiz uma curadoria tão árdua, tão dura, a gente tem que recomeçar várias vezes. Eu e a Regina já fizemos várias relações de obras. Em um momento em que está tudo fechado, a gente não pode ir ao Rio, não se pode mais ver as obras ao vivo, não podemos falar diretamente com as pessoas, é tudo por celular, computador. É mais complicado, muito pesado. Portanto, dependemos muito da boa vontade dos interlocutores.

ARTE! – Falando em pandemia, qual você acha que vai ser o principal efeito disso tudo, pensando no futuro. Esse olho no olho, esse contato pessoal é muito importante para um trabalho de garimpo como esse, não? Você acha que a gente vai conseguir achar um novo modelo, ou que a gente retoma do mesmo ponto?

Você diz do ponto de vista museológico, ou do ponto de vista de vida?

ARTE! – Dos dois.

Acho que é um enigma, a gente não sabe. Estamos tateando, sem saber que tipo de comportamento poderemos vir a ter. Está todo mundo grudado na tela, esgotado de ter ou dar aulas por computador. A gente não sabe o que vai acontecer no dia de amanhã, se as vacinas vão sair. Principalmente num país como o Brasil, em que tudo é imponderável, fruto de caprichos eleitoreiros, não há um planejamento visando a sociedade como um todo. No caso das classes menos favorecidas, que são as que mais sofrem, com o desemprego, com falta de recursos, a situação é de caos. Vivemos um momento de espera e ao mesmo tempo caótico.

ARTE! – Fazendo um paralelo com o período da exposição que você está trabalhando, acho que essa diferença é fundamental: hoje a gente não tem projeto. Vivemos um momento de desestruturação de tudo.

Pois é. E no caso do nosso país você não sente ninguém à frente do governo, com uma capacidade pensante que diga: temos um norte, estamos projetando isso para a região Norte, isso para o Nordeste… É tudo um enigma, não existe uma firmeza. Isso é doloroso, para um país de 210 milhões de habitantes.

Na 2a Bienal de São Paulo, conversando com o critico uruguaio Nelson di Maggio. Foto: Acervo Pessoal

ARTE! – Uma coisa que você sempre defendeu, como professora, é que o aprendizado de arte se dá olhando. Como fazer hoje?

Acho que ninguém está olhando, inclusive porque os jovens não leem livros, nem do ponto de vista de literatura nem do ponto de vista de história da arte. Sei lá, eu lia muito. A gente tinha que fazer resumo, tinha que fazer apreciação, tinha uma formação que hoje não existe mais. Eu me sinto totalmente obsoleta do ponto de vista de aprendizado e do ponto de vista de o que eles leem hoje. Não é o livro em si. Acho, por exemplo, que só se debruça sobre literatura quem está fazendo literatura.

Em geral a nova geração só vê o celular, veem quando muito o computador, quando tem que fazer os trabalhos escolares ou universitários. Tive um ex-aluno, que hoje é professor na Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP), que disse que seus alunos de artes visuais da ECA nunca foram ao MASP. Eles são de São Paulo e nunca foram ao MASP! Se a gente sabe que eles não têm o hábito de olhar, o hábito de ver, de acompanhar a escrita através do original, imagine agora. Mas você pode dizer: por isso mesmo eles têm um bom treino para tudo que nós estamos passando.

ARTE! – De certa forma a gente sempre está em minoria, não? Esse esforço pela democratização da arte, por tornar a arte acessível – uma marca de sua trajetória – não acaba.

Essa é uma luta insana, mas é uma luta que prossegue. É uma batalha permanente. Agora os museus tentam temperar, fazem coisas mais recreativas. Ir ao museu se tornou um passeio, você não pode levar muito a sério, porque senão ninguém vai. Há que se fazer exposições que distraiam. É complicado isso, ter que enganar o público. Não é como na Europa onde é possível fazer, sei lá, uma retrospectiva de um grande artista como Holbein ou Delacroix, que as pessoas vão visitar porque muitos deles já estudaram esses autores no curso ginasial, no secundário. Aqui não existe isso. Se nós temos dificuldade de alfabetizar, imagine se pensarmos do ponto de vista da alfabetização do conhecimento, da leitura dos períodos da arte. A situação é muito mais grave e não devemos pensar apenas do ponto de vista das grandes cidades, como São Paulo e Rio de Janeiro. Temos que pensar em termos do interior de Goiás, do interior do Ceará, do Pará. Imagine, é um deserto absoluto. Só escapa desse deserto aquele que tiver a possibilidade de ganhar uma bolsa e estudar fora. Não que aqui não haja bons professores, mas é muito pouca gente que segue, é muito pouca gente interessada nesse tipo de formação. É preciso alimentar a formação do artista, que ele saiba o que aconteceu no começo do século, o que aconteceu no século XIX, que tenha ideia do que ocorreu no fim do século XVIII. É uma raridade o artista que pode se expressar em relação ao que aconteceu no passado. Acontece o mesmo com os críticos de arte. Em 2011 participei de um grupo que fez a curadoria da exposição do Mercosul e notei que os críticos que tinham por volta de 40, 45, até 50 anos se interessavam apenas por artistas  que surgiram a partir da década de 1990 pra cá. O que aconteceu antes não conheciam e não tinham nenhum interesse em conhecer. Interessava do conceitual para cá. Há uma delimitação muito grande do ponto de vista geracional de estar aberto ou não para todas as épocas. Eu acho que é impossível querer ser um grande escritor sem ter lido os autores do começo do século XX, do fim do século XIX. Para mim é um enigma, uma pessoa ter uma formação na sua área sem conhecer os que o precederam.

ARTE! – Falando em formação, você poderia nos contar um pouco da sua. Na sua família há uma veia artística muito forte, não?

Minha formação foi eclética, confusa, caótica (risos). Mas acho que se houve influência artística familiar, veio tudo pelo lado da minha mãe, Abreu. Do nosso lado lusitano. Como meu pai era primo distante de Tarsila, todo mundo pensa que veio por aí, mas do lado da Tarsila não há absolutamente nenhum outro artista. Já minha mãe, minhas tias pintavam. Uma delas, que morreu aos 27 anos, era desenhista gráfica.

ARTE! – E foi nesse ambiente doméstico que o gosto foi se formando?

Não é que minha mãe fazia a gente se interessar. Mas do ponto de vista de influência, a gente sabia que minha mãe gostava dessas coisas, que minhas tias também gostavam. Havia um precedente familiar aí, mesmo que não fosse percebido. Só hoje percebo isso, olhando para trás. E creio que tanto eu como minhas irmãs e meu irmão pertencemos a uma geração que se formou numa época bastante tumultuada e alvissareira, do ponto de vista de curiosidade intelectual aqui no Brasil e em São Paulo em particular. Minha adolescência foi toda durante a Segunda Guerra Mundial, eu era chamada na minha casa de repórter Esso porque eu tinha verdadeira loucura para ouvir o que estava acontecendo. Eu despencava escada abaixo para ouvir o repórter Esso, queria saber onde estava a Alemanha, quem estava invadindo, se a França estava recuperando o território, sobre o bombardeio da Inglaterra. Enfim, vivenciávamos esse clima.

ARTE! – Foi esse apelido de repórter Esso que te levou ao jornalismo?

Minha formação é de jornalista e meus primeiros empregos foram como jornalista. Trabalhei na A Gazeta, no Diário de São Paulo, fiz uma coluna de correspondências na Folha de S.Paulo. Mais tarde, no começo da década de 1970 trabalhei também como redatora de publicidade, na mesma agência em que trabalhou Décio Pignatari e o jornalista Fernando Lemos. Éramos redatores. Fiz até um programa sobre arte na rádio Jovem Pan. Ele se chamava “Vamos falar de Arte?”. Parecia que não era nada, só dois minutos por dia. No começo eu fazia assim, ao vivo, direto, depois comecei a gravar e comecei a redigir porque as pessoas posteriormente me cobravam, por correspondência, por chamadas, por carta. E eu tinha toda a liberdade. Acho muito interessante esse meio de comunicação, que não foi superado nem pela televisão nem pela internet nem por nada.

Em 1951, entrevistando o diretor do MoMA, René d’Harnoncourt, para o jornal da Faculdade. Foto: Acervo pessoal

ARTE! – E a experiência como monitora da 2a Bienal de São Paulo, como foi?

Uma coisa leva a outra. Como eu dizia, em São Paulo na década de 50 havia muita vivacidade. Ao mesmo tempo eu fiz um pouco de dança contemporânea com a Yanka Rudzka, fiz mímica com Luís de Lima, me inscrevi para fazer cinema até que me aprovaram e eu fiquei apavorada, sai de medo. Fiz o Teatro Paulista do Estudante, estreamos no mesmo dia que estreou o Guarnieri, o Vianinha. Antonio Henrique, meu irmão, também participou dessa peça. Era tudo assim, todos tinham todas as aberturas possíveis. Então a jovem geração ficava muito contaminada. A gente se encontrava no final da tarde, todos iam ao Museu de Arte Moderna na rua Sete de Abril ver as exposições, discutir, assistir os filmes que o Paulo Emilio Salles Gomes projetava, todo mundo participava de tudo. Os que eram curiosos iam se nutrir da história da arte, da história do cinema, de exposições, conferências também na Biblioteca Municipal… A gente assistia tudo. Ficávamos até atordoados com tantas possibilidades, tão multidirecionais que a gente tinha. Daí um partiu para o cinema, outro partiu para o teatro. Minha irmã Ana Maria foi fazer criação de direção de teatro, foi morar em Nova York, e depois ela foi fazer teatro de bonecos, ser professora na ECA, ganhando prêmios internacionais. Suzana foi fazer cinema, Antonio Henrique foi pintar. Era uma coisa assim contagiante.

ARTE! – Acho que você tem uma capacidade surpreendente de mudar de assunto e de se apaixonar por novos temas.

Sim, isso para mim é fundamental, porque ficar parada num lugar só, com um tema único, é impossível. Tanto que eu fiz uma série de pesquisas sobre o modernismo. Primeiro “Artes Plásticas na semana de 22”, depois, a partir de Tarsila, eu vi tanta coisa na casa dela, tanto material documental, que acabei fazendo, antes mesmo do trabalho sobre ela, o livro Blaise Cendrars no Brasil e os Modernistas. Porque me dei conta de como tinha sido importante a presença e a influência dele sobre Tarsila e Oswald de Andrade. Depois veio o livro sobre Tarsila, que eu apresentei como doutorado na USP, na ECA. Daí eu fiquei farta de modernismo, porque as pessoas só me chamavam para falar disso, sabe? Então pensei: preciso partir para outra. Então eu fiz a Expo-Projeção-73, sobre os jovens que estavam mexendo com as novas mídias, trabalhando com vídeo, todas as formas de expressão não usuais, em 1973. Daí comecei a ser chamada também, fui fazer palestra em Buenos Aires…

ARTE! – É a partir daí que você começa a circular mais intensamente pela América Latina ou essa conexão já existia?

Eu já tinha esse vínculo. Não sei se porque quando a gente era pequena, meu pai trabalhando com o Instituto Brasileiro de Café (IBC), nós moramos na Argentina. Fiz o primário lá. Aí eu voltei, tive umas aulas aqui para tirar todo o espanholismo de minha fala e fiz o ginásio em Santos. Mas não sei se terá sido isso. Por que eu me interessei pela América Latina? Será que foi pelo precedente da Argentina? Por que eu conhecia a história argentina melhor do que a nossa? Por que eu tinha feito primário lá?

ARTE! – Talvez porque você não tenha partido do lugar tradicional que o Brasil reserva aos vizinhos. O Brasil evita olhar para o lado.

Pois é, pode ser. O Brasil olha para fora. Eu sempre falei que os dois países mais similares na América do Sul são Venezuela e Brasil. Ambos têm os olhos postos fora e se interessam muito pelo que ocorre nos Estados Unidos, na Europa, e menos pelo que ocorre na América do Sul. Tanto é assim que a Venezuela vai ter os grandes cinéticos e o Brasil vai ter outras gerações de artistas plásticos também voltados para o exterior, com interesse na informação que vem de fora. Ao passo que os países andinos são mais fechados dentro de si próprios em suas tradições e Argentina, Uruguai e Chile são mais ligados à Europa. Retomando, eu estava cansada de fazer trabalhos sobre o modernismo e Tarsila, tinha encerrado esse aspecto, tinha encerrado já a Expo-Projeção e comecei a viajar pela América Latina. Tive uma iluminação através de um livro encontrado na casa da minha mãe. Estava fazendo muitos trabalhos com Luís Saia, sobre o patrimônio em São Paulo. Percebi que as casas que eles chamavam, entre aspas, de bandeiristas não eram senão uma “casa de hacienda”. Há inúmeros casos muito similares. Em São Paulo essas casas eram também todas distantes do centro, seja no Caxingui, seja no Butantã, em São Bento… Comecei a ver essas plantas, fui viajar, estive no Paraguai, fui para a Bolívia, Equador, Colômbia, Venezuela. Ia nas minhas férias da USP e muitas vezes quando ia para algum congresso fotografar essas casas. Eram muito similares, muitas persistiram até o século XIX. Não adianta que o Julio Katinsky, o Carlos Lemos fiquem falando de isolamento da casa paulista. Ela existe em toda a América do Sul, como um prolongamento.

Obra de Miguel Rio Branco exposta no 34º Panorama da Arte Brasileira, “Da pedra Da terra Daqui”, com curadoria de Aracy. Foto: Divulgação

ARTE! – Você descobriu que a imagem da padroeira argentina é brasileira?

Quando fiz esse estudo, em correspondência com um historiador jesuíta de Buenos Aires, descobri que a Imaculada Conceição, que se tornou a Nossa Senhora de Luján, padroeira da Argentina, é uma imagem paulista. E de qualidade menor que aquelas feitas em Santana do Parnaíba ou Mogi, mas havia, ao mesmo tempo, um comércio entre Lima e São Paulo. Temos que lembrar que havia outro tipo de intercâmbio, que depois foi superado. E os arquitetos aqui não tinham se dado conta disso porque nunca tinham viajado pela América do Sul. Preferiam viajar para Paris, para outros lados, então fixaram a ideia de que São Paulo tinha uma casa que só tinha aqui. Quando eu publiquei a A Hispanidade em São Paulo, eles não reconheceram o trabalho, em primeiro lugar porque eu era mulher, um fator a ser considerado queira ou não. Em segundo lugar porque eu não era arquiteta e estava falando de arquitetura e a FAU nesse aspecto não perdoa. Havia uma discriminação. Você não é arquiteta, você fica no seu lugar, escreve sobre história da arte, o que você quiser, mas não entre num terreno que não é o seu. Eu nem defendi a livre-docência com essa pesquisa porque eles iam dizer: você não é arquiteta. Uma não arquiteta escrevendo sobre arquitetura! A prova disso é que depois, quando me cansei do problema do concretismo e decidi fazer um trabalho sobre a preocupação social na arte brasileira, outra coisa que começou e me apaixonar, um amigo arquiteto me perguntou: “Seu capítulo sobre arquitetura você não vai publicar né?”. Ao que respondi: “Por que não? Faz parte do livro, já está até com editora”.

ARTE! – Você enfrentou muitas dificuldades? O Brasil parece ser um lugar em que, na arte, as mulheres tiveram um pouco mais de espaço do que em outros lugares. A que você atribui isso?

É verdade, o Brasil tem muita artista mulher. Nos Estados Unidos, as mulheres se queixavam, na década de 1970, 1980, que não havia espaço para elas, que eram perseguidas. É o caso até da mulher do Pollock, a Lee Krasner, ou da Helen Frankenthaler, mulher do Motherwell. No Brasil ao contrário, nossas grandes artistas são muitas: Anita Malfatti, Tarsila, Maria Martins, Maria Leontina, Lygia Clark, Mira Schendel, Carmela Gross, Regina Silveira… Há uma infinidade de artistas mulheres que não podemos negar, porque elas fazem parte da história da arte do Brasil. Uma vez eu escrevi para uma revista em Nova York que me pediu um texto sobre isso. Nas décadas de 1950, 1960 e talvez até nos dias de hoje, as mulheres brasileiras talvez  tenham tido mais espaço para pesquisa que as mulheres da França, dos EUA, Alemanha, porque aqui sempre tiveram auxiliares que davam uma mão na casa enquanto em outros países a vida doméstica era muito mais dura. Esse é um dos lados.

ARTE! – Talvez também a arte aqui não fosse uma carreira tão valorizada pelos homens?

Se o Milton da Costa era um excelente artista até um certo ponto da vida dele, a Maria Leontina foi grande durante todo o decorrer de sua carreira. E no entanto ela mantinha também esse espaço discreto de ser a mulher de um artista que ela respeitava. Tanto que uma vez, nos anos 1970, um diretor do Guggenheim veio aqui e eu levei ele para conhecer vários artistas. Gostaria muito que ele conhecesse o trabalho da Maria Leontina. Liguei para ela para perguntar se poderia marcar. Ela me disse: “Aracy, seja bem clara comigo. Ele quer ver os meus trabalhos ou ele quer ver os trabalhos do Milton?” Eu falei: “Os seus”. Ela falou: “Me desculpe muito, mas prefiro então não recebê-lo”. O caso é muito datado, mas é peculiar. Veja bem, é o retrato de uma época.

Obras na mostra “Das Mãos e do Barro”, na Galeria Millan, sobre arte popular indígena e latino-americana, com curadoria de Aracy. Foto: Everton Ballardin

ARTE! – Aproveito essa história para falar desses movimentos mais recentes de resgate da arte das mulheres e dos negros também. Como você vê este movimento, mais ligado a causas identitárias?

Bem, o das mulheres está aberto aí porque os Estados Unidos já o fazem há muito tempo e aqui no Brasil começou de uma forma até meio exasperada mais recentemente. Mas a arte dos negros acho uma coisa incrivelmente positiva, porque nós ficamos fechados para a cultura negra, nós ignoramos a história da negritude. Até hoje você sabe que é uma disciplina que deveria ser ensinada em todas as escolas, mas não há nem professores especializados em África. Agora, nós estamos assistindo um outro tempo, não é? Na televisão vemos muitos anúncios em que há casais miscigenados, apresentam o negro de uma forma inaudita.

ARTE! – E do ponto de vista artístico há uma grande potência, talvez a mais importante do momento, na arte contemporânea, não?

Na verdade a inspiração afro sempre existiu, seja na pintura, em particular na música. Qual a maior influência internacional na música do século XX? É a música negra. Seja no tango, seja no samba, seja no ritmo caribenho, no jazz na música norte-americana, onde você quiser, o ritmo que se impôs é o ritmo negro, é a música internacional que chega a Paris. Não só por causa da Josephine Baker na década de 1920, mas porque é o ritmo do século XX. Não há dúvida nenhuma.

ARTE! – Outro capítulo nessa mesma linha, digamos, de lacunas que estão sendo escancaradas, é que o Brasil parece que começou finalmente a perceber que têm indígenas e que essa cultura também é importante para a gente.

Eu não sei se o Brasil já descobriu isso… Acho que ainda não. Porque no caso da presença africana isso não tem dúvida, está a flor da pele. Afinal de contas o branco hoje é uma minoria no Brasil. E o que é o branco? Ninguém sabe se existe branco no Brasil. É muito raro. Quem não é miscigenado de alguma forma? Existe a herança indígena, mas para nós ela transparece muito na arte popular, que também é uma coisa que ainda não foi assimilada e aceita. Não falo só da arte pura, tipo cestaria Yanomami, mas da arte popular do interior do Ceará, que é riquíssima, ou do Piauí… Já existem inúmeras galerias trabalhando nessa direção. Mas ainda não existe uma aceitação que valorize o caráter precioso dessas obras, entende? Mesmo a preservação delas.

ARTE! – Dentre seus trabalhos recentes, está a curadoria de uma mostra de desenhos de Tarsila, em cartaz na Fábrica de Arte Marcos Amaro. Você poderia falar um pouco sobre esse aspecto da obra dela?

A exposição – que é uma curadoria conjunta também com Regina Teixeira de Barros, grande estudiosa e curadora – traz o desenvolvimento do percurso da Tarsila a partir do desenho. É muito curioso ver como o exercício do desenho pautou o desenvolvimento e a libertação dela como artista, desde, digamos assim, o estudo, a formação, primeiro acadêmica, depois parisiense, com grandes mestres da época como Andre Lhote e Gleizes, até chegar a uma liberação total e ela se sentir apta a voltar à figuração, numa viagem a Minas, com toda liberdade, mas com um espírito de síntese muito grande. Depois ela vai cair um pouco numa figuração, num realismo tão ao gosto das décadas de 1930, 1940, 1950, que é a época que, digamos assim, vai liberar também uma figura como Portinari. Uma época também em que ela escreve crônicas para o Diário de S. Paulo, e faz muita ilustração para livros, muitíssimas. Como não existia mercado para a pintura, ela vive de ilustrações, vive também de crônicas. Não é uma época de inatividade, mas de alteração de atividade.

Exposição “Tarsila, estudo e anotações”, com curadoria de Aracy e Regina Teixeira de Barros, na FAMA, em Itu, 2020

ARTE! – Se você tivesse que escolher dentre as várias personalidades que você tem, como critica, professora, diretora de museu…

Eu não sei o que eu seria. Eu fui uma mistura de tudo isso. Em cada momento eu fui uma coisa. Se eu fui vanguarda na década de 1960, 1970, depois eu fui historiadora na década de 1970, 1980. Depois fui diretora de museu. Eu curti demais ser diretora da Pinacoteca, porque eu alterei completamente a imagem da Pinacoteca. Era um museu fechado, que as pessoas faziam sinal da cruz quando passavam na frente pensando que era um templo. E depois comecei a fazer exposições, cursos lá dentro, curso de modelo vivo, exposições temporárias. Mudei a Pinacoteca e essa mudança, que foi sensível, foi um prazer, uma satisfação enorme. Colocar lá Ana Maria Belluzzo, colocar lá o Paulo Portella, um fazendo arte-educação, outro me ajudando na pesquisa, poder montar lá aquela exposição do Projeto Construtivo Brasileiro na Arte, cursos, tudo foi muito interessante. Nesse período da Pinacoteca ainda haviam os salões, uma época em que acabou. Os artistas jovens eram lançados a partir de salões de cidades pequenas e depois, com os prêmios que eles ganhavam, passavam para um outro patamar.

ARTE! – Hoje dependem do mercado.

Agora, a partir das décadas de 1980 e 1990, um fenômeno novo entra no mundo da arte no Brasil: Volpi, por exemplo, que vendia muito pouco até a década de 1940. Ele vai fazer a primeira exposição em 1944, numa pequena galeria, na Barão de Itapetininga. Não tinha nem catálogo ainda e ele tinha 48 anos de idade. Hoje tem muito artista com 40 anos que já tem livro publicado como se fosse uma obra acabada. Era outro ritmo. O artista produzia, uma pessoa ia fazer uma bienal ou um grande salão, ia no ateliê do artista, escolhia as obras. Hoje o artista faz as obras para o evento. O mercado hoje é avassalador. E para a minha geração é um fenômeno novo. É lógico que para os jovens hoje é o princípio fundamental da atuação deles.

ARTE! – Philip Kennicott, do Washington Post, afirmou há pouco que se sente “mais livre para gostar das coisas sem pedir permissão” em função da pandemia. Não lhe parece assustador esse reconhecimento?

Muitos curadores e críticos que nós conhecemos, que tem entre 30 e 50 anos, estão atrelados ao mercado, você sabe disso. Muitas vezes a gente não nomeia, mas sabemos quem são. A gente trabalhava com museus, com entidades. Se eu tenho que recorrer a uma galeria, eu faço isso com um pouco de recato, digamos assim. Porque eu acho que mercado é uma coisa e quem faz uma curadoria tem que ter um outro ponto de vista, procurar museus, procurar colecionadores privados. Agora, muitos curadores ou jovens críticos não vão à casa dos artistas, não vão às casas dos colecionadores. Você pode alegar: não vão porque não conhecem, não têm acesso. Pois é, mas por que a gente tinha? Por que conseguíamos entrar? Vai ver porque eram pessoas que publicavam em jornal e o nome já era conhecido, então eles abriam as portas para vocês. Mas hoje o curador, um jovem crítico, escreve para o catálogo de galerias. Ou seja, ele já escreve para o mercado. Ele não tem o hábito de frequentar o ateliê do artista nem de frequentar a casa do colecionador.

Exposição “Tarsila, estudo e anotações”, com curadoria de Aracy e Regina Teixeira de Barros, na FAMA, em Itu, 2020

ARTE! – Você comentou que os jovens que não veem muito a história pregressa da arte, do que foi produzido antes deles. Mas a gente também vê muita gente que fica parado no tempo e que não vê o que vem depois.

Eu acho que hoje a gente vê muitos pesquisadores da história da arte que ficam trancados no seu gabinete fazendo mestrado, doutorado, pós-doutorado, livre-docência, que só se preocupam com a titulação para poder galgar uma garantia de um concurso para poder se firmar na universidade ou o que quer que seja.  Mas eu acho que eles não vão ao ateliê do artista. Eles não saem do seu gabinete. Isso eu também acho criticável. Eu te garanto que os artistas teriam o maior prazer em receber historiadores… tenho certeza.✱

A arte em transformação

Retirantes
"Retirantes", de Pedro Zagatto | Foto: Isabella Matheus

Entre obras que retratam festas e tradições populares, pinturas que expõem a violência policial, expressões de um feminismo crescente, cenas cotidianas e retratos da degradação ambiental brasileira, a Bienal Naïfs do Brasil 2020 abriu as portas de sua exposição presencial. A mostra teria início em agosto no Sesc Piracicaba, mas foi adiada por causa da pandemia, e agora segue em paralelo com a programação digital até julho de 2021. Buscando reunir as ideias de Ailton Krenak – com Ideias para adiar o fim do mundo – e Arthur Danto, a mostra leva o título Ideias para adiar o fim da arte e conta com curadoria de Ana Avelar e Renata Felinto.

“Eu diria que Ideias para adiar o fim da arte é na verdade ampliar para 360 graus a nossa possibilidade de olhar. Parar de mirar adiante, mas ter atenção à visão periférica, e se necessário, virar o corpo pra poder enxergar o que ficou pra trás”, diz Felinto. A curadora acredita que a quantidade de pessoas diferentes na exposição já anuncia a intenção de esgarçar os limites que categorizam as produções de artes visuais no hoje. “As obras apontam para discussões que atravessam inúmeras identidades, mas que tendem a escancarar as possibilidades de humanidades que precisam ser vistas também através da arte”, explica.

Pensando nisso, talvez fique claro que ao invés de adiar o fim da arte, o debate seja mais sobre expandir a nossa compreensão de arte e as narrativas que incluímos nessa história. Como coloca Ana Avelar: “Na contemporaneidade já não acreditamos mais em apogeu, acreditamos que as artes se desenvolvem ao longo da história, com suas especificidades e seus assuntos. Ou seja, pensar o fim da arte já não é mais possível, mas podemos pensar a transformação dela e dos sistemas nos quais ela opera, e nós buscamos oferecer entradas de compreensão para essas narrativas”.

Mas o que os artistas naïf têm a ver com isso? Talvez as suas narrativas sejam justamente algumas que estavam invisibilizadas até então. Para compreender, vale voltar um pouco no tempo. “Naïf é um termo de origem francesa e sugere algo natural e ingênuo”, explica Margarete Regina Chiarella, agente de cultura e lazer no Sesc Piracicaba. “Mas visitando a Bienal, vocês vão perceber que de ingênuo não há nada. Essa arte tem como característica a espontaneidade e a liberdade para que os artistas expressem, como se sentem, como percebem o mundo sem ficar presos às regras da academia ou aos modismos. São insubmissos, trabalham com regras próprias.”

Visando minimizar essa inivisibilização, o Sesc optou por dar foco ao artista, e na 15ª Bienal, além de mostrar uma pluralidade na arte naïf, criou espaços que simulam ateliês e trazem relatos em vídeo dos próprios criadores, contando ao público seus processos e suas pretensões artísticas, e permitindo que o visitante da bienal o veja para além de um generalismo, mas como pessoa artista. “Então para nós isso é importantíssimo, porque ainda que a crítica de arte e a curadoria sejam fundamentais para se organizar um discurso expositivo, não é mais admissível que desprezemos a fala da pessoa artista”.

Muito dessa proposta curatorial está baseada nas ideias das teóricas Ana Mae Barbosa e Lélia Coelho Frota. Como explica Ana Candida Avelar, esta edição da Bienal Naïfs também busca homenagear as mulheres. Por isso, parte de ambas as teóricas como referências na curadoria e convida Carmela Pereira, Leda Catunda, Raquel Trindade e Sonia Gomes para dialogar com a exposição. “Olhar para o trabalho delas nos faz perceber como saíram das realidades mais diversas para estar nos lugares onde estão, nos faz notar que esses e essas outras artistas estão percorrendo caminhos semelhantes e possuem esse espaço já aberto tanto por iniciativas como a do Sesc, quanto por figuras como essas artistas”, diz Ana Avelar.

Aliada à exposição presencial, uma série de iniciativas digitais foram e serão desenvolvidas. Dentre as atividades aconteceram oficinas voltadas aos artistas autodidatas, para que aprendessem a fotografar suas obras – e assim acessar outros espaços expositivos mais facilmente – e a elaborar portfólios – necessários às seleções de mostras nacionais e internacionais. Esse tipo de iniciativa visa uma ação maior do que a realização de um evento. Por isso, o trabalho com os artistas populares vai muito além do período da Bienal Naïfs e busca entender o evento não como um fim, mas um caminho, que permita a essas pessoas ampliar suas vozes e construir novas conexões e oportunidades.