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Infinito Vão: uma abordagem singular sobre a história da arquitetura brasileira

FAU-USP, 1961, Vilanova Artigas e Carlos Cascaldi. Foto: Leonardo Finotti/Acervo Casa da Arquitectura de Portugal

Infinito Vão: 90 anos de Arquitetura Brasileira, no Sesc 24 de Maio, subverte qualquer conceito de exposição do gênero. Cênica, sem ser teatral, tem narrativa centrada na hibridação de várias poéticas, como música, artes plásticas, literatura e vídeo, e deixa o visitante pluralizar esse encontro durante toda sua travessia.

Com curadoria de Guilherme Wisnik e Fernando Serapião, a mostra já foi exposta em 2019 na Casa da Arquitetura de Portugal e reúne projetos de 96 arquitetos. O arranjo temporal abarca desde os anos 1920, marcados pela Semana de Arte Moderna de 1922, até os dias atuais, com projetos de nomes já esperados como Oscar Niemeyer, Vilanova Artigas, Paulo Mendes da Rocha, Lucio Costa e Lina Bo Bardi, que se somam a outros menos conhecidos para juntos contarem uma história de nove décadas.

Visitar a mostra não é um convite, mas uma recomendação de Guilherme Wisnik, “porque ela dialoga com a nossa realidade”. Uma dose emotiva embala Infinito Vão pelo momento de obscurantismo sociopolítico e cultural que vivemos. A exposição prova que a arquitetura pode representar muito mais do que ela mesma. Na abertura da mostra, Paulo Mendes da Rocha diz que “a arquitetura é uma maneira de dizer quem somos nós e quem seremos nós”.

O título, Infinito Vão, vem dos versos de Drão (1982), música de Gilberto Gil: “O verdadeiro amor é vão, estende-se infinito, imenso monolito, nossa arquitetura”. Na linguagem dos arquitetos curadores, “vão é algo que se vence, um desafio a superar, é reduzir a quantidade de apoios, expandir as lajes horizontalmente, lançar-se no vazio aéreo abrindo uma imensa luz ao rés-do-chão. Na língua portuguesa é algo que não deu certo, foi feito em vão”.

Logo na entrada da exposição, sons de vídeos curtos com imagens de diferentes décadas dão o tom. Além da seleção de projetos escolhidos, músicas de Caetano, Gil, Arnaldo Antunes e Racionais MC’s se misturam com obras de artistas plásticos como Claudio Tozzi, Nelson Leirner, Rubens Gerchman, Paulo Bruscky e com os textos breves de Leminski, Rem Koolhaas, Álvaro Siza, Mário Pedrosa… Todos juntos estimulam a percepção e aumentam o prazer da visita.

Nelson Leirner na exposição Infinito Vão, no Sesc 24 de Maio. Foto: Vitor Penteado/Acervo Sesc

A chave de Infinito Vão são as músicas que abrem e contextualizam cada um dos seis núcleos em que a mostra está dividida, além dos projetos arquitetônicos que representam cada um deles. Do Guarani ao Guaraná (1924-1943) parte da marchinha carnavalesca de Lamartine Babo, História do Brasil, com a pergunta que anima gerações: “Quem foi que inventou o Brasil?…”. Neste período, o país, como observa Wisnik, “salta do romantismo indígena e da escravatura para a cultura industrial e urbana”. Foi o momento da Semana de Arte Moderna e do Manifesto Antropófago (1928), de Oswald de Andrade, preocupados com a construção da estética que incluía as raízes do Brasil. Destacam-se na mostra a primeira casa modernista do Brasil, de Gregori Warchavchik em São Paulo, marco inicial da exposição, passando pelo Ministério da Educação e Saúde, no Rio de Janeiro, até chegar ao conjunto da Pampulha, em Belo Horizonte.

A Base é uma Só (1943-1957) nasce da música Samba de uma Nota Só, de João Gilberto, que marca a criação da bossa nova, movimento carioca que colocou a música brasileira num patamar internacional. O período escolhido pelos curadores vai da Pampulha ao concurso para o plano piloto de Brasília e às novas cidades projetadas no Amapá e no Mato Grosso, que abrem o caminho para Brasília.

No núcleo Contra os Chapadões Meu Nariz (1957-1969), os arquitetos se inspiram no verso da Tropicália, música de Caetano Veloso feita em um momento de desbunde da música brasileira influenciada pela contracultura. Rubens Gerchman cria a A Bela Lindoneia (versão porta-retrato), de 1967. Na arquitetura surgem os primeiros esboços de Niemeyer antes do lançamento do concurso nacional para o plano piloto da Brasília. Em texto de 1970, e presente na mostra, Clarice Lispector diz que “Brasília é construída na linha do horizonte. Brasília é artificial. Tão artificial como devia ter sido o mundo quando foi criado”.
A mostra se ilumina no núcleo Eu Vi um Brasil na TV (1969-1985), com a trilha de Bye Bye Brasil, de Chico Buarque e Roberto Menescal. Marca o período da cassação dos arquitetos Artigas e Paulo Mendes da Rocha e de outros intelectuais que são exilados. As favelas se multiplicam em São Paulo e numa outra ponta social Lina Bo Bardi transforma uma fábrica de tambores no atual Sesc Pompeia e Eurico Prado Lopes e Luiz Telles projetam o Centro Cultural São Paulo, ambos espaços lúdicos, de cultura e convivência. Claudio Tozzi, um dos artistas que melhor retratou o período da repressão, pinta uma de suas obras emblemáticas, Multidão (1968).

Maquete da Praça das Artes, projeto do escritório Brasil Arquitetura construído no centro de São Paulo. Foto: Karin Yuri

O núcleo Inteiro e Não pela Metade (1985-2001) parte da música Comida, dos Titãs. “A gente não quer só comida…”, quando o rock brasileiro lança bandas por todo o país. Na arquitetura, em contraponto aos conjuntos habitacionais construídos pela ditadura, aparecem o programa Favela Bairro no Rio e, em São Paulo, as organizações cooperativas. Nas artes, dois artistas multimidias cujas obras pertencem ao Acervo Sesc de Arte Brasileira se destacam: Nelson Leirner, com Obra Sem Título da Série Sotheby’s (1999), e Paulo Bruscky, com Poema Linguístico (1992).

Fecha a exposição Sentimento na Sola do Pé (2001-2018), nome tirado do verso de um rap dos Racionais MC’s, que fala do cotidiano violento das grandes cidades. É quando surgem também os CEUs – Centros Educacionais Unificados, criados pela prefeitura de São Paulo, no governo de Marta Suplicy. Um vídeo traz cenas do cotidiano desigual que invade as cidades brasileiras e nos faz voltar ao sábio comentário de Paulo Mendes da Rocha ao abrir essa exposição: “A arquitetura é uma maneira de dizer quem somos nós e quem seremos nós”.

Parque Novo Santo Amaro, 2009, Vigliecca e Associados. Foto: Leonardo Finotti/Acervo Casa da Arquitectura de Portugal

Benjamin Seroussi: primeiro os gestos, depois as palavras

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Alimentos e sabão distribuídos na Casa do Povo. Foto: Robson Gonzaga/ Divulgação

Como a Casa do Povo tem sobrevivido em meio à crise? “A gente já é especialista em crise”, responde, em tom de brincadeira, Benjamin Seroussi, diretor da instituição paulistana. De fato, quando o centro cultural retomou suas atividades, a partir de 2012 e 2013, o Brasil estava iniciando um longo processo de crise econômica e política – do qual nunca saiu. Mais do que isso, antes da retomada, o espaço fundado em 1946 por judeus progressistas no bairro do Bom Retiro amargurava cerca de 30 anos de crise profunda, que implicou no encerramento de quase todas as suas atividades e abandono de boa parte de seu espaço – um edifício modernista projetado por Ernest Mange.

Nestes menos de 10 anos de retomada, iniciada com a reaproximação de ex-alunos do colégio que ali funcionou até 1981, com a chegada de Seroussi – curador e gestor vindo de experiências no Centro da Cultura Judaica e na Bienal de São Paulo – e, gradativamente, de outros coletivos e agentes culturais e sociais, a Casa se estabeleceu como um destacado e singular espaço cultural do país. Singular por sua atuação experimental e coletiva, pautada em uma noção de cultura que extrapola as práticas artísticas – incluindo ativismo, alimentação, moradia, saúde mental e esporte -, o que resultou, agora, em uma movimentação também peculiar frente à maior de todas as crises, a da pandemia de Covid-19.

“E esse movimento dos centros culturais de fechar as portas e ir para o online me pareceu uma espécie de abandono total do que fazemos. Era como se a gente pudesse se fechar no nosso privilégio, achar que bastava ir para as redes se comunicar apenas com as pessoas que podem acessar esses conteúdos e que tanto faz se o mundo acabou entre um ‘bunker’ e outro”, afirma Seroussi. Após decretada a quarentena e a necessidade de isolamento social, em março do ano passado, a Casa do Povo fechou as portas para o público, mas, em diálogo com a população e com os coletivos que usam o espaço, traçou novas linhas de atuação, entre elas a produção e distribuição de sabão e de máscaras e a arrecadação e doação de cestas de alimentos e refeições.

Também não ficaram parados, apesar do redirecionamento de verbas na instituição, projetos como a restauração do TAIB (Teatro de Arte Israelita Brasileiro, conhecido por ter sido um importante centro de contestação à ditadura militar), localizado no subsolo da Casa, e a reativação da biblioteca, reaberta em 2019 após 40 anos fechada e que reúne 8 mil livros (metade deles em ídiche) e um acervo documental. 

Em entrevista à arte!brasileiros, Seroussi comenta estes assuntos e fala também sobre as dificuldades de arrecadação financeira no contexto da pandemia e de um Brasil com um governo federal avesso à cultura. “Então acho que já vivíamos uma espécie de censura embutida no entendimento neoliberal do que é cultura, que era uma censura econômica. Agora a gente vê uma espécie de fantasma do passado, que é uma possível censura política”, afirma. “Mas precisamos lutar contra isso, com as ferramentas que temos, porque cultura é um direito básico. Não tem arrego”, conclui. Leia abaixo a íntegra da conversa.  

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Benjamin Seroussi, diretor da equipe da Casa do Povo. Foto: André Penteado

ARTE!✱ – Acabamos de completar um ano da pandemia de Covid-19 e a Casa do Povo foi uma das instituições culturais que teve uma atuação quase de “linha de frente” na luta contra os impactos trágicos dessa pandemia. Não se restringiu a fazer uma programação online, por exemplo, mas passou a distribuir alimentos, produzir sabão, máscaras etc. Queria que você contasse um pouco como foi esse processo.

Benjamin Seroussi – Acho que “linha de frente” é um vocabulário até meio complexo, porque temos tentado questionar também essa ideia de uma guerra. Acho que às vezes é usado um vocabulário muito bélico. É uma guerra contra quem, né? Contra um vírus? É como aquela campanha que afirma que “um mosquito não é mais forte que um país inteiro”. Só que não é bem assim… Porque teve o mosquito, teve o vírus, mas o problema somos nós.

ARTE!✱ – Porque na guerra se coloca a culpa em um inimigo externo…

Exato. E eu acho que precisamos menos da ideia de “vamos para a guerra” e mais da ideia de “vamos tecer solidariedades”. Então temos essa atuação que surgiu também de uma maneira quase óbvia. Porque estamos ali em um bairro que foi um dos mais atingidos de São Paulo, por ser denso, ter muitos cortiços, ocupações, uma favela. Uma matéria do G1 até mostrou que, proporcionalmente, o Bom Retiro foi mais atingido do que a Brasilândia, por exemplo. Então tínhamos uma realidade à nossa frente. E esse movimento dos centros culturais de fechar as portas e ir para o online me pareceu uma espécie de abandono total do que nós fazemos. Era como se a gente pudesse se fechar no nosso privilégio, achar que bastava ir para as redes se comunicar com o público e que estaria tudo bem. Como se bastasse se comunicar apenas com essas pessoas que podem acessar esses conteúdos e que tanto faz se o mundo acabou entre um bunker e outro. E eu acho essa visão questionável, tanto de um ponto de vista ético, quanto porque a nossa atuação já entende a cultura como algo que vai muito além da apresentação de práticas artísticas. Pensamos a cultura e arte como ferramentas de transformação social. A cultura tem a ver com cuidado, com cuidar do outro, com ensaiar outros mundos possíveis. Esse discurso que virou até chavão, que todos os espaços culturais falam, de repente foi colocado em cheque. E nós não quisemos ficar nessa sinuca, mesmo correndo o risco de não fazer o que era esperado de nós, ou de se perder em algo que não sabíamos fazer.

Fizemos também um exercício de olhar para a nossa história, para não fazer alguma coisa totalmente desconectada dela. Mas, como sempre, é menos a história nos autorizando e mais o passado visto como alavanca, com um olhar a partir do presente, um olhar não de historiadores, mas de curadores, gestores… E nesse caso, quando vimos fotos daquelas pessoas que fundaram a Casa do Povo em 1946, e que poucos anos antes estavam juntando mantimentos, costurando e mandando roupas para o front – aí sim para a Segunda Guerra – entendemos de fato que o que nós fazemos não é algo estranho à nossa história. Enfim, então agora na pandemia começamos a fazer essas coisas que não sabíamos fazer tão bem, mas usando as ferramentas que são nossas. Ou seja, vendo o que podíamos nós mesmos fazer e o que podíamos acolher (a Casa sempre funciona assim). Achamos importante trabalhar com as costureiras da região, começamos a levantar recursos para o bairro e ao mesmo tempo, inspirados no projeto lanchonete <> lanchonete, do Rio, passamos a fazer essas cestas abertas, onde as pessoas escolhem os alimentos que querem, ao invés de receber uma caixa fechada. E começamos também a escutar as pessoas do território, ouvir sugestões, e até oferecer o espaço da Casa para a prefeitura usar.

ARTE!✱ – E isso funcionou?

A Prefeitura respondeu mandando um formulário, nós preenchemos e não tivemos mais resposta. Mas tudo bem, sabemos que eles estavam no meio da loucura. E nos diálogos com os grupos que habitam a Casa surgiram coisas. A Adriana Sumi, do Coletivo de diálogo e diversidade de táticas, falou que poderia ensinar a fazer sabão; uma ONG do bairro precisava de espaço para deixar as cestas que recebia; uma agente social da região precisava de um espaço para guardar cobertores para doar para pessoas em situação de rua. Nós também abrimos uma chamada para voluntários e do dia para a noite conseguimos 120 pessoas cadastradas. E, como sempre, as coisas que fazemos e as que acolhemos foram se juntando, ficando mais borradas, assim como a separação entre quem ajuda e quem é ajudado. E isso é muito interessante, às vezes a pessoa que vai pegar a comida depois também fica do outro lado do balcão distribuindo comida; quem vai pegar sabão depois ajuda a encontrar costureiros na região e assim por diante. Então, respondendo sua pergunta em uma frase: foi uma reação muito orgânica, que partiu de uma necessidade ética, que foi se articulando com a nossa própria história e se desenvolvendo a partir das ferramentas que a gente costuma usar, escutando o território e propondo ações.                     

ARTE!✱ – Isso me lembra uma frase sua da entrevista que fizemos há dois anos: “A cultura não se limita às artes. Moradia é cultura, culinária é cultura, esporte é cultura. Então aqui tem criação, ativismo, gente em situação de vulnerabilidade social, mas a gente nunca deixa de entender isso também como um lugar de arte”. Isso ganhou ainda mais sentido na pandemia?

Porque de repente a gente se torna mais útil. A Casa do Povo é um lugar que se coloca em risco. Marília Loureiro [curadora da Casa] sempre fala isso, que as palavras vem depois dos gestos. Então a gente vai fazendo, a partir de premissas claras, mas sem saber aonde vamos. Existe um provérbio rabínico nesse sentido, mas a versão secular é da Clarice Lispector, que disse: “Perder-se também é caminho”. O que eu quero dizer é que a gente não se pergunta: “Será que isso é arte?”. Vamos encontrando o que a gente quer no caminho. E surgem coisas muito fortes. Por exemplo, a produção de sabão com óleo doado de restaurantes do bairro. E tem um restaurante que entrega suas comidas e envia junto um sabão, dizendo que aquele sabão foi feito com o óleo que fritou aquela comida. Isso fecha um circuito, e acho que essas coisas não deixam de ser, ao seu modo, intervenções artísticas.

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A produção de sabão na Casa do Povo. Foto: Robson Gonzaga/ Divulgação

Claro que tem algo muito delicado ali – de pensar quem é o artista e de entender que o monopólio da criação artística não está sempre na mão do artista. É um pouco tabu, porque o nosso trabalho é defender os artistas. Mas acho até que com a próxima Documenta, com o ruangrupa [coletivo selecionado para a curadoria do evento], de repente podemos começar a olhar mais para isso. Pensar, por exemplo, o que significa uma autoria compartilhada. E neste sentido, muitos artistas também têm se aproximado da Casa, porque acho que eles veem um contexto pulsante, vivo, e querem se aproximar. Então é interessante porque cria um contexto para as artes, que não é só de circulação de obras, mas de uma vivência inspiradora.       

ARTE!✱ – Tem alguns projetos específicos, que vêm de antes da pandemia, que eu gostaria de te perguntar em que ponto estão, se tiveram sequência neste momento crítico…

De forma geral a gente teve que pausar algumas coisas, porque fizemos um contingenciamento de verbas. Mas felizmente, de modo geral conseguimos captar relativamente bem, e acho que isso se deu porque a gente continuou trabalhando. Digo isso sem flertar com nenhum discurso negacionista – acho que tem pessoas que não têm que trabalhar e devem ser apoiadas por isso. Mas nós conseguimos inventar condições de continuar atuando e isso permitiu que a gente pudesse ir atrás de verbas sem ficar numa saia justa. Tivemos a campanha de arrecadação para o teatro, tivemos a captação via Lei de Incentivo à Cultura, teve o crowdfunding de captação para ajudar o bairro e depois um de arrecadação buscando apoiadores recorrentes. Então paramos algumas coisas, mas novas alianças surgiram, com moradores, instituições do bairro e com doadores. Foi interessante no sentido de colocar em prática esse discurso de que a captação de recursos não tem a ver só com dinheiro, mas com tecer alianças, criar dependências táticas. E dos projetos que foram contingenciados, alguns estão sendo retomados agora, porque antes não tinha condições físicas de fazer, outros vamos esperar mais um pouco, e outros não pararam mesmo.       

ARTE!✱ – Poderia começar então falando da reativação da Biblioteca da Casa, que foi reaberta em 2019 após ficar fechada mais de 30 anos…

Para a biblioteca a gente ganhou um edital, o Proac, para modernização de acervo, e contratamos um novo coordenador de acervo, o Jean Camoleze – que já trabalhou nos arquivos do MST e da Uneafro -, e que olha para os acervos da Casa não como o acervo de uma instituição, mas de um movimento social, propondo outras metodologias. Trabalhamos também com a artista Mariana Lanari e com o designer Remco van Bladel. E com esse time estamos repensando a catalogação, organização etc. Tem um projeto muito interessante de trazer a biblioteca para a internet das coisas, ou seja, a gente vai colocar chips em cada livro e criar um sistema de rastreamento, por meio de RFID (identificação por radiofrequência), para que a gente consiga registrar a maneira como as pessoas usam a biblioteca. E aí quando você pegar o livro você não terá apenas a ficha técnica, mas saberá como ele foi usado, perto de que outros livros foi colocado. E isso gera nuvens de conhecimento, que partem do usuário, e que quem pesquisa poderá ter acesso. Para isso teremos o público, grupos de estudo, um grupo de ídiche, pessoas ligadas aos movimentos negro e indígena e assim por diante – para, digamos assim, cutucar este acervo e dar a ele uma maior agência. A ideia é que a biblioteca e os acervos possam falar por si mesmos e que as pessoas possam ler não apenas os livros, mas também a biblioteca.

ARTE!✱ – E existe o projeto de restauração e reativação do TAIB, originalmente desenhado pelo Jorge Wilheim e agora com projeto do André Vainer, Ilan Szklo e Silvio Oksman. Como está esse trabalho?

O TAIB completou 60 anos no ano passado, não podia parar, mas tivemos que focar a captação de verbas para outras áreas mais urgentes. De qualquer modo, essa captação para o restauro deve retomar este ano. Mas nós já temos os projetos básicos prontos, estamos chegando nos projetos executivos. É uma intervenção que respeita muito o que o prédio é historicamente. E para além disso, fomos construindo camadas de sentido. Primeiro, a campanha de arrecadação contou com a participação da Fernanda Montenegro, falando da relação dela com a Casa, com o TAIB, com a comunidade judaica. Agora, nesse momento em que as pessoas ainda não podem visitar o teatro, nós decidimos lançar um chatbot, que é um robô que te recebe online e responde às suas perguntas, conta histórias da Casa. Esse robô tem personalidade, ele é um velho contrarregra mal-humorado do teatro judaico. Então a gente quer aproveitar as possibilidades virtuais para criar experiências outras que não só viewing rooms e lives. Tentar não apenas reproduzir uma experiência analógica no espaço digital, mas fazer algo diferente. Isso é uma coisa que a Ana Druwe, da nossa comunicação, tem falado muito. E também nesse sentido vamos ter uma peça, dirigida pela Martha Kiss Perrone – uma remontagem de Um Sonho de Goldfadn, enredo de Jakub Rotbaum dos anos 1940 – que está sendo filmada lá no teatro. E é uma loucura, montar uma peça em ídiche em plena pandemia! Isso vai virar uma espécie de instalação audiovisual projetada no segundo andar [com data a definir], uma experiência imersiva. É uma coisa mesmo para chacoalhar os fantasmas, porque estamos lá com a mão na massa, falando dessas várias gerações que por ali passaram.

ARTE!✱ – Você falou já do assunto, mas acho importante aprofundar um pouco na questão financeira e administrativa da Casa, considerando que se já era difícil captar recursos anteriormente, o quadro parece ainda mais complexo agora…

De modo geral, 2021 está parecendo com aquelas séries em que a segunda temporada é feita com menos dinheiro, sabe? Então estamos preocupados. Para 2020 nós tínhamos mais recursos captados, e agora em 2021 a crise está batendo de maneira ainda mais radical. Claro, temos a vacina, mas quando é que vamos ser vacinados? Então vai ser um ano difícil. E inclusive pensando nos mecanismos de incentivo à Cultura. O Proac ICMS foi cortado do dia para a noite em São Paulo, por um governo que inclusive tem um diálogo com a classe artística. Não era o governo federal, que não tem diálogo nenhum. Então nesse momento o meu jeito de ser otimista é se preparar para o pior.

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Livros e publicações distribuídos na Casa durante a pandemia. Foto: Camila Svenson

Ao mesmo tempo, ano passado tivemos picos de filantropia, de doações, e acho que isso pode se manter este ano. Se continuarmos sendo úteis, talvez a gente consiga levantar recursos. E também estão surgindo coisas. Tem um projeto que chama South South, e nós fomos uma das três instituições sem fins lucrativos do mundo escolhidas – ao lado do Raw material (Dakar, Senegal) e do Green Papaya Project (Manilla, Filipinas) – para receber uma porcentagem das vendas de obras de um leilão de arte. E é muito legal, porque a gente sempre fala para as pessoas do mundo da arte que nós somos um espaço de arte, mas costumam nos ver como uma coisa mais periférica. E de repente as pessoas estão reparando que de fato também fazemos parte desse universo. Na verdade, precisaremos cada vez mais também depender de associações internacionais. A gente recebeu recentemente apoio do British Council, do Relief Fund (do Ministerio das Relações Exteriores da Alemanha) e da Foundation for Art Iniciatives (Ffai).

Mas enfim, nós contingenciamos recursos e temos garantida a programação para este ano, com verba captada via Lei de Incentivo à Cultura, parcerias, associados e o programa de amigos. Então a minha preocupação maior é realmente 2022. Porque e se a gente não captar no fim desse ano, como vamos fazer? Vamos ter editais? Ao mesmo tempo, a Casa do Povo voltou a funcionar com tudo quando estava começando a crise econômica, por volta de 2012 e 2013. Então a gente é especialista em crise.

ARTE!✱ – Sem falar na crise da qual a Casa vinha há 30 anos né, quase fechada…

Sim… E no meio disso tudo, agora estamos fazendo algumas apostas ousadas. Contratamos novas pessoas, aumentamos algumas remunerações para consolidar a equipe. Então estamos apostando, mesmo em meio à crise, nessa consolidação. Porque a gente acha que é isso que vai salvar a instituição. A Casa do Povo funciona com pouco, o orçamento esse ano está estimando em R$ 1,9 milhão. Parece muito, mas não é. Então a gente tem espaço para crescer ainda, não tem gordura, e somos flexíveis o suficiente para nos adaptar.

ARTE!✱ – Por fim, eu queria fazer mais uma pergunta relacionada ao contexto político. Nós temos, já antes da pandemia, um governo federal que tem promovido fortes ataques ao setor cultural, tanto com corte de recursos quanto com atitudes que beiram mesmo a censura. Como é trabalhar, sendo um centro cultural, neste contexto?

Sim, isso é muito preocupante. O que aconteceu agora com o instituto Vladimir Herzog [que teve seu plano anual vetado para captação via Lei de Incentivo] é no mínimo curioso. Ao mesmo tempo que quando a gente estava com uma democracia funcionando melhor também não dá para dizer que a área cultural havia deixado de ser precária – mesmo com os pontos de cultura e outras políticas incríveis. Porque existe sempre esse mote de “consiga seus recursos, vá atrás de financiamento privado”. E a gente nunca pede para um físico ser popular, por que é que temos que pedir para um museu ser popular? Sendo que o museu também cria conhecimento, memória, não é apenas um espaço de espetáculo. Então acho que já vivíamos uma espécie de censura embutida no entendimento neoliberal do que é cultura, que era uma censura econômica. Agora a gente vê uma espécie de fantasma do passado, que é uma possível censura política. Mas, como tudo no Brasil, isso se dá numa espécie de legalidade, por meio de comissões que atrasam, recusam etc. Então fica difícil definir exatamente a censura, mas, que existe um clima geral de desconfiança, isso é nítido; que tem uma insegurança econômica e jurídica, tem.

Ainda assim, voltando à questão mais econômica, acho que a gente também já é “safo”. Diferentemente do que vejo na França, onde um centro cultural depende quase totalmente de um convênio com o Estado, nós aqui somos muito mais acostumados a sobreviver no ambiente adverso. E a criar estruturas, por mais frágeis e precárias que sejam. Então é claro que a gente deseja e precisa de melhorias e programas sólidos, mas quero dizer que a situação não é totalmente binária. Enfim, o contexto é nebuloso e nós estamos preocupados, mas não desesperados. Já costumam ser tão poucos apoios públicos que quando a gente cai não é de muito alto. Mas precisamos lutar contra isso, com as ferramentas que temos, porque cultura é um direito básico. Não tem arrego.

Editorial: Na debacle…

Foto vertical, preto e branco. Patrícia Rousseaux, Diretora Editorial da artebrasileiros, aparece em primeiro plano. Usa uma máscara branca com a silhueta de folhas e galhos como estampa. Os olhos passam uma expressão de calma. Tem os cabelos ondulados na altura dos ombros e a cabeça levemente inclinada para a esquerda. Mergulhados em um país à deriva, envolto na mentira e no cinismo, com mais de 2 mil mortes diárias e sem políticas decentes de proteção à população, descobrimos que o que nos permite estar em pé é possuir uma ética capaz de almejar um mundo melhor.

Todas as matérias desta edição mostram a pincelada singular que artistas e gestores jovens, fotógrafos, críticos e acadêmicos imprimem ao seu trabalho tentando superar o sofrimento e, através de iniciativas sensíveis, compreender o humano.

Há também uma leitura do passado, como no redescobrimento da obra de Glauco Rodrigues, onde suas imagens “transcendem as especificidades de sua época, forma ou conteúdo para abordar o presente de maneira inquietante”. Esta frase, dita pelo crítico Peter Eleey a respeito da exposição September 11, realizada no MOMA PS 1 (Nova York), é lembrada pelo filósofo Hal Foster em seu último livro, O que vem depois da Farsa. O crítico se referia a como imagens da fotógrafa Diane Arbus, de 1956, ali expostas, eram ressignificadas para o espectador quase 50 anos depois, após os acontecimentos da derrubada das Torres Gêmeas.

Aliás, o livro de Foster, comentado nesta edição por Fabio Cypriano, crítico de arte e jornalista, traça um panorama sobre os aspectos sombrios e as reações de artistas e instituições culturais a “um mundo que nos fugiu de controle”, onde “nada está garantido”. Ainda assim ele formula uma reflexão fundamental que nos convoca a ir em frente: “É aqui que meu outro termo ‘debacle’ entra em cena [o autor faz referência ao termo chave do livro, ‘farsa’]. Também deriva do francês ‘queda, colapso, desastre’ mas sua raiz é débâcler, ‘libertar’. Debacle poderia inclusive indicar uma dialética entre romper e fazer diferente em relação a convenções, instituições e leis. Tal é a oportunidade no período presente de convulsão política: transformar a emergência disruptiva em mudança estrutural, ou pelo menos, pressionar as brechas na ordem social em que é possível resistir ao poder e reelabora-lo.”

Como resposta a esta ambígua disrupção, resolvemos investir numa divisão de arte✱formação. Um Programa de Extensão Cultural de ensino a distância onde, com especialistas e professores renomados, possamos, além de informar, sistematizar conceitos fundantes da arte em conversa permanente com outras disciplinas como a psicanálise, a filosofia, a história e a ciência. O lançamento acontece em abril com o primeiro curso, ministrado pelo curador e pesquisador Moacir dos Anjos e pelo filósofo e professor Ernani Chaves. Serão 36 horas em 16 encontros ao longo dos meses de abril, maio e junho (saiba mais sobre o curso).

No atual contexto, é possível ver uma única vantagem em tanto tempo de isolamento. Tivemos acesso à tecnologia de forma a torná-la menos uma vilã e mais uma ferramenta de apoio na solidão, para podermos manter contato com os amigos, as equipes de trabalho, poder ver mostras virtualmente e ouvir palestras e debates e acesso a uma educação permanente.

Se há um espaço onde a mentira não se sustenta e podemos exercer nossa influência, é na arte e na cultura.

Um centenário passando em brancas nuvens

Enseada de Botafogo, 1928, de Ismael Nery, nanquim e aquarela sobre papel. Acervo do Museu de Arte Murilo Mendes.
Enseada de Botafogo, 1928, de Ismael Nery, nanquim e aquarela sobre papel. Acervo do Museu de Arte Murilo Mendes.

Enquanto estudiosos e pesquisadores se preparam para a série de eventos que, a partir deste ano, dá início às comemorações do centenário da Semana de Arte Moderna, ocorrida em São Paulo em fevereiro de 1922, vão passando em brancas nuvens as comemorações de um outro centenário, de um outro evento (se assim podemos chamá-lo) também fundamental para a arte e a cultura no país, ocorrido no Rio de Janeiro em 1921: o encontro e o início da relação entre o artista Ismael Nery e o poeta Murilo Mendes.

Enseada de Botafogo, 1928, de Ismael Nery, nanquim e aquarela sobre papel. Acervo do Museu de Arte Murilo Mendes.
Enseada de Botafogo, 1928, de Ismael Nery, nanquim e aquarela sobre papel. Acervo do Museu de Arte Murilo Mendes.

Essa tão profunda amizade que uniu ambos até 1934, ano do falecimento de Ismael, interessa a todos no Brasil e sob diversos aspectos. Dentre eles, caberia salientar a forte carga libidinal que envolveu os dois amigos e que fez com que, por exemplo, Murilo Mendes se tornasse o primeiro grande colecionador de obras do amigo, aquele que – como bem lembrou Adalgisa Nery, esposa do pintor – resgatava do lixo a produção que Ismael jogava fora, recuperava sua integridade física e a catalogava.

Por outro lado, sabe-se que essa coleção, ainda com o pintor vivo, tornou-se aos poucos uma das únicas e mais importantes coleções de arte moderna da antiga Capital Federal, acervo que permitiu a vários intelectuais – entre eles o então jovem Mário de Andrade – entrarem em contato com a obra de Ismael.

Além da importância de estudos mais específicos sobre essa coleção de obras de Ismael formada por Murilo (que bem exemplifica o desejo do jovem poeta manter para si pelo menos parte do amigo), cabe ressaltar as transformações pelas quais ele passaria após a morte de Ismael, transformações essas que se iniciaram ainda durante seu velório, quando Murilo foi levado a um verdadeiro êxtase místico, tendo sido possuído por Jesus Cristo através do espírito de Ismael Nery – episódio narrado por Pedro Nava em seu livro de memórias, O círio perfeito [1].

Essa experiência, que levaria o então jovem anarquista Murilo Mendes para o catolicismo de Ismael, também teria outra consequência: a partir de meados dos anos 1930 (após a morte do amigo), Murilo se apaixona ou deixa aflorar plenamente sua paixão por Adalgisa, que o rejeita várias vezes. 

Esses poucos dados me parecem de interesse suficiente para um estudo biográfico de Mendes, a partir de um ponto de vista psicanalítico. Afinal, se de início ele quer reter o amigo pela preservação das obras que este jogava fora, com sua morte o poeta (após o processo de possessão no velório) parece ter se transformado no próprio amigo, assumindo sua religião, suas preferências estéticas (como será mencionado ainda aqui) e a viúva. 

Mas, apesar de todo interesse dessa história, a meu ver, nela não reside a única importância dessa amizade que este ano completa cem anos de seu início. Embora até hoje tenha sido pouco estudado, sabe-se que Ismael Nery promovia várias reuniões em sua casa, onde desenvolvia seus talentos retóricos, dissertando sobre filosofia, religião, estética etc., tendo como ouvintes um grupo formado por amigos que, mais tarde, se transformariam em referências para a arte e para a cultura do país: o próprio Murilo Mendes, mas igualmente Jorge Burlamaqui, Mário Pedrosa, Antonio Bento, Alberto da Veiga Guignard e Jorge de Lima, entre outros.

“Gloria do artista”, 1933. Alberto da Veiga Guignard.

Foi durante essas reuniões que Ismael Nery teve a oportunidade de explicitar seus postulados filosóficos que, na sequência, eram registrados por seus “discípulos” Mendes e Burlamaqui. É dentro desses postulados que se percebe uma original e, ao mesmo tempo, bizarra conexão entre a estética surrealista e o catolicismo, proposição que já teve seus primeiros aprofundamentos no livro de Thiago Gil Virava, Uma brecha para o surrealismo [2].

Ao unir à sua prática pictórica, marcada pelo surrealismo, as especulações essencialistas/católicas, Nery desenvolverá uma poética em que o conceito de beleza surrealista – “o encontro fortuito de um guarda-chuva e uma máquina de costura numa mesa de operação”, de Lautréamont – ganharia uma dimensão mística, fato que o singulariza dentro do quadro geral da arte brasileira.

 

Um dado de interesse é que a articulação entre certos postulados surrealistas atrelados ao essencialismo “católico” também será perceptível na produção poética de Murilo Mendes. A essa poesia, marcada pelos ensinamentos do artista amigo, no entanto, Mendes irá atrelar um peculiar prosaísmo que, igualmente, irá singularizar sua produção poética no universo da lírica brasileira.

Fotomontagem do livro "A pintura em pânico", de Jorge de Lima.
Fotomontagem do livro “A pintura em pânico”, de Jorge de Lima.

Essa conexão entre as práticas de Nery e Mendes com os pressupostos do surrealismo “católico” ganhará desdobramentos após o falecimento do pintor. Se sua “presença” é visível na produção pictórica do então jovem Guignard (e estará ainda presente em suas foto-colagens nos anos 1940 e 1950) [3] , impossível não perceber como também está presente no trabalho que o poeta e pintor Jorge de Lima irá produzir ainda em meados dos anos 1930. Refiro-me a uma série de fotomontagens que Lima realizará, calcado no exemplo fortíssimo de Max Ernst, e tendo Murilo Mendes como parceiro.

Infelizmente parecem não ter sobrevivido exemplares dessas fotomontagens feitas em parceria pelo poeta e pelo poeta/pintor, o que não invalida, no entanto, a ação conjunta de ambos, no sentido de fazer expandir a produção de obras surrealistas no país. Sabe-se apenas que Jorge de Lima seguirá produzindo novas fotomontagens solitariamente e que, em 1943, publicará o livro de fotomontagens A pintura em pânico, com prefácio do próprio Mendes.

***

Passados cem anos do início da profícua amizade entre Nery e Mendes, nota-se que ainda há muito a se estudar e a se escrever não apenas sobre a particular relação que os unia, mas, sobretudo, pelo viés – ou brecha! – que ambos abriram para o desenvolvimento particular do surrealismo no Brasil, com ressonâncias claras nas produções de Guignard e Jorge de Lima.

Apenas esse fato já seria motivo para comemorar tão importante encontro ocorrido em 1921 e que agora completa cem anos.


 

[1] NAVA, Pedro. O Círio perfeito. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1983.
[2] VIRAVA, Thiago Gil de Oliveira. Uma brecha para o surrealismo. São Paulo: Alameda, 2014.
[3] Sobre Guignard e a fotomontagem, ler – CHIARELLI, Tadeu (cur.). Apropriações/Coleções. Porto Alegre: Santander Cultural, 2002

Os robôs serão os artistas do futuro?

IA e arte Ai-Da Robot
Ai-Da at Abu Dhabi Art. Image: Creative Commons.

Em 25 de outubro de 2018, a consagrada casa de leilões Christie’s colocou à venda uma obra realizada a partir de um programa de Inteligência Artificial (IA). Portrait of Edmond Belamy acabou sendo leiloada por U$ 432.500 (aproximadamente R$ 2,5 milhões) – cerca de 45 vezes o seu valor estimado. No lugar do nome do artista, no entanto, o retrato borrado foi assinado com a equação utilizada para gerá-lo. Tal fato não deixou de ser aproveitado pela Christie’s para aumentar o murmúrio acerca do seu próprio leilão; em um texto divulgado pela casa foi noticiado: “Este retrato não é produto de uma mente humana”. Contudo, a fórmula utilizada pela IA para gerar Portrait of Edmond Belamy foi criada pelas mentes humanas que integram o coletivo de artes parisiense Obvious. Independentemente disto, a obra foi a primeira a utilizar um programa de IA a ir para o martelo em uma grande casa de leilões, atraindo uma significativa atenção da mídia e algumas especulações sobre o que a Inteligência Artificial significa para o futuro da arte.

"Portrait of Edmond Belamy" (2018). Foto: Obvious / Reprodução do site Christies
“Portrait of Edmond Belamy” (2018). Foto: Obvious / Reprodução do site Christies

Nos últimos 50 anos, os artistas têm usado a IA para criar, assinala Ahmed Elgammal, professor doutor do Departamento de Ciência da Computação da Rutgers University. De acordo com ele, Um dos exemplos mais proeminentes disto é o trabalho de Harold Cohen e seu programa de criação denominado AARON; outro é o caso da estadunidense Lillian Schwartz, pioneira no uso de computação gráfica na arte, que também fez experimentações com IA. O que, então, gerou as especulações mencionadas acima sobre Portrait of Edmond Belamy? “O trabalho leiloado na Christie’s é parte de uma nova onda de arte feita com IA que apareceu nos últimos anos. Tradicionalmente, os artistas que usam computadores para gerar arte precisam escrever um código detalhado que especifica as “regras para a estética desejada”, explica Elgammal. “Em contrapartida, o que caracteriza essa nova onda é que os algoritmos são configurados pelos artistas para ‘aprender’ estética ao olhar para muitas imagens usando a tecnologia de aprendizado de máquina. O algoritmo então gera novas imagens que seguem a estética aprendida”, ele complementa. A ferramenta mais usada para isso é a GANs, acrônimo para Generative Adversarial Networks (ou Redes Adversárias Generativas), introduzida por Ian Goodfellow em 2014. No caso de Portrait of Edmond Belamy, o coletivo Obvious utilizou uma base de dados com quinze mil retratos pintados entre os séculos XIV e XX. A partir desse acervo, como indica Elgammal, o algoritmo falha em fazer imitações corretas da “entrada pré-curada” e, em vez disso, gera imagens distorcidas.

“É plausível que a IA se torne mais comum na arte à medida que a tecnologia seja disponibilizada de forma mais ampla”, diz o crítico de arte e ex-editor da Frieze, Dan Fox, em entrevista à arte!brasileiros. “Muito provavelmente, a IA simplesmente coexistirá com a pintura, o vídeo, a escultura, a performance, o som e tudo o que os artistas quiserem usar”, acrescenta. Fox aponta ainda que não devemos esquecer que “o artista médio, no momento, não é capaz de acessar essa tecnologia. A maioria mal consegue pagar o aluguel e as contas. Este mundo de preços de leilão é tão divorciado da vida do artista médio que deve-se reconhecer que quem está trabalhando atualmente com IA está vindo de uma posição de poder econômico ou acesso a instituições de pesquisa”. Enquanto o entusiasmo com Portrait of Edmond Belamy pode vir embalado por motes de progresso e anseio pelo “futuro” e inovação, o crítico de arte indica que, por trás da fumaça e dos espelhos, no final, a “IA será de interesse para a indústria da arte se os seres humanos puderem ganhar dinheiro com isso”.

Um robô pode ser criativo?

No ano seguinte à venda da Christie’s, Ai-Da foi concluída. Nomeada em homenagem a Ada Lovelace – matemática inglesa reconhecida por ter escrito o primeiro algoritmo a ser processado por uma máquina -, ela se descreve como “a primeira artista robô ultra-realista, com Inteligência Artificial, do mundo”. Ai-Da explica que desenha utilizando as câmeras implantadas em seus olhos, em colaboração com os humanos, ela pinta e esculpe, e também faz performances. “Eu sou uma artista contemporânea e sou arte contemporânea, ao mesmo tempo”, reconhece Ai-Da, para logo depois propor a questão que sua audiência já devia estar se propondo: “Como um robô pode ser um artista?”. Embora a pergunta, a princípio, possa parecer intrincada, há outro patamar deste questionamento que é mais desafiador: “Um robô pode ser criativo?”

Ainda em 2003, o autor e jornalista científico Matthew Hutson explorou o tema em sua tese de mestrado no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). Em Inteligência Artificial e Criatividade Musical: Calculando a Décima de Beethoven, ele argumenta que “os computadores simulam o comportamento humano usando atalhos. Eles podem parecer humanos por fora (podem escrever piadas ou poemas), mas funcionam de forma diferente sob o capô. As fachadas são adereços, não apoiados por uma compreensão real. Eles usam padrões de arranjos de palavras, notas e linhas, mas encontram esses padrões usando estatísticas e não podem explicar o porquê estão lá”. Hutson elenca três razões principais para isso: “Primeiro, os computadores funcionam com hardware diferente do cérebro humano. Cérebros de consistência gelatinosa cheios de neurônios e placas achatadas de silício cheias de transistores nunca se comportarão da mesma forma e nunca poderão ‘rodar o mesmo software’. Em segundo lugar, nós, humanos, não nos entendemos bem o suficiente para traduzir ‘nosso software’ para outra peça de hardware. Terceiro, os computadores são desencarnados e a compreensão requer viver fisicamente no mundo”. Sobre o último tópico, ele pondera que qualidades particulares da inteligência humana resultam diretamente da estrutura física particular de nossos cérebros e corpos. “Vivemos em uma realidade analógica (contínua, infinitamente detalhada), mas os computadores usam informações digitais compostas por números finitos de uns e zeros”.

IA e arte "Ai-Da Self-portrait I", 2019. Foto: Ai-Da Robot Project / Reprodução do site.
“Ai-Da Self-portrait I”, 2019. Foto: Ai-Da Robot Project / Reprodução do site.

Ao ser questionado se a tese de 2003 se sustenta após quase duas décadas, Hutson responde à arte!brasileiros que mesmo hoje não descreveria necessariamente as produções artísticas atuais da IA como criativas, independentemente de serem visual ou semanticamente interessantes, porque nem mesmo a Inteligência Artificial entende que está fazendo arte ou expressando algo mais profundo. Como colocaria Seth Lloyd, professor de engenharia mecânica e física do MIT, “poder de processamento de informação bruto não significa poder de processamento de informação sofisticado”. O filósofo Daniel C. Dennett explica que “essas máquinas (ainda) não têm os objetivos, estratégias ou capacidades de autocrítica e inovação que lhes permitam transcender seus bancos de dados através de um pensamento reflexivo sobre seu próprio raciocínio e seus próprios objetivos”. Entretanto, reitera Hutson, “esses podem ser conceitos centrados no ser humano; a IA pode evoluir para ser tão criativa quanto os humanos, mas de uma forma completamente diferente, de modo que não reconheceríamos sua criatividade, nem ela a nossa”.

A cultura pode perder empregos para a IA?

“Hoje em dia, quando carros e geladeiras estão lotados de microprocessadores e grande parte da sociedade humana gira em torno de computadores e celulares conectados pela internet, parece prosaico enfatizar a centralidade da informação, computação e comunicação”, denota Lloyd em artigo para Slate. Chegamos em um ponto de não retorno, e para o próximo século, a indagação sobre a criatividade das máquinas é apenas uma de muitas incertezas em relação à tecnologia. Mais palpável, por enquanto, é a possível crise de desemprego desencadeada pelos avanços na IA junto da robótica.

Um estudo de 2013 conduzido por pesquisadores da Universidade de Oxford descobriu, por exemplo, que quase metade de todos os empregos nos EUA corriam o risco de ser totalmente automatizados nas próximas duas décadas. Em escala global, até 2030, pelo menos vinte milhões de empregos podem ser substituídos por robôs, de acordo com uma análise mais recente da Oxford Economics. Esta análise de 2019 também adverte para o maior risco de trabalhos repetitivos e/ou mecânicos – “onde robôs podem realizar tarefas mais rapidamente do que humanos” – serem eliminados, enquanto trabalhos que exigem mais “compaixão, criatividade e inteligência social” têm maior probabilidade de continuar a ser desempenhados por humanos. Como o mundo da arte não é apenas composto por curadores e colecionadores, é preciso se preocupar também. No começo deste ano, durante a pandemia, Tim Schneider, editor de mercado para o portal Artnet, fez um alerta sobre isso: “O que acontece quando você combina demissões em massa, uma vontade de minimizar as interações pessoais por motivos de saúde e a disposição dos empresários de tecnologia de fazer grandes descontos em seus dispositivos para que possam garantir uma maior potencialidade lucrativa no setor cultural?”.

Somando a ótica qualitativa à quantitativa, apresentada pela Oxford Economics, o historiador e filósofo Yuval Noah Harari acrescentaria à equação a natureza do trabalho e sua especialização: “Digamos que você mude a maior parte da produção de Honduras ou Bangladesh para os EUA e a Alemanha – porque os salários humanos não fazem mais parte da equação [em um cenário onde a automação e a IA ocupam trabalhos hoje conduzidos por humanos] – e é mais barato produzir a camisa na Califórnia do que em Honduras. Então o que as pessoas lá farão? E você pode dizer: ‘OK, mas haverá muito mais empregos para engenheiros de software’. Mas não estamos ensinando as crianças em Honduras a serem engenheiros de software”.

Agentes ou ferramentas? IA e ética

As estimativas relacionadas à automação parecem ser mais razoáveis. Para além delas, é difícil ter um cenário claro para o futuro da IA seja em relação à criatividade ou à consciência. “A previsão tecnológica é particularmente arriscada”, afirma Lloyd, “visto que as tecnologias progridem por uma série de refinamentos, são travadas por obstáculos e superadas pela inovação. Muitos obstáculos e algumas inovações podem ser antecipados, mas outros não”.

Para Dennett, por exemplo, a longo prazo, uma “IA forte”, ou inteligência artificial geral, é possível em princípio, mas não desejável. “A IA muito mais restrita, que é praticamente possível hoje, não é necessariamente má. Mas apresenta seu próprio conjunto de perigos”, alerta. Segundo o filósofo, nós não precisamos de agentes artificiais conscientes – ao que ele se refere como “IA forte” – pois há um excesso de agentes naturais conscientes, o suficiente para lidar com quaisquer tarefas que devam ser reservadas para essas “entidades especiais e privilegiadas”; ao contrário, precisaríamos sim de ferramentas inteligentes. 

Como justificativa para não produzir agentes artificiais conscientes, Dennett considera que “por mais autônomos que possam se tornar (e, em princípio, podem ser tão autônomos, tão dotados de auto aprimoramento e criação quanto qualquer pessoa), eles não compartilham conosco, agentes naturais conscientes, a nossa vulnerabilidade ou mortalidade”. Na sua afirmação, ele ecoa o escrito do pai da cibernética, Norbert Wiener, que, acautelado, reiterou: “A máquina que é parecida com o jinn (gênio), que pode aprender e pode tomar decisões com base em seu aprendizado, de forma alguma será obrigada a tomar as decisões que deveríamos ter tomado, ou aquelas que serão aceitáveis para nós”.

No que concerne o desenvolvimento ético da IA, de acordo com a co-diretora do Human-Centered AI Institute, da Universidade de Stanford, Fei-Fei Li, é necessário dar as boas-vindas aos estudos multidisciplinares da IA, em uma polinização cruzada com a economia, a ética, o direito, a filosofia, a história, as ciências cognitivas e assim por diante, “porque há muito mais que precisamos entender em termos do impacto ético social, humano e antropológico da IA”. Ainda no campo acadêmico, Hutson sugere que “conferências e periódicos possam orientar o que é publicado, levando em consideração este impacto mais amplo da tecnologia durante a revisão por pares e exigindo submissões para tratar de questões éticas”. Em conjunto, ele pontua, agências de financiamento e conselhos de revisão internos em universidades e empresas poderiam intervir para moldar a pesquisa já em seu estágio inicial. No estágio posterior à publicação das descobertas científicas, “as regulamentações podem garantir que as empresas não vendam produtos e serviços prejudiciais, e as leis ou tratados podem se incumbir que os governos não os implantem”.

*Modificações foram realizadas no artigo a fim de clareza.

Guy Brett: uma vida “ordinária” extraordinária

Guy Brett no Sesc Pompeia, em São Paulo, obra projetada pela arquiteta Lina Bo Bardi. Foto: Alexia Tala.
Guy Brett no Sesc Pompeia, em São Paulo, obra projetada pela arquiteta Lina Bo Bardi. Foto: Alexia Tala.

*Por Alexia Tala

Em 2007, eu fui co-curadora de uma mostra na Galeria Metropolitana, no Chile, onde foi exibida uma peça feita por Guy Brett, provavelmente a única que ele fez. Era uma coleção de obituários publicados no jornal britânico The Guardian. Ele os organizou, fazendo pequenas anotações nas bordas e colando página por página em uma velha pasta de couro que parecia ter tido muita história. Seu interesse especial estava relacionado à fragilidade da vida e à uma análise de como uma pessoa é capaz de resumir a vida de alguém em uma folha de papel. Como tantas conversas sobre esse assunto se acumularam ao longo dos anos, eu sabia que se ele morresse antes de mim, eu escreveria estas linhas sobre a vida dele. Linhas que não pretendem resumir sua vida, mas falar sobre alguns de seus pensamentos, desejos e sonhos em relação à arte.

Guy Brett no Sesc Pompeia, em São Paulo, obra projetada pela arquiteta Lina Bo Bardi. Foto: Alexia Tala.
Guy Brett no Sesc Pompeia, em São Paulo, obra projetada pela arquiteta Lina Bo Bardi. Foto: Alexia Tala.

Depois de terminar a escola, Guy Brett (1942-2021) foi diretamente trabalhar no Yorkshire Post e depois no jornal The Times por mais de 10 anos – e consolidou sua escrita crítica como editor de artes visuais da revista City Limits, onde trabalhou entre 1981 e 1983. Com uma sensibilidade extraordinária, sua escrita sempre rejeitou o academicismo e caracterizou-se por uma visão muito particular que se centrava no encontro com a obra de arte, um encontro sensorial, onde o interesse pelos detalhes eram de grande importância em sua observação. Esse engajamento com o trabalho o levou a criar questões que ele mesmo procurava responder por meio de seus textos.

Lembro-me de uma palestra no Chelsea College of Art, em 2011, onde ele foi apresentado como “o padrinho da arte latino-americana na Europa”. Esse título não expressa o caráter admirável de um homem que não só conseguiu instalar a arte latino-americana na Europa nos anos 1960, e uma visão que repercutiu em gerações de artistas e pensadores de todo o mundo, mas que também teve um modo muito especial de conduzir sua vida e sua trajetória de curador, historiador e crítico de arte. As suas colaborações com artistas tornaram-se amizades para a vida, correspondendo-se com muitos deles e mantendo-os no seu pensamento, preocupando-se sempre em estar a par da evolução de seus trabalhos, suas vidas e saúde. Um homem de visão incomensurável, generosidade e humildade.

Em 1973, fez uma longa viagem pela América Latina que influenciou profundamente seu olhar e seu entusiasmo por explorar a região. Em 1977, realizou a exposição We want People to know the Truth: Patchwork pictures from Chile, patrocinada pelo Arts Council, que percorreu até 1978 por diferentes cidades do Reino Unido. Esta exposição mostrou arpilleras feitas por mulheres que contaram suas histórias durante a ditadura militar chilena por meio de seus desenhos de patchwork, feitos em pedaços de sacos de farinha. Seu interesse em explorar várias formas de expressão artística o levou, em 1986, a publicar Through Our Own Eyes: Popular Art and Modern History, onde ele destaca como a necessidade de expressão artística surge naturalmente em grupos sociais quando eles estão sob repressão ou eventos catastróficos. Um livro que Lucy Lippard define acima de tudo como um livro necessário e sugere que “a análise sensível de Brett deve abrir uma direção totalmente nova para aqueles frustrados pelo isolamento da arte erudita em seus próprios contextos”.

Em 1990, na Ikon Gallery de Birmingham, realizou a mostra Transcontinental: Nine Latin American Artists, que foi muito importante para ele, pois considerou que foi a melhor exposição que já havia feito em sua carreira. Por volta de 1967-68, ele pendurou os parangolés de Helio Oiticica nas lâmpadas de seu pequeno apartamento no Soho e organizou outras obras em mesas e estantes, convidando vários diretores de espaço expositivo para tomar um drinque e garantir uma exposição para Oiticica, já que a Signals – icônica galeria administrada por David Medalla e Paul Keeler e da qual Guy era o co-editor do boletim informativo – havia fechado. Essa mostra acabou sendo a icônica Whitechapel Experience, que ocorreu em 1969 na Whitechapel Gallery, em Londres.

Guy Brett e Lygia Pape em 2001 em Nova York. Foto: Reprodução site Lygia Pape.
Guy Brett e Lygia Pape em 2001 em Nova York. Foto: Reprodução site Lygia Pape.

Antes do diagnóstico que apontou que ele sofria da doença de Parkinson, ele esperava viver 2013 como um ano sabático para colocar seu arquivo em ordem, viajar um pouco e chegar a uma nova etapa. Depois de muitos anos sendo de alguma forma o porta-voz de Oiticica e Lygia Clark, tinha uma grande vontade de se aproximar das gerações de jovens artistas do Brasil. Em 2012, fez sua primeira incursão em São Paulo para ver jovens artistas, visitando a exposição de Paulo Nazareth na galeria Mendes Wood DM, que conseguiu despertar aquela “curiosidade” que era vital para ele e o entusiasmou a continuar fazendo descobertas.

Após seu diagnóstico e antecipando a quantidade de tempo ativo que teria pela frente, seus planos mudaram e ele se concentrou em dois grandes projetos: a curadoria da mostra Takis na Tate Modern, junto com Michael Wellen, e a publicação de uma seleção de seus ensaios, intitulada The Crossing of Inumerable Paths, livro publicado pela Ridinghouse em Londres. Felizmente, os dois projetos foram concluídos antes de um período de piora mais radical de sua saúde.

“Como você gostaria de ser lembrado, Guy?”, perguntei… Depois de um momento de reflexão, com as duas mãos na testa, ele disse: “Essa é uma pergunta difícil, Alexia, na verdade nunca pensei sobre isso”. Eu disse que me lembraria dele pelo que mais admiro nele e pelo que de certa forma influenciou e moldou a maneira como trabalho com artistas – e é assim que ele construiu seu relacionamento com os artistas com quem trabalhou… “Acho que você está absolutamente certa”, ele disse, e acrescentou que a razão pela qual ele pensava que essas relações se desenvolveram fortemente era porque “sem ser críticos, devemos admitir que todos os artistas podem ter grandes egos e eu não tenho um enorme, se é que tenho um. Então, nós nunca estamos competindo, e eu admiro tanto o que eles fazem que eu só gostaria de ter feito eu mesmo”. E acrescentou: “Você sabe que eu vivo uma vida muito comum e que minha vida tem sido meu trabalho. Mas minha vida (em um sentido mais pessoal) tem sido uma experiência onde artistas, especialmente artistas brasileiros, me acompanharam por todo o caminho”.

Os dias que se seguiram à sua morte foram avassaladores, as inúmeras postagens no Instagram e no Facebook de artistas que o conheceram, colegas, publicações na imprensa, principalmente do Brasil, foram sem dúvida uma chuva de demonstrações de amor, carinho, respeito, reconhecimento e amizade. Exatamente como Guy gostaria de ser lembrado, o personagem humano e adorável. Alguns anos atrás eu o lembrei do título de padrinho da arte latino-americana, ele sorriu e revirou os olhos “isso é a última coisa que eu gostaria de ser lembrado”, ele disse, e eu sabia perfeitamente o que ele quis dizer. 

Cidade Matarazzo, arte contemporânea
 e neoliberalismo

Cidade Matarazzo
Modelo da Cidade Matarazzo. Imagem: Divulgação.

*Por Pollyana Quintella

Segundo a teoria econômica, o neoliberalismo propõe que o bem-estar humano pode ser melhor alcançado pela suspensão das restrições às liberdades e capacidades empreendedoras individuais no âmbito de uma estrutura institucional caracterizada por sólidos direitos à propriedade privada, livres mercados e livre comércio. O neoliberalismo privatiza ativos públicos, libera recursos naturais, desregula a indústria, facilita os investimentos estrangeiros, impacta nossas relações de trabalho e nosso meio profissional. Mas, para afirmar-se plenamente, também se constitui como paradigma cultural, e se reflete nas relações interpessoais, sexuais, afetivas, simbólicas, subjetivas e familiares, como David Harvey já bem notara. O modelo neoliberal está por toda parte, com as contradições e complexidades que isso envolve.

No caso específico da arte, não é tão difícil medir seus efeitos. Há cada vez menos apoio estatal e financiamento público para a produção artística e cada vez mais mercado. Há mais precarização e menos garantias. Mais discurso bem intencionado e menos compromisso social. Mais concorrência e menos articulação coletiva. Mais espetáculo e menos democracia.

A parceria entre arte contemporânea e lógica neoliberal vai desde a pequena escala – como a promessa de liberdade individual, por exemplo, que se aproxima da imagem clichê do artista – até as escalas maiores, com a presença da arte em projetos de “revitalização” de cidades, bem como seu papel de camuflagem refletido em operações que envolvem poluição, gentrificação, lavagem de dinheiro etc e tal. Para além da discussão econômica, podemos interpretar as novas formas de fazer política segundo algumas metodologias artísticas, vide o modo como líderes populistas autoritários têm explorado certa performatividade elástica e espetacular, que sabe disputar (e ganhar) a atenção dos grandes públicos. De modo geral, podemos reconhecer o selo da “arte contemporânea” diretamente implicado na transformação dos padrões globais de poder, sobretudo no que hoje convencionamos chamar de pós-democracia, algo que demanda mais atenção, e talvez um outro texto.

Talvez esteja fresco na cabeça do leitor o recente episódio em torno do estádio Pacaembu, em São Paulo. A gestão de Bruno Covas e o consórcio Allegra Pacaembu fecharam um contrato de concessão do estádio por 35 anos. Antes das reformas começarem, em dezembro passado, o “Paca” realizou uma grande exposição chamada Arte em campo, com a participação de 25 galerias e 54 artistas [1].

Segundo o pronunciamento oficial, a mostra teria o papel de afirmar algo que o consórcio pretende fazer durante toda a sua gestão: diversificar o uso do estádio para além dos jogos de futebol, investindo em atividades de cultura e lazer. Um dos objetivos da reforma, no entanto, é demolir o tobogã – área reconhecida por democratizar o estádio e abrigar torcedores de baixa renda – e, no seu lugar, construir um grande edifício ao modo dos shopping centers, o que já parece nos indicar que a perspectiva de “cultura” do consórcio é a da experiência privada. Ademais, o problema de segurança do local será resolvido com o encarceramento das atividades, ao contrário de investir na relação do estádio com o seu entorno.

Quando li um pouco sobre essa parceria público-privada, me perguntei qual era o papel da exposição coletiva ali, além de maquiar, sofisticar e proporcionar uma fachada cool que justifique interesses que estão longe de favorecer a cidade. Mas apesar do caso Pacaembu nos fornecer material de discussão suficiente, gostaria de concentrar este texto em torno de outro projeto recente, ainda em construção: a Cidade Matarazzo – o primeiro hotel seis estrelas do Brasil.

Em 2011, o grupo francês Allard comprou o antigo e tombado Hospital Umberto I, o “Hospital Matarazzo”, construído em 1904 e localizado numa região de disputa imobiliária próxima à Avenida Paulista, na cidade de São Paulo. O empresário à frente da empreitada, Alexandre Allard, é conhecido por ter criado a companhia Consodata, que já foi líder no mercado de dados de consumidores, e por ter reformado o luxuoso hotel Royal Monceau, em Paris, local de encontro de artistas e celebridades. Em 2008, antes de reformar o hotel, Allard deu uma “festa de despedida”, presenteando seus convidados ilustres com martelos e capacetes para que se divertissem demolindo as antigas paredes, o que lhe rendeu o prêmio Stratégies de melhor evento do ano.

Cidade Matarazzo
Vasos quebrados compõem “O Abuso da História”, de Héctor Zamora, em “Made By… Feito por Brasileiros”. Foto: Reprodução Prêmio Pipa.

No Brasil, não houve espetáculo de demolição, mas em 2014 o grupo organizou a exposição Made By… Feito por Brasileiros [2], para simbolizar o início do projeto e demarcar seu gesto de criatividade. Com a participação de mais de 100 artistas e curadoria dos franceses Marc Pottier e Pascal Pique e do canadense Simon Watson, a mostra captou R$ 3,2 milhões via Lei Rouanet. Embora majoritariamente endossado pelo meio cultural naquela altura, o caso rendeu algumas controvérsias, como a recusa de Cildo Meireles em participar mesmo depois de ser previamente anunciado. O artista alegou à imprensa que, “se soubesse que seria um projeto imobiliário, teria feito mais perguntas” [3].

Tratava-se apenas de um prenúncio da magnitude do empreendimento, que prevê ainda uma área comercial de luxo e o maior parque privado de São Paulo. Não à toa o título do projeto seja “Cidade Matarazzo”. A promessa é que ali será possível experimentar uma espécie de cidade privada dotada dos melhores serviços e alheia à ruína do mundo. Em fevereiro deste ano, o projeto anunciou uma parceria com o banco Bradesco para inaugurar a “Casa Bradesco de Criatividade”, incluindo um suntuoso espaço expositivo. Com curadoria de Marcello Dantas, a programação pretende trazer os disputados nomes internacionais em projetos comissionados de grande envergadura, a começar por Anish Kapoor [4]. Junto a isso, artistas emergentes e consagrados estão sendo convidados a produzir projetos permanentes para o complexo, de modo a fazer da Cidade uma experiência constante de beleza, inspiração e transcendência.

Numa entrevista à Forbes, o milionário francês se manifestou a respeito da arte: “Não existe nada mais poético do que o processo criativo. Amo quando vejo alguém em um estúdio de música, trabalhando em como agregar as notas, amo a moda, criei algumas marcas fabulosas, amo quando vejo alguém preparando um desfile. Sou um amante do processo criativo porque acredito que isso salvará o mundo.” [5]

Certamente não me cabe aqui duvidar da sua comovente sensibilidade, mas há algo mais em sua fala. Creio que para Allard, o processo criativo não salvará o mundo, salvará o capitalismo. Justamente porque não há nada mais neoliberal do que a premissa da “criatividade”. No caso da Cidade Matarazzo, um dos papéis da arte é produzir um senso de inclusão e representatividade que está longe de refletir a lógica estrutural do empreendimento. Mais uma vez, a equação é simples: a presença da prática artística é recurso publicitário para valorizar e justificar o negócio, “imunizá-lo”, quiçá.

Eu costumava achar que havia um abismo entre acreditar que a arte pode complexificar nossos modos de estar no mundo e simplesmente reduzi-la a um problema de gosto, mas esses discursos se encontram mais do que se imagina. Foi Pierre Bourdieu quem identificou que, segundo a perspectiva das classes dominantes, a maneira “legítima” de compreender uma obra é entendê-la como fim em si mesma. Ela não deve servir a fins políticos e econômicos, mas apenas ao próprio problema da linguagem. Porém, tal maneira “legítima”, como esmiuçou o sociólogo, tem como pressupostos (de classe) a formação de repertório, herança familiar e posição sócio-econômica, embora os iniciados se esforcem para que soe como dom natural e sensibilidade nata. Por isso Allard “ama” o processo criativo, porque parece acessar algo mágico e divino quando vê alguém trabalhando em “como agregar as notas”. E por isso seus empreendimentos também estão permeados de arte – é a aura que os torna legítimos e admiráveis. Acontece que, aqui, a arte está sim a serviço de fins políticos e econômicos, mas soa como se não estivesse. “O espetacular é um substituto suficientemente bom para o democrático”, diria Hal Foster no seu Complexo Arte-Arquitetura (2013).

O início desse casamento é longínquo, mas gostaria de chamar atenção para o fato de que a tal “autonomia” da arte, que nos fez crer que a prática artística está desatrelada de funções morais, científicas e funcionais, hoje é acionada com outras intencionalidades. Afinal, o trabalho “tem autonomia” em relação ao projeto, ao artista cabe fazer a sua arte, ao curador cabe fazer a sua exposição, e nada mais. Tal perspectiva autônoma pôs o trabalho cultural na chave da transcendência, cuja premissa é a de que a criação se dá para além das condições sociais e políticas, então só resta aos agentes envolvidos lavarem muito bem as mãos e seguirem para a próxima aventura. A responsabilidade é uma batata quente.

Mas as noções de autonomia e utilidade são mutuamente intercambiáveis e nada estáveis. Na caracterização acima, seria possível invertê-las, a depender do que esteja sendo enfatizado. Um trabalho supostamente comprometido em relação a determinados temas e questões pode ser apropriado de modo desinteressado. Na via oposta, um trabalho supostamente desinteressado pode ser bastante útil na construção de determinada narrativa social, pode ser instrumentalizado como força simbólica. Os sentidos são construídos sobretudo no modo como o trabalho circula, no modo como se desloca e habita o mundo. Não existe obra desencarnada. Um exemplo claro disso é a relação entre o mercado e as iniciativas independentes “sem fins lucrativos”, que acabam por agregar valor ao artista ou iniciativa por serem reconhecidas por seu propósito crítico e contestatório ao sistema (no caso do Pacaembu, a presença de trabalhos que estavam indiretamente criticando o projeto é evidência disso). No entrelaçamento entre produção artística e infraestrutura neoliberal, é preciso reconhecer cada vez mais curadores, instituições e empreendimentos como peças fundamentais na construção de sentidos que uma obra institui.

Cidade Matarazzo. Projeto de Jean Nouvel para a "Torre Mata Atlântica", no Rosewood Hotel São Paulo. Foto: Divulgação.
Projeto de Jean Nouvel para a “Torre Mata Atlântica”, no Rosewood Hotel São Paulo. Foto: Divulgação.

Voltemos à Cidade Matarazzo: o negócio é gringo, mas os “valores” são brasileiros. O hotel, com assinatura de Jean Nouvel (sua primeira obra na América Latina), é composto por uma “Torre Mata Atlântica” cuja estrutura é formada por uma série de planos verdes frondosos e terraços com árvores locais que devem simular uma invasão da mata sobre a arquitetura, uma espécie de triunfo da natureza [6]. O projeto também se compromete a usar apenas materiais e fornecedores nacionais e não  economizar no plantio de árvores comuns à Mata Atlântica ameaçada no local. Além disso, como é característica do arquiteto, soluções high tech serão conjugadas com efeitos de luz, transparência e leveza, fazendo da estrutura sólida algo translúcido e evanescente. Uma conciliação entre espetáculo e engenharia; imagem e estrutura. Mas sobra aqui, sem dúvida, a famigerada visão do paraíso tropical, o desejo de monumentalidade tão afeito à lógica contemporânea e o anseio de produzir um ícone instantâneo, templo de si mesmo. Nada muito diferente do que seja o olhar estrangeiro quanto às qualidades de um Brasil abundante e exótico.

Quando perguntado sobre como definiria a Cidade Matarazzo, Allard disse: “É uma máquina gigante para celebrar a diversidade brasileira.” [7] Conquanto, se submetermos sua concepção de diversidade sob um raio-X, veremos um conjunto de lugares-comuns que refletem um neoprimitivismo muitas vezes mascarado de “desconstrução de valores hegemônicos”. O turista global da Cidade Matarazzo quer ver palmeiras e espécies exóticas no coração de São Paulo. Não se assuste se, no instagram do empreendimento, você encontrar fotos de indígenas com a hashtag #tribe, #DiscoverMatarazzo, #Diversity, entre outras. A floresta de Allard está mais para monocultura fetichista [8].

Acontece que quando o capital investe em “diversidade”, fica a impressão de que as coisas estão finalmente caminhando rumo à justiça, mas cabe desconfiar. Se quisermos fazer um paralelo com a discussão econômica, podemos reconhecer tal fenômeno como parte integrante do que entendemos por neoliberalismo progressista. No que consiste? Basicamente, uma política econômica regressiva com uma máscara inclusiva. Trata-se do capital que apoia a representatividade, as pautas minoritárias e a reivindicação por direitos dos movimentos sociais, enquanto investe em operações que degradam cada vez mais a condição de vida dos trabalhadores, contornando regulamentações e direitos. É o modelo que defende a diversidade, mas entrega precariedade. Que defende o “empoderamento”, mas o utiliza para devastar a indústria. Que desmonta estruturas sociais para sugar dinheiro de todos os cantos. Ou seja, a emancipação só existe até a segunda página, ou talvez sequer ultrapasse o primeiro parágrafo. Nancy Fraser definiu muito bem esse fenômeno no seu recente livro The old is dying and the new cannot be born (2019), mas o que me interessa aqui é chamar atenção para o fato de que, não coincidentemente, a arte contemporânea é muitas vezes o verniz desse modelo. O verniz que faz operações duvidosas soarem bacanas e descoladas. Como diz Hito Steyerl, “a arte contemporânea é um nome de marca sem uma marca, pronto para ser colado a tapa em quase qualquer coisa, um lifting facial expresso que promove o novo imperativo criativo em lugares que estão precisando de um extreme makeover”[9]

Além do efeito-maquiagem, é preciso falar das condições de trabalho. O meio artístico-cultural já operava segundo a lógica da flexibilidade, da terceirização e da precariedade. Uma avalanche de MEIs e PJs, estagiários voluntários, contratos escusos, abuso de poder, trabalho mal pago ou, mais que isso, trabalho não remunerado “em prol de algo maior”… a misteriosa visibilidade. Agora, esse pacote serve de exemplo para outros setores, e configura um novo modelo trabalhista.

Ao contrário de escandalosa, tal flexibilidade vem sendo qualificada positivamente pelo mercado, pois exige soluções cada vez mais inventivas e competitivas. É preciso ser criativo para sobreviver, eles dizem. Além disso, o trabalho flexível é a promessa da tal liberdade individual, pois seduz com a ideia de que cada um pode gerir sua própria rotina, fazer escolhas, ter autonomia, organizar seu próprio tempo e se “empoderar”. Não há tempo para identificação nem acomodação. A realidade, no entanto, reflete uma auto exploração assombrada pela insegurança e pela instabilidade, o que nos faz reconhecer que o trabalhador cultural é o produtor pós-fordista por excelência. Ou, em outras palavras, o meio da arte se tornou o modelo bem-sucedido da precarização porque, por cima de todas essas porcarias, somos o território do “sensível”, do “pensamento crítico”, da “força criativa” etc. Balela neoliberal.

Tudo isso, é claro, nos coloca numa posição difícil. A não ser que você seja herdeiro ou tenha sido agraciado com um sobrenome importante, pagar as contas te faz ter que jogar com esses esquemas. Daí que muitas vezes utilizamos o argumento de que vamos “ruir o sistema por dentro” para aceitar convites de iniciativas com que não concordamos no todo. Às vezes porque precisamos do dinheiro, às vezes porque desejamos algum prestígio e visibilidade, ou simplesmente porque é através delas que vai ser possível realizar qualquer coisa que seja. Na prática, o “ruir por dentro” tem tornado essas estruturas ainda mais fortalecidas e sofisticadas com os nossos selos politicamente engajados. E não é raro nos sentirmos ridículos.

Isabell Lorey (2015) tem definido a precariedade como forma de regulação do nosso tempo histórico. Mais do que isso: a produção de um regime de precariedade é a forma de governar pessoas no século XXI. A instabilidade produzida pela precarização nos impede inclusive de protestar e exigir direitos. Tememos perder laços de trabalho ao endereçar críticas, tememos fazer reclamações porque elas podem nos fechar portas no futuro. A expressão “rabo preso” vem muito bem a calhar. Ademais, o trabalho precarizado isola e individualiza o trabalhador, além de dificultar os recursos de organização coletiva. Não apenas porque acentua a concorrência, mas também porque fragmenta radicalmente as etapas de trabalho, suprime convivências e reduz encontros. Por tudo isso, a precariedade é uma governabilidade, e isso também é lição da arte.   

Nós, trabalhadores do meio cultural, somos todos cúmplices dessa equação, em maior ou menor grau, e não estou isenta disso. Me pergunto, porém, se estamos realmente cientes de como isso integra o nosso trabalho diário. Não haverá vida imune ao mercado e nem redenção, mas ainda vale investir em alguma sobrevida que não se reduza a isso.

Antes de tudo, podemos desconfiar cada vez mais de discursos e propósitos pautados na transcendência da arte, da experiência e do valor. Junto a isso, podemos compreender que assumir uma postura política é agir diante de uma situação concreta, que vai além de rótulos discursivos, e isso significa analisar deliberadamente com quem nos associamos e sob que condições. Além disso, se não nos resta alternativas de trabalho mais saudáveis, talvez possamos negociar melhor os nossos aceites, de forma mais ativa e propositiva. Em todo caso, celebrar a “diversidade brasileira” não basta, cumprir as normas da representatividade tampouco. Precisaremos de articulação e imaginação coletiva e, não custa lembrar, já percebemos que isso não se resolverá nos feeds do instagram.


[1] https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/12/estadio-do-pacaembu-e-invadido-por-obras-de-arte-as-vesperas-de-reforma.shtml
[2] O site da exposição ainda pode ser visitado através de: http://www.feitoporbrasileiros.com.br/
[3] http://www.canalcontemporaneo.art.br/brasa/archives/week_2014_09_21.html
[4] https://vejasp.abril.com.br/cidades/anish-kapoor-casa-bradesco-da-criatividade-cidade-matarazzo/
[5] https://www.forbes.com.br/principal/2020/02/a-potencia-de-criacao-da-cidade-matarazzo/
[6] “Não estamos falando de pequenas samambaias num jardim vertical, mas sim de árvores enormes, de 15 a 18 metros, que dialogam com a altura da torre. É a ascensão por meio da natureza.” – Essas são as aspas de Jean Nouvel no site da Cidade Matarazzo.
[7] https://www.forbes.com.br/principal/2020/02/a-potencia-de-criacao-da-cidade-matarazzo/
[8] No site do projeto, o designer Philippe Starck explica suas escolhas: “Utilizamos pedras brasileiras extraordinárias assim como madeiras brasileiras lindíssimas. Todos os quartos do hotel serão equipados com um kit-mural que permite ao hóspede expor ou não obras de arte brasileiras através de um jogo de painéis em lambril de madeira. Há algumas vitrines com estatuetas e outras com arte plumária. É a realização do que associo à imagem e ao objeto.”
[9] https://www.revistaapalavrasolta.com/post/hito-steyerl-na-tradu%C3%A7%C3%A3o-de-julia-de-souza?fbclid=IwAR3sgQmM0cvXwdrXCdNMss5ssOlXY915egj6NAxsCxgd95CIACq3UPQHYG4

Hal Foster: tudo é luta

"O que vem depois da farsa?", de Hal Foster. Editora Ubu, 2021 (192 p.). Foto: Divulgação

O que vem depois da farsa?, título do novo livro do professor norte-americano Hal Foster, não é uma pergunta meramente retórica. Ela parte de uma das mais conhecidas ideias de Karl Marx – que a história costuma ser encenada duas vezes, a primeira como tragédia e a segunda como farsa – para refletir sobre o contexto norte-americano dos últimos anos da gestão Trump, considerada aí como farsa.

Capa do livro "O que vem depois da farsa?", de Hal Foster, publicado no Brasil pela Editora Ubu. Foto: Divulgação.
Capa do livro “O que vem depois da farsa?”, de Hal Foster, publicado no Brasil pela Editora Ubu. Foto: Divulgação.

O livro (leia trecho aqui) foi publicado no início do ano passado, portanto sem tempo para atentar o que a pandemia do novo coronavírus acrescentou nesse cenário, incluindo a derrocada do próprio Trump e ascensão da chapa Joe Biden/Kamala Harris. Contudo, não se trata de fato de uma análise da questão geopolítica sobre o que vem depois da farsa, mas das implicações no campo da arte, que é o espaço de reflexão de Foster, ou em suas próprias palavras no prefácio: “Onde se posicionam os artistas e os críticos”.

Apesar de passar longe do contexto do Sul global, o que torna a publicação um tanto deslocada das atuais discussões decoloniais, ignorando todo o mundo da arte fora do eixo EUA-Europa, as transposições de certas análises para o Brasil são inevitáveis e ajudam a compreender um pouco das raízes da exaustão que agentes culturais se encontram neste momento.

Afinal, como dar credibilidade a uma instituição de arte como a Bienal de São Paulo quando o Credit Suisse, empresa que é dirigida por seu presidente, o banqueiro José Olympio da Veiga Pereira, organiza um encontro de apoio ao presidente Bolsonaro, recentemente criticado em um manifesto encabeçado por religiosos e intelectuais como Leonardo Boff e Chico Buarque, que começa por: “O Brasil grita por socorro. Brasileiras e brasileiros comprometidos com a vida estão reféns do genocida Jair Bolsonaro, que ocupa a presidência do Brasil, junto a uma gangue de fanáticos movidos pela irracionalidade fascista”.

"Ubu Trump", 2017, de Mr. Fish, referido por Hal Foster em seu novo livro. Foto: Mr. Fish / Reprodução de "O que vem depois da farsa?".
“Ubu Trump”, 2017, de Mr. Fish. Foto: Mr. Fish / Reprodução de “O que vem depois da farsa?”.

Esse descompasso entre dirigentes de instituições culturais e a realidade do país é abordado no quinto ensaio do livro, Pai Trump, onde, citando o sociólogo alemão Siegfried Kracauer (1889-1966), faz um paralelismo entre a República de Weimar e a atualidade: “Nunca houve uma época tão bem informada sobre si mesma (…) e nunca uma época foi tão pouco informada sobre si mesma”. Esse paradoxo da informação leva Foster a lembrar o conceito de “razão cínica”, desenvolvido por outro alemão, este mais contemporâneo, Peter Sloterdijk.

Essa ideia de razão cínica foi baseada na vista grossa que o povo alemão teve para com o nazismo, e um caso específico nesse sentido é Eichman, o funcionário responsável pelo transporte de judeus para os campos de concentração, que alegou ser um cumpridor de ordens. Ou seja, a razão cínica tem a ver com a incapacidade de juízos críticos, o que é muito semelhante tanto ao apoio às alegações infundadas de Trump, como analisa Foster, como o apoio pela turma da Faria Lima ao seu similar brasileiro. “Como menosprezar um líder que não sente vergonha? Como ‘desdadaizar’ o presidente Ubu?”, pergunta o autor. É preciso reagir, ele defende: “Converter a emergência disruptiva em mudança estrutural.” 

Para Foster, nesse sentido, três movimentos têm sido essenciais para se repensar o sistema das artes: #MeToo (surgido em 2017), contra o assédio do patriarcado, Black Lives Matter (2013), contra o racismo estrutural, Occupy Wall Street (de 2011), contra desigualdades econômicas e sociais e o poder excessivo das empresas. “À medida que os códigos de conduta são descartados em uma profissão após outra, cabe às instituições culturais insistir mais fortemente neles e ser exemplos nesse aspecto”, defende Foster. Assim, para se contrapor aos comportamentos cínicos, museus e demais instituições do circuito precisam criar práticas exemplares. 

Um exemplo que ele não cita, mas que merece ser lembrado é a ação da fotógrafa norte-americana Nan Goldin, que vem liderando um movimento contra a família de mecenas Sackler, que patrocinou salas e obras em importantes museus da Europa e Estados Unidos, e são proprietários da farmacêutica Purdue, que fabrica analgésicos altamente viciantes e mortais – cálculos apontam que, desde 1999, mais de 450 mil pessoas tenham morrido pelo uso de opioides. Graças aos protestos do grupo P.A.I.N. (Prescription Addiction Intervention Now), por ela criado, museus como a Tate, de Londres, ou o Louvre, em Paris, recusaram o patrocínio dos Sackler, ou chegaram mesmo a retirar o nome da família das salas, como no museu francês. Foster, contudo, trata da questão da origem dos financiamentos, apontando que, quando ele é sujo demais, se transforma em uma questão “urgente para os museus de arte na era trumpista”.

Ao longo dos ensaios, o autor cria alguns termos muito válidos para se pensar o momento atual, como a noção de “estética ética”, essa necessidade de que práticas artísticas e institucionais sejam baseadas em condutas responsáveis, evitando a cumplicidade de gestores das instituições culturais com a política da pós-verdade de líderes como Bolsonaro ou Trump. Contudo, essas ideias muitas vezes são pequenas pílulas que merecem aprofundamento.

Neste trabalho, o Forensic Architecture incorporou fotos e vídeos, reunidos principalmente de redes sociais e fontes online, no modelo 3D para reconstruir a história da batalha da "Sexta-feira Negra", ocorrida em 1º de agosto, durante a guerra de Gaza de 2014, na qual muitos civis palestinos foram mortos por bombardeios israelenses. Foto: Reprodução.
Neste trabalho, o Forensic Architecture incorporou fotos e vídeos, reunidos principalmente de redes sociais e fontes online, no modelo 3D para reconstruir a história da batalha da “Sexta-feira Negra”, ocorrida em 1º de agosto, durante a guerra de Gaza de 2014, na qual muitos civis palestinos foram mortos por bombardeios israelenses. Foto: Reprodução.

Outra delas é a ideia da reconstrução pela arte, baseada em práticas artísticas como a do grupo inglês Forensic Architecture, um coletivo de pesquisa multidisciplinar criado pelo arquiteto Eyal Weizman, na Universidade de Londres. “Muitos artistas passaram de uma postura de desconstrução a uma de reconstrução – isto é, ao uso do artifício para reabilitar o modo documental como um sistema, se não descritivamente adequado, ao menos criticamente eficiente”, descreve Foster no ensaio Ficções Reais. Foster cita, então, Weizman para exemplificar alguns desses procedimentos das práticas forenses: a política da testemunha fundada no depoimento individual e volta à “empatia com as vítimas” e uma política de defesa dos direitos humanos levada a cabo como “um processo de materialização e mediatização”. Além de Forensic Architecture, o autor aponta Harun Farocki (1944-2014) e Hito Steyerl como atuando no mesmo sentido. 

Assim, voltando à pergunta do título do livro, Foster não se furta em dar muitas pistas para apontar saídas possíveis para a farsa. Mas a conclusão que ele mesmo já aponta na introdução é muito clara: “Nada está garantido; tudo é luta”. 

A força da empatia

Dzi Croquettes: Benê Lacerda, 1974
Dzi Croquettes: Benê Lacerda, 1974. Foto: Madalena Schwartz, acervo IMS.

“Eu sempre tive família, eu cresci protegida pelas minhas avós”, contou no programa Roda Vida a vereadora trans por São Paulo, Erika Hilton, em fevereiro passado. “Nunca tive problemas com minha identidade, em ser uma criança viada”, enfatizou em sua fala cheia de críticas certeiras à chamada “ideologia de gênero”. Essa noção de família ampliada e acolhedora foi tematizada pela fotógrafa Madalena Schwartz, em uma série que adianta as imagens transgressoras de Nan Goldin dos anos 1980, que a tornaram um ícone do submundo trans.

Juntar essas três mulheres em um parágrafo não seria tão óbvio antes da mostra Madalena Schwartz: as Metamorfoses – Travestis e transformistas na SP dos anos 1970, em cartaz até setembro no Instituto Moreira Salles, mas é impossível não perceber como todas defendem uma humanização do universo trans. A surpresa aqui é que enquanto Goldin, bissexual assumida, se tornou mundialmente conhecida ao retratar basicamente seu círculo de amizades na noite, Schwartz (1921–1993) era uma senhora marcada por um perfil recatado.

Nascida na Hungria, migrou aos 12 anos para a Argentina. Nos anos 1960, com o marido e dois filhos, foi viver em São Paulo, onde a família administrava uma lavanderia no centro da cidade. Quase aos 50 anos, quando seu filho ganhou uma câmera fotográfica, ela passou a frequentar o Foto Cine Clube Bandeirante, o que permitiu desenvolver uma nova carreira, tornando-se “a grande dama do retrato em nosso país”, como definiu Pedro Karp Vasquez, citação que se lê em uma das paredes da mostra.

Madalena Schwartz, meados de 1969. Acervo Pedro Luis Szigeti.
Madalena Schwartz, meados de 1969. Acervo Pedro Luis Szigeti.

Um depoimento em vídeo de Madalena, logo no início da exposição, confirma como amigos e familiares costumam descrevê-la: uma senhora tímida e elegante, sempre com roupas clássicas. Sua discrição, no entanto, não foi empecilho para seu reconhecimento. Fotografou para revistas importantes no mundo todo e, em 1974, fez sua primeira individual no Masp, o Museu de Arte de São Paulo, a convite de seu então diretor, o italiano Pietro Maria Bardi.

A exposição agora em cartaz politiza a obra de Madalena ao tematizar o universo trans, uma questão urgente no Brasil, marcada por perseguições e assassinatos, ao mesmo tempo em que a visibilidade delas se torna inédita, caso de Erika Hilton, a mulher mais votada na cidade de São Paulo nas eleições do ano passado. 

Essa politização segue a linha de A luta Yanomami, que há três anos tratou da questão indígena através da obra da fotógrafa Claudia Andujar, húngara como Madalena. Contudo, as duas têm características muito distintas, apesar de em comum serem fotógrafas brilhantes e a fotografia ser uma estratégia essencial de ambas na comunicação com o mundo: enquanto Claudia era uma militante da causa indígena, Madalena jamais caracterizou sua obra como uma atitude engajada. Trata-se muito mais de uma grande retratista que, por conta de amigos artistas e vizinhos no Copan, onde morava, acabou também olhando para essa cena.

A exposição, com curadoria de Samuel Titan Jr. e do argentino Gonzalo Aguilar, contextualiza essas relações da fotógrafa, ao apresentar um imenso mapa do centro de São Paulo em uma das paredes da mostra, onde são vistos os principais espaços por onde Madalena Schwartz transitava: sua residência no Copan, a lavanderia na rua Nestor Pestana, a sede do Clube Bandeirante, os teatros da cidade, entre alguns pontos.

O Copan, aliás, inspira a arquitetura no próprio espaço, já que os painéis em cor lilás da exposição seguem discretamente a forma sinuosa do edifício, ao mesmo tempo em que ele é retratado em uma série de imagens noturnas e bastante impactantes no fundo da sala.

Nos painéis estão mais de cem imagens, a maioria de travestis, mas também artistas performáticos como Ney Matogrosso, Patrício Bisso e Elke Maravilha.

E o painel divide outras duas contextualizações: de um lado uma documentação audiovisual sobre São Paulo nos anos 1970, marcado pela ditadura militar e a transgressão ao mesmo tempo; enquanto de outro lado, imagens da cultura travesti e transformista em outros países da América Latina, também nos anos 1970 e 1980, reforçando o caráter politizado da mostra. Aliás, os nove conjuntos, que são trabalhos efetivamente militantes, basicamente atestam a grandiosidade de Schwartz.

Danton e pessoa não identificada, anos 1970. Foto: Madalena Schwartz, Acervo IMS.
Danton e pessoa não identificada, anos 1970. Foto: Madalena Schwartz, Acervo IMS.

Frente às questões do movimento Me Too, é de se perguntar se uma mostra de uma mulher tão arrojada como Madalena não deveria ter também uma curadora mulher, como aconteceu na mostra de Diane Arbus (1923–1971), no Metropolitan Museum de Nova York, em 2016. Afinal, em uma época de debates sobre representatividade, o IMS poderia buscar entender o contexto, o que também faltou na abertura da mostra, novamente só com homens: os curadores e João Silvério Trevisan, que aliás teve uma fala que tratou pouco da artista.

Isso não compromete, contudo, a merecida visibilidade que o trabalho precursor de Schwartz recebe. As imagens no painel, acertadamente distribuídas em distintos formatos, apontam como além de dominar o uso de claros e escuros na fotografia, uma questão técnica relevante, ela conseguia revelar uma intimidade com seus retratados, que mescla cumplicidade e empatia, especialmente as realizadas nos bastidores ou em sua própria casa.

As fotos de Meise, por exemplo, revelam a fragilidade da modelo enquanto se transforma, usando ainda de espelhos na criação de duplos, uma composição muito semelhante ao que Nan Goldin faria na década seguinte. Esse tipo de imagem sobrecarregada de simbologias também se vê na série com Danton, seu maquiador de um salão na rua Augusta, especialmente na que ele está nu com o rosto caracterizado como mulher, sentado em um banquinho enquanto outro rapaz atrás dele se movimenta, novamente gerando um duplo. Danton aparece em outras imagens sem maquiagem, quando é visto de forma mais delicada e vulnerável, o que só se consegue em um retrato quando de fato há uma espécie de solidariedade entre quem é retratado e quem retrata, muito semelhante à cumplicidade dos indígenas retratados por Andujar.

Mais do que falar do universo travesti, transformista e transgressor dos anos 1970, Madalena Schwartz trata da humanidade de forma mais ampla e, por isso, de seu caráter inclusivo: trata-se de uma mesma família com individualidades distintas. 

Lives, um tormento necessário

Vídeo com o Sino de Ouro Preto na mostra Vento, parte da 34ª Bienal de SP. Foto: Levi Fanan/ Fundação Bienal de São Paulo

Desde o início da pandemia e da necessidade de isolamento social, o mundo como um todo se viu obrigado a criar estratégias de comunicação no universo virtual, online, lançando mão de variadas ferramentas. Plataformas de reuniões, contas de Instagram, sites, Facebook e newsletters implodiram as redes, tornando até mais lentos os canais de rede. A maioria dos setores não estava preparada para esta reviravolta, e muito menos seus investimentos em equipamentos ou profissionais da área.

Na cultura, começaram a ser produzidas transmissões ao vivo de shows e espetáculos, além de debates, palestras e cursos. Um dos formatos a que se recorreu de forma massiva foram justamente essas lives, encontros ao vivo transmitidos pelo Instagram ou Youtube, com especialistas ou comentaristas de diversas áreas. Em uma noite qualquer, um usuário do Instagram entraria em sua conta e encontraria dezenas de ofertas de transmissões ocorrendo simultaneamente, tornando difícil inclusive selecionar o que valeria ou não à pena ser assistido. Para cada apresentação interessante – por mais subjetiva que seja essa avaliação – pareciam pipocar milhares de outras mal planejadas, com conteúdos aleatórios ou mesmo com falhas técnicas (de áudio, imagem ou conexão). O importante era não ficar parado.

No campo das artes visuais, mais especificamente, museus, instituições culturais, galerias, curadores e artistas promoveram centenas de apresentações, debates e os chamados webnários sobre os mais diversos temas. Além disso, intensificaram as postagens em suas redes sociais, com vídeos, imagens e textos, em um esforço para não se afastar totalmente do público no momento em que todos – ao menos boa parte do público de artes visuais – estavam fechados em suas casas. Houve também a alternativa dos viewing rooms, exposições montadas especialmente para o universo virtual, e as feiras precisaram se readaptar ao meio digital.

Como era de se esperar, não demorou para surgirem críticas justamente ao modo como foi feita esta migração para o virtual, especialmente ao excesso de lives de todos os tipos. Já em abril do ano passado, a artista e pesquisadora Giselle Beiguelman escreveu em artigo na Folha de S.Paulo: “O coronavírus ressuscitou a internet dos anos 1990. Entre videochamadas, lives e visitas virtuais, descobrimos o que já sabíamos – viver no universo paralelo é muito chato. (…) E descobrimos outra coisa – museus, galerias de arte e instituições culturais estão na idade da pedra da internet. Atropelados pela pandemia e sem conteúdo artístico e cultural criado para a web, aderiram aos únicos campos da vida online que conhecem, as redes sociais, e-commerce e saídas de emergência apontadas para o Google Arts & Culture”.

Ainda assim, gravações em vídeo ou entrevistas de boa qualidade também se sobressaíram com o passar do tempo e atraíram milhares de visualizações e interações. Em entrevistas realizadas pela arte!brasileiros ao longo do ano, diversos gestores, apesar de concordarem que o virtual jamais substituirá a experiência presencial, destacaram como ponto positivo a possibilidade de dialogar ao vivo com pessoas de todos os cantos do mundo, o que não ocorria em uma palestra na sala de um museu ou galeria. Diretores e galeristas se disseram também satisfeitos com a velocidade com que conseguiram melhorar sua atuação virtual.

Dentre algumas destas lives e apresentações, nossos colaboradores escolheram aqui iniciativas que trouxeram valor agregado e, no meio de uma situação tão dramática, conseguiram encontrar soluções diferenciadas. Leia a seguir.

A importância do contexto

Em live no Festival ZUM, no final do ano passado, o artista chileno Alfredo Jaar tratou da política da imagem

Por Fabio Cypriano

Alfredo Jaar (abaixo na imagem) conversou com Thyago Nogueira na live. Foto: Reprodução

Desde que vi a performance de Alfredo Jaar na Trienal de San Juan, em 2015, e no ano seguinte no Seminário Internacional da arte!brasileiros, em São Paulo, sempre busco acompanhar as sensacionais falas do artista chileno. Em 2020, como as lives substituíram boa parte dos eventos presenciais, Jaar participou do Festival ZUM, por ocasião do lançamento da 19ª edição, em uma fala notável. Alguns destes eventos continuaram disponíveis online.

Destaco três trechos de sua fala de uma hora e meia que considero muito significativos no contexto atual da arte. O primeiro é quando Jaar revela como se dá sua metodologia de criação, o que inclui a leitura diária de jornais de diversos países, já que ele se exilou no Estados Unidos nos anos 1970 e lá reside até hoje: “Eu só posso me dedicar a falar do mundo se conseguir compreendê-lo”.

Pode parecer uma frase óbvia, mas são poucos os artistas que dão conta de transformar questões diárias do cotidiano, seja individual seja coletivo, em trabalhos artísticos potentes como os que ele apresenta ao longo da fala, naquilo que Hal Foster chama de “brilho utópico da ficção”, parafraseando Ben Lerner.

O segundo trecho é a constatação de que “o mundo da arte é o único que tem ainda um espaço de liberdade”, algo muito semelhante ao que defendeu Grada Kilomba há dois anos, na Pinacoteca do Estado, quando contou porque preferiu deixar a carreira acadêmica para seguir a produção artística. De fato, não por acaso, artistas vêm sendo perseguidos de forma veemente pelos governos de extrema direita, como o que se instalou por aqui.
Finalmente, o terceiro trecho, diretamente voltado ao tema de sua mesa, se divide em duas partes. A primeira quando ele trata da banalização das cenas violentas, seja nas redes, seja nos veículos de comunicação: “A imagem de dor se perde porque é descontextualizada em um mar de consumo”. E isso se completa com: “E a falta de contexto se junta à falta de uma alfabetização visual”. Aí para mim se sintetiza um dos dramas cruciais do momento atual, isto é, a necessidade urgente de fazer com que fatos ou imagens sejam vistos de forma ampla, em toda complexidade que estão imbricados e não apenas na superfície.

Assista a “A política da imagem” – Alfredo Jaar – Festival ZUM 2020 clicando aqui.

Mundo em disputa

A artista Rosana Paulino e o ambientalista e líder indígena Ailton Krenak discutiram os limites profundos da visão de mundo vinculada a um suposto projeto civilizatório, que só aceita os iguais e que relega o “outro” à margem

Por Maria Hirszman

Rosana Paulino, Ailton Krenak e João Souza (abaixo) na live. Foto: Reprodução

Ailton Krenak e Rosana Paulino estão entre os pensadores de maior destaque na cena brasileira, sobretudo nestes tempos pandêmicos de tantos encontros virtuais. Se isoladamente suas contribuições já são fundamentais acerca dos imensos desafios enfrentados pelas comunidades indígena e afro-brasileira, quando abordam em conjunto aspectos fundamentais da vida contemporânea, como a preservação ambiental, a desigualdade social e a permanente exclusão a que vem sendo submetidos há séculos, adquirem ainda maior densidade e agudez quando somadas num diálogo fértil de ideias.

“No planeta, 80% ou 90% são excluídos, estão disputando uma outra narrativa sobre o mundo”, afirmou Krenak no encontro promovido entre eles em junho do ano passado pela Organização Ashoka. São dados que explicitam a perversidade de uma via cada vez mais excludente, de radicalização da lógica neoliberal que vem se impondo sobre o mundo e, em particular, sobre o Brasil, onde o chefe de Estado reage às milhares de mortes com um lamentável “e daí?!”. A desumanidade contida nessa reação serve de síntese para as análises de ambos, tornando evidentes as constatações tanto de Krenak como de Paulino sobre os limites profundos da visão de mundo vinculada a um suposto projeto civilizatório, que só aceita os iguais e que relega o “outro” à margem.

Há anos debruçando-se sobre a intersecção entre arte e ciência, trabalhando em cima das construções promovidas pelo racismo científico, Rosana Paulino deixa evidente – tanto no discurso como eu seu trabalho artístico – como esse modelo de ordenação das cidades, da natureza, do conhecimento é destrutivo e excludente. É preciso incorporar novos saberes: “os grupos que ficaram à margem têm tecnologias que não foram reconhecidas por essa ordenação de mundo”, denuncia, revelando a urgente necessidade de rever essa lógica supostamente humanista. “Quando alguém afirma o princípio de urbanidade, de colonização de mundo, ele destrói meu mundo. Não me inclui. Só me integro não sendo mais eu mesmo”, reitera Krenak, mostrando de forma cristalina os limites de discursos que no fundo oferecem apenas soluções ilusórias e estéreis, como as paliativas ideias de superação, integração, empreendimento, aculturação e mérito, sempre baseadas na figura do indivíduo e que atendem aos desejos de manutenção do status quo para poucos.

Remando contra essa postura conformista, Krenak e Paulino pregam a necessidade real e urgente de entender os campos de disputa e de persistir no esforço de imaginar e construir novos mundos possíveis, sem se render à tendência globalizante do capital financeiro. Não há tempo a perder nem espaço para a acomodação. “Não posso acreditar que não há mais o que fazer. Meus ancestrais chegaram num porão de navio”, rebate Rosana.

Assista a “Dimensões da humanidade: de quem falamos? – Série de Lives Um Mundo de Pessoas que Transformam” clicando aqui.

Pontes históricas

Jota Mombaça, Ana Adamović, Nina Beier e Vincent Meessen falam sobre seus trabalhos que reforçam o foco da 34ª Bienal nas persistências históricas

Por Maria Hirszman

Vídeo com o Sino de Ouro Preto na mostra Vento, parte da 34ª Bienal de SP. Foto: Levi Fanan/ Fundação Bienal de São Paulo

Em seu terceiro encontro da série “As vozes dos artistas”, a 34ª edição da Bienal de São Paulo aprofundou as relações entre as obras de quatro dos convidados a participarem da mostra com um objeto impregnado de significados metafóricos e simbólicos: o sino de Ouro Preto. Instalado desde o século XVIII na Capela do Padre Faria, na então cidade de Vila Rica, esse instrumento condensa em si uma série de histórias. Está imbuído de vivências e significados que estabelecem uma relação direta com a proposta mais geral da mostra, Faz escuro mas eu canto, e torna-se um de seus principais enunciados, ao estabelecer pontes entre dois momentos históricos distintos, de grande intensidade na história do país. O primeiro deles é a noite em que Tiradentes foi executado, em 1792. Num gesto de rebeldia e resistência, o sino foi tocado na madrugada, apesar da proibição real. Esse desafio é ressignificado séculos depois quando o instrumento é levado de Minas Gerais para Brasília com o intuito de consagrar com seu som a nova capital, inaugurada em 1960 e num momento de reafirmação de Tiradentes como herói nacional, no mesmo 21 de abril. “Ele funciona como uma espécie de diapasão que nos ajuda a afinar um instrumento”, explica o curador Jacopo Crivelli Visconti na introdução da live.

A persistência histórica, as repetições, reiterações e questionamentos de momentos potentes do passado em releituras do presente estão entre as linhas de maior força dentro do projeto da Bienal e está presente no trabalho de vários dos artistas selecionados, dentre os quais se destacam Jota Mombaça, Ana Adamović, Nina Beier e Vincent Meessen, todos presentes na apresentação online realizada no último dia 25 de fevereiro e que será disponibilizada no canal do Youtube da instituição. Mombaça serviu como uma espécie de fio condutor do programa, comentando aspectos centrais de sua reflexão como o papel fundamental da imaginação como forma de nos levar “para além do realismo dentro do qual estamos confinados”, o desejo de romper com a representação, de extrapolar, rasurar as imagens de forma a permitir experiências mais radicais com a realidade. Esta questão, segundo ela, é central no trabalho 2021, que deve apresentar em parceria com Musa Michelle Mattiuzzi na 34ª Bienal.

Os outros artistas presentes na live, por meio de vídeos gravados antecipadamente, também se debruçam, com intensidades e abordagens diferentes, porém complementares, sobre questões como apagamento histórico, manipulação de imagens e símbolos, revisitando pontos nevrálgicos da história que podem inicialmente ser mais restritos a uma determinada cultura ou momento, mas que acabam por reverberar com grande intensidade e brilho. É interessante notar também que a maioria desses trabalhos não se atém ao universo restrito das artes visuais, mas lida de forma intensa com a performance, o vídeo e a música. Dois Corais, da sérvia Ana Adamović, parte de uma fotografia antiga, presente em um álbum dedicado a Tito (líder da ex-Iugoslávia), na qual se vêem crianças surdas cantando. Algo paradoxal, que remete à violência ou desejo de forçar a vocalização em busca de uma certa normalidade, que Adamović problematiza ao recriar a cena, desta vez pedindo aos participantes do coro que cantem por meio de linguagem de sinais. Surpreende a musicalidade e diversidade no gesto desses voluntários.

Assista à live da Bienal de São Paulo clicando aqui.