discussão I (variação), Ilê Sartuzi
"discussão I (variação)", de Ilê Sartuzi. Foto: Julia Thompson / Cortesia do artista

Às 18h, entramos no espaço do auroras, no bairro do Morumbi, em São Paulo. Pensada para acontecer apenas à noite, é neste horário que a individual de Ilê Sartuzi tem início. O título, A. E A de novo., “embora pareça muito cifrado para a maioria das pessoas (pela grafia esquisita), aponta uma relação formal que atravessa uma boa parte da exposição: a repetição”, explica o artista, que foi um dos ganhadores do Prêmio PIPA 2021. “Isso aparece na própria estrutura de alguns trabalhos cíclicos, nas escolhas dramatúrgicas e na reiteração de alguns elementos recorrentes na mostra”, completa. 

Pendurada em frente à entrada, há uma pequena cortina vermelha pintada em óleo sobre tela e veludo. Apesar de fechada e estática, é ela que abre nossa visita. No andar superior, as obras se distribuem por espaços que não parecem pensados como expositivos. Pequenos quadros estão pendurados nos corredores como se fizessem parte da decoração e dois cômodos parecem tomados pelas obras – como se, em certo grau, elas habitassem a casa. “Cria-se uma possível narrativa de novos moradores”, aponta o texto curatorial. Segundo Sartuzi, essa visão é recorrente, sendo reforçada nos relatos de diversos visitantes. “Isso indica duas questões: a primeira é que as intervenções criam sentido com a arquitetura; mas também, parece que o auroras volta a ser visto um pouco mais como casa, que é a sua identidade primeira”.

Essa conclusão não é aleatória, ou despropositada, a maioria dos trabalhos foi pensando diretamente para esse lugar e tendo em vista as relações que se estabelecem com cada cômodo da casa. discussão I, por exemplo, nasce do próprio quarto – no qual Ilê Sartuzi dormiu diversas vezes. Envolvido na leitura de A casa de bonecas, de Henrik Ibsen, nas quais as indignações com a sociedade burguesa e a estrutura patriarcal são latentes, o artista foi desenhando a dramaturgia, levando a uma discussão de casal que poderia tomar forma cotidianamente naquela cama. “Por outro lado, nos meus trabalhos recentes, as coisas sempre parecem estar meio girando em falso, ou elas não chegam a lugar nenhum, são esvaziadas de um sentido claro e direto. Então busquei que fosse uma discussão sobre nada, que eles conseguissem ficar discutindo infinitamente, mas que orbitassem um tema vazio”, conta. Assim, a obra se configura: dois manequins que, interpretados por Lucienne Guedes e Silvio Restiffe, através de videomapping e caixas de som, discutem sem chegar a lugar nenhum.  

“Enquanto alguns trabalhos se apresentam em condição própria e isolada, em outros casos, a iluminação parece que transforma todo um ambiente em uma única coisa composta por diferentes elementos, que ocupam aquela sala como cena”, explica Sartuzi. É o que ocorre neste quarto, decorado com quadros que retratam manequins – como o casal de personagens – e no cômodo ao lado, onde diversos pequenos objetos se conversam no espaço amplo.

Desenhada em uma pequena tela, pendurada na parede, uma cortina espelha a obra do andar inferior. Trata-se de cortina D, que parece anunciar este ato da exposição. Iluminado ao centro, o trabalho carrossel traz um boneco que gira continuamente, mas é sempre atrapalhado por um tropeço: uma pedra posicionada em meio ao seu percurso altera a dinâmica primeira do objeto, apesar de mantê-lo sempre na mesma sequência de movimentos. Na sala também está casa cabelo II. Feita com cera de abelha e cabelo, é por esses materiais que a obra se projeta como um memento mori. “O memento mori é esse lembrete constante de que o tempo está passando e a morte está à espreita”. Como explica Sartuzi, de alguma forma os cabelos ali suscitam essa ideia de ciclo que não acontece, dessa morte que se enuncia, mas não chega. 

O trabalho é também um duplo e encontra espelhamento na sala principal de exposição no andar inferior. Sobre um suporte único e sob luz direcionada, a outra casa cabelo se projeta como uma escultura em exposição, ou uma protagonista posicionando-se no foco de luz. O mesmo ocorre com discussão I (variação), espelhamento da obra original. A instalação traz duas cabeças automatizadas, “que flutuam ali, robóticas, como bonecos ventríloquos, e repetem o mesmo texto, mas em ordem completamente aleatória. O que fiz foi pegar o áudio da instalação do quarto e cortar frase por frase, então criei um banco de dados e o sistema escolhe de forma aleatória o que dizer, como dizer e quando cada cabeça fala”, explica o artista.   

Entre artes visuais e cênicias

“Longe da defesa de unidade das artes wagneriana que a ópera proporcionaria, mas o teatro possibilitou aprender muita coisa, de luz ao texto. Acho que essas qualidades me fizeram pensar em cada elemento de uma exposição, como a iluminação e as possibilidades dramatúrgicas de expografia”, conta o artista. Assim, A. E A de novo. é permeada por certa teatralidade. “Ela pode ser uma consequência de uma série de formas e temáticas que estavam surgindo no trabalho, somada a uma vontade de que esses objetos se projetassem quase enquanto sujeitos. Em última instância, a noção de teatralidade tem a ver com a relação que o objeto estabelece com o espectador.”

Em grande parte das obras, essa relação é sugerida pelo uso de novas tecnologias, como videomapping, automação e a fotogrametria. Porém, para o artista, o uso de determinadas ferramentas tecnológicas não vêm do prazer de experimentá-las, mas sim da necessidade dos próprios trabalhos, da vontade de animá-los. Ilê Sartuzi destaca que isso não leva o uso das técnicas a ser ingênuo. “Acho importante frisar que o uso de ferramentas mais ou menos tecnológicas nunca é uma escolha esvaziada de significado e consequências.” 

As questões relativas à imagem idealizada do corpo – muitas vezes fragmentado ou construído a partir de diferentes partes – e à ausência dessa figura, constantes na produção de Ilê Sartuzi até então, também estão presentes na mostra. É possível percebê-las em especial nos manequins – sejam os físicos em discussão I, ou os pintados em obras como retrato TSF-3 -, mas também na pele de látex e na videoinstalação que a acompanha. Essa obra, em especial, volta a nos suscitar o mote maior da mostra em torno da repetição, que além de aparecer nos duplos, também busca “ressoar nos trabalhos em que parece que o começo nunca inicia, ou ainda que o começo é o meio e o fim, talvez de outra maneira: existe a sensação de que o começo ou o meio ou o fim não levam à lugar algum diferente do começo, do meio e do fim”.

A obra prelúdio (or curtain call) talvez sintetize a ideia, ao apresentar uma cortina que, com auxílio de automação, abre e fecha para o nada. Assim, cria espelhamentos com as cortinas em desenho e pintura, estáticas, que vimos em outros cômodos da casa. Cortinas essas que abrem e fecham o espetáculo. “Espetáculo esse que nunca começa ou nunca termina”, finaliza Sartuzi.

SERVIÇO

A E. A de novo
auroras: Avenida São Valério, 426 – Morumbi, São Paulo (SP)
Visitação: Em cartaz até 2 de outubro, às sexta-feiras e aos sábados, das 18h às 21h, ou com agendamento prévio no período noturno.
Entrada gratuita

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