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MAM-SP lança projeto educativo no jogo Minecraft

Área externa do MAM SP recriada no Minecraft. Foto: Leonardo Sang / Divulgação.
Área externa do MAM SP recriada no Minecraft. Foto: Leonardo Sang / Divulgação.

Em parceria com a Microsoft e a Agência Africa, o MAM acaba de ser transportado para dentro do jogo Minecraft. No espaço da versão educativa do videogame – direcionada a escolas e estudantes -, é possível realizar visitas à uma réplica do museu, construir ou reconstruir obras de arte e aprender sobre a história da arte brasileira por meio de atividades lúdicas e virtuais.

De cara, a experiência já é interessante pela observação de como cada elemento do museu foi traduzido para a linguagem do Minecraft, um dos videogames mais populares da atualidade, caracterizado como uma espécie de lego digital que permite ao jogador construir ambientes e mundos virtuais.

Para a parceria com o MAM, além da recriação da sede e do Jardim de Esculturas do museu, a plataforma ainda reúne propostas de aulas com recortes temáticos a partir das obras de seu acervo; por enquanto já estão disponíveis quatro propostas. Em uma delas, por exemplo, é sugerido ao educador que leve a sua turma para um passeio no Jardim de Esculturas, possibilitando a abordagem de questões ligadas à interação do público com a obra fora do museu, ao feitio da peça (já que elas ficam expostas ao ar livre) e sua preservação. Depois da troca de ideias, os alunos podem construir suas próprias esculturas e apresentá-las aos seus colegas, refletindo sobre sua criação e relacionando com as questões levantadas anteriormente.

Vale notar também que, na versão educativa do Minecraft, professores, ou outro adulto responsável pela condução do jogo, têm controle do que os jogadores fazem e podem incluir blocos para limitar a área de atuação no mapa, não só demarcando os limites do território, mas também indicando onde os jogadores poderão construir ou não. Outra ferramenta do game é a lousa, que trará as orientações para realização das atividades e informações e links ao site do MAM sobre as obras de arte tratadas na aula. “A parceria dialoga com a missão do MAM em investir na formação cultural, educacional e artística da sociedade”, afirma Mariana Guarini Berenguer, presidente do museu, ao ressaltar que a arte é um dos elementos fundamentais para a construção da cidadania.

Para a estreia do projeto, como uma forma de mostrar esse mundo virtual, foi realizado um filme dentro do game, com criação de um avatar de Lázaro Ramos, com locução do próprio ator. A filmagem ficou sob a direção de Rog Souza, da Tropical – produtora parceira de MAM no Minecraft – e a documentação fotográfica do jogo foi feita por Leonardo Sang, criador do projeto VRP (Virtual Reality Photography), que aplica técnicas fotográficas aos espaços virtuais do jogo.

Primeira fase do projeto

Em sua primeira fase, o jogo trará obras do acervo do MAM-SP que dialogam formalmente com as formas geométricas, uma das principais características do Minecraft. 

O recorte enfatiza a arte construtiva e geométrica, seja como desdobramento, ruptura ou reinvenção desse estilo que surgiu no Brasil nos anos 1950 e que faz parte da história do MAM. Em 1952, o museu foi palco do lançamento do Manifesto Ruptura, encabeçado por alguns dos maiores nomes da arte concreta brasileira, como Geraldo de Barros, Lothar Charoux, Luiz Sacilotto e Waldemar Cordeiro. O movimento defendia uma renovação das artes visuais e a vertente construtiva contra a figuração latente na época. O evento foi um marco fundamental para a arte concreta brasileira e sua posterior “dissidência”, a arte neoconcreta. 

Por hora, o ambiente virtual do MAM no Minecraft vai destacar 18 obras de artistas contemporâneos que fizeram parte dos movimentos concreto e neoconcreto ou que beberam dessas fontes. São trabalhos emblemáticos de Antônio Lizárraga, Athos Bulcão, Amilcar de Castro, Ary Perez e Denise Milan, Emanoel Araújo, Elisa Bracher, Franz Weissman, Guto Lacaz, Hélio Oiticica, Luiz Sacilotto, Mônica Nador e Renato Imbroisi, Sérgio Sister, Sérgio Camargo e Paulo Pasta.

Paralisia da Secretaria da Cultura deve ter resultado trágico para o setor cultural do país, diz Cris Olivieri

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A advogada Cris Olivieri. Foto: Divulgação.

A morosidade, quase paralisação, da atuação da Secretaria Especial da Cultura na implementação dos procedimentos da Lei de Incentivo à Cultura (LIC) – antiga Lei Rouanet -, impedindo inclusive a movimentação de recursos já captados por projetos aprovados, deve ter um resultado trágico para o setor cultural no Brasil. Dentro de um contexto extremamente crítico por conta da pandemia de coronavírus, a paralisia do governo federal – somada a seus ataques à classe artística e flertes com a censura – já está impactando diretamente a vida de artistas, produtores culturais e instituições ao redor do país.      

Quem faz a constatação é a advogada Cris Olivieri, especialista em mercado e políticas culturais e diretora do Olivieri Associados, escritório especializado em consultoria jurídica para cultura e entretenimento. “Não tenho a menor dúvida de que muitas instituições vão morrer por isso. Eu sou da geração em que se falava do engenheiro que ‘virou suco’. E agora teremos o artista que ‘virou suco’, o produtor cultural que vai ‘virar pão’”, diz Olivieri. Para ela, o argumento da Secretaria – hoje comandada por Mario Frias – de que a desaceleração na análise de projetos se deve à pressão do Tribunal de Contas da União (TCU) pode ter base real, mas não justifica a situação. “O papel dele como secretário é fazer com que a política cultural funcione, que esse mecanismo seja realizado. Se ele não o fizer, será responsabilizado por omissão.” O fato, segundo ela, é que nada que está ligado a uma melhor formação do ser humano, como educação, esporte e cultura, é prioridade para este governo.    

Dentro de um quadro tão conturbado e ameaçador, a advogada comemora a implementação da Lei Aldir Blanc – realizada a partir de proposta do Congresso – que, além de distribuir R$ 3 bilhões para a cultura, utilizou um formato inovador para o país, no qual a união repassa as verbas para Estados e município e estes, por sua vez, repassam para as pessoas e projetos contemplados. “Essa lei deixa essa memória de que os gestores mais próximos são mais ágeis, sabem quem precisa mais de apoio. Assim, foi criado esse sistema nacional de cultura que há anos vem sendo discutido e agora tem seus canais prontos. Então é uma ação vencedora e o ideal seria que no futuro tivéssemos uma espécie de ‘fundo eterno’ Aldir Blanc para o fomento à cultura no país.” 

Como possíveis caminhos para os agentes culturais, Olivieri aponta os editais e leis de incentivo municipais e estaduais, alguns editais privados e até mesmo a filantropia – que deve diminuir no momento em que a cesta básica é algo cada vez mais emergencial. A advogada indica também a existência de fundos internacionais voltados à cultura, que devem olhar com mais atenção para o Brasil neste contexto crítico e que podem ser uma alternativa especialmente para instituições. E, mesmo com as dificuldades, Olivieri sugere que não se abra mão da lei federal: “É preciso continuar pleiteando e tentando convencer o governo de que a cultura é importante. E se ele não entende a parte mais lúdica, vamos tentar fazê-lo entender a parte social e econômica”, diz ela sobre um setor que representa 2,6% do PIB do país e gera mais de 1 milhão de empregos. Leia abaixo a íntegra da conversa.

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Exposição montada na Pinacoteca Diógenes Duarte Paes, em Jundiaí, com recursos da Lei Aldir Blanc. Foto: Divulgação

ARTE! – Como você mesma tem alertado, estamos acompanhando nos últimos tempos uma paralisia no setor cultural, especialmente por conta de uma falta de ação do governo federal. Então eu gostaria de começar perguntando o que está acontecendo e quais os principais motivos que estão gerando esta paralisia.

As ações culturais no Brasil sempre foram majoritariamente custeadas pelo incentivo fiscal federal – a Lei de Incentivo à Cultura (LIC), antiga Lei Rouanet. Dentro disso, existe já um processo estabelecido e conhecido pelas empresas, produtores e instituições culturais sobre como esse financiamento funciona. E há toda uma construção de políticas, programas, projetos e projetos de inclusão feitos com esse tipo de financiamento. O que aconteceu mais radicalmente a partir do final de dezembro foi uma morosidade, quase uma paralisação, da atuação da Secretaria Especial da Cultura, não só na aprovação de projetos novos – e o impacto disso veremos mais no final do ano, quando esses projetos não existirem para fazer captação -, mas especialmente no não encaminhamento dos projetos que já captaram. Antigamente era um procedimento já azeitado, que passava pela avaliação técnica e a partir daí entrava nas reuniões das comissões para aprovação. Mas isso passou a não acontecer. Então temos uma grande quantidade de projetos que já captaram recursos, incluindo muitos planos anuais com atividades que já começaram em janeiro, e que não conseguem acessar esse dinheiro que foi captado porque os prazos de homologação, liberação de captação e transferência de recursos estão todos atropelados, tudo meio parado.          

ARTE! – O governo argumenta que há uma imposição do Tribunal de Contas da União (TCU) para a redução de análise de projetos e fala também das dificuldades por conta do lockdown. Isso justificaria essa paralisação?

Existe realmente um processo de discussão da análise da prestação de contas pela secretária – podemos falar mesmo de quando era ministério, porque isso é um processo antigo – e o Tribunal de Contas vem, com razão, pressionando os gestores para que eles tomem uma providência, para que não se tenha esse passivo de prestação de contas tão grande e para que essas análises sejam feitas. No passado, já houve ano em que foi analisada uma única prestação de contas, o que é uma loucura. E já se tentou vários procedimentos. Acho que o mais eficiente, que é o que está sendo adotado nos últimos quatro anos, é o uso da tecnologia, a digitalização do processo todo, que permite cruzamento de informação, conexão direta com o banco, controle de contas etc. Então o TCU está pressionando o secretário atual [Mario Frias], assim como pressionou os anteriores, neste sentido. Não se pode aprovar um monte de projetos e não dar conta da prestação de contas. Dito isso, o argumento de que então só se pode aprovar uma quantidade bem menor de projetos não está correta. Porque o secretário é responsabilizado pelo TCU se ele não der conta das análises de prestação de contas, mas ele também será responsabilizado se ele não der conta de fazer acontecer a política cultural que existe, orientada por uma legislação que está implantada. Porque o papel dele como secretário é fazer com que a política cultural funcione, que esse mecanismo seja realizado. Então é uma escolha que não olha o todo, querer apenas se livrar do TCU. E aí ele vai ser responsabilizado por omissão.    

ARTE! – E para além dessa argumentação técnica, é impossível não pensar na relação quase de confronto que este governo estabeleceu com a classe artística, com o setor cultural. Isso se vê nos discursos, na diminuição de patrocínios, no rebaixamento do Ministério da Cultura para Secretaria, nas tentativas de cortes no Sistema S, entre outras coisas. O que está acontecendo, portanto, não parece ser parte de um “projeto anti-cultura”, digamos assim?

Acho que existem duas coisas. Primeiro a demonização da Lei Rouanet, que não começou com esse governo, vem já inclusive do governo do PT. Porque do ponto de vista do ministro, ou hoje do secretário, há um sentimento de perda na relação com o incentivo fiscal. Porque na Lei Rouanet, neste ano por exemplo, você tem uma renúncia de cerca de R$ 1,4 bilhão, enquanto a Secretaria não chega a ter R$ 400 milhões de orçamento ao ano – que é gasto na manutenção. Então ao gestor sobra pouco espaço para criar e implementar políticas públicas. E às vezes ele se torna um oponente do incentivo fiscal porque acha que aquele dinheiro deveria ir para ele. Mas não é isso que ocorre, porque são duas coisas distintas, a verba para a cultura e o incentivo fiscal. Então há alguns anos começou essa demonização, com argumentos totalmente equivocados. Esse dinheiro não vai direto para o artista, como dizem quando falam da “mamata” – existe inclusive a limitação de cachês em R$ 30 mil. Ele, na verdade, possibilitou a implementação de uma série de museus, centros culturais que usam a arte para inclusão, instituições sem fins lucrativos e assim por diante. E essa percepção equivocada começou antes, mas persistiu na campanha eleitoral, com ataques aos artistas. Para além disso, esse não é um governo especialmente humanista. Tudo que está ligado a uma melhor formação do ser humano, como educação, esporte e cultura, nada disso é prioridade.

ARTE! – É uma situação sem paralelos na história recente do país?

Eu acho que até a chegada deste governo existia dentro do Ministério, ou Secretaria, um procedimento de azeitar mais as coisas, para que todos os procedimentos ficassem mais rápidos e mais transparentes. E inclusive quando você digitaliza tudo, fica também mais transparente. E estávamos nesse caminho. O que acontece agora, num sentido contrário ao da transparência e democratização, é que além da paralisação, a Comissão Nacional de Incentivo à Cultura não foi renomeada – ela é formada por integrantes da sociedade civil e junto à Secretaria homologa os projetos. O secretário foi alertado diversas vezes de que é preciso fazer um edital para a nomeação da nova comissão, mas ele não o fez. E a notícia que se tem é de que o secretário disse que agora vai aprovar por referendo. Ou seja, que não vai existir essa comissão, que sempre trouxe um balanço, uma inteligência, a experiência de pessoas que trabalham na área, e que é o secretário quem vai aprovar ou não os projetos.

ARTE! – Com o perigo de se tornar algo totalmente arbitrário…     

É um perigo como conceito, independentemente de qualquer governo, fosse ele de esquerda, direita ou centro. Quanto mais as decisões são colegiadas, menor o risco de erros, maior a chance de minimizar qualquer tipo de privilégio ou dirigismo. 

ARTE! – Neste sentido, tivemos o veto ao projeto do plano anual do Instituto Vladimir Herzog na Lei de Incentivo à Cultura pela primeira vez em dez anos. Podemos considerar este um caso de censura?

É o que tudo indica… Porque, justamente, se você pensar que o instituto tem o seu plano anual aprovado já há mais de dez anos, e é uma instituição que trabalha com humanidades – jornalismo, exposições, materiais para escolas, livros -, sempre vinculada aos direitos individuais, não teria motivo para não ser aprovado. E, na verdade, já estava aprovado quando de repente se voltou atrás. Então existe aí uma coisa esquisita. 

ARTE! – Falando agora sob uma ótima mais econômica, você mostrou em texto recente publicado na revista Quatro Cinco Um que as atividades ligadas à produção cultural, para além de sua importância por si só, são de grande relevância para a economia, representando 2,6% do PIB e gerando mais de 1 milhão de empregos. Nem mesmo este ponto de vista tem sido suficiente para convencer o governo e setores da sociedade da importância da cultura?

Já está demonstrada toda a importância da economia criativa e da produção cultural no país. É muito triste imaginar que o Brasil, que tem a criatividade no seu DNA, tenha tão poucas políticas para reforçar isso. Porque, além de tudo, é uma atividade limpa, de fácil exportação e que divulga o país como um todo. Não é à toa que os EUA investiram tanto no cinema, com a difusão do american way of life, assim como a Inglaterra nos últimos 15 anos tem investido assustadoramente na economia criativa. Porque qualifica as pessoas, tem um impacto grande e rápido na economia – por ser muito vinculado à área de serviços -, não polui. Ou seja, há uma série de vantagens que não estão sendo consideradas nessas decisões de paralisia das atividades. Não tenho a menor dúvida de que muitas instituições vão morrer por isso. Eu sou da geração que se falava do engenheiro que “virou suco”. E agora a gente vai ter artista que “virou suco”, vai ter muito produtor cultural que vai virar pão… Que é que muitos estão fazendo para sobreviver: pães, comidas. Porque não conseguem trabalhar em suas áreas nessa época em que estamos todos em isolamento e os recursos que existem estão paralisados. Inclusive a captação pela LIC no final do ano passado foi inesperada, positivamente, porque acho que as empresas já têm isso no seu DNA. Vimos isso com vários clientes do nosso escritório, que queriam fazer o dinheiro chegar às instituições. E esse movimento, ao invés de estimulado, está sendo paralisado, o que não faz sentido. Inclusive, se você pensar de uma maneira mais genérica, se esse dinheiro chega às mãos das pessoas é um “problema” a menos para o governo. É menos gente precisando de apoio emergencial, por exemplo, pois as pessoas continuam com suas atividades. Represar esse dinheiro não traz nenhuma vantagem.        

ARTE! – O principal auxílio para a cultura que tivemos durante este período de pandemia foi a Lei Aldir Blanc, que liberou R$ 3 bilhões de reais para Estados e municípios. Ele está sendo eficiente?

Foi um ganho muito grande para o segmento. É uma lei que foi proposta e aprovada pelo Congresso, ou seja, não tem uma relação direta com o poder executivo. O governo teve que encarar, e inclusive burocratizou coisas que não precisavam. Mas foi muito positiva essa lei, inclusive pensando no histórico que ela vai deixar. Porque o formato utilizado foi muito inovador para o Brasil. Não foi um dinheiro distribuído diretamente pela União para os projetos, mas distribuído para os Estados e municípios. Assim se criou esse sistema nacional de cultura que há anos vem sendo discutido e agora tem seus canais prontos. É uma grande evolução, porque é muito mais fácil para o secretário da cultura de São Paulo criar formas de distribuir esse dinheiro dentro da cidade do que um cara lá em Brasília, que não conhece a realidade local. E falo de São Paulo ou de qualquer outra cidade. Então é uma ação vencedora e o ideal seria que no futuro tivéssemos uma espécie de “fundo eterno” Aldir Blanc para o fomento à cultura no país. 

ARTE! – Falando sobre um caso específico do Estado de São Paulo, o ProAC ICMS foi substituído, em janeiro deste ano, pelo ProAC Expresso Direto. Isso pegou muita gente de surpresa e foi criticado por agentes do setor cultural. Como você vê essa mudança?

Nós vemos com bastante surpresa, tentando encarar como algo que vai ser revertido para os próximos anos. Existem conversas sendo feitas com o governo do Estado para que se entenda que essa mudança não é o melhor caminho. O que parece é que eles precisavam acertar um pouco o caixa tributário e fizeram uma conta que, entre aspas, seria a mesma coisa. Como se trocar R$ 100 milhões de renúncia fiscal por R$ 100 milhões em um edital fosse igual, mas não é. Porque no ProAC ICMS, assim como na Lei Rouanet, você já tinha um processo todo estabelecido. Várias instituições, inclusive no interior do estado – com programas estabelecidos de inclusão, projetos de arte-educação, prêmios etc. – já tinham patrocinador e anos sendo realizados. Com o ProAC Direto não se sabe se terão os recursos. E existem vários projetos que foram aprovados no final do ano passado que já haviam captado uma porcentagem de sua verba e tinham o compromisso de captar o restante esse ano. Enfim, coisas que ficaram pelo caminho. Então eu imagino que o ProAC Direto vai tentar fazer um tipo de compensação – existe a promessa de realização de um edital para dar conta do mesmo tipo de projeto que era incluído no ProAC ICMS -, mas a gente entende que é preciso voltar a ser como era, porque quanto mais diverso for o financiamento para a cultura, melhor. Então o ideal é que tenha dinheiro público, incentivo fiscal, bilheteria, doação de particulares e assim por diante. A gente não pode correr o risco de perder o apoio das empresas. E por isso já existe uma comissão tentando negociar para que essa mudança seja revertida

ARTE! – Por fim, pensando neste contexto todo de que falamos, quais são as alternativas que você enxerga para produtores culturais, artistas e instituições no momento? Ou seja, entre editais, prêmios, setor privado, políticas de Estados e prefeituras, aonde é possível buscar apoio e financiamento?

Nós temos visto que secretários de cultura de muitas cidades têm tido um papel importante. Se nós pegarmos especificamente o caso de São Paulo, o dinheiro da Lei Aldir Blanc foi distribuído em outubro. A Secretaria teve esse foco de fazer a coisa acontecer de maneira muito rápida. Então acho que estamos aprendendo com a pandemia, e essa lei deixa essa memória, que os gestores mais próximos são mais ágeis, sabem quem precisa mais de apoio. E temos visto cidades – posso citar também Niterói, Fortaleza, São Luís, entre outras – que logo no início da pandemia já saíram com editais importantes, que ainda estão acontecendo. Então esse é um caminho. Além dos editais públicos, existem também os privados, que têm funcionado, mesmo que com valores menores. Quanto aos incentivos fiscais, existem os municipais e existem os estaduais de ICMS – que, tirando São Paulo, seguem ativos. Há também o caminho das doações, da filantropia, mas isso eu não sei quanto tempo vai durar. Porque no momento a cesta básica é algo emergencial, e me parece provável que as pessoas doem mais para comida do que para os projetos culturais. E mesmo que a lei federal de incentivo à cultura esteja atravessando esse momento difícil, acho que é preciso continuar pleiteando e tentando convencer o governo de que isso é importante. Agora, nós trabalhamos com arte. E a arte incomoda – não só esse governo -, isso faz parte. Mas, no caso, esse é também um governo pouco sutil… E arte tem sutileza, poesia, mas esse governo não tem muita poesia, não vê utilidade nisso. Enfim, é difícil, mas é preciso seguir tentando. E é aquilo que falamos, de que se o governo não entende a parte mais lúdica, vamos tentar fazê-lo entender a parte social e econômica. Há uma série de instituições culturais focadas na inclusão da criança e do adolescente e não é possível que isso não seja prioridade para qualquer governo. Existem instituições que garantem a alimentação dessas pessoas…     

Por fim, existe um outro caminho, especialmente para quem está estruturado, como instituições, que é um dinheiro internacional, dos fundos internacionais. Para conseguir acessar esse tipo de financiamento é preciso um bom planejamento, pois há uma série de regras, formulários etc., mas é um apoio que existe e que provavelmente virá mais para o Brasil. Porque quando o Brasil estava “bombando” começou a se pensar que nós não precisávamos mais desse apoio. Mas agora voltamos a ser vistos como um país que precisa. Então UNESCO, Ford Foundation, várias instituições voltadas para a América Latina, entre outras, podem ser uma forma de ajudar a atravessar esses tempos difíceis.        

Mostra comemora 50 anos da Fundação Edson Queiroz com obras antigas e contemporâneas

"Tribo da Etiópia", da série “Gênesis” de Sebastião Salgado. Foto: Acervo Fundação Edson Queiroz

O que há em comum entre as obras de Salvador Dalí e Xico Stockinger? Quais critérios uniriam os trabalhos de Adriana Varejão e Sérgio Helle? Em que contexto as pinturas de Vicente Leite e as fotografias de Chico Albuquerque estariam lado a lado? Conectando trabalhos emblemáticos do século 17 à arte contemporânea, 50 Duetos – 50 anos da Fundação Edson Queiroz busca estabelecer uma outra reflexão sobre a história da arte. Com curadoria de Denise Mattar, a mostra traz uma disposição inédita de obras de importantes artistas que integram o acervo da Fundação, unindo-as em pares a partir de relações diversas – desde paralelismo visuais, afinidades temáticas e eletivas, até oposições.

“Minha proposta curatorial tem muito a ver com o mundo atual onde as coisas vão se conectando de formas diferentes, onde as pessoas têm necessidade de uma visualização mais rápida. Vamos contar uma história da arte, só que, em vez de contar de forma cronológica, mostraremos uma história do pensamento da arte”, explica Mattar. Através de vídeos, galerias de fotos e textos, a exposição que comemora os 50 anos da Fundação Edson Queiroz reúne mais de 100 obras em um ambiente virtual, elencando-as em duetos. Dentre os artistas que a compõem estão Antonio Bandeira, Anita Malfatti, Almeida Júnior, Bonaventura Peeters, Cícero Dias, Félix-Émile Taunay, Irmãos Campana, Frans Krajcberg, Geraldo de Barros, Leda Catunda, León Ferrari, Mariana Palma, Maciej Babinski, Mira Schendel, Raoul Dufy, Sebastião Salgado, Tarsila do Amaral e Tomie Ohtake.

O passeio virtual, acompanhados da voz e das ideias da curadora, acontece através do site da Universidade de Fortaleza – que sedia a Fundação Edson Queiroz. Num caminhar de sala em sala, somos apresentados aos conceitos que norteiam 50 duetos e às relações que uniram os diferentes trabalhos em seus pares. Com a densidade dos autorretratos de Iberê Camargo e Ismael Nery; a melancolia expressionista que conecta Lasar Segall a Vik Muniz; a semelhança que une as mulheres retratadas por Belmiro de Almeida e João Câmara; as festas populares brasileiras sob olhar de Djanira e Portinari, entre tantas outas conexões – algumas mais improváveis do que outras -, a exposição oferece ao espectador a oportunidade de refletir sobre o diálogo entre obras e artistas e sobre a “essência da criação”, como sugere Mattar em seu texto curatorial. Para Lenise Queiroz, presidente da Fundação, é assim que 50 duetos “dá seu recado: liberta a história clássica da arte de enquadramentos formais ou conceitos fechados”. Queiroz acredita que quando os padrões artísticos e gostos estéticos de diferentes épocas se enamoram na mostra, revelam o quão “elástico e múltiplo é o potencial artístico em seu modus operandi de esculpir o belo para fazer pensar”.

A experiência do público é ainda aprofundada com áudios, vídeos, músicas e depoimentos. Em decorrência da pandemia de coronavírus, os duetos atualmente podem apenas ser contemplados no site da Fundação Edson Queiroz | Unifor. Porém, os organizadores afirmam a intenção de abrir a exposição ao público no espaço físico da instituição.

Serviço
50 Duetos – 50 anos da Fundação Edson Queiroz
Local: Site da Fundação Edson Queiroz | Unifor (acesse a exposição clicando aqui).
Curadoria: Denise Mattar
Período expositivo: até 23 de dezembro

“A tempestade que se aproxima”: Jonas Bendiksen denuncia os danos do aquecimento global em Bangladesh

Em razão da Cúpula do Clima 2021, relembramos seu trabalho
Bangladesh. Padmapukur. 2009. No 'char' (ilha de silte) de Padmapukur, no delta do Ganges. O furacão Aila destruiu os diques, causando inundações diárias nas comunidades. Legenda e foto de Jonas Bendiksen. Todos os direitos reservados a ele e à revista National Geographic.

Na ocorrência da Reunião de Chefes de Estado da Cúpula do Clima (o Leaders Summit on Climate, que começa hoje, 22, e termina na sexta-feira, 23) e do Dia da Terra, revisitamos o trabalho fotográfico A tempestade que se aproxima, de Jonas Bendiksen, publicado junto a reportagem do jornalista Don Belt na revista National Geographic, em maio de 2011. Dois anos antes da publicação, em 2009, a vila de Munshiganj (com 35 mil habitantes na costa sudoeste da capital Dhaka) havia sido atingida pelo Ciclone Aila. Seus ventos de 70 milhas por hora enviaram uma onda de tempestade em direção à costa e pegou os moradores daquela área completamente desavisados. A recuperação desse desastre também é mostrada por Bendiksen em alguns dos seus registros.

Bangladesh é uma das nações mais densamente povoadas do planeta. “Ela tem mais habitantes do que a grande Rússia geograficamente”, indica Belt. “Então imagine Bangladesh no ano de 2050. A população provavelmente terá aumentado para 220 milhões e uma boa parte de sua massa de terra atual poderá estar permanentemente debaixo d’água”, sugere o jornalista. O cenário ao qual ele se refere é baseado em duas projeções convergentes: o crescimento populacional que, apesar de uma queda acentuada na fertilidade, continuará a produzir milhões de bebês nas próximas décadas, e um possível aumento no nível do mar até 2100, como resultado da mudança climática. “Tal cenário poderia significar que 10 a 30 milhões de pessoas ao longo da costa sul seriam deslocadas, forçando Bangladesh a se aglomerar ainda mais ou então a fugir do país como refugiados do clima – um grupo previsto para aumentar para cerca de 250 milhões em todo o mundo em meados do século 21, muitos de países pobres e de baixa altitude”, ele explica.

Desde o Ciclone Aila, em Bangladesh, diversas adaptações com tecnologias de baixo custo foram experimentadas. Tal movimento foi apoiado pelos governos dos países industrializados que participam nesta Cúpula do Clima, dez anos depois, e cujas emissões de gases de efeito estufa são, em grande parte, responsáveis pela mudança climática que está causando a elevação dos mares.

Cúpula do Clima 2021 e presença brasileira

A Cúpula do Clima age como preliminar à COP26; ao reunir representantes de 40 países em reuniões virtuais, a intenção da Cúpula é instigar os países a traçarem metas mais ambiciosas em tempo para a 26ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança Climática, que acontece em novembro deste ano, no Reino Unido.

Tendo saído do status de referência nas negociações climáticas para o de pária, o Brasil participa do evento em uma situação desconfortável, agravada pela gestão de Ricardo Salles no Ministério do Meio Ambiente. Um dia antes da Cúpula dar a largada, nas redes sociais houve uma manifestação numerosa que pedia a retirada de Salles de seu cargo utilizando a hashtag #ForaSalles.

Como lembra Guilherme Castellar em reportagem para o portal UOL, em 2020, o desmatamento na Amazônia foi três vezes superior à meta proposta pelo Brasil para a Convenção do Clima de 2009. “Sob comando de Salles, o Ministério do Meio Ambiente perdeu poder fiscalizador para evitar desmatamento, invasões de áreas indígenas e mineração ilegal”, escreve. E ele lembra que “há uma semana da Cúpula, a Polícia Federal levantou suspeitas de que Salles pode ter prejudicado uma investigação que terminou com a maior apreensão de madeira na Amazônia, no final de 2020. Um dia depois de enviar a notícia-crime ao Supremo Tribunal Federal, no dia 14, o superintendente da PF no Amazonas, o delegado Alexandre Saraiva, foi afastado do cargo”.

Leia também: Fotógrafo sul-africano Gideon Mendel produz, ao redor do mundo, séries que denunciam as mudanças climáticas e seus impactos na sobrevivência humana, oferecendo uma espécie de testemunho aos seus retratados (clique aqui).

EAV Parque Lage lança inscrição para programas de formação gratuitos

O edifício do Parque Lage. Foto: Ana Lauriano/Flickr
O edifício do Parque Lage. Foto: Ana Lauriano/Flickr

Nesta segunda-feira, dia 19 de abril, a Escola de Artes Visuais do Parque Lage lançou o edital para a terceira edição do seu programa de formação gratuita. Os interessados podem se candidatar, até o dia 2 de maio, para dois cursos, cada um com 15 vagas e duração de oito meses. Pela primeira vez, os alunos contarão com uma bolsa mensal de permanência no valor de R$ 300.

O primeiro curso é voltado a pessoas interessadas em conhecer ou se aproximar do campo da arte, sem necessidade de experiência prévia. Nele, o programa será dividido em quatro módulos, com orientação e acompanhamento pedagógico de Camilla Rocha Campos e Natália Nichols, e terminará com a realização de um projeto coletivo. Já o segundo é voltado a artistas que já tenham trabalhos em desenvolvimento. Neste, a seleção será feita a partir da análise de portfólio dos interessados, que também devem preencher o formulário disponibilizado no edital. Ao final do curso, sob a orientação da professora Clarissa Diniz e do curador Ulisses Carrilho, os alunos realizarão um projeto de exposição como trabalho de conclusão.

Carrilho revela que os programas do EAV Parque Lage partem de “um anseio de pensar alternativas a uma ideia fixa de grade curricular… Pensar o quão adaptável pode ser esse currículo e quanto o sistema artístico, em franca transformação, está disponível para novos sujeitos e novas formas que os artistas cotidianamente inventam para o mundo”.

“Com nossos programas gratuitos de formação, queremos contribuir para ampliar o acesso ao campo da arte e da cultura, a partir de novos olhares, vivências e posturas”, destaca Yole Mendonça, diretora da EAV Parque Lage.

O currículo da edição 2021 dos programas foi elaborado levando em consideração as restrições sanitárias impostas pela pandemia, com aulas e práticas desenvolvidas para os meios virtuais.

Saiba mais no site do EAV Parque Lage. Acesse este link.
Leia também entrevista com Yole Mendonça, clique aqui.

“A Última Floresta” fecha o Festival É Tudo Verdade e retrata a força dos Yanomami

Cena de
Cena de "A Última Floresta". Foto: Pedro Márquez / Divulgação.

O Festival É Tudo Verdade 2021 acabou no domingo, 18 de abril, com o filme A Última Floresta, de Luiz Bolognesi. Antes de ser selecionado como filme de encerramento do maior festival de documentários da América Latina, a obra já havia composto a mostra Panorama da Berlinale deste ano, sendo a única produção brasileira no prestigiado festival alemão. Foi lá também que o filme anterior de Bolognesi, Ex-Pajé, recebeu a Menção Especial do júri para documentário original na edição de 2018. Entre eles, no entanto, há uma grande diferença – são quase obras dísticas. No primeiro, a história parte de Perpera, um pajé destituído de suas forças como resultado da interferência da igreja evangélica em sua tribo. Os Paiter Suruí, dos quais Perpera é integrante, são habitantes da terra indígena Sete de Setembro, em Rondônia, e viveram isolados até 1969. Perpera tinha 20 anos quando seu povo fez o primeiro contato com os brancos. Até aquele momento, ele era o seu pajé. Com entrada dos brancos e a condenação do xamanismo, Perpera viu-se obrigado a abandonar suas práticas ancestrais, interrompeu suas rezas e parou de tocar as flautas sagradas; como resultado disso, ele relata a cólera dos espíritos da floresta.

Enquanto filmava Ex-Pajé, o diretor lia A Queda do Céu, livro escrito a partir das palavras do líder Yanomami Davi Kopenawa, contadas – ou melhor, narradas – ao etnólogo e escritor Bruce Albert, com quem nutre uma longa amizade de mais de 40 anos. Ainda no feitio do filme, Bolognesi sentiu a necessidade de fazer um documentário que mostrasse o contrário de Ex-Pajé, ou seja, retratar um grupo indígena onde o xamã está na plenitude dos seus poderes. Na figura de Kopenawa, o diretor encontrou a chave para este projeto, decidindo incluí-lo no processo criativo do documentário, não apenas como uma personagem. Logo no começo de A Última Floresta sente-se uma estranheza que se manifesta na inquietação para saber como o filme consegue chegar tão perto e de forma tão orgânica. Parte desse feito vem de Kopenawa. Logo na pré-produção, o xamã manifestou a Bolognesi que não queria fazer um filme sobre vítimas, ou um clichê romântico. “Somos um povo muito forte, muito bonito e temos muita saúde”, teria dito, segundo contou o diretor em uma conferência à AFP.

A inclusão do xamã na construção do documentário forçou a equipe a pensar como a linguagem cinematográfica e o modo de vida Yanomami poderiam se polinizar no filme. Nesse sentido, uma barreira era o fato dos Yanomami não distinguirem sonhos do que nós reconhecemos como real. “Para eles, e a maioria dos povos indígenas do Brasil, não há uma separação entre o que é mundo real e o que é sonho. A gente separa, o lugar das lendas é guardado numa caixa como se fosse algo falso. Para eles, o que acontece de noite, durante o sonho, é verdadeiro. O índio pode ter passado a noite voando como uma coruja ou ter acordado muito cansado por ter fugido de um jaguar”, relata Bolognesi a Márcia Bechara, da RFI. “Na verdade, muitas das coisas que acontecem de dia, eles só compreendem à noite”, diz. Na mesma entrevista, Bolognesi detalha: “Decidimos então filmar de um modo indígena, filmando também sonhos e tratando num nível de realidade onde não se separa o que é realidade, o que é sonho, o que é magia, o que é mito, o que é documentário clássico, o que é documentário encenado. Na verdade, é tudo uma grande mistura, o que traduz a maneira com que eles lidam com isso”.

Davi Kopenawa em cena de "A Última Floresta". Foto: Divulgação.
Davi Kopenawa em cena de “A Última Floresta”. Foto: Pedro Márquez / Divulgação.

Na árdua luta para proteger suas tradições, mesmo sendo gravados, os Yanomami ainda retém aspectos dela para si. Na cerimônia mostrada em A Última Floresta, por exemplo, pode-se intuir o que ocorre enquanto o xamã se comunica com os espíritos, mas nada é revelado, não há legendas, é um momento em que o espectador compreende a ocorrência do ritual e se contenta em presenciá-lo através do filme. Sobre esse episódio, a João Pedro Soares, do Deutsche Welle, Bolognesi conta: “Eles falam e cantam o tempo todo. Eu perguntei ao Davi e a outros xamãs: vocês podem contar o que está sendo falado e cantado para legendarmos? Eles responderam que não, e o filme não tem essa legenda”. Ele complementa que “percebemos a força daquilo, mas não temos capacidade e nem nos é permitido compreender o que está sendo dito”. O diretor explica ainda que pelo que lhe foi contado pelos Yanomami, nos rituais, o xamã se torna uma espécie de antena. “O espírito fala em primeira pessoa, através da boca dele, com os outros xamãs e com a comunidade.”

O diretor atribui a conquista de poder gravar o rito, em A Última Floresta, ao relacionamento de confiança criado com Kopenawa e a tribo, um processo longo, de quatro semanas, com descobertas, interações, conflitos e encantamentos. A sensibilidade da equipe toda, muito pequena, de seis pessoas, é ressaltada, assim como é a escuta de Pedro Márquez, cinegrafista que também trabalhou em Ex-Pajé e cujo papel neste filme foi central.

Cena de "A Última Floresta". Foto: Pedro Márquez / Divulgação.
Cena de “A Última Floresta”. Foto: Pedro Márquez / Divulgação.

“Estávamos encantados com a realidade Yanomami: uma mulher fazendo um cesto, uma criança tomando um banho, um caçador em ação, alguém fazendo uma mochila de folha de palmeira – tudo tinha muita poesia. Não podíamos ser crus e despoetizar essa narrativa. Tínhamos algumas dificuldades”, relata Bolognesi a Camila Gonzatto, em entrevista para o Goethe Institut. “Buscamos fazer uma cinematografia que respeitasse a beleza da pele deles, que aproveitasse as palhetas beges das cestas, o colorido das redes. Sempre com o cuidado de não forçar a mão. Buscamos uma fotografia que restabelecesse a poiesis do ser Yanomami”, conta sobre o trabalho de Márquez. Junto disso, era necessário encarar a história “sem também o falso purismo: tem chinelo Havaianas, short, celular, vários elementos ali, mas profundamente conectados com o epicentro semântico da sua cultura, a expressão estética da sua cultura. Está tudo muito vivo ali”.

O que ameaça suas tradições é a entrada do homem branco. Há urgência; nunca não houve. Mas agora há demasiada urgência à medida que enfrentam a invasão, em terras Yanomami, de cerca de 20 mil garimpeiros ilegais, acusados de destruir florestas e poluir os rios com mercúrio. Mesmo preservadas – em teoria -, o presidente Jair Bolsonaro defende sua exploração, ao mesmo tempo que questiona a extensão das reservas Yanomami. Em curto prazo, o metal pesado utilizado na mineração ilegal mata os peixes e os animais que bebem a água do rio e ainda pode contaminar os indígenas que se banham naquelas águas. A longo prazo, a falta de alimento e a aparente saída fácil pelo garimpo tenta os jovens a abandonar suas tradições e abandonar a tribo, algo que apavora Kopenawa.

“Omana escondeu o minério embaixo da terra para ninguém mexer. Os brancos reviram a terra para tirar petróleo, ouro… E libertam os espíritos maléficos. A fumaça da doença se espalha. As doenças e o veneno podem aumentar. Omama nos deu esta floresta para cuidar.”

 

Para Gerardo Mosquera, é preciso libertar-se de uma identidade latino-americana reducionista

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O crítico e curador cubano Gerardo Mosquera. Foto: Divulgação
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O crítico de arte e curador cubano Gerardo Mosquera. Foto: Divulgação

É possível falar em arte latino-americana? Certamente sim, considerando a produção realizada nas várias regiões do território que chamamos de América Latina, com suas características históricas, culturais e sociais que por vezes se cruzam, por outras se distanciam. Mas é possível falar em “uma” arte latino-americana? De modo algum, segundo o crítico e curador cubano Gerardo Mosquera, já que um pensamento totalizante nega o espaço da pluralidade, dos contrastes, diferenças, conflitos e contradições.

“É claro que há uma identidade, não a nego, mas a vejo como um espaço aberto, em processo, relacional e sobretudo de autoconsciência”, afirma Mosquera, 75, cofundador da Bienal de Havana nos anos 1980, conselheiro de destacadas instituições como a Rijksakademie van Beeldende Kunsten (Amsterdam) e com importantes passagens pelo New Museum (Nova York) e pela PHotoEspaña (Madri), entre outros.

Se por um lado Mosquera reafirma a importância que teve a criação de uma ideia de “arte latino-americana” – como resultado de processos coloniais e pela necessidade de legitimação e contraposição aos centros hegemônicos mundiais -, por outro ele critica, de modo enfático, uma espécie de neurose que a cultura latino-americana teve em relação à identidade. “Não pode ser como uma prisão, algo redutor, pois isso significa negar a esta produção a possibilidade de acesso a uma arte universal”, afirma.

O crítico propõe, portanto, novos conceitos como a “liberação da identidade” e o “a partir daqui”, que seria um posicionamento posterior à antropofagia, no qual não é preciso mais mirar ao norte para captar e ressignificar referências, mas partir dos próprios contextos locais – sem a necessidade de estampá-los ou representá-los diretamente. “O contexto se torna um locus centrífugo, a partir de onde se constrói o ‘internacional’ sem constrangimentos, com um sentido tanto de pertencimento quanto de agência”, escreve Mosquera em seu texto de introdução do livro 20 em 20, Os artistas da próxima década: América Latina (organizado por Fernando Ticoulat e João Paulo Siqueira Lopes, da Act.).

Mosquera falou à arte!brasileiros em razão do lançamento do livro, que se dedica ao trabalho de 20 artistas do continente: Ad Minoliti, Adriano Amaral, Alia Farid, Carolina Caycedo, Dalton Paula, Frieda Toranzo Jaeger, Gabriel Chaile, Gala Porras-Kim, Iván Argote, Jill Mulleady, Johanna Unzueta, Jota Mombaça, Katherinne Fiedler, Naufus Ramírez-Figueiroa, Pia Camil, Reynier Leyva Novo, Sheroanawe Hakihiiwe, Tabita Rezaire, Tania Pérez Córdova e Yuli Yamagata. Mas o curador também expandiu a conversa para outros temas relativos à sua pesquisa e ao contexto atual da pandemia de coronavírus, ressaltando ainda a necessidade de a arte contemporânea se abrir cada vez mais a um público não especializado.

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“América Invertida”, 1943, de Joaquín Torres García. Foto: Reprodução

Vivendo entre Cuba e Espanha, Mosquera se encontra em Madri desde o início da pandemia, já que ainda não conseguiu voltar a Havana – “onde tenho minha casa e minha biblioteca”, conta. O crítico acaba de lançar o livro Arte desde América latina (y otros pulsos globales) e assina a cocuradoria da recém-inaugurada Trienal da Imagem de Guangzhou, na China. Leia abaixo a íntegra da entrevista.

ARTE! – Em seu texto de introdução ao livro 20 em 20, assim como em diversas outras publicações e palestras, você fala sobre a possibilidade (ou não) de identificar uma arte latino-americana. Como lidar com essa questão?

É claro que existe uma arte latino-americana se chamarmos assim a arte que é produzida no território nomeado América Latina. Mas dizer isso é uma coisa simplista. O problema é se pensamos a arte latino-americana como uma entidade distinta em si mesma. E aí surgem outras questões, como a própria definição territorial de América Latina, que é polêmica. Ela inclui, por exemplo, o Caribe Anglófono, o Caribe Neerlandês, mas também a diáspora latino-americana em todo o mundo, principalmente nos Estados Unidos, que tem hoje a segunda maior população de falantes da língua espanhola, atrás apenas do México. Se calcula que existam cerca de 50 ou 55 milhões de hispano-falantes nos EUA. Há, ainda, muitos falantes de português.

Dito isso, a definição de uma arte latino-americana se viu afetada historicamente por uma vontade totalizante, de criar grandes relatos e sínteses, não somente em respeito à arte, mas à cultura da região de modo geral. E isto surge como resultado de uma atitude de afirmação própria, primeiro frente ao empreendimento colonial europeu – porque depois das independências no século 19 ainda houve várias tentativas de recuperação das colônias por parte das metrópoles – e depois, no século 20, frente aos EUA, seu poder e sua ingerência nos assuntos do sul. Então essas são as causas da criação desta identidade, mas isso levou a uma hiperbolização destes relatos totalizantes que acabou ocultando as diferenças, os conflitos e as contradições para poder criar uma entidade única da América Latina. E hoje em dia tendemos a pensar mais nos fragmentos, incompatibilidades e contradições, ao invés de tentar aplanar e resumir.

Creio ainda que no caso da arte latino-americana houve um problema, que também afetou outros países do sul, subalternos, que é o de colocar essas práticas artísticas dentro de um gueto, de valoração, de circulação e de consumo. É como se fosse negada a esta produção a possibilidade de acesso a uma arte “universal” – que seria a arte dos centros hegemônicos -, condenando-a a um bairro, a um gueto, classificando-a apenas como arte latino-americana, arte mexicana, arte brasileira. Assim como se pode dizer da arte africana, arte árabe etc. E aí há um uma discussão que não é apenas de caráter cultural, mas é um problema prático também, que é o de lutar por uma legitimação geral, não deixar essa legitimação restrita a um circuito hegemônico, e poder participar de uma circulação verdadeiramente internacional da arte.

E isso não significa dizer que a arte produzida no Brasil deva deixar de ser chamada de brasileira, mas que não seja apenas enquadrada nesta classificação. Eu tenho insistido muito, no meu trabalho, que se deve primeiro olhar a arte, o trabalho, e só depois olhar o passaporte, e não o contrário. Mas acho que neste ponto já se avançou muito. E acho que a criação da Bienal de Havana foi um marco importante, no sentido de criar um espaço outro de valoração, de investigação e de lançamento das artes feita onde, naquele momento, se chamava de terceiro mundo. E há ainda os processos de globalização na economia, nas comunicações, pois a situação melhorou muito também neste sentido, sobre a base da reflexão teórica de críticos, curadores e da própria prática artística.

Neste ponto, acho que a arte brasileira foi paradigmática, porque penso que ela teve menos essa preocupação, essa espécie de neurose da identidade latino-americana, e pôde se pensar mais em termos internacionais. Talvez como resultado da Bienal de São Paulo, que começa em 1951, mas também por outros motivos.

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Trabalhos de Dalton Paula estampados no livro “20 em 20”. Foto: Guilherme Sorbello/ Divulgação

ARTE!Em seu texto você cita como uma das grandes responsáveis pela “invenção” da ideia de uma arte latino-americana a crítica argentina Marta Traba. E apesar de reafirmar a importância desta perspectiva, você fala de suas limitações e da necessidade posterior de “liberação da identidade” – um momento em que se rompeu esta ideia totalizante de uma arte da região. Poderia contar um pouco mais deste processo?

Sim, é precisamente isso que estávamos falando. É claro que há uma identidade, não a nego, mas a vejo como um espaço aberto, em processo, relacional, de autoconsciência e sobretudo como um lugar de elucidação. Não a vejo como uma prisão, como algo redutor, então trata-se de nos libertarmos desta obsessão que a cultura latino-americana teve com a identidade, que é também resultado de complexidades de nossa formação e de preocupações que vêm desde o século 19. Resultado de questionamentos sobre se somos europeus, se somos europeus de segunda, se somos indígenas, afrodescendentes, mestiços… e assim por diante. Tem um conto do [escritor argentino] Jorge Luis Borges em que uma personagem nórdica pergunta a um colombiano: “O que é ser colombiano?”. E ele responde: ”Um ato de fé”. E acho que é uma afirmação que pode se estender a toda a América Latina e que fala justamente dessa neurose identitária. Claro que isso com o tempo foi sendo superado e hoje, sobretudo depois da chegada do pensamento pós-moderno – em que se pensa mais em termos de fragmentos, de micropolítica etc. – as coisas mudaram.     

ARTE!Então essa “obsessão” com a identidade não deixa de ser resultado do colonialismo, ou seja, uma proteção, uma tentativa de se contrapor aos países do norte…

Exatamente. E por isso a importância da obra de Marta Traba, ao criar essa identidade, é também a de legitimar a produção daqui. Pois prevalecia, a partir dos centros hegemônicos, uma visão da arte latino-americana como um simples derivado da arte ocidental. Não se levava a sério, e Traba defendeu sobretudo esse caráter próprio da arte latina-americana, o que foi muito importante porque dava a ela um valor frente a quem não via sua importância. E essa definição de “arte latino-americana” ainda hoje pode ter uma utilidade tática, pela solidariedade que ela implica e como uma plataforma de lançamento. Um exemplo é o extraordinário trabalho realizado por Mari Carmen Ramirez, porto-riquenha radicada nos EUA, que tem criado e estado à frente de departamentos de arte latino-americana em importantes museus, criando coleções e difundindo a arte da região. Mas ela não faz isso com uma mentalidade de gueto, e sim como uma plataforma para introduzir essa produção no universo norte-americano – acadêmico, institucional etc.  

ARTE!Quando você fala da pluralidade, da diversidade da produção latino-americana, apresenta também o conceito de “a partir daqui”, que seria um novo paradigma para se pensar a arte do continente. O que seria este conceito?

É uma noção em termos de dinâmicas culturais em uma época ide internacionalização da cultura. É uma ideia que responde ao que me parece ser não apenas a prática mais atual da arte latino-americana, como se pode ver no livro 20 em 20, mas também a prática em outros âmbitos também subalternos aos grandes centros de poder. E significa que ao invés das estratégias de apropriação e ressignificação cultural – que foram sintetizadas de forma tão clara e poética pela antropofagia -, existe hoje uma construção direta de uma arte internacional, que fala uma língua que permite comunicar-se mundo afora a partir de uma diferença de culturas, experiências, contextos, imaginários e agendas. Ou seja, é uma projeção, já não é um contexto como representação. E é uma prática que se refere mais à maneira de fazer os textos do que de representar os contextos. Em muitos casos, eu tenho a impressão de que conseguiria identificar uma instalação feita por um artista brasileiro, e não porque ela exponha diretamente o candomblé ou o samba, por exemplo, mas pela maneira de fazer a instalação, a maneira de fazer um texto artístico. Até mesmo porque a morfologia das instalações de arte recebeu uma ampliação extraordinária de suas possibilidades de comunicação por parte de artistas brasileiros. E isso para mim é o que predomina hoje, e é um processo diferente da antropofagia.

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“A Point of View”, 2019, do colombiano Iván Argote. Foto: Lance Gerber/ Divulgação

ARTE!Não é mais preciso olhar ao norte, aos EUA ou Europa, como ponto de partida…

Exatamente. E repare que isso estava ocorrendo até em termos de posicionamento físico, geográfico. Não faz tanto tempo, algo como duas décadas, que um artista que quisesse ter uma circulação de alto nível internacional precisava viver em Nova York, em Londres, em Berlim. E agora isso é cada vez menos necessário. Veja no Brasil, por exemplo, Cildo Meireles, Adriana Varejão, Ernesto Neto, José Damasceno e tantos outros, são artistas que têm uma legitimação internacional de alto nível e permanecem vivendo no país. E isso tem a ver com esse “a partir daqui”. 

ARTE!  Falando sobre as pesquisas dos artistas, como por exemplo os que estão no livro 20 em 20, há uma série de temas muito atuais e importantes que permeiam a produção contemporânea, incluindo o passado colonial, racismo, questões de gênero, violência de Estado, entre outros. Você já criticou, em outros momentos, a arte que torna-se excessivamente ilustrativa ou didática, porque ela se converteria em propaganda ou pedagogia, mas também sempre defendeu que a arte pode tratar de todos os temas. Como tem visto o modo como estes assuntos têm aparecido nos trabalhos? Há algo de panfletário ou, pelo contrário, um ponto de vista original que não poderia existir em outras linguagens não artísticas?

Um dos valores que vejo nesse livro é que a seleção se preocupou não apenas com uma arte que tenha um valor em si mesma, de circulação internacional, mas também por mostrar a diversidade das práticas artísticas no continente. Diferentes experiências, imaginários e agendas artísticas, desde uma arte que trata diretamente de temas sociais e políticos – mas claro que de modo artístico, não panfletário -, até artistas interessados em investigações de caráter mais formal. E essa é uma diversidade que vemos na América Latina e também a nível global. Repare que os “ismos” desapareceram, já não há “ismos”, e isso tem a ver justamente com essa grande diversidade que existe. Então, como curador, também não me interessa seguir uma linha fechada, mas precisamente ressonar a polifonia da arte. Me interessa esse sentido polifônico, assim como o caráter centrífugo da arte, sua possibilidade de sair de si mesma e tocar aspectos muito diversos da vida, da cultura, da sociedade, da natureza, do planeta, de tudo. E essas características fazem com que eu me identifique muito com as práticas atuais da arte na América Latina. Porque existe internacionalmente também uma arte que acaba por se fechar dentro de si mesma. Um tipo de “auto-referência” que ainda existe muito, mesmo que cada vez menos. E na América Latina sinto que há menos isso, talvez porque nosso contexto seja tão forte, rico culturalmente, mas com tantos problemas, e os artistas tendem a responder a isso.    

ARTE! – Sobre esta “auto-referência”, e talvez por conta dela, há também um costume de se associar a arte contemporânea a um lugar elitista. Você mesmo disse certa vez que a arte contemporânea acaba falando muitas vezes apenas para iniciados, mas ela tem a capacidade de se abrir a um público mais vasto. Como enfrentar esse desafio? Depende dos artistas, curadores, instituições?

É um trabalho conjunto, no qual a educação tem um peso muito grande. Uma educação também em torno da arte. Mas acho também que os artistas e nós, curadores, às vezes nos esquecemos de enfatizar, de ativar, essa possibilidade que a arte contemporânea tem de se abrir a públicos mais amplos, em virtude de sua flexibilidade metodológica e morfológica. Para que a arte não esteja dogmatizada em cânones redutores, que são de interesse apenas de uma elite especializada, mas que ela seja aberta. E ela está de fato se abrindo, se multiplicado, e temos mesmo que tratar dessa ampliação e comunicação.

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“Here Comes the Sun”, 2019, da mexicana Pia Camil. Foto: Enid Alvarez/ Solomon R. Guggenheim Foundation

ARTE! – Neste sentido, o mercado de arte ainda é espaço mais afastado do grande público, não é?

Sim, mas também podemos tentar pensar as feiras como um espaço mais compartilhado com o público, onde essa comunicação seja possível. Às vezes as feiras podem ser como um guarda-chuva onde cabem outros tipos de atividades que vão num sentido mais cultural, não estritamente de mercado. E podemos pensar também que existem muitos espaços independentes, feitos na base, digamos, por artistas e curadores. Espaços sem fins lucrativos, que buscam inclusive um impacto social maior. E também existe um mercado que é bom, boas galerias que tratam de se abrir, de buscar um alcance maior. 

ARTE!Falando neste assunto, gostaria de voltar um pouco ao livro 20 em 20 e perguntar sobre este vínculo do próprio livro com o “mercado”. A publicação é financiada por um banco (BTG Pactual) e organizada por uma consultora de arte (Art Consulting Tool). Não pode soar um pouco conflituoso as mesmas pessoas que investem e orientam sobre colecionismo assinalarem quem são os “artistas da próxima década”?

Este tipo de debate pode surgir em vários âmbitos. Isso aparece inclusive em bienais, quando se escolhe artistas que estão muito vinculados à galerias, com força no mercado, e questiona-se se as bienais não deveriam dar mais espaço para novas buscas, ou para artistas que não tenham ainda tanta visibilidade… De todo modo, acho que o que este livro faz é exercer um ato curatorial, que serve mesmo para consulta – considerando inclusive o fato de que há uma consultoria por trás. Ali está a assinatura deles, a especificação de que a escolha dos artistas é um recorte, então eu não acho que haja um conflito de interesses, nem que seja algo que aponte para artistas com quem eles especificamente trabalhem, com fins lucrativos. São de fato artistas muito diversos e que já tem um espaço no mercado. E esta é a proposta do livro.

ARTE!Sim, e este recorte de que você falou, o fato de escolher 20 artistas e apontá-los como “os” artistas que marcarão a década, isso não soa um pouco perigoso, reducionista?

No meu texto de introdução eu digo inclusive que poderiam ser feitos outros livros, entre eles um com artistas latino-americanos muito importantes e que não tiveram esse êxito no mercado internacional. Mas os próprios curadores do livro disseram publicamente que se poderia fazer vários livros como este, que este é um recorte possível. E acho que é um modo também de dar projeção ao livro, afinal estamos em uma época muito midiática, não é?

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“Así desaparecemos”, 2019, da brasileira Jota Mombaça. Foto: Cortesia da artista

ARTE! – Por fim, falando do contexto atual com a pandemia de coronavírus, queria te perguntar um pouco como você tem trabalhado, enquanto crítico e curador, e como tem visto a situação da classe artística de um modo geral. Em um momento em que assuntos de saúde, econômicos e sociais se tornam preponderantes, há o risco de a cultura ser vista como algo secundário? Ou pelo contrário, ela mostra ainda mais a sua importância?

Acho que, na verdade, neste momento em que estamos vivendo o confinamento, com tantas limitações, nos tornamos mais conscientes do quão necessária é a arte. O que seria de nós, isolados, sem literatura, sem música, sem fotos e imagens para ver em nossos telefones e computadores… E fica muito óbvia a importância da arte para que possamos inclusive sobreviver, em condições tão difíceis como esta. Sabemos que além do dano causado pelo vírus aumentou muito a depressão entre as pessoas, e a cultura e a arte são fundamentais para ajudar a combater isso. E claro, nos afetou muito o fato de não poder ir a um museu, a uma exposição. Mas repare que o comércio de arte, mesmo que tenha caído, se manteve forte; museus abriram as portas – com controles e limitação de público; exposições online foram criadas; ou seja, buscou-se maneiras para que as artes visuais pudessem circular.

E mesmo com uma situação tão difícil, vejo que muitos artistas e curadores têm mantido as suas práticas. Há poucas semanas inaugurou em Guangzhou, em Canton (China), a Trienal da Imagem de Guangzhou de 2021, da qual sou cocurador. E todo o trabalho desta trienal, focada em fotografia e vídeo, eu fiz à distância. Inclusive não pude estar lá nem para a inauguração. Agora, penso que isso também demonstra o quanto, com toda nossa ganância, não estávamos utilizando os meios eletrônicos e digitais em todas as suas possibilidades. Estamos na época da comunicação à distância e ficou claro que podemos fazer muito com esses recursos. Mas é claro que eles não substituem o contato presencial com as pessoas e o contato vivo com a obra de arte.

Agentes culturais de Campinas formam rede colaborativa e promovem evento virtual

No dia 24/04, como parte da programação do CLAI, o Xilomóvel - Ateliê Itinerante oferece uma oficina ao vivo com demonstração de impressão de xilogravuras e a criação de um painel. Foto: Ligia Minami

Aulas, performances, intervenções urbanas, demonstração de técnicas e exibições de fotofilmes e videoarte, tudo à distância de uma tela. Integralmente produzida por artistas visuais residentes em Campinas, o primeiro evento do Circuito Livre de Arte Independente da cidade (CLAI Campinas) acontece virtualmente entre os dias 17 e 29 de abril de forma gratuita pelas redes sociais do projeto.

Em 2020, 17 espaços e iniciativas autogeridos ligados às artes visuais se uniram em um projeto em rede na cidade do interior de São Paulo. O objetivo principal do grupo é seguir movimentando a cena cultural nos difíceis tempos pandêmicos, servindo de apoio tanto para as instituições quanto para os artistas da cidade. Após meses de atuação independente, o projeto tem seu primeiro evento (virtual), viabilizado com recursos da Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc. 

Porém, se engana quem pensa que a intenção de construir uma iniciativa em rede surgiu com a eclosão do coronavírus. A ideia ronda Maíra Endo, editora-curadora do HIPOCAMPO, desde 2015, quando ela se desligava do Ateliê Aberto, espaço de arte independente que encerrou suas atividades em Campinas naquele ano. “Percebi como os espaços e iniciativas de arte auto-organizadas dependem de redes de colaboração, de relações de dependência estratégica, para sobreviverem”, explica.

Entre 2015 e 2020, Maíra viu a cena de arte independente crescer. “Vale lembrar que, já há muitos anos, o circuito institucional das artes visuais em Campinas, formado por instituições públicas e privadas, encontra-se reconhecidamente falido, incapaz de atender às necessidades dos artistas. A cidade tampouco comporta galerias de arte contemporânea, ou seja, não existe um mercado. Em Campinas, quase tudo, em termos de artes visuais, acontece no circuito auto-organizado”, afirma.

Foi nesse cenário, com uma cena emergente, que a curadora notou que não estava sozinha em sua ideia. Outros gestores também pensavam em um projeto em rede e estavam dispostos a construir esses vínculos. Foi nas conversas com Ana Angélica Costa, artista e gestora da Casa de Eva, e Teresa Mas, arquiteta e gestora do Pavão Cultural, que a articulação de um agente coletivo deixou de ser apenas mais uma das ideias guardadas na gaveta. 

A construção do projeto

“Inicialmente, nossa ideia era promover a FLAI – Feira Livre de Arte Independente de Campinas, na intenção de movimentar a cena de artes visuais e gerar renda para os artistas”, conta Teresa. Para isso, iniciaram um mapeamento dos espaços de arte da cidade, de forma a encontrar possíveis parceiros para a empreitada. “Nesse momento, percebemos o quanto o circuito de arte em Campinas era desarticulado: havia muita coisa sendo produzida e exibida, mas quase não havia trocas entre espaços e agentes, com algumas poucas exceções”, conta Ana. 

Porém, em meio à sua concepção, o projeto deparou-se com um imprevisto: a pandemia de coronavírus. Previsto para o segundo semestre de 2020, ele precisou ser repensado.  “Conforme foi ficando claro que a pandemia forçaria o fechamento dos nossos espaços, que não haveria possibilidade de montar a FLAI e que muitos artistas independentes poderiam estar em dificuldades, convidamos aqueles espaços que fariam parte da feira para uma conversa sobre como poderíamos nos ajudar nesse momento difícil”, compartilha Teresa.

A necessidade da organização coletiva ficava ainda mais clara, pelas novas dificuldades a serem enfrentadas nos períodos de isolamento e distanciamento social. Por isso, buscaram conhecer melhor a proposta e realidade de cada um dos espaços, para estruturar a rede de apoio. “Esse processo foi incrível para percebermos a multiplicidade tanto em termos físico, financeiro e de forma de atuação, o que torna as trocas de experiências ainda mais ricas: tem espaço que existe há 30 anos, com artistas com ampla experiência na cidade de Campinas, e iniciativas que abriram no início da pandemia, com gente jovem e com muita vontade de fazer a coisa acontecer mesmo em contextos tão adversos como o que estamos vivendo”, compartilha Ana.

Hoje, o Circuito Livre de Arte Independente de Campinas é formado por 17 espaços independentes e coletivos autogeridos. Sendo eles: AT|AL 609, Ateliê/8, Ateliê CASA, Ateliê Oráculo, Casa de Eva, Clubinho Eulina, Estúdio Casa Ímpar, Fêmea Fábrica, Folha, HIPOCAMPO, Instituto Pavão Cultural, Nave na mata, Rabeca Cultural, Sílvia Matos Ateliê de Criatividade, Torta, TOTE Espaço Cultural e o Xilomóvel – Ateliê Itinerante.

Como primeira ação, o projeto buscou dar visibilidade aos espaços e gestores através de um perfil de Instagram do CLAI – no qual cada membro pode compartilhar sua produção com os seguidores dos demais. Então, veio a possibilidade de se inscrever no edital Ações em Rede da LAB. “Foi o gatilho para que realmente pudéssemos viabilizar essa ação conjunta que agora realizamos”, conta Teresa. Através do edital, o coletivo em rede conseguiu edificar seu primeiro evento, com recursos da Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc, montando uma programação gratuita com conteúdos concebidos por artistas e gestores de Campinas. 

O projeto original previa a realização do evento CLAI na Praça, com atividades presenciais oferecidas em áreas públicas, e do CLAI Aberto, um roteiro de visitas aos locais integrantes do circuito. Porém, o agravamento da pandemia e o aumento das restrições à circulação de pessoas exigiu a adaptação ao formato virtual e conversão das visitas em um mini documentário em vídeo – que será exibido no último dia do festival.

“O circuito de arte de Campinas certamente é muito mais forte hoje do que há um ano e o CLAI certamente foi fundamental neste sentido. É muito diferente trabalhar sozinho e saber que temos uma rede de apoio e trocas com a qual podemos contar”, conclui Ana. 

Para quem ficou interessado, disponibilizamos abaixo a programação completa do Circuito Livre de Arte Independente de Campinas, a ser transmitida pelos perfis de Instagram e Youtube do projeto. 

No dia 25/04, a performance coletiva “TEMPO CORPO versus TEMPO VIRTUAL”, com a artista Cecília Stelini do AT|AL 609, conta com participação virtual do público. Foto: Mateus Stelini

Programação


17/04 | sábado

11h – Videoaula: Tudo é Desenho (ou pelo menos pode ser…), com o artista visual Marcelo Moscheta, do Ateliê/8. Inspirado em escritos de artistas como Cildo Meireles, Richard Long, De Kooning e outros, a aula aberta vai tratar do desenho e sua realização em diferentes suportes, técnicas e formatos;

17h – Videoarte: 128 dias, da artista visual Estefania Gavina, do Ateliê CASA. A partir da proposta original da intervenção Divindades Inumanas, a artista explora em seu jardim e ateliê fragmentos de instantes da vida cotidiana, construindo poeticamente seu olhar para o tempo presente e a finitude da vida;

18/04 | domingo

11h – Intervenção urbana: pintura ao vivo de um mural com o artista visual Fabiano Carriero, do Ateliê Folha, e participação da artista visual Eduarda Ribas. As pinturas de Carriero trazem arquétipos de nossa brasilidade, levando as cores e dores do povo para a rua.

20/04 | terça-feira

20h – Fotofilme: Sessão Festival Hercule Florence I, que tem como matriz e inspiração a invenção isolada da fotografia no Brasil, em Campinas, por Hercule Florence, em 1833.

21/04 | quarta-feira

20h – Fotofilme: Sessão Festival Hercule Florence II.

22/04 | quinta-feira

20h – Fotofilme: Sessão Festival Hercule Florence III.

23/04 | sexta-feira

20h – Videoarte: Sessão HIPOCAMPO. Fundado em 2016, o HIPOCAMPO dedica-se à construção de um acervo público, multidisciplinar e digital, hoje formado por cerca de 250 peças de autoria de mais de 40 colaboradores.

24/04 | sábado

14h30 – Oficina: Impressão e colagem de painel em lambe-lambe, com os artistas Luciana Bertarelli, Marcio Elias e Simone Peixoto, do Xilomóvel Ateliê Itinerante. Oficina ao vivo com demonstração da impressão de xilogravuras e criação de um painel de 3×3 metros em lambe-lambe.

18h – Performance: Consumindo Kairós, com o artista visual MIRS Monstrengo, do Estúdio Casa Ímpar. MIRS propõe uma performance ao vivo, trazendo elementos simbólicos coletivos e de sua poética que tratam de diferentes concepções da ideia de tempo nos dias atuais.

25/04 | domingo

11h – Videoaula: Câmeras Obscuras, com Ana Angélica Costa, artista visual e gestora da Casa de Eva. A partir da proposta original da intervenção Uma árvore com frutos estranhos, em que uma série de pequenas câmeras obscuras pendem dos galhos de uma árvore, será explicado o processo de formação da imagem pelo princípio da câmera obscura.

17h – Performance coletiva: TEMPO CORPO versus TEMPO VIRTUAL, com a artista Cecília Stelini, do AT|AL 609 – lugar de investigações artísticas. Uma ação que questiona a presença física e a presença virtual de um corpo, evidenciando situações que nos são impostas. Quando o corpo físico é realmente necessário? Realizada pela plataforma Zoom em tempo real, com participação do público. Inscreva-se para a performance coletiva clicando aqui.

29/04 | quinta-feira

20h – Mini documentário sobre os Espaços Membros do CLAI. Vídeo que mostra os espaços e iniciativas participantes do Circuito Livre de Arte Independente de Campinas e substitui o CLAI Aberto, evento que faria a visitação presencial aos espaços em um passeio de bicicleta. Transmissão pelo YouTube, com participação dos gestores dos espaços pelo chat. Duração: 30 minutos.

Três filmes em destaque no Festival É Tudo Verdade 2021

Leila Mustafa, em foto de Jean-Matthieu Gautier, durante as gravações de
Leila Mustafa, em foto de Jean-Matthieu Gautier, durante as gravações de "9 Dias em Raqqa". Foto: Divulgação.
Cartaz do Festival É Tudo Verdade 2021. Foto: Divulgação.
Cartaz do Festival É Tudo Verdade 2021. Foto: Divulgação.

Em 2021, o Festival É Tudo Verdade fica mais uma vez longe das salas de cinema, por conta da pandemia. Realizada em formato inteiramente virtual, a edição deste ano exibe sessões digitais até este domingo, 18 de abril, dia da cerimônia de premiação. Se por um lado a saudade do ambiente físico dos cinemas é um revés, o ponto forte de um festival disponível na web é o acesso. Para assistir aos filmes basta entrar no site www.etudoverdade.com.br. Lá, vá em “Programação”; ao clicar no filme desejado o visitante será direcionado para a página do festival na plataforma de streaming Looke, e então é só começar o filme. Entre os 69 selecionados para o festival deste ano, os filmes 9 Dias em Raqqa, Mil cortes e Vicenta são alguns dos que merecem ser vistos. Embora tenham temporalidades diferentes e produções de países distintos, os três são sobrevoados por temas comuns, caros ao debate político contemporâneo: os direitos da mulher, a liberdade de imprensa e a importância do jornalismo para a manutenção das democracias.

9 Dias em Raqqa

O título de 9 Dias em Raqqa se refere exatamente ao tempo disponibilizado à jornalista francesa Marine de Tilly para conhecer Leila Mustafa, atual prefeita de Raqqa.

Capturada primeiro pelo Estado Islâmico em março de 2013, a cidade foi palco de grandes conflitos durante a guerra. Eventualmente, o grupo extremista expulsou tanto os simpatizantes da oposição quanto do regime Assad da região. Lá, proclamaram a criação de um califado sob a lei da sharia e, em 2014, fizeram de Raqqa a nova capital na Síria.

Foi apenas em 17 de outubro de 2017 que lideranças militares curdas anunciaram que a cidade havia sido libertada e o EI teria sido expulso da região. Foi nesse momento que Mustafa engajou-se na política, iniciando sua participação nos conselhos civis. Galgando espaço entre os chefes das tribos que ditavam as ordens na Síria, ela tornou-se prefeita com apenas 30 anos. Engenheira por formação, Leila encabeçou a reconstrução de sua cidade e foi imbuída também com a tarefa reconciliatória dentro dessa zona arrasada. “O importante é que agora estamos livres do pesadelo que é o EI, mas lembramos do que passamos, e de viver em medo constante… O nosso povo merece mais que isso, na verdade”, confessa Leila.

Leila Mustafa, em foto de Jean-Matthieu Gautier, durante as gravações de "9 Dias em Raqqa". Foto: Divulgação É Tudo Verdade.
Leila Mustafa, em foto de Jean-Matthieu Gautier, durante as gravações de “9 Dias em Raqqa”. Foto: Divulgação.

No documentário, dirigido por Xavier de Lauzanne, a prefeita é apresentada aos poucos. A cada dia que Marine passa com ela, mais peças da sua história são confiadas ao espectador, da mesma forma gradual que Leila as revela à jornalista. Assim, Marine se ocupa de uma zona crepuscular entre interlocutora (e narradora) e coadjuvante, o nosso intermediário até a personagem de seu livro. Enquanto coadjuvante, as próprias angústias da jornalista aparecem na tela: a despedida da família, a preocupação com sua segurança, a barreira linguística, as consequências emocionais de estabelecer um elo com a sua retratada. “A Leila é tão jovem… É pouco tempo, muito pouco tempo para uma biografia. Mas nesse contexto, quantas vidas ela já viveu?”, ela se pergunta, chegando à conclusão que talvez a sua vida privada esteja sendo sacrificada em meio ao seu dever político: “Sua vida pessoal não existe, o seu carro é um alvo… Leila segue adiante sem se preocupar consigo”.

Como prefeita, sua primeira decisão junto ao Comitê de Cultura e Arqueologia foi restaurar a praça central – local que ficou conhecido, no auge da presença do califado, como “o cruzamento da morte” – e sua memória. “Não reconhecíamos mais as ruas que frequentávamos diariamente”, conta Leila a Marine.

Na cidade, também foram retiradas mais de oito mil minas terrestres deixadas pelo EI e até meados de 2019, 300 mil residentes retornaram à cidade. Embora a estabilização ocorra aos poucos, Marine lembra, no final do filme, que após a expulsão do EI, Raqqa foi sendo esquecida pelos jornalistas, e pela ajuda internacional.

Mil Cortes

Se em 9 Dias em Raqqa a ameaça é a do extremismo, em Mil Cortes, da diretora Ramona S. Diaz, ela aparece materializada no populismo de Rodrigo Duterte, presidente das Filipinas desde 2016.

Ambos os filmes estão situados sob o guarda-chuva do jornalismo, e da sua proteção. No entanto, enquanto o primeiro permite uma abordagem menos endurecida de Marine de Tilly e Leila Mustafa, o último adota como forma a reportagem clássica, com inserções de dados, gráficos, notícias e filmagens de arquivo – algumas sendo imagens de choque. Essas ferramentas ajudam a entender melhor a complexa narrativa do crescimento de Duterte nas Filipinas, sua política de ódio e o ataque à mídia, em especial, ao Rappler, site de notícias fundado e liderado pela jornalista Maria Ressa, ambos indigestos ao ditador. Sua perseguição a Ressa e seu veículo ficou escancarada quando, no ano passado, a jornalista foi presa por violar a controversa legislação contra “difamação cibernética”, embora o texto que teria levado à condenação tivesse sido publicado seis meses antes da lei entrar em vigor.

Maria Ressa por Molses Saman, para a revista TIME. Foto- Magnum Photos : TIME Magazine.
Maria Ressa por Molses Saman, para a revista TIME. Foto- Magnum Photos : TIME Magazine.

Desde da eleição de Duterte e o início de sua guerra às drogas, o Rappler vem denunciando os abusos do presidente; “A guerra contra as drogas se tornou uma guerra contra os pobres… Tínhamos uma equipe que saía todas as noites e voltava para casa tendo contado pelo menos oito cadáveres à noite”, conta Maria. A principal bandeira de seu governo acabou resultando em 12 mil mortes, muitas de pessoas pobres e usuárias de drogas ilícitas, mas que não tinham ligação com o tráfico. A jornalista lembra que “todo mundo que questionava esses assassinatos nas mídias sociais era automaticamente banido”. 

Pia Ranada, setorista do Palácio de Malacanang para o Rappler, cobre Duterte desde seu período como prefeito. Ela aponta que já nessa época havia uma reputação por ser um “punho de ferro”. Patricia Evangelista, repórter investigativa do portal, ressalta, no documentário, a ligação precisa desse aspecto e a eleição do presidente: “Já houve outros presidentes e outros governos, e as vidas deles [da população] não melhoraram. Duterte chega e ele oferece não apenas mudança, ele oferece vingança. ‘Quem quer que tenha feito isso com você, eu vou acabar com ele’”.

Comum aos demais governos populistas, Duterte oferecia uma imagem de alguém excluído dos círculos políticos da elite em Manila, considerado marginalizado, “um político insignificante”. Outra similaridade é o ataque à mídia; em um pronunciamento do presidente à União, Duterte acusava o Rappler de forjar sua identidade e ser uma empresa comandada por estadunidenses (Maria é filipina, mas cresceu nos EUA). “Uma semana depois do presidente fazer isso nós recebemos nossa primeira intimação”, relata Maria, e lembra: “Eu recebia em média 90 mensagens de ódio por hora”. Em outra ocasião, dirigindo-se a Pia, Duterte afirma que “repórteres têm a liberdade de criticar, mas irão para a cadeia por seus crimes”.

Diante disso, o Rappler começou a reunir dados e investigar as contas que atacavam a mídia. Assim, Ressa e sua equipe encontraram uma máquina do ódio, que utilizava de contas falsas, militantes e pessoas contratadas para fazerem ataques online coordenados. “26 contas podem influenciar até outras 3 milhões”, Ressa explica, tentando ilustrar a dimensão do perigo. Para denunciar isso ao mundo, Maria entra em uma frenética jornada de reuniões internacionais que – muito parecido com Leila Mustafa – quase anulam sua vida privada. Em 2018, a jornalista foi eleita uma das pessoas do ano pela revista Time, angariando algum suporte internacional.

Nos Estados Unidos, em um dos encontros registrados no filme, ela afirma: “Acho que, primeiramente, o que acontece nos EUA acontece com o restante do mundo. Para resolver isso, é preciso agir e vou dar dois motivos para tal. Passei um tempo com o delator da Cambridge Analytica, Christopher Wylie. O delator disse que testaram táticas de como manipular vocês no nosso país. E em outros países do hemisfério sul. Se funcionasse em nossos países então eles importariam para os seus”. Seu alerta é para a “morte por mil cortes” que a democracia vem sofrendo. “Quando houver um número suficiente de cortes, a democracia estará tão fraca, que acabará morrendo”.

Vicenta

A história contada no argentino Vicenta, filme de Dário Doria, começa em 2006, com a personagem título descobrindo que Laura, sua filha mais nova e portadora de deficiência mental, havia sido estuprada por um tio e estava grávida. Junto com Valeria, a filha mais velha, Vicenta precisa conseguir que Laura possa abortar. Afinal, sendo uma criança, como poderia já ser mãe?

Still de "Vicenta". Foto: Divulgação.
Still de “Vicenta”. Foto: Divulgação.

O documentário ganha certa momentum agora, tendo em vista que em dezembro de 2020 a Argentina aprovou o aborto legal e seguro para gestações até a 14ª semana. A decisão foi conquistada com muitos anos de luta, e o caso “LMR vs. Estado Argentino” contribuiu para impulsioná-la.

O tema do documentário é substancioso e urgente, mas seu formato também merece reconhecimento. O filme é inteiramente realizado com animação de bonecos e sua história é contada por uma narradora (Liliana Herrero) que não se dirige ao público de forma direta; onisciente e onipresente, ela conversa com Vicenta, ao invés disso. Com a escrita e a gravação bem executadas, esse elemento do filme torna-se um ás para a contação da história e contorna bem uma das barreiras para o seu feitio: o fato de que seus protagonistas não desejavam aparecer nele. “Como tornar essa história visível sem as duas principais ferramentas dos documentários, a entrevista e o registro direto?”, questionou o fundador e diretor do festival, Amir Labaki. 

O filme acompanha todo o processo de Vicenta, da descoberta da gravidez de Laura até o labiríntico processo com o Estado, “as próximas semanas serão idas e vindas ao tribunal. Para Laura, faltar à escola; para Valeria e para Vicenta faltar ao trabalho. Ir e voltar. Ir e voltar, uma vez e mil vezes”. Da apresentação de uma queixa, em 2011, ao comitê de direitos humanos da ONU ao ato de reparação pública a LMR, em dezembro de 2014.

Na resposta apresentada lia-se: “O comitê de direitos humanos da ONU em abril de 2011 considera que a falta de diligência do estado em garantir o direito legal a um procedimento exigido só por mulheres constituiu, em primeiro lugar, uma violação do direito à igualdade. Considera que a obrigação imposta a LMR de continuar sua gravidez constitui um tratamento cruel e inumano”.

Com isso, o comitê concluiu que o estado deveria reparar Laura, incluindo uma indenização, e tomar medidas para que violações desse tipo não ocorressem no futuro. Em resposta, o Estado deveria apresentar medidas para tal em um prazo de 180 dias. Finalmente, em 2014, a reparação chegou, oito anos depois, e a narradora pergunta a Vicenta: “Quanto dura um abuso de um tio? E das instituições? Quanto dura um dia Vicenta? E um ano? E oito?”.

Feira do Livro da Unesp: dicas do que aproveitar

A terceira edição da Feira do Livro da Unesp está sendo realizada virtualmente, tendo em vista a impossibilidade de realização presencial durante a pandemia de Covid-19. O evento ocorre até o dia 11 de abril de 2021, domingo, às 23h59. Os livros vendidos na feira oferecem, no mínimo, 50% de desconto. Apesar do revés de não poder acontecer presencialmente, o formato digital da feira ajuda a aumentar o seu alcance e também o acesso às obras que estão sendo vendidas. Mas o que aproveitar na feira? Para ajudar nosso leitor com essa escolha, arte!brasileiros perguntou às editoras Autêntica, Cobogó e Ubu quais edições são imperdíveis para quem gosta de arte, cultura, filosofia e o estudo do pensamento crítico como um todo.

No campo dos livros de arte, a biografia do grande pintor modernista Alberto da Veiga Guignard é uma das dicas da Autêntica. Também da editora, O realismo impossível, de André Bazin, lembra que, quando discutimos o cinema, “devemos sempre falar de efeitos de realidade, em vez de reprodução do real“. Falando em real, Slavoj Žižek o interroga na publicação descrita por Christian Dunker como um guia de bolso para iniciar sua jornada através do pensamento do filósofo esloveno. Dunker, aliás é um dos organizadores – junto de Cláudia Perrone, Gilson Iannini, Miriam Debieux Rosa, Rose Gurski – da obra coletiva Sonhos Confinados: O que sonham os brasileiros em tempos de pandemia, uma ontologia do tempo presente a partir dos sonhos.

“Ler este livro é uma imersão no pensamento do autor e não há como sair ileso. Sua escrita fere, queima e nos arremessa num turbilhão de pensamentos e sensações”, escreveu Eugênio Lima sobre o livro Pele Negra, Máscaras Brancas de Frantz Fanon, para a arte!brasileiros #53. Lançado pela Ubu no ano passado, é uma das obras que a editora recomenda para a aproveitar na feira. Outra escolha da editora é A invenção da cultura, onde Roy Wagner radicaliza a reflexão sobre o polêmico conceito de cultura, a partir da ideia de invenção. Seguindo no papo cabeça, Big Tech – A ascensão dos dados e a morte da política, de Eugeny Morozov, é essencial para (tentar) entender o capitalismo de vigilância; para quem gostou do artigo Os robôs serão os artistas do futuro? – publicado na última edição de arte!brasileiros – Big Tech aprofundará algumas das questões abordadas brevemente no texto.

Espaços de trabalho de artistas latino-americano, da Editora Cobogó, permite ao leitor viajar mentalmente e conhecer 27 ateliês diferentes sem sair do isolamento. Memórias da Plantação, obra importante de Grada Kilomba, também pode ser encontrada na feira do livro. A obra é uma compilação de episódios cotidianos de racismo, escritos sob a forma de pequenas histórias psicanalíticas. “Das políticas de espaço e exclusão às políticas do corpo e do cabelo, passando pelos insultos raciais, Grada Kilomba desmonta, de modo incisivo, a normalidade do racismo, expondo a violência e o trauma de se ser colocado como outro“. Lançado recentemente, No tremor do mundo – ensaios e entrevistas à luz da pandemia, organiza uma reflexão multidisciplinar acerca do momento presente da pandemia, não deixando de abordar, também, o pensamento produzido pela tragédia.