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Os autorretratos de Tarsila, parte I: a espanhola

Retrato de Tarsila a bordo, em 1920. Foto: Reprodução
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Tarsila do Amaral, anos 1920. Foto: Reprodução

Quando me interessei pelos autorretratos de Tarsila do Amaral, produzidos entre 1921 e 1924[1], percebi que, apesar de configurarem menos de 3% de toda a sua produção no período, estabelecem um segmento esclarecedor de vários aspectos que envolvem a artista, mas que até o momento pouco interesse despertou em seus estudiosos: me refiro à série da qual apenas Autorretrato (manteau rouge) e Autorretrato I são levados em consideração[2]. Estou certo de que se faz necessária uma investigação sobre essas obras no sentido de conectar as personas que Tarsila cria para si durante aqueles anos de sua inserção/reinserção como mulher no ambiente social paulistano e, como artista profissional, no circuito de arte São Paulo-Paris[3].

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Para estudar esses trabalhos, precisei estruturá-los como a uma série e, para tanto, me utilizei de sete obras denominadas pela artista como “autorretratos” e três que, embora não tenham sido denominadas como tal, me pareceram projeções idealizadas que Tarsila produziu de si mesma. Por último, agreguei à série a pintura em que a artista reproduziu sua sobrinha Maria Souza Lima – A espanhola (Paquita)[4] – em que me pareceu notável a “presença de si” no retrato dessa sua parenta.

O que de início me chamou a atenção na série foi como Tarsila, naquele curto período, usou tantos expedientes estilísticos para se retratar. Nota-se dois grupos de obras nessa série: no primeiro é percebida certa ousadia cromática, tendo por base o que parece ter sido o objetivo da artista na época: experimentar a quebra da pintura naturalista, utilizando-se (não com grande sucesso) de certos estilemas supostamente surgidos a partir do impressionismo e alguns de seus desdobramentos imediatos.

Dentro desse subgrupo estariam Autorretrato com lenço vermelho, Autorretrato com vestido laranja e Autorretrato com flor vermelha[5]. Os três mostram a artista de um ponto de vista levemente abaixo do nível dos olhos da figura, estratégia que, visível na tradição pictórica ocidental, foi disseminada por meio de retratos fotográficos. Outra possível interação entre fotografia e pintura: nos três, ao lado da suposta liberdade no tratamento das cores, impera a dimensão descritiva que a fotografia traz à imagem. Por demais explícitos e “fiéis”, esses autorretratos documentam as dificuldades de Tarsila no campo da retratística, no momento inicial de seu mergulho na pintura moderna.

Esses três autorretratos, no entanto, não tinham por objetivo serem ousados apenas pela combinação estridente de cores ou pelo uso instrumental da imagem fotográfica. Eles também “ousavam” no uso de adereços, digamos, pouco ortodoxos com que a artista neles se mostrava. O lenço vermelho na cabeça da figura retratada no primeiro autorretrato, além de estabelecer um contraste acentuado com o azul meio esverdeado da blusa – efetivamente a grande “ousadia” formal do trabalho –, remete a figura ali retratada a um romantismo de viés popular, distante da situação de Tarsila como membro de uma das famílias mais tradicionais de São Paulo. Tarsila, uma mulher do campo, uma espécie de cigana, talvez?

Na segunda pintura, o vestido laranja com o qual ela se retrata está praticamente invisibilizado devido ao xale rosa que aparece preso sob o busto da figura. Na verdade, não é possível detectar com certeza qual o traje usado pela artista ali, mas, seja qual vestimenta for, o decote em “V” emoldura um corpo que se esconde, ao mesmo tempo em que se exibe ao olhar do espectador (presumidamente um homem).  Um decote tão coquete quanto a expressão sorridente e um tanto maliciosa que a figura ostenta. É de se perguntar também: onde a representação da dama paulistana?

Se nos dois trabalhos de 1921 é notável como a artista se mostra fora dos padrões esperados para uma mulher de sua classe social, naquele de 1922, no entanto, Tarsila radicalizará um pouco mais, se representando ataviada de fato como uma “espanhola”[6]. Se nos trabalhos anteriores a espanhola que parecia habitar os desejos de projeção da artista era apenas intuída – pelo lenço, pelos xales, pelo sorriso e pelos cabelos mal contidos sob o tecido ou o coque – em Autorretrato com flor vermelha, um pastel sobre papel em que tons de azul do vestido definem/emolduram o colo e o rosto da artista, expandindo-se por seu cabelo e pelo fundo, em contraste com a flor vermelha. Outro dado a se notar é que mais uma vez o ponto de vista escolhido para a composição desse pastel é aquele abaixo dos olhos da figura representada, o que só enfatiza o desejo de Tarsila em retratar-se como uma mulher resoluta, fora dos padrões, expondo-se a com uma energia tão indomável quanto seus cabelos mal controlados, emoldurando o rosto.

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Já o segundo subgrupo da série caracteriza-se por um paulatino abandono daquela pintura conservadora, mas que absorvera certos estilemas vindos das vanguardas do final do século 19, mantendo sempre certo pendor naturalista, descritivo. Nesse segundo subgrupo de autorretratos, pelo contrário, o que se notará será sobretudo a ênfase ao caráter planar da pintura, o que denota uma rápida absorção de regras surgidas após a experiência impressionista também já devidamente superadas (diga-se) naquele início dos anos 1920, Se antes, portanto, Tarsila passaria pela absorção de uma certa noção de pintura “impressionista”, agora – e de maneira melhor resolvida – será notada em algumas obras a presença de uma outra visualidade, essa pautada no exemplo de Paul Gauguin e seus seguidores.

Como mencionado, tecnicamente A espanhola (Paquita), de 1922, é o retrato da sobrinha da artista. Mas, no limite, penso que ela possa ser apresentada como uma projeção idealizada da própria Tarsila (as feições da retratada lembram as imagens de outros de seus autorretratos). Nela vemos uma figura hierática, concebida dentro de uma estrutura planar que deixa de lado a dimensão descritiva dos trabalhos anteriormente comentados para enfatizar uma dimensão mais sintética da forma. Essa Paquita demonstra o quão rápido (e bem) a artista tinha caminhado em seu processo de absorção das principais tendências da arte do final do século 19 e início do 20. 

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Tarsila do Amaral. A Espanhola. 1922. Óleo sobre tela. 92,4 x 75,5 cm. Coleção Particular, Brasília, DF.

Afinal, convenhamos, tendo como parâmetros aquelas duas primeiras pinturas de “espanholas” de 1921 e aquele pastel do ano seguinte, essa Paquita é uma obra mais complexa, tanto em termos técnicos quanto de aderência ao vocabulário da pintura moderna, podendo ser entendida, inclusive, como uma espécie de ponte entre as imagens meio canhestras de mulher exuberante dos três autorretratos aqui comentados e aquela que surgirá em 1923 e 1924, respectivamente com Autorretrato (manteau rouge) e Autorretrato I. Neste sentido em A espanhola (Paquita), a mulher retratada – com o colo e o rosto emoldurados por tons escuros –, funciona como uma nova persona para a artista, ainda envolvida pelo romantismo da “espanhola”, mas, por meio da síntese formal, já buscando uma transcendência que não parece mais desse mundo.

Outro dado importante sobre os autorretratos já comentados e A espanhola (Paquita): se a presença da “espanhola”, no início, era apenas sugerida, a partir do pastel de 1922 e desse retrato da sobrinha, a personagem surge plena, configurando um tipo de mulher que poderia interessar a Tarsila tomar como parâmetro para forjar sua imagem pública.

(Paquita), de 1922, não mais sorri e não mais se expõe ao olhar masculino, como nas obras anteriores. Por outro lado, no entanto, continua a instrumentalizar um estereótipo de mulher bela, resoluta e dona de si, enfim, uma “espanhola”.

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Mais adiante voltarei a me referir a respeito dessa atitude de Tarsila em querer se representar como uma espanhola, ligando sua própria imagem naquele estereótipo que, fazia décadas se impunha na Europa, como o substrato de mulher voluntariosa, de temperamento forte – e de reputação dúbia, diga-se[7].

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Tarsila do Amaral, “Autorretrato de Corpo Inteiro”, 1922. Óleo sobre tela. 42 x 33,5 cm. Coleção Particular, São Paulo, SP.

Toda a autoridade, mesclada ao exotismo (dos trajes, das feições) e à sensualidade, percebida nos trabalhos de Tarsila até aqui discutidos, reaparece em Autorretrato de corpo inteiro, de 1922[8]. A submissão efetiva à ação do pincel sobre a tela e a consequente dimensão planar da pintura, não escondem a ênfase à retórica da “espanhola” – a mulher bela e altaneira, flagrada em um radical contra-plongée que sublinha a autoridade de sua presença vestida com um traje azul, parcialmente escondido por um xale verde – apetrecho típico das espanholas tradicionais. É preciso igualmente sublinhar nessa pintura a subordinação da imagem fotográfica – certamente base para o autorretrato – à construção pictórica da imagem da artista e seu entorno. Se em Autorretrato com vestido laranja, do ano anterior, a subserviência da pintura à discrição da fotografia tornava ainda mais canhestro o resultado, aqui já é notável o quanto Tarsila está consciente de que na tradução da imagem fotográfica para a imagem pictórica, é necessário um processo consciente de síntese[9].

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Rever essas pinturas traz à tona pelo menos duas fotografias de Tarsila em que ela se deixa fotografar como uma espanhola. A primeira, sem data – que pode ter inspirado ou feito parte de um conjunto de fotografias de onde saiu o pastel comentado acima – representa Tarsila em contra-plongée, à mercê do olhar do observador, com um sorriso nos lábios e um olhar sonhador rumo ao devir (ver foto na abertura do texto). Toda essa autoconfiança é reforçada pelo amplo decote que lhe desnuda o colo, compondo com a flor e o típico pente espanhol[10].

No “Cap Pollonio”, Tarsila e Oswald entre outros passageiros. Foto: Reprodução

A segunda foto, de 1925, apresenta Tarsila também vestida como espanhola, demonstrando tal exuberância e sensualidade que transforma todos os outros integrantes do grupo em simples coadjuvantes. Refiro-me à fotografia realizada a bordo do navio Cap. Pollonio, que levava Tarsila e Oswald de Andrade para a Europa. Pelos trajes dos demais retratados (com exceção de Oswald, é claro) não se tratava de uma festa a fantasia e a indumentária da artista tinha muito de encenação, de uma espécie de performance em que ela parecia gostar de atuar como uma andaluza salerosa[11].

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Essas suas imagens de mulher bela, sensual e extravagante – que marcarão a presença de Tarsila na história da cultura brasileira – contrastavam com a imagem de uma “outra” Tarsila, uma mulher mais comedida. Sabe-se que, no cotidiano, até, pelo menos, meados de 1922, muitas vezes a artista tendia a vestir-se e a se comportar de maneira discreta, com roupas mais previsíveis para uma mulher de sua classe social: vestidos de manga e quando saia, discretos chapéus. Essa imagem sóbria – que tanto contrasta com as representações comentadas acima – é documentada por algumas fotografias do período. Em 1921, em viagem a Londres, Tarsila é retratada com um discreto vestido, sapato fechado e um chapéu que realça o decoro de seu traje.[12]

Mas também é de 1921 uma foto produzida em Londres, na pensão onde a artista estava hospedada. Nela Tarsila, ao lado de duas desconhecidas, olha para a câmara que também a capta de baixo para cima. Seu sorriso é emoldurado pelos cabelos presos no topo da cabeça.

Tarsila parece ter apreciado tanto essa imagem – mais uma projeção da “espanhola”? –, que não hesita em recortar uma cópia da mesma para preencher seu cartão de identificação como expositora no Salon Officiel des Artistes Français, em 1922. Interessante essa opção por associar aquela imagem desafiadora à sua carteira de ingresso na mostra oficial, uma espécie de passaporte para adentrar o ambiente artístico parisiense como profissional.

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Figura (O Passaporte) e Retrato de modelo, ambos de 1922, apresentam a figura de uma mulher com alguns traços que, se não remetem diretamente à artista, fazem com que nos lembremos dela: os lábios, o penteado apropriado para receber os atavios “espanhóis” – a flor (presente na primeira pintura) e o pente -, e um decote que mal esconde a sensualidade do colo das retratadas, já percebida em outras pinturas. Essas obras, por sua vez, contrastam com mais dois trabalhos de Tarsila, produzidos no mesmo período: o Autorretrato de cabelo curto, 1923 – um delicado desenho concentrado sobretudo no olhar perspicaz da artista, sem nenhum detalhamento de outros partes de seu corpo; e Figura em azul, também de 1923[13].

Tarsila do Amaral, “Retrato de Modelo”, 1922. Óleo sobre tela. 55 x 46 cm. Localização desconhecida.

Essa última nos remete à pintura A espanhola (Paquita), do ano anterior, pela postura hierática da figura, pelo tratamento opulento da cor – que reforça o caráter bidimensional do suporte –, além do fato de que a imagem alude à própria artista, aqui retratada de forma discreta, sem a ousadia de suas “espanholas” anteriores; no entanto, não deixa, porém, de exibir uma espécie de xale em azul que, com o decote discreto do corpete verde, emoldura seu colo elegante.

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Interessante chamar a atenção para essas imagens de Tarsila produzidas no início dos anos 1920. São fotografias, profissionais e amadoras, autorretratos e alguns poucos retratos em que ela parece sobrepor, à imagem da retratada, a idealização de sua própria imagem. Tarsila, dama discreta da sociedade paulistana, aparece atravessada por idealizações de uma persona associada ao desejo de tornar-se uma mulher dona de si, dona de seu corpo – uma “espanhola”! – ao mesmo tempo em que buscava profissionalizar-se como uma artista cada vez mais distante da arte tradicional.

Essa coincidência entre postura corporal/modo de vestir e postura enquanto artista preocupada em atualizar-se de maneira célere, deixa claro que essas duas instâncias foram sendo forjadas conjuntamente, uma dando força estruturante para a outra.

Por ocioso que possa parecer estudar a obra de uma artista a partir de sua vida pessoal, no caso de Tarsila, tal ociosidade não existe. A vontade de transformação, tanto de sua postura como mulher (ora discreta, ora exuberante), quanto em sua vontade de experimentar os vários estágios dos radicalismos estéticos surgidos a partir do impressionismo, liga-se ao seu intento de buscar uma nova identidade. Mas por que “uma nova identidade”?

Tarsila foi criada para tornar-se aquilo que se esperava de toda mulher no início do século passado, sobretudo aquelas de sua classe social: casar e ser mãe. Ela estudou em colégio interno na Europa, foi bem instruída em várias disciplinas; seu talento foi atiçado pela literatura, pela música e pela a pintura, mas, ao invés de investir desde o início em um desses talentos, Tarsila se casou e foi mãe.

Toda a inteligência, curiosidade, toda a pulsão de conhecimento que já a caracterizava foi direcionada ao matrimônio e à maternidade, construindo um halo de proteção que a afastava de suas aspirações profissionais.

Tarsila manteve-se nesse encastelamento matrimonial/maternal até que seu primeiro marido a traiu com a mulher de seu irmão Oswaldo[14].

A questão não é considerar a relação entre Tarsila e seu primeiro marido, mas a estrutura social da qual ela foi expelida ao separar-se. Na sociedade patriarcal, tão forte naquele início de século, ela, de repente, viu-se desclassificada socialmente. Se a amante do marido também se desclassificara, tornando-se a “outra”, Tarsila transformou-se na mulher preterida, traída, tendo sido deixado para ela apenas o papel de mãe tutelada pelos pais[15].

Em 1923, já alcançando os primeiros resultados como artista, seu pai a incumbiu de cuidar dos filhos de seu irmão e da amante de seu ex-marido, levando-os para a Europa, junto com sua filha – como atesta o depoimento de uma de suas sobrinhas à estudiosa Nádia Battella Gotlib: “Tia Tarsila foi maravilhosa. E nós nos conhecemos por isso: meus pais se desquitaram e vovô mandou que Tarsila cuidasse dos sobrinhos. Eram cinco…”[16].

Sem função social definida – o que poderia fazer uma mulher separada do marido, na alta sociedade paulistana da época, a não ser voltar para a proteção dos pais para, com eles, cuidar de filhos e sobrinhos? –, Tarsila buscará nas artes visuais um lugar social e profissional. Interessante, por outro lado, que, ao escolher tornar-se pintora, ela optou por uma profissão que, no Brasil, não contava com mulheres artistas reconhecidas ou, pelo menos, de grande destaque no meio. Se nas outras modalidades que também chegaram a interessá-la – a poesia e a música – era possível encontrar profissionais mulheres de efetivo sucesso, tanto no Brasil como no exterior[17], na pintura no Brasil, naquela época, não havia nenhuma profissional mulher comparável, em termos de reconhecimento público, como determinadas poetas e concertistas[18].

Talvez esses fatos ajudem a entender a necessidade de Tarsila buscar na imagem da “espanhola” um escudo para enfrentar os desafios que encontraria ao atuar numa atividade profissional que, além de pouco respeitada no Brasil, era fundamentalmente “masculina”.

De quais outras personas ela poderia ter lançado mão para se impor em tal território?

Optar pelo uso de roupas simples e despretensiosas, para romanticamente se alinhar à figura da jovem artista pobre, mas talentosa – uma visão também estereotipada e, no fundo, uma mera inversão do artista homem talentoso e pobre –, parece não ter passado por sua cabeça ou, pelo menos, não prosperou naquele início dos anos 1920. Por outro lado, também parece que, pelo menos naqueles primeiros anos, não lhe ocorreu radicalizar os índices de seu pertencimento à alta classe, rica e sofisticada – o que só faria em 1923, quando resolve assumir-se como protagonista da arte moderna brasileira, entre São Paulo e Paris[19].

Mas antes, entre 1921 e 1922, Tarsila, como visto, muito investirá na imagem hiperfeminina de uma Carmen tropical.

Provavelmente essa adaptação da própria imagem aos estereótipos da mulher sensual e de reputação dúbia, não pode e não deve ser entendido apenas como um escudo de proteção criado pela artista, mas também como uma arma de ataque e de empoderamento no âmbito, tanto da alta sociedade paulistana, quanto no frágil meio artístico da cidade – ambos territórios hostis à mulher em busca de liberação. Ao optar por transformar-se numa “espanhola”, em uma Carmen, Tarsila queria enfrentar aqueles ambientes a partir da exacerbação do estereótipo, como se, por esse processo de exacerbação, procurasse desacreditá-lo, passando a ser vista como mulher e artista.

Mas essa atitude parece não ter sido bem recebida no meio em que vivia, pois uma coisa era a mulher, uma vez ou outra, demonstrar extravagância como forma de tentar impor uma opinião ou atitude. Outra muito diferente, era desejar comportar-se por meio de procedimentos e ações assumidamente malvistos.

Afinal, será que os Amaral conseguiriam conviver com tranquilidade se aquele membro tão importante da família, por se retratar como um tipo de mulher desclassificada, passasse a ser vista como tal? Sua situação de mulher separada do marido já não seria motivo suficiente de constrangimento?

Um dado que talvez corrobore a recepção negativa dessa persona seja o fato de que a “espanhola”, como visto, viveu em Tarsila praticamente por dois anos, entre 1921 e 1922. A partir do ano seguinte a pintora começa a assumir seu diferencial como herdeira riquíssima, marcando o novo ambiente artístico em que pisava com as caudas das vestimentas exclusivas de Patou e Poiret.

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Tarsila do Amaral, “Espanholas”, 1922, Coleção Particular, Porto Alegre, RS.

No entanto, ainda em 1922, um desenho – esboço de uma obra de maior porte ao que se sabe jamais produzida –, apareceria como uma até então inimaginável projeção da artista, pensada como uma naja muito particular, uma mistura do tema tratado por Goya e concebido como uma composição à la Marie Laurencin. Refiro-me a Espanholas, um pastel sobre papel-cartão[20].

Numa composição pretensiosa, uma mulher nua, recostada à direita da composição, tem parte do corpo voluptuoso mal coberta por uma mantilha presa a uma peneita – um daqueles grandes pentes espanhóis. Ao lado da monumental espanhola, três mulheres sentadas: uma toca um instrumento enquanto as demais permanecem em silêncio, talvez atentas à música. Impossível não interpretar a figura principal do esboço como mais uma projeção da própria artista, consciente de sua beleza e do quão provocante poderia ser assumir-se como uma artista profissional e uma mulher desafiadoramente à mercê do olhar masculino.

Mas Tarsila, ao que se sabe, nunca levou adiante o projeto ali esboçado.

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A figura de espanhola sensual e resoluta concebida por Tarsila parece não ter passado de uma fantasia, um posicionamento “revolucionário” perante uma sociedade que não parecia disposta a reconhecer outro papel para ela que não fosse o de mãe e tia. Performando a espanhola volúvel, mas ambiciosa, ela acreditou poder transitar pelos vários momentos da arte moderna, do impressionismo até as vertentes então mais atuais da arte. Mas essa era uma imagem que não se adequava aos pressupostos estabelecidos para uma mulher de sua classe social.

Em meados de 1923, no momento em que de fato começa a vislumbrar o papel que poderia vir a assumir na arte e na cultura brasileiras, Tarsila, como mencionado, construiria uma outra persona para si: paradoxalmente ascética e requintada, a nova Tarsila casará modernidade e exotismo, agradando brasileiros e franceses, tanto por seu modo de vestir e se comportar, quanto por suas pinturas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Livros
– AMARAL, Aracy. Tarsila sua obra e seu tempo. São Paulo: Editora Perspectiva/Edusp, 1975. Vol.1.
– AMARAL, Aracy. Tarsila do Amaral. Buenos Aires: Fundação Finambrás, 1998.
– AMARAL, Tarsila do Crônicas e outros escritos de Tarsila do Amaral (org.: Laura Taddei Brandini. Campinas: Editora Unicamp, 2008.
– GOTLIB, Nadia Battella. Tarsila do Amaral a modernista, 2ª. São Paulo: Editora Senac,2000.
– MICELI, Sergio. Nacional estrangeiro: história social e cultural do modernismo artístico de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
– POLLOCK, Griselda. Visión y diferencia. Feminismo, feminidad e historias del arte. Buenos Aires: Fiordo, 2015.
– PINSKY, Carla B./PEDRO, Maria Joana (orgs.). Novas histórias das mulheres no Brasil.São Paulo: Contexto, 2020
– SARTUNI, Maria Eugênia (Coord.Ed.). Tarsila. Catálogo Raisonné. São Paulo: Base 7 Projetos Culturais/Pinacoteca de São Paulo, 2008. 3 Vol.

Artigos
– CHIARELLI, Tadeu. “A caipirinha e o francês: Tarsila do Amaral e a devoração da modernidade via Fernand Léger. Acesse neste link.


[1] – Pelas informações contidas no catálogo geral da artista, Tarsila do Amaral produziu seus autorretratos apenas nesse período, entre 1921 e 1924. Em tempo:  quando não houver outra informação, todos os dados aqui contidos sobre a localização das obras da pintora, foram retiradas de: SARTUNI, Maria Eugênia (Coord.Ed.). Tarsila. Catálogo Raisonné. São Paulo: Base 7 Projetos Culturais/Pinacoteca de São Paulo, 2008. 3 Vol.
[2]Autorretrato (Manteau rouge), 1923, Coleção Museu Nacional do Rio de Janeiro; Autorretrato I, 1924, Coleção Acervo Artístico-Cultural dos Palácios do Governo do Estado de São Paulo. Ao que se sabe, apenas Sergio Miceli teria tido interesse em comentar praticamente todos os autorretratos da artista. MICELI, Sergio. Nacional estrangeiro: história social e cultural do modernismo artístico de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
[3] – Dadas as dimensões deste artigo, ele será dividido em duas partes: “Os autorretratos de Tarsila I: a espanhola” e “Os autorretratos de Tarsila II: a pintura Achiropita”.
[4]A espanhola (Paquita), 1922, Coleção particular, Brasília, DF.
[5]Autorretrato com lenço vermelho, 1921, Coleção particular, Porto Alegre, RS; Autorretrato com vestido laranja, 1921, Coleção Banco Central do Brasil, Brasília, DF ( dado recente: atualmente em comodato no MASP).; Autorretrato com flor vermelha, 1922 (Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros – USP, São Paulo, SP.
[6] – Na sequência será visto que representar-se como espanhola poderia ter vários significados, dada a visão estereotipada que a Europa como um todo parecia nutrir sobre a Espanha e suas mulheres.
[7] – Essa falsa compreensão da mulher espanhola como um ser exótico, obstinado e de reputação duvidosa surge em decorrência da maneira como a própria Espanha foi vista por muitos no resto da Europa.  Espanha por séculos foi vista como parte da África, como um pedaço do oriente islâmico na vizinhança da França. O preconceito em relação à “espanhola” vai gerar frutos no campo da arte e da cultura, sobretudo na França a partir de meados do século 19, entrando pelas primeiras décadas do século seguinte. Fruto desse preconceito e elemento que o ajudou a expandir-se ainda mais, foi Carmen, novela de Prosper Mérimée, de 1845, base da ópera homônima de Georges Bizet, que estreou em 1875.
[8]Autorretrato de corpo inteiro, 1922. Coleção Particular, SP.
[9] – A partir das crônicas que Tarsila começará a publicar na imprensa a partir dos anos 1930, ficará claro que ela possuía uma visão produtiva da fotografia, acolhendo-a como forma de manifestação artística autônoma, e como instrumental legítimo a ser usado como ferramenta pelo artista e para a aprendizagem da arte. Num artigo sobre o pintor paulistano Pedro Alexandrino (com quem havia estudado), Tarsila reflete sobre as diferenças entre a pintura naturalista e o meio fotográfico e sobre como o pintor deveria saber discernir os detalhes da imagem fotográfica que deveriam ser transferidos para a pintura e aqueles que precisavam ser suprimidos em prol da dimensão sintética da pintura, “Pedro Alexandrino”. Diário de S. Paulo, 17, novembro, 1936. In AMARAL, Tarsila. Crônicas e outros escritos de Tarsila do Amaral. Organização Laura Taddei Brandini. Campinas: Editora da Unicamp, 2008. pág. 163 e segs.
[10] – Sabe-se que Tarsila passou parte de sua adolescência internada em um colégio em Barcelona. Essa experiência, no entanto, não explicaria seu interesse em alinhar sua imagem àquele estereótipo de mulher espanhola, aqui já comentado, distante, por certo, do tipo de mulher valorizado pelo colégio católico em que estudou naquela cidade.
[11] Francisco Inojosa daria o seguinte depoimento sobre quando conheceu Tarsila em São Paulo, em 1923: “[…] Tarsila do Amaral, com a sua cabeleira revolta de sonhadora impenitente, com seus lindos olhos sevilhanos – “yeux extraordinaires, immenses, d’um noir mat, comme du velours” – e sorria lisonjeada – um sorriso aprovação tácita, benção silenciosa àqueles cavaleiros andantes do ideal”. Apud: AMARAL, Aracy. Op.cit. pág. 51. (o negrito é meu). Como ainda será visto, Tarsila gostará de chamar a atenção em Paris, em entradas retumbantes em locais públicos. Não propriamente vestida como espanhola, mas ostentando roupas das mais finas grifes da época.
[12] – Aliás, na passagem dos anos 1910 para a década seguinte, essa simplicidade foi notada pelo então jovem pianista João Souza Lima que depôs: “Tarsila era então muito simples, vestia-se modestamente com descrição […]”. AMARAL, Aracy. Tarsila. Sua obra e seu tempo. Vol. I Pág. 28. Em tempo: Mais tarde Souza Lima se casaria com Maria de Lourdes, sobrinha de Tarsila e por ela retratada em A espanhola, aqui já comentada.
[13]Figura (o Passaporte), 1922. Col. Particular, São Paulo, SP; Retrato de modelo, 1922. Paradeiro desconhecido; Autorretrato de cabelo curto, 1923. Paradeiro desconhecido; Figura em azul, 1923. Col. particular, São Paulo, SP.
[14] – Informação concedida ao autor pela escritora Ana Luiza Martins, autora de: Aí vai meu coração. São Paulo: Planeta, 2003. Em tempo: penas em 1925 seu pai conseguirá anular o primeiro casamento da artista, (apesar do fato ter tido uma filha com o primeiro marido), liberando-a para casar-se com Oswald de Andrade. Não esquecer por outro lado que, no Brasil o desquite só foi tornado lei em 1942 e o divórcio em 1977 (Ver “O caleidoscópio dos arranjos familiares”, de Ana Silvia Scott, in PINSKY, Carla B./PEDRO, Maria Joana (orgs.). Novas histórias das mulheres no Brasil.São Paulo: Contexto, 2020. Pág. 15 e segs.).
[15] – Não esquecer que para o Código Civil de 1916, o status da mulher casada no Brasil era equiparado aos menores de idade, aos indígenas e aos alienados. (Ver “O caleidoscópio dos arranjos familiares”, op. cit.).
[16] – Depoimento de Maria de Lourdes do Amaral Faccio. In GOTLIB P. Tarsila do Amaral a modernista. 2ª. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2000. p. 68.
[17] – Na poesia, na época, o Brasil já contava com profissionais mulheres de sucesso, passíveis de servirem como parâmetro para uma jovem talentosa. Registro aqui os nomes, entre outros, de Francisca Júlia e de Gilka Machado, com a qual Tarsila mantinha relações cordiais. No âmbito da música, Guiomar Novaes e Magdalena Tagliaferro, ambas de renome internacional.
[18] – Em São Paulo, artistas como Berthe Worms e Bety Malfatti (mãe de Anita) parece terem sido mais conhecidas como professoras. Já no circuito carioca, preso à Escola Nacional de Belas Artes, eram poucas as artistas mulheres com algum destaque. Dentre elas, citaria Abigail de Andrade e Georgina de Albuquerque.
[19] – Como será visto na sequência, um assumir-se problemático pois, afinal, a partir desse ano a nova persona criada por Tarsila irá oscilar entre a grande dama da sociedade e a vestal (uma espécie de santa) da arte moderna brasileira.
[20]Espanholas, 1922. Coleção particular, Porto Alegre Rs. Observação: Apesar de sua aparente importância, a obra ainda não despertou interesse de nenhum dos estudiosos da artista. Em tempo, em 1921 a artista teria produzido um desenho com o título Camponesa espanhola, atualmente com paradeiro desconhecido. Como não foi encontrada nenhuma imagem da obra ela ficou fora desta reflexão (SARTUNI, Maria Eugênia (Coord.Ed.). op. cit.  Vol. II, pag. 13.

Curso aprofundará questões sobre acervos pessoais de artistas, curadoria e exposições na web

Ateliê de Rossini Perez na região da Bastilha, Paris (anos 1970). Foto: Divulgação.
Ateliê de Rossini Perez na região da Bastilha, Paris (anos 1970). Foto: Divulgação.

Em razão da exposição virtual Arqueologia da Criação: Uma imersão no acervo-ateliê de Rossini Perez, será promovido, a partir do dia dez de maio, o Laboratório de curadoria: acervos de artistas, coleções e memória pública no eixo sul. Serão sete encontros guiados por questões acerca da contribuição dos acervos de artistas para as novas histórias da arte, como pensá-los em relação a coleções e museus e como expandir esses acervos para o mundo virtual. Para se inscrever, clique aqui.

Os encontros do laboratório têm duração de duas horas (com excessão da aula inaugural). A sua primeira parte é fechada aos inscritos, enquanto a segunda é aberta e será transmitida no YouTube. Para os inscritos, além da presença nas sessões fechadas, a participação no laboratório inclui o acesso à plataforma online com materiais complementares e consultas individuais para elaboração de projetos.

Sobre os encontros e os participantes:

10/05 | 18h-19h30
Acervos de artistas, coleções e memória pública no eixo Sul: o que podem as curadorias?

Participantes: Sabrina Moura e Malick Ndiaye. Moura é curadora e historiadora da arte, doutora pela Unicamp. Foi pesquisadora visitante da Columbia University e curadora de programas públicos dos 18° e 19° Festivais de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil. Organizou o livro Panoramas do Sul | Leituras | Perspectivas | Para Outras Geografias do Pensamento. Ndiaye é doutor em História da Arte pela Université Rennes II. Ele também é graduado pelo Institut National du Patrimoine (Paris). Atualmente é Pesquisador do IFAN / Universidade Dakar Cheikh Anta Diop, e curador do Museu Théodore Monod de Arte Africana, em Dacar (Senegal).

17/05 | 18h30-20h30
Quando acervos ocupam a nuvem: o espaço virtual como campo de aproximação

Participante: Frederico Teixeira é arquiteto com atuação na área de expografia e cenografia, desenvolvendo desenho e produção de exposições desde 2009. Atualmente, é diretor artístico do Museu Itamar Assumpção. Até 2018, ele gerenciou a área de exposições do Museu da Casa Brasileira. Atua de forma independente com exposições para instituições e produtoras culturais no Brasil como Itaú Cultural, SESC e Casa Azul (FLIP).

24/05 | 18h30-20h30
A obra como espinha dorsal: uma metodologia para acervos de artistas

Participante: Silvana Goulart. Graduada e mestre em História pela USP, publicou a dissertação Sob a verdade oficial, referente à imprensa e propaganda no Estado Novo. Especializou-se em Arquivologia, sendo coautora com Ana Maria Camargo do livro Tempo e circunstância, que traz proposta metodológica para o tratamento de arquivos pessoais. Dedica-se a consultoria, centros de memória e gestão de documentos históricos.

31/05 | 18h30-20h30
Acervos e histórias da arte: o tecido como argumento

Participante: Hanayrá Negreiros é mestra em ciência da religião pela PUC-SP. Possui como principais áreas de estudo estéticas negras que se manifestam por meio do vestir, da cultura visual, religiosidades e memórias de família. Atualmente faz parte do grupo de pesquisa INDUMENTA – Dress and Textiles Studies in Brazil, vinculado à Universidade Federal de Goiás (UFG), é membro do Núcleo de Pesquisa em Modas Africanas e Afro-diaspóricas, conselheira do Instituto Urdume e assina a coluna digital Negras Maneiras na ELLE Brasil.

07/06 | 18h30-20h30
Acervo-ateliê-coleção: um olhar sobre museus de artistas

Participante: Pierina Camargo. Ela é formada em Licenciatura em Artes Plásticas pela FAAP e em Museologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Trabalha desde 1985 no Museu Lasar Segall.

14/06 | 18h30-20h30
Acervos de artistas no contexto brasileiro: o papel das instituições

Participante: Luiz Armando Bagolin é doutor em Filosofia pela FFLCH/USP. Atua nas áreas de Estética, Teoria e História da Arte. É docente e pesquisador sênior do Instituto de Estudos Brasileiros da USP na área de artes, com ênfase para a história da arte brasileira, do século 18 ao início do 20. Foi diretor da Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo, entre 2013 e 2016.

21/06 | 18h30-20h30
Acervos de artistas no contexto brasileiro: o papel das instituições

Participante: Iara Schiavinatto é historiadora e Professora Associada Livre Docente do Instituto de Artes da UNICAMP. Foi Diretora Associada do Museu de Artes Visuais da UNICAMP. Em 2020, publicou com Patrícia Meneses a coletânea A imagem como experimento: debates contemporâneos sobre o olhar.

LEIA TAMBÉM: Acervo de Rossini Perez é foco de nova mostra online do Museu Lasar Segall, saiba mais neste link.

Festival Melhores Filmes reúne aclamadas obras nacionais em plataforma digital

Still de "Sertânia" (2020), de Geraldo Sarno. Foto: Divulgação.
Still de "Sertânia" (2020), de Geraldo Sarno. Foto: Divulgação.

Até dia 5 de maio, o CineSesc exibe, dentro da série Cinema #EmCasaComSesc, a programação do 47º Festival Melhores Filmes. As obras selecionadas ficam disponíveis na plataforma do Sesc Digital até o fim da programação, com excessão de O Jovem Ahmed (Luc Dardenne, Jean-Pierre Dardenne, 2019) e Retrato de Uma Jovem em Chamas (Céline Sciamma, 2020), que serão exibidos nos dias 30 de abril e 1º de maio, respectivamente, e ficarão disponíveis por apenas 24 horas. 

O festival ainda conta com a Faixa Especial Abril Indígena, onde serão exibidos os filmes brasileiros Serras da Desordem (2006), de Andrea Tonacci, e Martírio, (2017), de Vincent Carelli, Tatiana Almeida e Ernesto de Carvalho – premiados em edições anteriores do Melhores Filmes. O projeto Abril Indígena integra o Programa Diversidade Cultural do Sesc São Paulo, que aborda questões relativas aos povos originários, com objetivo de valorizar e difundir a diversidade cultural no Brasil.

Confira algumas indicações do que não perder (clique nos títulos para assistir ao trailer dos filmes):

 

A Febre (2020)

Dir.: Maya Da-Rin | 98 min | Ficção

Detalhe do pôster do filme "A Febre" (2020), de Maya Da-Rin. Foto: Divulgação.
Detalhe do pôster do filme “A Febre” (2020), de Maya Da-Rin. Foto: Divulgação.

Justino, um indígena de 45 anos, trabalha como vigilante em um porto de cargas e vive em uma casa modesta na periferia de Manaus. Desde a morte da sua esposa, sua única companhia tem sido sua filha Vanessa, mas ela está de partida para estudar medicina em Brasília. Sob o sol escaldante e as chuvas tropicais, Justino esforça-­se para manter-­se concentrado no trabalho.

Com o passar dos dias, ele é tomado por uma febre forte. Em seus sonhos, uma criatura vagueia perdida pela floresta. Na televisão, o noticiário fala de um animal selvagem que ronda o bairro. Justino acredita que está sendo seguido, mas não sabe se quem o persegue é um animal ou um homem.

A História da Eternidade (2015)

Dir.: Camilo Cavalcante | 121 min | Ficção

Em um vilarejo fincado no Sertão, Cego Aderaldo e Querência, Aureliana e Geraldo, Alfonsina e João protagonizam três histórias de amores brutos em uma epopéia romanesca que se desdobra em vida nova. O toque de uma sanfona, um mar imaginário, um temporal, entre outros elementos metafóricos, conduzem o espectador através de uma narrativa lírica, cujo desfecho margeia um sentimento de dor ou de alegria, de desespero ou de esperança.

Com Amor, Van Gogh – O Sonho Impossível (2019)

Dir.: Miki Wecel | 60 min | Documentário

Um documentário que mostra em detalhes a difícil jornada de dois cineastas tentando alcançar um sonho impossível: criar Com Amor, Van Gogh, o primeiro longa-metragem de animação da história do cinema feito completamente com pinturas, e que foi indicado ao Oscar e ao Globo de Ouro de melhor animação. Realizado a partir de incríveis 65 mil pinturas a óleo sobre tela por uma equipe de 115 pintores, que usaram a mesma técnica do famoso pintor holandês, Com Amor, Van Gogh foi lançado em 2017, após mais de uma década em produção.

Honeyland (2019)

Dir.: Ljubomir Stefanov, Tamara Kotevska | 85 min | Documentário

Aninhada em uma região montanhosa isolada no interior dos Bálcãs, Hatidze Muratova vive com sua mãe doente em uma vila sem estradas, eletricidade ou água corrente. ela é a última de uma longa fila de apicultores selvagens, consumindo um mel vivo da agricultura em pequenos lotes para serem vendidos na cidade mais próxima – a apenas quatro horas a pé. A existência pacífica de Hatidze é perturbada pela chegada de uma família itinerante, com seus motores rugindo, sete crianças indisciplinadas e rebanho de gado. Hatidze cumpre com otimismo a promessa de mudança com o coração aberto, mas não demora muito para que um conflito evolua, expondo a tensão fundamental entre natureza e humanidade, harmonia e discórdia, exploração e sustentabilidade.

Maria Luiza (2019)

Dir.: Marcelo Díaz | 80 min | Documentário

Maria Luiza da Silva é a primeira transexual na história das forças armadas brasileiras. após 22 anos de trabalho como militar, foi aposentada por invalidez. O filme investiga as motivações para impedi-la de vestir a farda feminina e a sua trajetória de afirmação como mulher trans, militar e católica.

Martin Eden (2019)

Dir.: Pietro Marcello | 129 min | Ficção

Martin Eden (luca marinelli) é um jovem escritor de baixa renda que entra em conflito com a burguesia. Encarando um novo mundo, ele se apaixona e descobre como escritores são vistos em uma sociedade aristocrática. Se sentindo deslocado de tudo que faz parte de sua essência, o rapaz percebe que não há como voltar para o que costumava ser. Enquanto tenta publicar alguma obra de grande sucesso, Martin se questiona sobre o mercado literário, a sociedade e sua própria natureza como criador.

Sertânia (2020)

Dir.: Geraldo Sarno | 97 min | Ficção

Cena do filme "Sertânia", de Geraldo Sarno. Foto: Divulgação.
Cena do filme “Sertânia” (2020), de Geraldo Sarno. Foto: Divulgação.

Antão é ferido, preso e morto quando bando de jagunços de Jesuíno invade a cidade de Sertânia. O filme projeta a mente febril e delirante de Antão, que rememora os acontecimentos.

Clique aqui para acessar o festival.

Com “Estado Bruto”, MAM Rio tem maior exposição de esculturas já montada em sua história

Montagem de "Estado Bruto". Foto: Fabio Souza/MAM Rio

Uma seleção de 126 obras do acervo do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM Rio) transforma o Salão Monumental e algumas áreas do terceiro andar da instituição numa espécie de jardim de esculturas. Reunindo trabalhos de 107 artistas de diferentes épocas, lugares e linguagens, Estado Bruto revela a abrangência e a diversidade das coleções do museu.

A maior exposição de esculturas já montada pelo MAM Rio tem curadoria da dupla de diretores artísticos Keyna Eleison e Pablo Lafuente e da curadora adjunta Beatriz Lemos, e busca familiarizar-se com e refletir sobre os acervos da instituição e as histórias criadas a partir deles – dando continuidade às propostas apresentadas em 2020, nas nomeações de Eleison, Lafuente e Lemos aos seus respectivos cargos. A partir da disposição das obras no espaço, a mostra traz especial foco ao volume gerado pelos processos de acumulação patrimonial. “Estado Bruto trata da materialidade escultórica e do ambiente das reservas técnicas de um museu. Aqui nos interessa evidenciar o acúmulo como ponto de reflexão e potencializar a imagem da multidão”, explica a curadora adjunta.

Assim, quem visita a mostra se depara com uma divisão das obras por núcleos bastante sutil, que corrobora para os intuitos principais de oferecer uma visão de conjunto e suscitar um questionamento sobre os efeitos que os processos de colecionismo e conservação patrimonial têm na escrita das histórias sobre arte e cultura.

A construção dessas narrativas também passa pelas “presenças e ausências” do museu, como pontuou Keyna Eleison em seu discurso de posse. Dentre os 126 trabalhos expostos em Estado Bruto, 24 peças não eram exibidas há mais de 20 anos. O contato do público com essas oferece a possibilidade de pensar sobre os modos de compartilhamento – e às vezes de esquecimento – desse patrimônio. Na exposição, as obras são acompanhadas por informações que nos contam o momento de inclusão nos acervos do MAM Rio e o número de aparições públicas durante as últimas duas décadas – “dados que fazem parte dos sistemas de conhecimento que dão origem à escrita da história do museu e, por extensão, das muitas histórias da arte”, explicam Eleison, Lafuente e Lemos no texto curatorial. Para eles, a exposição dessas obras é uma forma de rever essas histórias, que são sempre parciais, e que “estão em contínuo processo de reescritura”.

A multidão de esculturas também aponta para outra relação. “A montagem nos possibilita vivenciar uma outra espacialidade entre espectador e obras, ao trazer grandes volumes escultóricos na altura do chão ou em agrupamentos por núcleos”, avalia Beatriz Lemos. Propiciando um caminhar em meio às diferentes poéticas dos trabalhos de Amilcar de Castro, Auguste Rodin, Celeida Tostes, Cildo Meireles, Constantin Brancusi, Franz Weissman, Lina Kim, Lygia Clark, Márcia X, Maria Martins, Mestre Didi, Nelson Leirner, Nuno Ramos e Tunga – entre tantos outros -, “Estado Bruto propõe um encontro entre corpos diversos, incluindo aí o público, num momento em que os corpos precisam se afastar”, completa Keyna Eleison.

ESTADO BRUTO
ONDE: 
MAM Rio – Av. Infante Dom Henrique, 85. Aterro do Flamengo – Rio de Janeiro (RJ)
QUANDO: 6 de maio a 29 de agosto de 2021.
Quinta e sexta, das 13h às 18h. Sábado e domingo, das 10h às 18h
INGRESSOS: Contribuição sugerida, com opção de acesso gratuito. Adultos: R$ 20. Idosos, crianças e estudantes: R$ 10. Agende sua visita clicando aqui.

Videoinstalação “About Academia”, de Antoni Muntadas, chega ao Brasil em versão digital

A videoinstalação "About Academia II" apresentada de modo virtual. Foto: Reprodução do site

Apresentadas inicialmente nos anos de 2011 e 2017, as duas etapas do projeto About Academia, do espanhol Antoni Muntadas, expõem um quadro complexo do papel das universidades na atualidade, suas funções e contradições. Tendo como ponto de partida o caso norte-americano, o artista apresenta, através de videoinstalações, uma série de entrevistas com professores e acadêmicos (em About Academia I) e com estudantes (em About Academia II), propondo uma reflexão sobre a relação entre público e privado, tradição e contemporaneidade, o lugar da arte na universidade, a interdisciplinaridade e o futuro das instituições de ensino superior.

Expostas originalmente em mostras presenciais, as duas obras – que já foram montadas em diversos países – chegam pela primeira à América Latina de modo virtual, em decorrência da pandemia de covid-19, a partir de uma parceria entre o Fórum Permanente, o Instituto de Estudos Avançados da USP (IEA) e a Biblioteca Brasiliana José e Guita Mindlin. A nova versão, com traduções em português e espanhol, transporta o ambiente das instalações – cada uma feita em três canais, com vídeos das entrevistas, textos e imagens dos campus universitários – para a tela do computador. A obra, acompanhada de contextualizações, está disponível a partir desta sexta-feira, dia 30 de abril (clique aqui).

O ambiente virtual apresenta “About Academia I”, à esquerda, e “About Academia II”, à direira. Foto: Reprodução do site

“Esse projeto é um artefato, quase um artefato antropológico a ser ativado. Ele representa um determinado contexto e examina questões que são relevantes em um período de tempo mais longo e em um determinado lugar. É um instrumento para abrir uma discussão”, disse Muntadas na ocasião da inauguração de About Academia II, em 2017. Para Martin Grossman, coordenador do Fórum Permanente, “Muntadas certeiramente identifica temas/conceitos/situações que geram questionamentos e estranhamentos, tirando-os do lugar comum, do conforto daquilo que consideramos como dado, como estabelecido. (…) Ao problematizar o entendimento da academia, Muntadas expõe, desnuda a universidade, promovendo o debate e a autocrítica”.     

Como modo de aprofundar a discussão e ampliá-la a partir do contexto latino-americano da nova exposição, será transmitida também no dia 30, a partir das 14h, uma mesa-redonda com as participações do próprio Muntadas; do antropólogo, filósofo e catedrático do IEA-USP Néstor Garcia Canclini (México); da educadora, ativista socio-cultural e catedrática do IEA-USP Eliana Sousa Silva; da educadora e ex-secretária Estadual de MG Macaé Evaristo; do filósofo, ambientalista e líder indígena Ailton Krenak; e de Grossmann.

muntadas
O artista espanhol Antoni Muntadas. Foto: Andrea Nacach/ Divulgação

No dia 10 de maio, mais duas mesas-redondas reúnem ainda os estrangeiros Nikki Moore (EUA), David Gange (Inglaterra), Julia Buenaventura (Colômbia) e Mariko Murata (Japão) e os brasileiros Naomar de Almeida Filho, Helena Nader, Guilherme Wisnik e Renato Janine Ribeiro. De algum modo, eles expandem o debate feito em About Academia por importantes pensadores como Noam Chomsky, David Harvey, Carol Becker e Ute Meta Bauer e pelos alunos das faculdades norte-americanas.

About Academia é um projeto originalmente apresentado no Carpenter Center for the Visual Arts, a convite da Universidade de Harvard, durante o último período de ensino de Antoni Muntadas no programa em Arte, Cultura e Tecnologia no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (ACT MIT), em 2011. Nascido em 1942 em Barcelona e radicado em Nova York desde 1971, Muntadas é um dos artistas pioneiros no uso do vídeo. Desde os anos 1970 sua produção se expandiu para o uso de várias linguagens plásticas, meios e suportes, tendo a intervenção no espaço público uma de suas formas de crítica cultural. O espanhol tem também uma longa trajetória de diálogo com a América do Sul, em especial o Brasil, onde realizou diversas exposições e ministrou cursos em museus, bienais e instituições.


SERVIÇO: About Academia I-II, uma interpretação online, 2011-2017 (2021)
ONDE:
Acesso pelo site aboutacademia.iea.usp.br
QUANDO:
De 30 de abril a 31 de outubro de 2021

‘Cinema Brasileiro: Anos 2010, 10 olhares’ traz seleção de grandes obras da década passada

Arábia (2017), de Affonso Uchôa e João Dumans. Foto: Divulgação.
Arábia (2017), de Affonso Uchôa e João Dumans. Foto: Divulgação.

Até o dia 30 de abril é possível escolher entre 75 filmes (43 longas e 28 curtas) para assistir gratuitamente no site do Festival Cinema Brasileiro: Anos 2010, 10 olhares, que já está na sua terceira edição. Ele foi iniciado em 2001 (com retrospectiva referente ao cinema dos anos 1990) e seguiu em 2011 (com o cinema dos anos 2000). O projeto, idealizado pelo curador Eduardo Valente, busca resgatar parte significativa da filmografia nacional da última década, que contou com uma produção múltipla. Como o próprio nome indica, o festival é dividido em dez olhares de dez curadores diferentes. Confira abaixo a seleção de longas de cada um:

Cachoeira Doc: Desaguar em cinema: retomar territórios invadidos

“O movimento observado no traçado desenhado pelos filmes reunidos, nesse segmento, antes de divisor é desaguar: confluência contra fronteiras erguidas por invasões e expropriações – de terras, corpos, povos, vidas, imaginários –, fronteiras fincadas em nome de um Brasil por cima de todos. É, portanto, de um cinema contra a Nação, e não de um cinema nacional, que se trata aqui, por meio dessa pequena coleção de filmes documentais surgidos nesta última década, e reunidos por fluxos sutis de conexão. Se o documentário é o cinema que toma para si a tarefa de empurrar as fronteiras do visível, estes longas e curtas lançam-se nas geografias – do tempo e do espaço –, em operações de retomada: do próprio corpo e desejo, das cidades, das imagens, da história e da terra”.

 

Longas: 

Martírio, de Vincent Carelli
Retratos de identificação, de Anita Leandro
Ressurgentes: um filme de ação direta, de Dácia Ibiapina
A cidade é uma só, de Adirley Queirós.

Imagem do filme "Retratos de Identificação", de Anita Leandro. Foto: Divulgação.
Imagem do filme “Retratos de Identificação”, de Anita Leandro. Foto: Divulgação.

Carol Almeida: A cidade e as brechas ocupadas

“O cinema brasileiro produzido durante os anos 2010 esteve muito atento a questões sobre o direito à cidade, e fez esse debate se mover em imagem a partir de filmes muito distintos em suas propostas formais. Pensando mais especificamente sobre alguns corpos queer que se recusam de forma mais enfática a se adaptarem à arquitetura de segregação dos grandes projetos urbanos e quais espaços de existência que esses corpos conseguem criar, o recorte ‘A cidade e as brechas ocupadas’ agrega filmes que buscam, por um gesto de recusa, um modelo de vida de algumas cidades e simultaneamente de fabulação e criação de desejo dentro das rachaduras que surgem nos blocos de concreto”.

Longas:

Esse amor que nos consome, de Allan Ribeiro e Douglas Soares
Nova Dubai, de Gustavo Vinagre
Batguano, de Tavinho Teixeira
Temor Iê, de Elena Meirelles e Lívia de Paiva

Cleber Eduardo: Espaços concretos de vidas em cinema

“Esse segmento enfatiza uma linha de força de um grupo de filmes da última década e meia que conecta os modos de vidas de seus personagens com os espaços geográficos/sociais de suas vivências, amalgamando as vidas das pessoas fora da tela e das personagens na tela, sem deixar de haver jogo e criação para os filmes, reelaboração da vida cotidiana por dentro da vida em cinema, tensionando a autenticidade de corpos, espaços e falas com a elaboração cinematográfica, sem ter de firmar pacto com a ficção ou com o documentário, muito pelo contrário”.

Longas: 

A vizinhança do tigre, de Affonso Uchôa
Baronesa, de Juliana Antunes
Diz a ela que me viu chorar, de Maíra Bühler
Um filme de verão, de Jo Serfaty

Erly Vieira Jr: De corpo a corpo – personagens transbordantes, espectadorXs desejantes

“Esse conjunto de filmes explora algumas das diferentes estratégias de engajamento sensório que parte da produção LGBT+ brasileira da última década utiliza para falar diretamente aos corpos dos espectadores. Há desde a dimensão coreográfica/ performática presente na mise-en-scène, até o uso de uma visualidade ‘háptica’ (que remete ao tátil), promovida por uma câmera que muitas vezes funciona como um corpo que também é afetado por aquilo que registra. Também se pode incluir aqui o diálogo entre diversos gêneros audiovisuais e hibridismos com outras linguagens contemporâneas, bem como formas de se explorar as relações nem sempre conciliatórias entre corpos dissidentes em termos de gênero e sexualidade e os espaços que habitam”.

Longas: 

Corpo Elétrico, de Marcelo Caetano
Praia do Futuro, de Karim Aïnouz
As boas maneiras, de Juliana Rojas e Marco Dutra
Meu nome é Bagdá, de Caru Alves de Souza.

Still de "Praia do Futuro", de Karim Ainouz. Foto: Divulgação.
Still de “Praia do Futuro”, de Karim Ainouz. Foto: Divulgação.

Heitor Augusto: O corpo, novamente

“Reconhecendo o crescimento exponencial de realizadores e realizadoras não-brancas no cinema brasileiro ao longo da última década, esse recorte propõe uma costura na qual o corpo, particularmente o negro, é presença. Esse segmento reúne quatro filmes de realizadores negros, dois codirigidos por pessoas negras e um por um realizador não-branco. Além de trazer oito filmes para um lugar mais detalhado de apreciação, este recorte carrega também a intenção de que os filmes aqui exibidos facilitem a aproximação a muitos outros que porventura não integram este programa”.

Longas: 

Vamos fazer um brinde, de Sabrina Rosa e Cavi Borges
Baixo centro, de Ewerton Belico e Samuel Marotta
A batalha do passinho, de Emilio Domingos
Um filme de dança, de Carmen Luz

Janaína Oliveira: Cotidiano singular

“Na última década o cenário do cinema nacional presenciou a emergência de outros sujeitos na frente e atrás das telas contando suas histórias. Nesses deslocamentos de significados entre centros e margens que essa emergência propicia, vemos surgir obras que rompem com expectativas de representações já cristalizadas em nosso imaginário. Filmes com outros repertórios possíveis para o vivido todos os dias. O segmento traz um conjunto de filmes que dialogam com os cotidianos da vida naquilo que têm de único, mas afetivamente e efetivamente comum”.

Longas: 

Ela volta na quinta, de André Novais Oliveira
Café com canela, de Ary Rosa e Glenda Nicácio
Arábia, de Affonso Uchôa, João Dumans
Casa, de Letícia Simões

Kênia Freitas: Movimentos Fabulares 

“Esse segmento, apoia-se em dois aspectos basilares na sua proposição de olhar sobre os filmes da década de 2010. O primeiro é a ideia do movimento (dança/gesto/performance) como criador de fabulação nos filmes. O segundo aspecto é de pensar uma inflexão da década situada em 2015 (como um marco temporal simbólico): o movimento de um cinema (e recepção crítica) com linhas de força mais calcadas nas encenações realistas/naturalistas e perspectivas universais/totalizantes para um cinema mais aberto às possibilidades especulativas//experimentais e marcado muitas vezes pela auto-inscrição localizada”.

Longas: 

O que se move, de Caetano Gotardo
Brasil S/A, de Marcelo Pedroso
Yãmîyhex: As Mulheres-Espírito, de Sueli Maxakali e Isael Maxakali
Vaga Carne, de Grace Passô e Ricardo Alves Jr.

Leonardo Bonfim: Era uma vez, era outra vez…

“O foco principal aqui é pensar como um traço marcante do cinema contemporâneo – a ideia de que um filme pode recomeçar ao longo da projeção – foi abordado por longas brasileiros na última década. Dentro desse recorte, colocaremos em diálogo obras que se desdobram em duas ou mais partes, num jogo de variações e metamorfoses, e obras que aventuram a possibilidade da coexistência – nem sempre tranquila – de muitos filmes dentro de um mesmo filme”.

Longas: 

A cidade e os piratas, de Otto Guerra
Garoto, de Julio Bressane
Os dias com ele, de Maria Clara Escobar
António um dois três, de Leonardo Mouramateus
Luz nos trópicos, Paula Gaitán.

Still de "Os dias com ele", de Maria Clara Escobar. Foto: Divulgação.
Still de “Os dias com ele”, de Maria Clara Escobar. Foto: Divulgação.

Pedro Azevedo: O mundo em desencanto

“O critério inicial para definir esse recorte foi territorial. Trata de se mergulhar na produção nordestina e cearense da década de 2010, entendendo-a como uma parte bastante expressiva da cinematografia brasileira contemporânea, que vem ganhando cada vez mais espaço de exibição e debate no circuito de festivais nacionais e internacionais, além de infiltrar-se progressivamente no circuito exibidor de salas comerciais. Não se trata, contudo, de reafirmar a força do cinema produzido no nordeste como um gesto esvaziado de sentido, fadado à esterilidade da boa intenção, mas de propor uma via livre de acesso a filmes  de artistas nordestinos que, quando pensados, exibidos, assistidos em conjunto, possam traduzir uma série de ideias complexas sobre questões que atravessam e transcendem a experiência de ser nordestino num Brasil cujas fronteiras apontam para a formação de um estado-nação que se desenha como ficção pura”.

Longas: 

Medo do escuro, de Ivo Lopes Araújo
Inferninho, de Guto Parente e Pedro Diógenes
A seita, André Antônio
Sol alegria, Tavinho Teixeira, Mariah Teixeira
Canto dos Ossos, de Jorge Polo e Petrus de Bairros

Rafael Parrode: Desvios do contemporâneo

“Ao nos locomovemos por destroços e ruínas de um passado recente, é preciso também partir de uma autocrítica, buscando compreender em que medida o cinema brasileiro se adequou a estilos, modelos de produção e difusão, e até que ponto vínculo permanecerá de pé diante do caos que se afirma. Nessa perspectiva, em que medida seremos reféns ao invés de operadores de novas estéticas emergentes, desvinculadas de um desejo de adequação do cinema brasileiro? A década passada viu muitos filmes que moldavam-se a um padrão internacional. São filmes facilmente encaixáveis em chaves ou tendências totalizantes do cinema mundial. Não se trata aqui da imposição de uma ideia de ‘novidade’, mas de tensionar as novas formas a partir deste arcabouço histórico. Investigar essas formas do cinema que agora já pertence ao passado é também um meio de compreender as amarras e enfrentamentos que precisamos lidar hoje”.

Longas: 

Já visto, jamais visto, de Andrea Tonacci
Tava, a casa de pedra, de Vicent Carelli, Patricia Ferrreira (Keretxu), Ariel Duarte Ortega, Ernesto Ignacio de Carvalho
Vermelha, de Getúlio Ribeiro
Guerra do Paraguay, de Luiz Rosemberg Filho
Filme de aborto, de Lincoln Péricles.

Entre neste link para assistir.

LEIA MAIS: A Última Floresta, documentário escrito por Luiz Bolognesi e pelo líder indígena Davi Kopenawa, vai além do puro retrato etnográfico tentando incorporar a poética dos Yanomami. Filme foi responsável por encerrar o Festival É Tudo Verdade deste ano e estreará em breve no Brasil.

MAM-SP lança projeto educativo no jogo Minecraft

Área externa do MAM SP recriada no Minecraft. Foto: Leonardo Sang / Divulgação.
Área externa do MAM SP recriada no Minecraft. Foto: Leonardo Sang / Divulgação.

Em parceria com a Microsoft e a Agência Africa, o MAM acaba de ser transportado para dentro do jogo Minecraft. No espaço da versão educativa do videogame – direcionada a escolas e estudantes -, é possível realizar visitas à uma réplica do museu, construir ou reconstruir obras de arte e aprender sobre a história da arte brasileira por meio de atividades lúdicas e virtuais.

De cara, a experiência já é interessante pela observação de como cada elemento do museu foi traduzido para a linguagem do Minecraft, um dos videogames mais populares da atualidade, caracterizado como uma espécie de lego digital que permite ao jogador construir ambientes e mundos virtuais.

Para a parceria com o MAM, além da recriação da sede e do Jardim de Esculturas do museu, a plataforma ainda reúne propostas de aulas com recortes temáticos a partir das obras de seu acervo; por enquanto já estão disponíveis quatro propostas. Em uma delas, por exemplo, é sugerido ao educador que leve a sua turma para um passeio no Jardim de Esculturas, possibilitando a abordagem de questões ligadas à interação do público com a obra fora do museu, ao feitio da peça (já que elas ficam expostas ao ar livre) e sua preservação. Depois da troca de ideias, os alunos podem construir suas próprias esculturas e apresentá-las aos seus colegas, refletindo sobre sua criação e relacionando com as questões levantadas anteriormente.

Vale notar também que, na versão educativa do Minecraft, professores, ou outro adulto responsável pela condução do jogo, têm controle do que os jogadores fazem e podem incluir blocos para limitar a área de atuação no mapa, não só demarcando os limites do território, mas também indicando onde os jogadores poderão construir ou não. Outra ferramenta do game é a lousa, que trará as orientações para realização das atividades e informações e links ao site do MAM sobre as obras de arte tratadas na aula. “A parceria dialoga com a missão do MAM em investir na formação cultural, educacional e artística da sociedade”, afirma Mariana Guarini Berenguer, presidente do museu, ao ressaltar que a arte é um dos elementos fundamentais para a construção da cidadania.

Para a estreia do projeto, como uma forma de mostrar esse mundo virtual, foi realizado um filme dentro do game, com criação de um avatar de Lázaro Ramos, com locução do próprio ator. A filmagem ficou sob a direção de Rog Souza, da Tropical – produtora parceira de MAM no Minecraft – e a documentação fotográfica do jogo foi feita por Leonardo Sang, criador do projeto VRP (Virtual Reality Photography), que aplica técnicas fotográficas aos espaços virtuais do jogo.

Primeira fase do projeto

Em sua primeira fase, o jogo trará obras do acervo do MAM-SP que dialogam formalmente com as formas geométricas, uma das principais características do Minecraft. 

O recorte enfatiza a arte construtiva e geométrica, seja como desdobramento, ruptura ou reinvenção desse estilo que surgiu no Brasil nos anos 1950 e que faz parte da história do MAM. Em 1952, o museu foi palco do lançamento do Manifesto Ruptura, encabeçado por alguns dos maiores nomes da arte concreta brasileira, como Geraldo de Barros, Lothar Charoux, Luiz Sacilotto e Waldemar Cordeiro. O movimento defendia uma renovação das artes visuais e a vertente construtiva contra a figuração latente na época. O evento foi um marco fundamental para a arte concreta brasileira e sua posterior “dissidência”, a arte neoconcreta. 

Por hora, o ambiente virtual do MAM no Minecraft vai destacar 18 obras de artistas contemporâneos que fizeram parte dos movimentos concreto e neoconcreto ou que beberam dessas fontes. São trabalhos emblemáticos de Antônio Lizárraga, Athos Bulcão, Amilcar de Castro, Ary Perez e Denise Milan, Emanoel Araújo, Elisa Bracher, Franz Weissman, Guto Lacaz, Hélio Oiticica, Luiz Sacilotto, Mônica Nador e Renato Imbroisi, Sérgio Sister, Sérgio Camargo e Paulo Pasta.

Paralisia da Secretaria da Cultura deve ter resultado trágico para o setor cultural do país, diz Cris Olivieri

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A advogada Cris Olivieri. Foto: Divulgação.

A morosidade, quase paralisação, da atuação da Secretaria Especial da Cultura na implementação dos procedimentos da Lei de Incentivo à Cultura (LIC) – antiga Lei Rouanet -, impedindo inclusive a movimentação de recursos já captados por projetos aprovados, deve ter um resultado trágico para o setor cultural no Brasil. Dentro de um contexto extremamente crítico por conta da pandemia de coronavírus, a paralisia do governo federal – somada a seus ataques à classe artística e flertes com a censura – já está impactando diretamente a vida de artistas, produtores culturais e instituições ao redor do país.      

Quem faz a constatação é a advogada Cris Olivieri, especialista em mercado e políticas culturais e diretora do Olivieri Associados, escritório especializado em consultoria jurídica para cultura e entretenimento. “Não tenho a menor dúvida de que muitas instituições vão morrer por isso. Eu sou da geração em que se falava do engenheiro que ‘virou suco’. E agora teremos o artista que ‘virou suco’, o produtor cultural que vai ‘virar pão’”, diz Olivieri. Para ela, o argumento da Secretaria – hoje comandada por Mario Frias – de que a desaceleração na análise de projetos se deve à pressão do Tribunal de Contas da União (TCU) pode ter base real, mas não justifica a situação. “O papel dele como secretário é fazer com que a política cultural funcione, que esse mecanismo seja realizado. Se ele não o fizer, será responsabilizado por omissão.” O fato, segundo ela, é que nada que está ligado a uma melhor formação do ser humano, como educação, esporte e cultura, é prioridade para este governo.    

Dentro de um quadro tão conturbado e ameaçador, a advogada comemora a implementação da Lei Aldir Blanc – realizada a partir de proposta do Congresso – que, além de distribuir R$ 3 bilhões para a cultura, utilizou um formato inovador para o país, no qual a união repassa as verbas para Estados e município e estes, por sua vez, repassam para as pessoas e projetos contemplados. “Essa lei deixa essa memória de que os gestores mais próximos são mais ágeis, sabem quem precisa mais de apoio. Assim, foi criado esse sistema nacional de cultura que há anos vem sendo discutido e agora tem seus canais prontos. Então é uma ação vencedora e o ideal seria que no futuro tivéssemos uma espécie de ‘fundo eterno’ Aldir Blanc para o fomento à cultura no país.” 

Como possíveis caminhos para os agentes culturais, Olivieri aponta os editais e leis de incentivo municipais e estaduais, alguns editais privados e até mesmo a filantropia – que deve diminuir no momento em que a cesta básica é algo cada vez mais emergencial. A advogada indica também a existência de fundos internacionais voltados à cultura, que devem olhar com mais atenção para o Brasil neste contexto crítico e que podem ser uma alternativa especialmente para instituições. E, mesmo com as dificuldades, Olivieri sugere que não se abra mão da lei federal: “É preciso continuar pleiteando e tentando convencer o governo de que a cultura é importante. E se ele não entende a parte mais lúdica, vamos tentar fazê-lo entender a parte social e econômica”, diz ela sobre um setor que representa 2,6% do PIB do país e gera mais de 1 milhão de empregos. Leia abaixo a íntegra da conversa.

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Exposição montada na Pinacoteca Diógenes Duarte Paes, em Jundiaí, com recursos da Lei Aldir Blanc. Foto: Divulgação

ARTE! – Como você mesma tem alertado, estamos acompanhando nos últimos tempos uma paralisia no setor cultural, especialmente por conta de uma falta de ação do governo federal. Então eu gostaria de começar perguntando o que está acontecendo e quais os principais motivos que estão gerando esta paralisia.

As ações culturais no Brasil sempre foram majoritariamente custeadas pelo incentivo fiscal federal – a Lei de Incentivo à Cultura (LIC), antiga Lei Rouanet. Dentro disso, existe já um processo estabelecido e conhecido pelas empresas, produtores e instituições culturais sobre como esse financiamento funciona. E há toda uma construção de políticas, programas, projetos e projetos de inclusão feitos com esse tipo de financiamento. O que aconteceu mais radicalmente a partir do final de dezembro foi uma morosidade, quase uma paralisação, da atuação da Secretaria Especial da Cultura, não só na aprovação de projetos novos – e o impacto disso veremos mais no final do ano, quando esses projetos não existirem para fazer captação -, mas especialmente no não encaminhamento dos projetos que já captaram. Antigamente era um procedimento já azeitado, que passava pela avaliação técnica e a partir daí entrava nas reuniões das comissões para aprovação. Mas isso passou a não acontecer. Então temos uma grande quantidade de projetos que já captaram recursos, incluindo muitos planos anuais com atividades que já começaram em janeiro, e que não conseguem acessar esse dinheiro que foi captado porque os prazos de homologação, liberação de captação e transferência de recursos estão todos atropelados, tudo meio parado.          

ARTE! – O governo argumenta que há uma imposição do Tribunal de Contas da União (TCU) para a redução de análise de projetos e fala também das dificuldades por conta do lockdown. Isso justificaria essa paralisação?

Existe realmente um processo de discussão da análise da prestação de contas pela secretária – podemos falar mesmo de quando era ministério, porque isso é um processo antigo – e o Tribunal de Contas vem, com razão, pressionando os gestores para que eles tomem uma providência, para que não se tenha esse passivo de prestação de contas tão grande e para que essas análises sejam feitas. No passado, já houve ano em que foi analisada uma única prestação de contas, o que é uma loucura. E já se tentou vários procedimentos. Acho que o mais eficiente, que é o que está sendo adotado nos últimos quatro anos, é o uso da tecnologia, a digitalização do processo todo, que permite cruzamento de informação, conexão direta com o banco, controle de contas etc. Então o TCU está pressionando o secretário atual [Mario Frias], assim como pressionou os anteriores, neste sentido. Não se pode aprovar um monte de projetos e não dar conta da prestação de contas. Dito isso, o argumento de que então só se pode aprovar uma quantidade bem menor de projetos não está correta. Porque o secretário é responsabilizado pelo TCU se ele não der conta das análises de prestação de contas, mas ele também será responsabilizado se ele não der conta de fazer acontecer a política cultural que existe, orientada por uma legislação que está implantada. Porque o papel dele como secretário é fazer com que a política cultural funcione, que esse mecanismo seja realizado. Então é uma escolha que não olha o todo, querer apenas se livrar do TCU. E aí ele vai ser responsabilizado por omissão.    

ARTE! – E para além dessa argumentação técnica, é impossível não pensar na relação quase de confronto que este governo estabeleceu com a classe artística, com o setor cultural. Isso se vê nos discursos, na diminuição de patrocínios, no rebaixamento do Ministério da Cultura para Secretaria, nas tentativas de cortes no Sistema S, entre outras coisas. O que está acontecendo, portanto, não parece ser parte de um “projeto anti-cultura”, digamos assim?

Acho que existem duas coisas. Primeiro a demonização da Lei Rouanet, que não começou com esse governo, vem já inclusive do governo do PT. Porque do ponto de vista do ministro, ou hoje do secretário, há um sentimento de perda na relação com o incentivo fiscal. Porque na Lei Rouanet, neste ano por exemplo, você tem uma renúncia de cerca de R$ 1,4 bilhão, enquanto a Secretaria não chega a ter R$ 400 milhões de orçamento ao ano – que é gasto na manutenção. Então ao gestor sobra pouco espaço para criar e implementar políticas públicas. E às vezes ele se torna um oponente do incentivo fiscal porque acha que aquele dinheiro deveria ir para ele. Mas não é isso que ocorre, porque são duas coisas distintas, a verba para a cultura e o incentivo fiscal. Então há alguns anos começou essa demonização, com argumentos totalmente equivocados. Esse dinheiro não vai direto para o artista, como dizem quando falam da “mamata” – existe inclusive a limitação de cachês em R$ 30 mil. Ele, na verdade, possibilitou a implementação de uma série de museus, centros culturais que usam a arte para inclusão, instituições sem fins lucrativos e assim por diante. E essa percepção equivocada começou antes, mas persistiu na campanha eleitoral, com ataques aos artistas. Para além disso, esse não é um governo especialmente humanista. Tudo que está ligado a uma melhor formação do ser humano, como educação, esporte e cultura, nada disso é prioridade.

ARTE! – É uma situação sem paralelos na história recente do país?

Eu acho que até a chegada deste governo existia dentro do Ministério, ou Secretaria, um procedimento de azeitar mais as coisas, para que todos os procedimentos ficassem mais rápidos e mais transparentes. E inclusive quando você digitaliza tudo, fica também mais transparente. E estávamos nesse caminho. O que acontece agora, num sentido contrário ao da transparência e democratização, é que além da paralisação, a Comissão Nacional de Incentivo à Cultura não foi renomeada – ela é formada por integrantes da sociedade civil e junto à Secretaria homologa os projetos. O secretário foi alertado diversas vezes de que é preciso fazer um edital para a nomeação da nova comissão, mas ele não o fez. E a notícia que se tem é de que o secretário disse que agora vai aprovar por referendo. Ou seja, que não vai existir essa comissão, que sempre trouxe um balanço, uma inteligência, a experiência de pessoas que trabalham na área, e que é o secretário quem vai aprovar ou não os projetos.

ARTE! – Com o perigo de se tornar algo totalmente arbitrário…     

É um perigo como conceito, independentemente de qualquer governo, fosse ele de esquerda, direita ou centro. Quanto mais as decisões são colegiadas, menor o risco de erros, maior a chance de minimizar qualquer tipo de privilégio ou dirigismo. 

ARTE! – Neste sentido, tivemos o veto ao projeto do plano anual do Instituto Vladimir Herzog na Lei de Incentivo à Cultura pela primeira vez em dez anos. Podemos considerar este um caso de censura?

É o que tudo indica… Porque, justamente, se você pensar que o instituto tem o seu plano anual aprovado já há mais de dez anos, e é uma instituição que trabalha com humanidades – jornalismo, exposições, materiais para escolas, livros -, sempre vinculada aos direitos individuais, não teria motivo para não ser aprovado. E, na verdade, já estava aprovado quando de repente se voltou atrás. Então existe aí uma coisa esquisita. 

ARTE! – Falando agora sob uma ótima mais econômica, você mostrou em texto recente publicado na revista Quatro Cinco Um que as atividades ligadas à produção cultural, para além de sua importância por si só, são de grande relevância para a economia, representando 2,6% do PIB e gerando mais de 1 milhão de empregos. Nem mesmo este ponto de vista tem sido suficiente para convencer o governo e setores da sociedade da importância da cultura?

Já está demonstrada toda a importância da economia criativa e da produção cultural no país. É muito triste imaginar que o Brasil, que tem a criatividade no seu DNA, tenha tão poucas políticas para reforçar isso. Porque, além de tudo, é uma atividade limpa, de fácil exportação e que divulga o país como um todo. Não é à toa que os EUA investiram tanto no cinema, com a difusão do american way of life, assim como a Inglaterra nos últimos 15 anos tem investido assustadoramente na economia criativa. Porque qualifica as pessoas, tem um impacto grande e rápido na economia – por ser muito vinculado à área de serviços -, não polui. Ou seja, há uma série de vantagens que não estão sendo consideradas nessas decisões de paralisia das atividades. Não tenho a menor dúvida de que muitas instituições vão morrer por isso. Eu sou da geração que se falava do engenheiro que “virou suco”. E agora a gente vai ter artista que “virou suco”, vai ter muito produtor cultural que vai virar pão… Que é que muitos estão fazendo para sobreviver: pães, comidas. Porque não conseguem trabalhar em suas áreas nessa época em que estamos todos em isolamento e os recursos que existem estão paralisados. Inclusive a captação pela LIC no final do ano passado foi inesperada, positivamente, porque acho que as empresas já têm isso no seu DNA. Vimos isso com vários clientes do nosso escritório, que queriam fazer o dinheiro chegar às instituições. E esse movimento, ao invés de estimulado, está sendo paralisado, o que não faz sentido. Inclusive, se você pensar de uma maneira mais genérica, se esse dinheiro chega às mãos das pessoas é um “problema” a menos para o governo. É menos gente precisando de apoio emergencial, por exemplo, pois as pessoas continuam com suas atividades. Represar esse dinheiro não traz nenhuma vantagem.        

ARTE! – O principal auxílio para a cultura que tivemos durante este período de pandemia foi a Lei Aldir Blanc, que liberou R$ 3 bilhões de reais para Estados e municípios. Ele está sendo eficiente?

Foi um ganho muito grande para o segmento. É uma lei que foi proposta e aprovada pelo Congresso, ou seja, não tem uma relação direta com o poder executivo. O governo teve que encarar, e inclusive burocratizou coisas que não precisavam. Mas foi muito positiva essa lei, inclusive pensando no histórico que ela vai deixar. Porque o formato utilizado foi muito inovador para o Brasil. Não foi um dinheiro distribuído diretamente pela União para os projetos, mas distribuído para os Estados e municípios. Assim se criou esse sistema nacional de cultura que há anos vem sendo discutido e agora tem seus canais prontos. É uma grande evolução, porque é muito mais fácil para o secretário da cultura de São Paulo criar formas de distribuir esse dinheiro dentro da cidade do que um cara lá em Brasília, que não conhece a realidade local. E falo de São Paulo ou de qualquer outra cidade. Então é uma ação vencedora e o ideal seria que no futuro tivéssemos uma espécie de “fundo eterno” Aldir Blanc para o fomento à cultura no país. 

ARTE! – Falando sobre um caso específico do Estado de São Paulo, o ProAC ICMS foi substituído, em janeiro deste ano, pelo ProAC Expresso Direto. Isso pegou muita gente de surpresa e foi criticado por agentes do setor cultural. Como você vê essa mudança?

Nós vemos com bastante surpresa, tentando encarar como algo que vai ser revertido para os próximos anos. Existem conversas sendo feitas com o governo do Estado para que se entenda que essa mudança não é o melhor caminho. O que parece é que eles precisavam acertar um pouco o caixa tributário e fizeram uma conta que, entre aspas, seria a mesma coisa. Como se trocar R$ 100 milhões de renúncia fiscal por R$ 100 milhões em um edital fosse igual, mas não é. Porque no ProAC ICMS, assim como na Lei Rouanet, você já tinha um processo todo estabelecido. Várias instituições, inclusive no interior do estado – com programas estabelecidos de inclusão, projetos de arte-educação, prêmios etc. – já tinham patrocinador e anos sendo realizados. Com o ProAC Direto não se sabe se terão os recursos. E existem vários projetos que foram aprovados no final do ano passado que já haviam captado uma porcentagem de sua verba e tinham o compromisso de captar o restante esse ano. Enfim, coisas que ficaram pelo caminho. Então eu imagino que o ProAC Direto vai tentar fazer um tipo de compensação – existe a promessa de realização de um edital para dar conta do mesmo tipo de projeto que era incluído no ProAC ICMS -, mas a gente entende que é preciso voltar a ser como era, porque quanto mais diverso for o financiamento para a cultura, melhor. Então o ideal é que tenha dinheiro público, incentivo fiscal, bilheteria, doação de particulares e assim por diante. A gente não pode correr o risco de perder o apoio das empresas. E por isso já existe uma comissão tentando negociar para que essa mudança seja revertida

ARTE! – Por fim, pensando neste contexto todo de que falamos, quais são as alternativas que você enxerga para produtores culturais, artistas e instituições no momento? Ou seja, entre editais, prêmios, setor privado, políticas de Estados e prefeituras, aonde é possível buscar apoio e financiamento?

Nós temos visto que secretários de cultura de muitas cidades têm tido um papel importante. Se nós pegarmos especificamente o caso de São Paulo, o dinheiro da Lei Aldir Blanc foi distribuído em outubro. A Secretaria teve esse foco de fazer a coisa acontecer de maneira muito rápida. Então acho que estamos aprendendo com a pandemia, e essa lei deixa essa memória, que os gestores mais próximos são mais ágeis, sabem quem precisa mais de apoio. E temos visto cidades – posso citar também Niterói, Fortaleza, São Luís, entre outras – que logo no início da pandemia já saíram com editais importantes, que ainda estão acontecendo. Então esse é um caminho. Além dos editais públicos, existem também os privados, que têm funcionado, mesmo que com valores menores. Quanto aos incentivos fiscais, existem os municipais e existem os estaduais de ICMS – que, tirando São Paulo, seguem ativos. Há também o caminho das doações, da filantropia, mas isso eu não sei quanto tempo vai durar. Porque no momento a cesta básica é algo emergencial, e me parece provável que as pessoas doem mais para comida do que para os projetos culturais. E mesmo que a lei federal de incentivo à cultura esteja atravessando esse momento difícil, acho que é preciso continuar pleiteando e tentando convencer o governo de que isso é importante. Agora, nós trabalhamos com arte. E a arte incomoda – não só esse governo -, isso faz parte. Mas, no caso, esse é também um governo pouco sutil… E arte tem sutileza, poesia, mas esse governo não tem muita poesia, não vê utilidade nisso. Enfim, é difícil, mas é preciso seguir tentando. E é aquilo que falamos, de que se o governo não entende a parte mais lúdica, vamos tentar fazê-lo entender a parte social e econômica. Há uma série de instituições culturais focadas na inclusão da criança e do adolescente e não é possível que isso não seja prioridade para qualquer governo. Existem instituições que garantem a alimentação dessas pessoas…     

Por fim, existe um outro caminho, especialmente para quem está estruturado, como instituições, que é um dinheiro internacional, dos fundos internacionais. Para conseguir acessar esse tipo de financiamento é preciso um bom planejamento, pois há uma série de regras, formulários etc., mas é um apoio que existe e que provavelmente virá mais para o Brasil. Porque quando o Brasil estava “bombando” começou a se pensar que nós não precisávamos mais desse apoio. Mas agora voltamos a ser vistos como um país que precisa. Então UNESCO, Ford Foundation, várias instituições voltadas para a América Latina, entre outras, podem ser uma forma de ajudar a atravessar esses tempos difíceis.        

Mostra comemora 50 anos da Fundação Edson Queiroz com obras antigas e contemporâneas

"Tribo da Etiópia", da série “Gênesis” de Sebastião Salgado. Foto: Acervo Fundação Edson Queiroz

O que há em comum entre as obras de Salvador Dalí e Xico Stockinger? Quais critérios uniriam os trabalhos de Adriana Varejão e Sérgio Helle? Em que contexto as pinturas de Vicente Leite e as fotografias de Chico Albuquerque estariam lado a lado? Conectando trabalhos emblemáticos do século 17 à arte contemporânea, 50 Duetos – 50 anos da Fundação Edson Queiroz busca estabelecer uma outra reflexão sobre a história da arte. Com curadoria de Denise Mattar, a mostra traz uma disposição inédita de obras de importantes artistas que integram o acervo da Fundação, unindo-as em pares a partir de relações diversas – desde paralelismo visuais, afinidades temáticas e eletivas, até oposições.

“Minha proposta curatorial tem muito a ver com o mundo atual onde as coisas vão se conectando de formas diferentes, onde as pessoas têm necessidade de uma visualização mais rápida. Vamos contar uma história da arte, só que, em vez de contar de forma cronológica, mostraremos uma história do pensamento da arte”, explica Mattar. Através de vídeos, galerias de fotos e textos, a exposição que comemora os 50 anos da Fundação Edson Queiroz reúne mais de 100 obras em um ambiente virtual, elencando-as em duetos. Dentre os artistas que a compõem estão Antonio Bandeira, Anita Malfatti, Almeida Júnior, Bonaventura Peeters, Cícero Dias, Félix-Émile Taunay, Irmãos Campana, Frans Krajcberg, Geraldo de Barros, Leda Catunda, León Ferrari, Mariana Palma, Maciej Babinski, Mira Schendel, Raoul Dufy, Sebastião Salgado, Tarsila do Amaral e Tomie Ohtake.

O passeio virtual, acompanhados da voz e das ideias da curadora, acontece através do site da Universidade de Fortaleza – que sedia a Fundação Edson Queiroz. Num caminhar de sala em sala, somos apresentados aos conceitos que norteiam 50 duetos e às relações que uniram os diferentes trabalhos em seus pares. Com a densidade dos autorretratos de Iberê Camargo e Ismael Nery; a melancolia expressionista que conecta Lasar Segall a Vik Muniz; a semelhança que une as mulheres retratadas por Belmiro de Almeida e João Câmara; as festas populares brasileiras sob olhar de Djanira e Portinari, entre tantas outas conexões – algumas mais improváveis do que outras -, a exposição oferece ao espectador a oportunidade de refletir sobre o diálogo entre obras e artistas e sobre a “essência da criação”, como sugere Mattar em seu texto curatorial. Para Lenise Queiroz, presidente da Fundação, é assim que 50 duetos “dá seu recado: liberta a história clássica da arte de enquadramentos formais ou conceitos fechados”. Queiroz acredita que quando os padrões artísticos e gostos estéticos de diferentes épocas se enamoram na mostra, revelam o quão “elástico e múltiplo é o potencial artístico em seu modus operandi de esculpir o belo para fazer pensar”.

A experiência do público é ainda aprofundada com áudios, vídeos, músicas e depoimentos. Em decorrência da pandemia de coronavírus, os duetos atualmente podem apenas ser contemplados no site da Fundação Edson Queiroz | Unifor. Porém, os organizadores afirmam a intenção de abrir a exposição ao público no espaço físico da instituição.

Serviço
50 Duetos – 50 anos da Fundação Edson Queiroz
Local: Site da Fundação Edson Queiroz | Unifor (acesse a exposição clicando aqui).
Curadoria: Denise Mattar
Período expositivo: até 23 de dezembro

“A tempestade que se aproxima”: Jonas Bendiksen denuncia os danos do aquecimento global em Bangladesh

Em razão da Cúpula do Clima 2021, relembramos seu trabalho "A tempestade que se aproxima", que denuncia a inércia dos líderes mundiais ao documentar os efeitos danosos da mudança climática em Bangladesh, uma década atrás
Bangladesh. Padmapukur. 2009. No 'char' (ilha de silte) de Padmapukur, no delta do Ganges. O furacão Aila destruiu os diques, causando inundações diárias nas comunidades. Legenda e foto de Jonas Bendiksen. Todos os direitos reservados a ele e à revista National Geographic.

Na ocorrência da Reunião de Chefes de Estado da Cúpula do Clima (o Leaders Summit on Climate, que começa hoje, 22, e termina na sexta-feira, 23) e do Dia da Terra, revisitamos o trabalho fotográfico A tempestade que se aproxima, de Jonas Bendiksen, publicado junto a reportagem do jornalista Don Belt na revista National Geographic, em maio de 2011. Dois anos antes da publicação, em 2009, a vila de Munshiganj (com 35 mil habitantes na costa sudoeste da capital Dhaka) havia sido atingida pelo Ciclone Aila. Seus ventos de 70 milhas por hora enviaram uma onda de tempestade em direção à costa e pegou os moradores daquela área completamente desavisados. A recuperação desse desastre também é mostrada por Bendiksen em alguns dos seus registros.

Bangladesh é uma das nações mais densamente povoadas do planeta. “Ela tem mais habitantes do que a grande Rússia geograficamente”, indica Belt. “Então imagine Bangladesh no ano de 2050. A população provavelmente terá aumentado para 220 milhões e uma boa parte de sua massa de terra atual poderá estar permanentemente debaixo d’água”, sugere o jornalista. O cenário ao qual ele se refere é baseado em duas projeções convergentes: o crescimento populacional que, apesar de uma queda acentuada na fertilidade, continuará a produzir milhões de bebês nas próximas décadas, e um possível aumento no nível do mar até 2100, como resultado da mudança climática. “Tal cenário poderia significar que 10 a 30 milhões de pessoas ao longo da costa sul seriam deslocadas, forçando Bangladesh a se aglomerar ainda mais ou então a fugir do país como refugiados do clima – um grupo previsto para aumentar para cerca de 250 milhões em todo o mundo em meados do século 21, muitos de países pobres e de baixa altitude”, ele explica.

Desde o Ciclone Aila, em Bangladesh, diversas adaptações com tecnologias de baixo custo foram experimentadas. Tal movimento foi apoiado pelos governos dos países industrializados que participam nesta Cúpula do Clima, dez anos depois, e cujas emissões de gases de efeito estufa são, em grande parte, responsáveis pela mudança climática que está causando a elevação dos mares.

Cúpula do Clima 2021 e presença brasileira

A Cúpula do Clima age como preliminar à COP26; ao reunir representantes de 40 países em reuniões virtuais, a intenção da Cúpula é instigar os países a traçarem metas mais ambiciosas em tempo para a 26ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança Climática, que acontece em novembro deste ano, no Reino Unido.

Tendo saído do status de referência nas negociações climáticas para o de pária, o Brasil participa do evento em uma situação desconfortável, agravada pela gestão de Ricardo Salles no Ministério do Meio Ambiente. Um dia antes da Cúpula dar a largada, nas redes sociais houve uma manifestação numerosa que pedia a retirada de Salles de seu cargo utilizando a hashtag #ForaSalles.

Como lembra Guilherme Castellar em reportagem para o portal UOL, em 2020, o desmatamento na Amazônia foi três vezes superior à meta proposta pelo Brasil para a Convenção do Clima de 2009. “Sob comando de Salles, o Ministério do Meio Ambiente perdeu poder fiscalizador para evitar desmatamento, invasões de áreas indígenas e mineração ilegal”, escreve. E ele lembra que “há uma semana da Cúpula, a Polícia Federal levantou suspeitas de que Salles pode ter prejudicado uma investigação que terminou com a maior apreensão de madeira na Amazônia, no final de 2020. Um dia depois de enviar a notícia-crime ao Supremo Tribunal Federal, no dia 14, o superintendente da PF no Amazonas, o delegado Alexandre Saraiva, foi afastado do cargo”.

Leia também: Fotógrafo sul-africano Gideon Mendel produz, ao redor do mundo, séries que denunciam as mudanças climáticas e seus impactos na sobrevivência humana, oferecendo uma espécie de testemunho aos seus retratados (clique aqui).