Gideon Mendel Submerged Portraits oão Pereira de Araújo, Rio Branco, Brasil, 14 de março de 2015.
"Já vi muitas enchentes na minha vida, mas nunca tão altas. Minha casa foi construída sobre palafitas, mas agora o andar de baixo está submerso. Eu olho pela janela e vejo rua após rua debaixo d'água - tantas casas e lojas. Tudo o que podemos fazer é esperar a água descer, limpar e continuar". João Pereira de Araújo, Rio Branco, Brasil, 14 de março de 2015. Retrato da série "Submerged Portraits".

“Houve um ponto, para mim, em que eu estava pesquisando imagens referentes ao aquecimento global e senti que elas eram muitos distantes. Eram imagens de ursos polares e geleiras e, frequentemente, cenários esteticamente lindos”, relatou uma vez Gideon Mendel à jornalista Adele Peters. O fotógrafo sul-africano – com um corpo de trabalho referente aos desastres climáticos que ultrapassa uma década – busca oferecer uma outra faceta para a representação em imagens de uma das crises globais mais desconcertantes.

Mendel confessa a Peters que “muito do diálogo em torno da mudança climática e da resposta das organizações está ligado a um tipo de movimento ecológico branco, de classe média e anteriormente hippie”, o que estaria limitando sua eficácia, tendo em vista que as mudanças climáticas afetam muitas pessoas de cor em todo o mundo – “eu realmente sinto que é necessário uma injeção de um tipo mais radical de ativismo”, complemente ele. A observação de Gideon não é despropositada, como nota o pesquisador Emmanuel Skoufias: “Enquanto os olhos do mundo estão fixos em ursos polares, pinguins da Antártida e outros habitantes ameaçados pelo derretimento das calotas polares da Terra, relativamente poucos pesquisadores têm prestado a atenção devida – até anos recentes – para quantificar os possíveis efeitos de longo prazo da mudança climática na sobrevivência humana”.

“Eu trago as pessoas para a representação das mudanças climáticas”, afirma Gideon, radicado em Londres. Com seu projeto Submerged Portraits, ele começou a documentar enchentes em 2007, quando uma série de chuvas de verão fez com que grande parte do centro e do norte da Grã-Bretanha ficasse submersa. Em questão de semanas do primeiro episódio, milhões de pessoas em Bangladesh, Índia e Nepal tiveram que escapar de enchentes muito maiores daquelas que já haviam visto. O contraste entre os impactos dos dois eventos (enquanto dividiam certa vulnerabilidade que parece fornecer um estímulo para união) motivou o fotógrafo a dar liga à ideia de retratar as vítimas de enchentes. Desde então, ele têm visitado o Austrália, Bangladesh, Caxemira, Haiti, Paquistão e os Estados Unidos, para citar alguns dos 13 países países que, dentro do projeto, representam 19 enchentes.

Antes de desenvolver Submerged Portraits (englobado por um projeto maior chamado Drowning World), Mendel já não era um novato. Ele havia representado imageticamente temas como o Apartheid e a crise do HIV/AIDS na África do Sul, trabalho pelo qual venceu o World Press Photo. Ele encara Submerged Portraits como um distanciamento do fotojornalismo clássico: “Eu não sou um documentarista, sou uma espécie de interveniente”, afirma. “Não estou apenas fotografando o que está diante de mim, estou construindo cenários com as pessoas. Estou escolhendo o fundo, estou escolhendo onde colocar as pessoas. Eu não estou indo até elas e tirando suas fotos. Não estou produzindo evidências, estou procurando fazer imagens que falam algo por serem esteticamente poderosas e até mesmo por conta de uma beleza desconcertante em meio ao horror.”

Gideon Mendel: "Ninguém consegue se lembrar de uma inundação maior. Ouvi dizer que o governo tem planos de nos mudar e transformar esta área em um parque. Mas eu ouço isso há anos e ainda estamos aqui. Quando as enchentes vêm, pegamos nossas coisas e partimos por um tempo". Francisca Chagas dos Santos, Rio Branco, Brasil, 10 de março de 2015. Retrato da série "Submerged Portraits".
“Ninguém consegue se lembrar de uma inundação maior. Ouvi dizer que o governo tem planos de nos mudar e transformar esta área em um parque. Mas eu ouço isso há anos e ainda estamos aqui. Quando as enchentes vêm, pegamos nossas coisas e partimos por um tempo”. Francisca Chagas dos Santos, Rio Branco, Brasil, 10 de março de 2015. Retrato da série “Submerged Portraits”.

Há algo desconcertante sobre as imagens. Por um lado são retratos convencionais de pessoas em pé, na frente da câmera e olhando para ela. No entanto, o contexto, a paisagem e o ambiente são extraordinários. Logo, eles são desconcertantes juntos. Esse formato clássico do retrato ajuda a conferir honestidade para Submerged Portraits, uma admissão da manipulação da cena.

Há uma sensação de ser testemunhado. Não posso ajudar as pessoas, não tenho recursos para trazer mudanças. Mas eu ofereço uma espécie de testemunho. E algumas pessoas parecem valorizar e apreciar.

Quando veio para Rio Branco, em 2013, o nível do Rio Acre havia alcançado 17,88 metros, tendo ultrapassado sua cota histórica, registrada em 1997, ao marcar 17,66 metros. De acordo com o portal de notícias G1, à época, cinco abrigos públicos foram mobilizados na capital do Acre para manter seguras as vítimas da enchente: por volta de 6 mil pessoas desabrigadas e mais outras 70 mil afetadas. A reportagem também indica que quarenta dos 212 bairros da cidade foram impactados com a cheia do Rio Acre, cujo nível, normalmente, fica por volta de seis a oito metros – em períodos de seca pode ficar abaixo de três. Mendel relata que quando chegou lá, o nível da água já havia abaixado, tendo antes passado por cima dos telhados de algumas casas. “As pessoas [que retratei] pertenciam a uma comunidade pobre e eles não tinham acesso a água encanada, então usavam a água da enchente para limpar suas paredes”.

Da série Floodlines: Mendel registra a marca deixada pelo aumento no nível da água na entrada de uma casa no distrito de Taquari. Rio Branco, Brasil, março de 2015.
Da série “Floodlines”: Mendel registra a marca deixada pelo aumento no nível da água na entrada de uma casa no distrito de Taquari. Rio Branco, Brasil, março de 2015.

Analisando o cenário de resposta ambiental de lá para cá, o fotógrafo faz a ressalva: “Não era que o governo antes de Bolsonaro fosse brilhante em termos de sua resposta ao meio ambiente, aliás acho que vinha agindo de maneiras muito contraditórias. Mas agora, o que é aterrorizante, em um sentido global, é que, em um momento da história em que se precisa de uma ação global coordenada – particularmente em mudanças climáticas -, há tantos líderes populistas no mundo que estão fazendo o seu melhor para minar esforços ambientais – e acho que com grande apoio de um complexo industrial petroquímico”.

Em 2011, no artigo Quatro frases que aumentam o nariz do Pinóquio, o jornalista e escritor uruguaio Eduardo Galeano também nota o apoio de setores da indústria nessa reversão dos esforços ambientais – embora, naquela época, não se referindo ao fenômeno do populismo. Galeano nos lembra que das dez maiores empresas produtoras de sementes do mundo, seis fabricam pesticidas (Sandoz-Ciba-Geigy, Dekalb, Pfizer, Upjohn, Shell, ICI). “A indústria química não tem tendências masoquistas”, escreve o uruguaio. Ele afirma: “A recuperação do planeta ou daquilo que nos sobre dele implica na denúncia da impunidade do dinheiro e da liberdade humana. A ecologia neutra, que mais se parece com a jardinagem, torna-se cúmplice da injustiça de um mundo, onde a comida sadia, a água limpa, o ar puro e o silêncio não são direitos de todos – mas, sim, privilégios dos poucos que podem pagar por eles”.

A relação entre classe e a crise ambiental, ressaltada por Galeano nesse trecho, vem ganhando maior atenção na última década. Este é um fator que Mendel não deixou passar em branco, pela diversidade tempo-espacial entre seus representados, pessoas que – mesmo pertencentes a um mesmo país, mas em regiões diferentes – terão condições distintas para lidar com os estragos causados pelas enchentes e a reconstrução das suas vidas.

Em relatório liberado pelo Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais das Nações Unidas (DESA-ONU), a desigualdade social (não só econômica, mas também de poder político) e a crise climática são interligadas – majoritariamente – por três fatores: a exposição dos grupos sociais desfavorecidos aos “efeitos adversos da mudança climática”; a suscetibilidade dos grupos desfavorecidos a danos causados por perigos climáticos; e a capacidade relativa desses grupos de lidar e se recuperar dos danos que sofrem. No caso das enchentes, por exemplo, grupos desfavorecidos têm maior probabilidade de viver em áreas propensas a serem alagadas, no entanto, apresentam menor poder econômico e político para se recuperar dos estragos causados pelas enchentes e/ou cobrar uma compensação do Estado.

“Vivemos no capitalismo. Seu poder parece inescapável. O mesmo aconteceu com o direito divino dos reis. Qualquer poder humano pode ser resistido e mudado por seres humanos. Resistência e mudança geralmente começam na arte”, disse a falecida escritora Ursula K. Le Guin em 2014, aos seus 84 anos. Em relação à fala de Le Guin, Mendel confessa: “Eu gostaria de concordar, mas me sinto muito desolado em relação ao futuro”. Apesar disso, ele também nota que poderia ser surpreendido. “Cheguei à maioridade na África do Sul, no final dos anos 1980. Eu nunca teria imaginado que o Apartheid teria caído, era completamente inconcebível, então podemos nos surpreender de como as coisas mudam.”

Gideon Mendel, série Fire, Anthony Montagner com sua família, sua esposa Fina e seus filhos Christian (9) e Dylan (6), onde costumava ser seu lar, agora completamente derrubado pelas chamas. Upper Brogo, Austrália, 18 de janeiro de 2020.
“Outros incêndios me atingiram anos atrás, mas este era um monstro; estava correndo tão rápido quanto minha van. Não me restou uma foto para mostrar aos meus filhos como era a avó deles. Não tenho mais fotos da minha infância ou de qualquer coisa que fiz quando era adolescente. É como se eu nunca tivesse existido.”, diz Anthony Montagner. Na foto da série “Fire”, Anthony está junto de sua família, sua esposa Fina e seus filhos Christian (9) e Dylan (6), onde costumava ser seu lar, agora completamente derrubado pelas chamas. Upper Brogo, Austrália, 18 de janeiro de 2020.

A desesperança na sua fala é posta à prova, no entanto, pela continuidade dos seus projetos, que segundo o fotógrafo se estabelecem em uma pirâmide sustentada entre documentário, arte, e ativismo. “Com Drowning World, sempre foi um debate: quando terminamos? Posso terminar? E em que momento? Em que ponto está completo? E essa é uma questão que ainda não resolvi por mim mesmo, porque sempre há mais o que fazer”. Mendel também planeja dar continuidade ao projeto Fire, que percorre outra faceta dos desastres climáticos impulsionados pela ação humana. Para sua próxima empreitada com Fire, o fotógrafo planeja reunir fundos para financiar uma volta à Califórnia, onde fotografou em 2018, e ao Brasil, para documentar as consequências da queima do Pantanal.

Com Drowning World, sempre foi um debate:  quando terminamos? Posso terminar? E em que momento? Em que ponto está completo? E essa é uma questão que ainda não resolvi por mim mesmo, porque sempre há mais o que fazer.

Além de dar seguimento a esses dois trabalhos, ele estuda a possibilidade de realizar uma produção inédita partindo de sua história familiar. Seus pais foram judeus alemães que encontraram refúgio na África do Sul. Sua avó paterna também tentou sair da Alemanha, mas acabou não conseguindo. O pai do fotógrafo manteve os documentos que haviam sido preparados para a vinda da mãe, no entanto. A isso, Gideon soma correspondências e álbuns feitos pela avó, que estudou fotografia em Berlim de 1915 a 1917. “Há tantos anos que estou preso neste trabalho e sempre resisti a começá-lo, mas chegou a hora de tentar. Talvez eu tivesse que esperar a morte da minha mãe; ela faleceu há dois anos. O problema é que esta não é uma história única, muitas famílias ficaram feridas pelas migrações, a questão é como faço isso, o que eu consigo trazer para esse projeto”. Resta acompanhar seu percurso para saber.

*Modificações foram realizadas no artigo a fim de clareza.

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