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Uma autobiogafia de Nazareth Pacheco na Galeria Kogan Amaro

Série Momentos, 2017

As obras que Nazareth Pachecho reúne em sua nova exposição na Galeria Kogan Amaro, em São Paulo, talvez sejam os objetos mais afetivos que a artista produziu em sua carreira. É que durante esse processo, e especialmente nos últimos cinco anos, muito aconteceu em sua vida privada que a fez se voltar intimamente para a criação.

Em entrevista à ARTE!Brasileiros, a artista conta que no período em questão seus pais adoeceram. A mãe enfrentou um câncer no pulmão e veio a falecer algum tempo depois. Nos meses seguintes, foi a vez da família voltar a atenção aos cuidados do pai, que foi diagnosticado com o mesmo câncer. “Durante todo esse período teve todo um momento de, além do luto, de dedicação aos dois durante o tratamento. Eu fiquei mais voltada ao meu trabalho e a me dedicar a eles. Com o falecimento de ambos, me voltei mais pra mim, num processo mais íntimo e respeitando o meu momento de luto”, ela diz.

Enquanto desmontava a casa onde os pais moravam, Nazareth encontrou pertences dos dois que a interessaram como materiais para o seu trabalho, como instrumentos de trabalho do pai médico e camisolas da mãe. Esses objetos foram transformados por ela em obras que compõem a exposição. Os já citados foram convertidos na série Dele e na obra Vida.

Nascida em 1961, a artista encarou ao longo de seu crescimento uma doença congênita que afetou a formação de seu corpo. Sua vida foi marcada por uma série de cirurgias ditas “corretivas”. Uns três meses após o pai falecer, ela conta, Nazareth começou a ter um problema em um pé, no qual tinha feito uma cirurgia aos 16 anos de idade: “Toda uma história do corpo foi voltando, que eu tinha tratado desde que eu nasci. Mas antigamente quem se responsabilizava por isso eram os meus pais. Dessa vez eles não estavam mais aqui e eu que estive que estar à frente disso”.

Nazareth teve que se submeter a cirurgias ortopédicas, reparadoras, semelhantes às quais passou quando era criança, mas decidiu também que gostaria de fazer cirurgias estéticas, as quais registrou na série de retratos Momentos. Ter um cuidado com o corpo, ela diz, foi uma forma também de superar o luto: “Isso eu acho que estava ligado a uma luta dos meus pais sempre pela possibilidade de melhora quando se tratava das questões do meu corpo”. Nesse ponto, ela também se debruça sobre as questões do feminino: “Eu estava em uma fase da minha vida, hoje estou com 57 anos, passando por um momento da mulher, da menopausa, que começa a ter a queda de hormônios”.

Em Registros/Records, ela retoma muito daquilo que já havia tratado nos anos 90, vinculado aos tempos em que teve que lidar com o corpo. Se em 1993 ela apresentou a instalação Objetos Aprisionados, com caixas que traziam medicamentos, bulas, radiografias, dentre outras coisas, hoje ela exibe a obra Embala, na qual monta um quadro de colagens de caixas de remédios, e a instalação Registros, onde Nazareth esculpe uma espécie de cachoeira com recortes de radiografias de seus pais.

Apesar de toda a carga pessoal das obras, a artista aponta o cuidado para que cada uma das peças pudessem ter um significado próprio, uma história própria. “Independente dessa minha história os trabalhos precisam se sustentar formalmente”. Neles, portanto, ela buscou enfatizar questões do indivíduo em si, passando por questões de gênero e de inclusão.

É desta forma autobiográfica que ela revisita não só a sua história familiar, mas também toda a sua trajetória como artista. Isso se torna ainda mais concreto com o lançamento do livro contendo seus trabalhos, lançado na abertura do evento. A edição organizada por Regina Teixeira da Costa e construída junto a várias pessoas que rodearam a artista ao longo dos anos possui textos críticos de vários nomes da arte brasileira publicados em outras ocasiões, como Marcus Lontra, Moacir dos Anjos e Tadeu Chiarelli, além de alguns inéditos, como de Cauê Alves.

Além disso, a publicação traz páginas que apresentam uma vasta cronologia da vida de Nazareth, ilustradas com fotos da família, de obras, de residências, dentre outras passagens. Na apresentação, Regina enfatiza que Nazareth ao longo de seus trinta anos de carreira criou obras nas “ao contrário de seus pares, não se preocupou em inserir nesses objetos a expressividade individual de seu gesto, criando trabalhos isentos de romantismo personalista”.


Nazareth PachecoRegistros/Records
Galeria Kogan Amaro
Até 15 de junho

Nazareth Pacheco – Nazareth Pacheco
Allucci & Associados  Apoio Fundação Marcos Amaro -FMA                                                  Org. Regina Teixeira de Barros
R$100
216 Páginas

BIENALSUR se expandirá pela Argentina em junho

Azul Cooper, Ambigua
Azul Cooper, Ambigua, de la serie 'Fragmentadas'. Fotografías y pinturas clásicas - 2014. Obra na mostra que terá curadoria do movimento Ni Una Menos.

A BIENALSUR continua a todo vapor na Argentina. Depois de ativações, em maio, nas províncias de Tierra Del Fuego e Tucumán, estão agendadas para o mês de junho uma série de atividades que acompanham a bienal pelo território do país. Notáveis cidades — San Juan, Córdoba e Rosário — entram na programação do evento, que nesta segunda edição reforça ainda mais o seu caráter multiterritorial. As aberturas na capital, Buenos Aires, também terão o pontapé inicial no próximo mês.

Rosário será a primeira cidade a receber exposições, nos dias 5 e 6 de julho. O destaque fica por conta da mostra integrada Dos museos y un río, que acontece no primeiro dia no Museo de Arte Contemporáneo de Rosario (Macro). Composta por coleções dos museus Castagnino e Macro, ela promove o o diálogo entre obras de uma instituição de arte moderna e de uma instituição arte contemporânea. O objetivo é produzir curtos circuitos e sinergias capazes de intensificar o significado das obras expostas e provocar novas linhas de sentido. Artistas argentinos de intenso apelo ao redor do mundo fazem parte dessa exposição, como León Ferrari e Graciela Sacco.

No dia seguinte, a cidade também sediará a inauguração da exposição Ensayos sobre el trabajo, no Centro Cultural Parque de España, que reunirá obras de artistas desde a argentina até a África. Entre eles Tnani Ali (Tunísia), Yohnattan Mignot (Uruguai) e Catalina Sosa (Argentina).

Mas a ênfase fica mesmo para a exposição que tem organização do movimento Ni Una Menos, trazendo ares da luta feminista à BIENALSUR ao ocupar o Centro de Expresiones Contemporáneas. Recuperemos la imaginación para cambiar la historia, como é intitulada a mostra, se propõe a ser “um arquivo vivo, em constante movimento, que relaciona obras muito contemporâneas, criadas no calor da ação feminista, que não apenas denunciam a cisheteronorma (matriz de nosso sistema), mas possibilitam alternativas e releituras”. Uma proposta que também caminha pela ideia de empoderamento foi inaugurada em Tucumán no último fim de semana, a mostra Heroínas, com obras que incluem fotografias históricas das Mães da Plaza de Mayo.

Em Córdoba, a partir de 13 de junho, o destaque é a exposição (+) MUNDOS (-) IMPOSIBLES, que se dedica a mostrar “formas de habitar o mundo”, com obras de Chiachio & Giannone, Luis Pazos, Juan Carlos Romero, León Ferrari, Liliana Maresca, Marcos López, Romina Casile, Tamara Stuby, Vera Grión, Mariana Collares, Natalia Carrizo, Corina Arrieta, Carolina Andreetti, dentre outros.

Já na última quinzena do mês, em San Juan, a mostra The Body of Time, individual de Bill Viola, aclamado artista estadunidense, considerado o nome mais importante da videoarte, será a bola da vez. Bill Viola já esteve presente no Brasil, em São Paulo, no SESC Paulista. Apresentada no Museu Provincial de Belas Artes Franklin Rawson, a partir do dia 21, ela tem curadoria do brasileiro Marcello Dantas, que declara sobre Viola: “Suas obras são uma meditação sobre a vida, morte, transcendência, renascimento, tempo e espaço”.

 

PretaAtitude. Emergências, insurgências, afirmações: arte afro-brasileira contemporânea

Janaina Barros, Quanto as Bonecas de Bitita Brincam.

Na estrada desde 2018, a mostra PretaAtitude, após exibição em Ribeirão Preto e São Carlos, chega agora em São Paulo, no Sesc Vila Mariana. A exposição está sob a responsabilidade de Claudinei Roberto, artista que também se afirma como curador interessado na produção artística afrodescendente (mas não somente).

A edição paulistana chama a atenção pela quantidade de obras dos 14 artistas convidados, totalmente em conflito com o espaço exíguo destinado à mostra. Uma pena, pois sabemos que o sucesso de uma exposição não está ligado ao número de peças exibidas, pelo contrário: o importante é impedir o excesso. Walter Zanini afirmava que, em uma exposição, em primeiro lugar deve estar a obra de arte. Depois, tudo aquilo que deve valorizá-la. O que isso significa? Em uma exibição, o protagonismo deve ser de todas as obras exibidas e de cada obra em particular. Independente do partido adotado para reuni-las, do tema ou do assunto, ou mesmo da importância já assumida pelos autores das obras (ou pelo responsável pela exposição), o que vale são as condições dadas para que cada obra possa dar-se à exibição plena, sem entraves, sem impedimentos, para que o espectador possa estabelecer contato direto com cada obra em particular, sem que uma atrapalhe a outra pela excessiva proximidade.

É possível estabelecer relações entre as obras que se exibem? É claro que sim. Inclusive, é desejável que isso ocorra, desde que essas relações não signifiquem o comprometimento da percepção de cada uma das obras em suas particularidades. Infelizmente não se percebe esse cuidado em PretaAtitude. O interesse de mostrar a maior quantidade possível de peças de cada artista acabou por prejudicar a plena visualização de grande parte das obras exibidas.

Sublinhada esta questão, é preciso afirmar, no entanto, que PretaAtitude  supera qualquer problema expográfico, na medida em que consegue com sucesso levar a cabo seu principal objetivo: marcar a profunda diversidade de caminhos que hoje em São Paulo apresenta a produção afrodescendente (a maioria dos artistas representados nasceu ou vive na cidade ou no estado). Se no conjunto das obras percebe-se a presença (difusa ou mais intensa, dependendo de cada artista) dos traumas da diáspora africana informando as respectivas subjetividades de seus autores, Claudinei Roberto também se esforça, e com sucesso, para apresentar obras de autores distantes dessas questões, demonstrando que o artista afrodescendente não precisa ser necessariamente identificado somente como aquele que, de maneira explícita, trata dos dramas do passado e do presente de seu povo.

As obras de Rosana Paulino e Sidney Amaral representam em PretaAtitude, dois artistas que conseguem/conseguiram, cada um à sua maneira, introjetar em suas preocupações estéticas questões inerentes às especificidades de suas histórias pessoais em relação à história coletiva dos afrodescendentes brasileiros. E fazem isso muito bem: se Amaral teve seu processo interrompido por morte tão prematura (o que não o impediu de trazer uma contribuição original para a arte brasileira), Paulino vem se firmando como uma das principais artistas de sua geração por sua capacidade em plasmar rigor estético/artístico aos questionamentos sobre a história dos afrodescendentes no Brasil e também sobre uma história da arte que se pretende hegemônica no país.

Se as produções dos dois artistas são, de fato, as mais potentes de PretaAtitude, chamam a atenção também as colagens e bordados de Janaina Barros, deslumbrantes pela delicadeza da fatura, mas, sobretudo, pela ironia fina das narrativas evocadas. Felizmente Janaina está longe de ter se tornado mais um êmulo de Leonilson. Se aqui ou ali, nota-se ainda alguma ressonância dos trabalhos daquele artista, impossível não considerar a singularidades de sua produção ao discutir gênero e raça por meio de soluções plásticas deliciosamente inusitadas.

A produção de André Ricardo, por sua vez, apresenta um jovem mergulhado na pintura, no imbricado jogo entre luz e planos, em que a referência ao real é apenas um mote para realizações no campo pictórico. Impossível ficar diante de suas produções e não perceber ressonâncias da “pintura paulistana” recente, das obras de Marco Gianotti, Paulo Pasta e Fábio Miguez, que André estuda e busca superar. Por último, menciono os papeis de Washington Silveira. A produção que o representa na mostra aponta para o processo de formulação de uma poética em embate frontal com o cotidiano brutalizado de hoje. Ele é um jovem que merece ser acompanhado.

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PretaAtitude, ao apresentar talentos tão variados e potentes, justifica a que veio pois conseguiu abranger a potência e variedade da produção afrodescendente mais jovem (não pela idade dos artistas apresentados, mas pelo frescor de suas produções). Peca pela grande quantidade de obras exibidas em espaço tão exíguo? Certamente, mas esse fato não retira da exposição o seu interesse, sobretudo pela capacidade do curador em não ficar circunscrito unicamente a um determinado tipo de produção, deixando que a diversidade de caminhos ali apresentado oxigene nossos olhares e mentes.

  

Para Danilo Miranda, sem arte, cultura, pesquisa e conhecimento vamos criar uma sociedade de brucutus

Danilo Santos de Miranda. FOTO: Divulgação

Danilo Santos de Miranda, 76, é hoje uma das figuras mais atuantes e influentes na área cultural no país. Diretor regional do Sesc-SP (Serviço Social do Comércio) há 35 anos, promoveu uma enorme expansão e qualificação do trabalho da instituição no estado de São Paulo, voltado para cultura, educação, esporte, lazer, alimentação e meio ambiente. “É isso que eu chamo, amplamente, de sociocultural, esse campo vastíssimo que torna as pessoas mais capazes de se entenderem, conhecerem a si mesmas, conhecerem o outro e conhecerem o mundo a sua volta, indispensável para uma sociedade que pretende melhorar, crescer e se desenvolver”, diz ele em entrevista à ARTE!Brasileiros.

Tamanho reconhecimento da ação do Sesc-SP, que acaba de inaugurar uma grande unidade em Guarulhos, não foi suficiente para tirá-lo da mira do governo Jair Bolsonaro (PSL), especialmente de seu ministro da Fazenda, Paulo Guedes, que afirmou que pretende “meter a faca” no Sistema S. Formado por diversas instituições – como Sesc, Sesi, Senai e Sebrae – o sistema é financiado por taxas compulsórias cobradas na folha de pagamento das empresas (em 2018 teve um orçamento de cerca de R$ 17 bilhões) e tem um controle público através do Tribunal de Contas.

Para Miranda, nunca se viu uma incompreensão tão grande da importância do trabalho do Sesc desde sua fundação, nos anos 1940. “Falta conhecimento dessa complexidade, desses 72 aos de história realizando uma ação muito efetiva pelo Brasil afora e em São Paulo de modo específico. Temos muito capital de conhecimento acumulado, muita bagagem recolhida. Não se pode vir e dizer que vai cortar aqui ou ali pura e simplesmente.”

Mais do que isso, o diretor-geral da instituição, formado em sociologia e filosofia, se diz estarrecido com a falta de percepção da importância do conhecimento, da filosofia, da ciência, da pesquisa, do estudo, das artes e da cultura. Sem isso tudo, diz ele, surge o risco de formarmos um país “supermaterializado”, onde só vale aquilo que tem resultado prático e palpável. “E isso é o início do debacle, o início do fim, porque significa ter um povo sem informação, sem conhecimento e sem participação efetiva na sua história, no conhecimento de suas raízes, suas origens, seus destinos, suas perspectivas. E sobretudo é uma ameaça do ponto de vista ético, porque a partir daí vale a lei do mais forte, a lei do mais violento. E aí vamos criar uma sociedade de brucutus, o que é muito perigoso para o país.”

Leia abaixo a íntegra da entrevista.

ARTE!Brasileiros – O Sesc acaba de abrir uma unidade em Guarulhos. Qual a importância dessa inauguração para o Sesc e para a cidade de Guarulhos?

Danilo Santos de Miranda – É muito importante para a cidade, para o Estado, enfim, para tudo o que nós fazemos. É uma realização já planejada há algum tempo, assim como outras que temos em previsão, e ela tem praticamente uma síntese da ação que o Sesc realiza. Tudo que o que fazemos está lá em Guarulhos. É uma unidade bem completa, eclética, bastante ampla, generosa do ponto de vista espacial e do ponto de vista programático. E está em uma cidade que tem a segunda maior população do Estado, depois da capital, e que estava carente de uma unidade com as características que o Sesc oferece. Então para nós é um encontro imenso de interesses. O nosso interesse em expandir a ação da instituição e o interesse enorme da cidade em ter um Sesc que pudesse atender a sua população e a das cidades próximas também. Existe ali perto uma população bastante carente, periférica, que necessita de muitas coisas que nós realizamos.

Existe nesta unidade uma pauta ambiental muito forte. É algo que o Sesc está buscando aprofundar?

Nós recebemos ali o complemento de uma área que quase dobra nosso terreno, e que é voltada para um programa amplo de educação ambiental junto às escolas do bairro e da cidade, junto à população e aos formadores de opinião. Ou seja, pensar sobre a relação com a natureza de um modo geral, pensar de maneira adequada sobre o uso dos produtos que a natureza oferece, seja para a alimentação, seja para a vivência das pessoas, para tudo que nós temos à disposição. Teremos oficinas, encontros, debates e a oportunidade até mesmo de realizar experiências com as crianças no que diz respeito à produção ligada à natureza, plantando, colhendo e realizando uma ação bastante efetiva.

Isso significa, portanto, que apesar das ameaças de cortes no Sistema S, o Sesc segue trabalhando normalmente, sem retrair sua atuação por medo do que pode vir?

Exato. Claro que nós temos uma antena muito bem ligada em tudo que está acontecendo à nossa volta. Mas é claro também que o modo mais prático e objetivo que temos é continuar trabalhando e mostrando a importância e o significado do que fazemos para a sociedade, para a população, para a melhoria de vida. Então nós tocamos esse barco com a maior naturalidade, querendo mostrar para as pessoas, sejam as que frequentam ou as que tomam decisões atualmente no país, que o que nós fazemos é indispensável, essencial para a população, para a sociedade e para o desenvolvimento do próprio país.

Isso é uma maneira, digamos, de reafirmar não a nossa importância enquanto instituição, não de dizer que a gente faz o melhor programa do mundo – não se trata de uma afirmação institucional pela vaidade, isso não nos interessa –, mas simplesmente de dizer que o campo sociocultural de modo geral, esse campo vastíssimo que torna as pessoas mais capazes de se entenderem, conhecerem a si mesmas, conhecerem o outro e conhecerem o mundo a sua volta, é indispensável para uma sociedade que se pretende melhorar, crescer e se desenvolver. Então nós temos que entender isso como algo absolutamente essencial. E a maneira que nós temos de fazer isso é continuar o nosso trabalho, levar adiante.

O Sesc, e mais especificamente o Sesc São Paulo, tem um longo e reconhecido trabalho nas áreas da Cultura e da Educação. Cultura e Educação, justamente, são áreas que parecem bastante ameaçadas nas políticas do atual governo federal. Como o senhor enxerga esse momento e quais os riscos que vê para a sociedade com as novas políticas e propostas? 

Eu acho muito perigoso, sobretudo, uma manifestação que se ouve com relação ao conhecimento, à informação, à ciência, à filosofia, à sociologia, como se fossem inimigos de um país que pretende se desenvolver, crescer e melhorar para todos. E também contra as artes e as manifestações do simbólico de modo geral, como se fossem coisas supérfluas, desnecessárias, desimportantes. Esse campo todo que eu chamo, muito vastamente e amplamente, de campo do sociocultural, seja do conhecimento ou seja das práticas, é vital e essencial. Eu espero que percebam cada vez mais e melhor como é perigosa essa afirmação de que o conhecimento, a filosofia, a ciência, a pesquisa, o estudo, as artes e a cultura não são importantes. Isso é muito perigoso e significa a formação de um país supermaterializado, onde só vale aquilo que tem resultado prático e palpável. E isso é o início do debacle, o início do fim, porque isso significa ter um povo sem informação, sem conhecimento e sem participação efetiva na sua história, no conhecimento de suas raízes, suas origens, seus destinos, suas perspectivas. E sobretudo é uma ameaça do ponto de vista ético, porque a partir daí vale a lei do mais forte, a lei do mais violento. E aí vamos criar uma sociedade de brucutus, o que é muito perigoso para o país.

Nesse sentido, como o senhor mesmo disse em entrevista recente à Folha de S.Paulo, existe um discurso de que as instituições do Sistema S deveriam focar principalmente na formação de profissionais, no que o senhor chamou de uma “perspectiva economicista precária”. Poderia explicar melhor o que quis dizer?

Existem dentro do chamado Sistema S as instituições vocacionadas para a formação profissional, que são necessárias e importantes desde os anos 1940, que foram criadas com essa perspectiva. Mas existem também dentro do Sistema S outras instituições que não são para isso, que trabalham na perspectiva do bem-estar, do lazer, da cultura, do esporte inclusivo e democrático – o esporte não competitivo, mas que inclusive abriu caminho para muitos atletas profissionais, como o Pelé, por exemplo. Isso tudo faz parte da nossa proposta como algo inerente ao nosso dia a dia. E uma coisa que eu acho fundamental, e digo sem querer gerar polêmica, é que, se conhecerem mais profundamente o nosso trabalho, se mergulharem efetivamente no que nós fazemos, do ponto de vista educativo, eles vão provavelmente não só respeitar e considerar os recursos que temos como adequados, ou irão até mesmo pensar em destinar mais recursos para que isso possa ser feito. Porque essa é, do nosso ponto de vista, a grande formação do povo, de uma maneira mais integral, mais plena, onde todos os aspectos do ser humano são levadas em conta. E aí não estou falando só da cultura e da educação, mas das atividades físicas, da alimentação, da saúde de modo geral, da questão ambiental, da nossa relação conosco mesmo, com o outro e com a sociedade à nossa volta. Tudo isso é essência do processo educativo, que nós procuramos fazer da maneira mais completa possível.

O Sesc Pompeia, projetado por Lina Bo Bardi e inaugurado em 1982. FOTO: Divulgação

A pluralidade de opiniões e de manifestações artísticas, o respeito à diversidade e o espaço para debates e discordâncias são marcas das atividades do Sesc. Você diria que essa é uma característica que incomoda alguns de nossos governantes, que parecem ter pouco apreço pela pluralidade e pelo debate?

Pode ser que sim. A diversidade é essencial em uma sociedade plural como a nossa. Em qualquer sociedade, eu diria. E, nesse sentido, contemplar as diversas linguagens e todas as questões que dizem respeito à diversidade – no tocante a raça, cor, religião, opção sexual, ao modo de enxergar as coisas, às visões sobre nossa história e política –, tudo isso é indispensável. E essa variedade é, sem dúvida, parte do DNA de origem do Sesc. Então a diversidade está na nossa essência, no nosso dia a dia.

Por um lado, o senhor fala de uma incompreensão do trabalho que é feito pelas instituições do Sistema S, do papel da arte e da cultura. Mas existe também uma percepção, por parte de muitos membros deste governo, de que as áreas culturais e as universidades seriam os nichos da esquerda, espaços de doutrinação, num discurso que cita um suposto “marxismo cultural”. Isso não significa que, mais do que uma incompreensão, existe mesmo uma escolha clara de um inimigo a ser combatido, digamos assim?

É verdade. E não classifica-se apenas genericamente as universidades e entidades, mas especificamente professores, artistas e intelectuais. Porque essas pessoas comprometidas com a análise social, com a visão ampla da sociedade em todos os sentidos, o artista que tem essa vocação não apenas de criar o encanto, o encantamento, mas também de apontar as questões e trazer à baila discussões sobre temas bastante polêmicos, fazem isso com a intenção de melhorar a sociedade. Partem do princípio de que a sociedade necessita evolução. Nós temos um grande, imenso e gravíssimo problema no país chamado desigualdade. Isso não precisa ser de direita, esquerda ou centro. É uma constatação objetiva, direta, está aí. Então qualquer pessoa com alguma sensibilidade, com algum conhecimento, com algum esforço, ao perceber isso, se torna uma pessoa com atitudes, opiniões e manifestações que são coerentes com esse ponto de vista. É natural, normal. Se de repente alguém considera isso uma posição contra o estado ou uma posição necessariamente esquerdista, isso é uma precipitação sem sentido.

Trata-se de uma evolução natural de qualquer sociedade, não da nossa. O pensamento sobre a necessidade da igualdade como patamar para uma vida melhor para todos é uma coisa natural. Isso é comunismo? Isso é marxismo? É exigir que todo mundo seja igual? Não, isso é a gente desejar que a sociedade seja melhor para todos, não apenas para alguns. Então nesse sentido existe uma atitude, no meio cultural, de apontar, contestar, polemizar e até mesmo transgredir. E estou falando aqui de transgredir do ponto de vista estético, não do ponto de vista legal e moral. As coisas mudam. O que seria da arte contemporânea se o Picasso em um determinado momento não tivesse rompido com os padrões da época e transformado sua arte em algo absolutamente revolucionário? E hoje, inclusive, ele já é visto como um homem do passado… Então do ponto de vista do pensamento de modo geral, da estética, existe uma evolução natural. Ou quem lida por exemplo com a discussão sobre gênero, que é um entendimento muito mais atual, presente e necessário – inclusive agora com a criminalização da homofobia.

Enfim, o que eu quero dizer é que trata-se de algo que a sociedade naturalmente evolui. Não adianta se colocar contra determinadas ações que vêm da sociedade, porque elas naturalmente se impõem, vão mais longe. Mesmo que não haja nenhum apoio ao mundo da cultura, aos artistas, que cortem a Lei Rouanet, mesmo que tudo seja vetado, não vai acabar com a cultura do país. Porque ela é natural, vem de qualquer jeito, vem como uma enxurrada em cima daqueles que eventualmente achem que isso não tem a menor importância. E provavelmente são aquelas pessoas que são contra a cultura e quando pegam o carro a primeira coisa que fazem é ligar o rádio para ouvir uma música. É natural, estão consumindo cultura o tempo todo, falando uma língua, usando uma roupa, se alimentando de um determinado jeito… e não percebem que estão consumindo cultura todo o tempo.

Estávamos falando mais dos possíveis cortes no Sistema S, mas o senhor falou agora também da reformulação na Lei rouanet. Houve ainda a retirada de patrocínios para projetos culturais por parte de empresas públicas e outras iniciativas nessa linha…

É lamentável. E inevitavelmente a sociedade reagirá de uma forma ou de outra.

Para o ex-ministro da cultura Juca Ferreira, hoje em dia quem trabalha com cultura está com medo, acuado. Você percebe este clima?

Noto manifestações das mais variadas. Noto que há um temor, já com as muitas dificuldades e impactos concretos. Isso gera um clima de bastante insatisfação. No meu contato com as universidades, do mesmo modo, percebo esse medo. Por outro lado posso dizer que vejo alguns sinais de boa vontade. Tive contato com algumas pessoas no próprio governo, na Secretaria de Cultura do Ministério da Cidadania, que estão atentas e bem-informadas, buscando caminhos para a superação dos problemas. Então há uma certa contradição no todo, mas talvez tenhamos algum caminho para encontrar saídas no futuro.

Nesse sentido mais propositivo, de buscar caminhos, como o senhor pensa que pode haver uma resistência à essas ameaças às áreas da Cultura, da Educação e ao Sistema S. É preciso vir à público, se unir, se manifestar?  

A primeira coisa que eu acho é que é preciso se manifestar. Eu tenho vindo à público quando posso, como responsável por uma instituição que pertence a esse “grupo dos S”. Acho que temos que falar, discutir. No nosso caso, apesar de discussões em andamento no governo, ainda não houve uma atitude efetiva de corte, um decreto, uma lei, uma proposta…

É mais um discurso do que uma prática?

Sim. E se isso vier a virar prática eu acredito que haverá uma natural reação – não estou pregando nada, mas observo de fora – de muita gente. E essa reação poderá desdobrar dentro do parlamento, da Justiça, de todas as instâncias que o país tiver, para poder esclarecer, aprofundar e tomar as decisões da maneira mais correta possível. Porque existe uma questão programática, ou seja, da importância das ações dessas instituições, mas além disso elas tem um arcabouço legal muito sólido, que não é tão fácil de retirar como se elas fossem parte do Estado, porque não são. Na realidade falta conhecimento dessa complexidade, 72 aos de história realizando uma ação muito efetiva pelo brasil afora e em SP de modo especial. Então isso tem muito capital de conhecimento acumulado, muita bagagem recolhida, então não se pode vir dizer que vai cortar aqui ou ali pura e simplesmente.

 

 

 

 

Mostra na Galeria Estação traz Samico na sua essência

"O Urubu de Pedro", 1963.

Nos últimos anos não foram poucas as exposições que apresentaram a obra de Gilvan Samico (1928-2013). Especialmente após sua morte, mostras dentro e fora do país, individuais ou coletivas – como a 32ª Bienal de São Paulo – ajudaram a difundir ainda mais o trabalho do célebre gravurista pernambucano. “Acho que antes ele era tratado principalmente como um artista regional e, com os anos, ganhou o status de um artista maior, nacional”, afirma o curador Ivo Mesquita.

O aumento no número de mostras sobre Samico não diminui, no entanto, a relevância da exposição apresentada a partir deste 28 de maio na Galeria Estação, em São Paulo, com curadoria de Mesquita e a presença de 31 gravuras do artista (26 já adquiridas pela Fundação Marcos Amaro para o acervo da FAMA). Não apenas pela quantidade expressiva de obras reunidas, mas por dar conta de diferentes fases da produção do pernambucano, num panorama que faz da exposição, segundo o curador, “quase uma retrospectiva”.

“Ciclistas”, de 1959.

Estão ali obras das três principais fases em que se costuma dividir a produção de Samico. Primeiro, gravuras em preto e branco dos anos 1958 e 1959, período em que o artista estudou com Lívio Abramo, em São Paulo, e Oswaldo Goeldi, no Rio. “Nesta etapa é interessante ver que, ainda que tenha dois mestres figurativos e faça uma gravura mais figurativa, ele já revela um pensamento abstrato na criação de sua obra. Na estruturação da composição, por exemplo, há sempre um jogo muito particular de formas e uma textura bastante elaborada na exploração da madeira”, diz Mesquita.

Na segunda fase, durante os anos 1960, Samico aproxima-se do universo do cordel e das tradições populares nordestinas. O branco passa a predominar sobre o preto, e outras cores aparecem sobriamente – “possivelmente um aprendizado que teve com Goeldi” –, enquanto os gestos no talho da madeira tornam-se mais profundos e econômicos. “Há um processo de simplificação na construção das figuras, dos animais, das paisagens”, explica Mesquita. “As obras vão ganhando uma qualidade mais gráfica, mais rude, digamos, próximas de um procedimento que vem da xilogravura e que tem a ver com a matriz de madeira da literatura de cordel”, explica.

“O Urubu de Pedro”, 1963.

É também o período em que Samico constitui seu repertório amplo de referências, o qual transita não só pelo universo vernacular e do cordel, mas também por temas bíblicos, mitológicos e, segundo Mesquita, até mesmo do tarô. Imagens fantásticas ou do mundo terreno, dragões, serpentes e outros animais, estrelas, luas, humanos, anjos ou seres híbridos passam a criar narrativas e povoar as gravuras do artista – até o fim de sua vida.

É a partir do final dos anos 1960 e principalmente na década seguinte, quando cria um diálogo estreito com o Movimento Armorial capitaneado por Ariano Suassuna – que prega a valorização da cultura nordestina –, que Samico desenvolve o que Mesquita chama de “o estilo Samico”. Ou seja, o estilo pessoal pelo qual ficou mais conhecido e que marcou sua obra daí para a frente, no qual um pensamento geométrico resulta em composições articuladas, hierarquizadas e muitas vezes simétricas, com imagens emblemáticas e simbólicas de forte apelo ótico.

“As pessoas identificam aquelas figuras, animais, plantas, mas ao mesmo tempo tem uma coisa que eu acho que capta o olhar, que é a coisa da simetria. A repetição, a combinação dos elementos são muito intrigantes. E a predominância do branco e preto tem um apelo muito forte.”

“O Rapto do “Sol”, 1984.

De 1977 até sua morte, Samico estabeleceu um padrão claro de trabalho, adotando um tamanho padrão de matriz e produzindo apenas uma gravura por ano. No que Mesquita chama de “espirito calvinista”, o artista passava meses estudando e criando, disciplinadamente, cada detalhe das obras, até chegar ao desenho final. A perfeição e exatidão de cada traço, a limpeza de cada corte, segundo o curador, era o resultado desse longo processo, de um árduo percurso.

“Cada elemento, cada figura, um animal, uma tartaruga, uma estrela, um dragão… Tudo é objeto de dezenas de desenhos e estudos”. Se Samico era uma figura muito discreta e reservada, que preferia ficar em sua casa em Olinda do que circular e fazer viagens para divulgar seu trabalho, talvez isso não fosse à toa: “Ele tinha que fazer muitos e muitos desenhos para resolver cada tartaruga”, brinca Mesquita.

SAMICO

Galeria Estação – Rua Ferreira de Araújo, 625 – Pinheiros

De 28 de maio até 13 de julho de 2019

Entrada gratuita

Mostra na Pinacoteca revela projeto indigenista de Ernesto Neto

Ernesto Neto
Obras da exposição "Cura Bra Cura Te" de Ernesto Neto Foto: Levi Fanan

Poucos artistas conseguem atualizar a radicalidade da produção artística brasileira, onde o corpo fazia parte da obra, nos anos 1960 e 1970, como Ernesto Neto. É o que se pode comprovar na mostra Sopro, em cartaz na Pinacoteca do Estado até 15 de julho. Em suas obras e de forma original, Neto consegue reunir tanto as propostas de vivências coletivas de Hélio Oiticica (1937 – 1990) em seus Penetráveis, quando buscava criar espaços de convivência, quanto às ativações do corpo por meio de experiências com diferentes materiais, como propunha Lygia Clark (1920 – 1988) em seus Objetos Relacionais.

Contudo, enquanto há 50 anos essas práticas buscavam reformular as bases da arte, Neto, já livre deste fardo, vem trabalhando em uma agenda mais atual e necessária: um “projeto de indigenização da vida”, na definição de Els Lagrou, antropóloga e professora da UFRJ, no catálogo da mostra.

Na Pinacoteca, essa prática se consubstancia na instalação do octógono, que acolhe cinco ativações participativas abertos ao público ao longo do período expositivo. As próximas ocorrem no próximo sábado, dia 1 de junho, e depois nos dias 29 de junho e 13 de julho.

A relação do artista com a questão indígena vem sendo tema de debates, nos últimos anos, especialmente quando de sua participação na Bienal de Veneza, há dois anos. As polêmicas se resumem na questão: Qual a legitimidade de um artista branco apropriar-se do discurso de outras povos e culturas? Entender o lugar de fala é, atualmente, um dos desafios de qualquer tipo de discurso que busca “representar” o outro. Sem dúvida é um tanto estranho quando artistas se autorretratam como índios e vendem ou expõem essas pinturas sem qualquer compromisso maior com a questão. Estamos aí no terreno da mera representação, e foi exatamente contra esse tipo de postura que Oiticica e Clark se rebelaram.

Desde 2013, contudo, Neto tem se envolvido com o povo huni kuin, no Acre, de forma engajada, participando de seus rituais e os incorporando a suas mostras, no Brasil e no exterior, como ocorreu em Veneza.

Na Pinacoteca, essa participação ocorre no octógono, nas ativações em torno de um grande tronco “que precisa ser curado” e, para tanto, vai sendo engolido por um imenso pingente.
“Somos filhos de três continentes, mas sabemos de um, só nos ensinam um, só valorizamos um”, escreve Neto nas paredes da mostra, explicitando o deslumbre com a cultura europeia dos “toscos brasileiros”, como brilhantemente definiu Christian Dunker em texto para ARTE!Brasileiros.

“Somos filhos de três continentes, mas sabemos de um, só nos ensinam um, só valorizamos um”, escreve Neto nas paredes da mostra

“Chegou a hora de ouvir a espiritualidade de nossa terra, de nossas plantas, rios e árvores, chegou a vez de ouvir”, defende o artista. É aqui que se explicita o tal projeto de indigenização, já que os chamados povos das florestas buscam a qualidade intrinsicamente relacional de todo ser, humano e não humano, o que Lagrou define como “estética relacional ameríndia”.

“Chegou a hora de ouvir pajés, babalorixás, yalorixas”, prega Neto, e a programação das ativações abrange essas vozes silenciadas na história do Brasil, mas que nas últimas décadas vem conquistando espaço. Estarem agora na Pinacoteca é não só uma proposição do artista, mas consequência da luta que esses povos vêm empreitando. Sopro, no entanto, vai muito além do octógono e, nos diversos espaços onde ela ocorre, revela-se como faz sentido na carreira de Neto a poética que ele defende agora.

Essa sintonia com uma cosmogonia indigenista, onde humano e não humano são vistos como parte de um todo, afinal é central em suas diversas instalações, que pedem a presença do outro, que contaminam o ambiente com odores, que propiciam o encontro, que tocam, acariciam e envolvem.

O plasticismo que se vê nas obras dos anos dos anos 1980 à primeira década do século 21 é deslumbrante: nas formas, nos materiais, nos volumes e nas dimensões. Há uma estruturação orgânica em sua linguagem confortável a todos sentidos, o que é até raro em arte contemporânea. Mas a potência máxima chega agora nesse “projeto indigenista”, politizando de vez o que era discreto, e transformando Ernesto Neto em uma espécie de xamã nos tempos da cólera.

Ernesto Neto: Sopro
Pinacoteca de São Paulo – Praça da Luz, 2, São Paulo
30 de março a 15 de julho

 

 

“Chacina da Luz” exibe a falência do espaço público

A Chacina da Luz é uma exposição intraduzível, cercada de incertezas, ambiguidades, indignação, lacunas, apagamentos. Reabre o debate em torno do atentado de 2016 a oito esculturas do século 19 que circundavam o Lago da Cruz de Malta, no Jardim da Luz. Na mesma praça, a mais antiga de São Paulo, que abriga a Pinacoteca do Estado, um dos acervos mais relevantes da pintura brasileira do século 19. O ataque, aparentemente sem vínculo ativista, evidencia a desinformação da noção do bem público. Ninguém sabe quem cometeu a barbárie e muito menos a autoria das esculturas depredadas, dois fatos comprovam o total desinteresse brasileiro pela arte pública.

A exposição começa no momento em que a curadora Giselle Beiguelman tem acesso ao laudo policial e visita os despojos das esculturas na casa do administrador do parque. A coragem de demonstrar, nesse momento obscuro político do Brasil, que tudo o que envolve as coisas públicas tem que vir a público e ser discutido, torna a mostra política por sua implicação e emancipadora pelo debate que provoca. A instalação toma a sala principal do Solar da Marquesa de Santos e é, segundo Giselle, um ready-made em um contexto fechado, tal qual ela o encontrou no porão da casa do administrador. “Por três anos os fragmentos estavam lá protegidos, e eu decidi montar a instalação exatamente como as peças estavam dispostas no depósito. Queria reproduzir a cena pós crime. ” O desenrolar da exposição revela detalhes e confronta o espectador com as várias faces desse atentado. Todos os fragmentos foram resgatados e estão na mostra, dando provas de que as esculturas podem ser restauradas, embora não haja o parecer de um especialista. A montagem das peças e sua disposição no piso produzem a sensação de estarmos suspensos sobre a obra.

Para entender como uma artista consagrada em arte digital chega ao tema sobre patrimônio histórico, voltamos a 2014, quando Giselle é convidada para participar da 3ª Bienal da Bahia, onde fez pesquisa no arquivo histórico daquele estado. “Considero esse trabalho um divisor de águas, porque até então eu só tinha me envolvido com a mídias digitais. Em Salvador, trabalhei em um lugar onde se acendesse a luz pegava fogo, então me reinventei”.

Em Chacina da Luz, Giselle toca em outra face das narrativas historiográficas e retoma um episódio constrangedor para uma cidade como São Paulo, que se vê como capital cultural do País. Para a curadora, é a “cicatriz de nossa falência com o espaço público”.

Giselle reacendeu o debate e documentou tudo, passo a passo. “Para realizar essa mostra criamos uma equipe de especialistas. O making off da montagem vira um statement do momento que estamos vivendo”. A curador fechou ruas, usou dois guindastes, passou obras pesadíssimas por cima do pórtico do Beco do Pinto, uma curta e estreita passagem, vizinha ao Solar. Nas escadarias do Beco montou a segunda instalação, Monumento Nenhum, outro enigma para decifrar-se, afinal não é tarefa simples dar forma e nome à desordem. Giselle coloca foco na opacidade que atravessa o patrimônio público brasileiro que se traduz nas pilhas de pedestais, bases e fragmentos de monumentos desaparecidos, roubados ou atacados e que compõem um cenário de desolação. São peças encontradas pela curadora no Departamento do Patrimônio Histórico, no Canindé. A temporalidade fragmentada e a tentativa de compreensão da matéria podem levar o visitante às perguntas. Por que essas peças foram desmontadas? Onde estão as obras que sustentavam? Por que foram descartadas?.

Com raros ou nenhum vestígio de seu passado, esses enigmáticos fragmentos enfatizam a ideia de abandono. Entre eles, pode-se localizar as patas de cavalo que figuram na base de granito bordado com alto relevo do conhecido monumento do Duque de Caxias. Giselle lembra que a base desse trabalho, criado por Brecheret, é considerada a mais alta já feita para uma escultura equestre. “A mutilação ocorreu em 1991 durante um confronto entre a polícia e trabalhadores”.

No depósito do Canindé também foram recuperados alguns postais com fotos dos fragmentos que hoje se tornam prova, objeto de desejo, lembrança. No Solar, eles estão dispostos em gavetas de um arquivo à disposição do público que pode levá-los. No verso deles estão impressas as fichas técnicas e informações sobre cada peça exposta.

As duas instalações trocam o lugar da arte dentro das políticas públicas de memória. Aqui é a arte que provoca o debate sobre memória e esquecimento no espaço público. O efeito que ambas causam no visitante é de indignação diante da passividade do sujeito contemporâneo, com a destruição sucessiva dos bens culturais brasileiros do passado.

Mostra de Nuno Ramos inaugura filial da galeria Kogan Amaro na Suíça

Exposição de Nuno Ramos em Zurique. FOTO: Nelly Rodriguez

A galeria Kogan Amaro inaugura, com exposição do artista Nuno Ramos, sua filial na cidade de Zurique, na Suíça. A casa paulistana, localizada na região dos Jardins, abre seu espaço no continente europeu dentro do centro cultural Löwenbräu-Kunst, onde dividirá o local com outras galerias e instituições de arte.

Com abertura nesta sexta, 24 de maio, a mostra Sol a Pino reúne duas séries de desenhos e duas pinturas de Nuno Ramos, nas quais o artista “descreve seu desejo de solarização, uma tentativa de alegria em tempos soturnos”, segundo texto de apresentação da mostra.

Se as pinturas materializam cores fortes sobre madeira – com o uso de tinta, óleo, parafina, vaselina e pó -, os desenhos, mais obscuros, dialogam com os mitos gregos de Antígona e Cassandra, gerando contrastes e fricções já comuns no trabalho do artista.

A escolha de Nuno para a estreia da Kogan Amaro na Suíça, segundo os galeristas, foi tomada pelo desejo de oferecer um trabalho plural e abrangente à cena internacional, com um artista já consagrado no cenário nacional.

Ensaio sobre o “Tosco Brasileiro” na Filosofia e nas Artes

CHRISTIAN DUNKER

Tosco é uma palavra que tem duas raízes semânticas: o que se apresenta de forma natural e autêntica, mas também aquilo que é feito sem apuro ou refinamento, algo rústico ou grosseiro. Estima-se que o termo é uma alusão aos habitantes da Toscana, esta região da Itália onde viviam os Etruscos. Como habitantes mais antigos da península Itálica foram considerados um povo bárbaro, rude e relaxado (toscu). Tosco pode ser um verbo, não um adjetivo, que traduz a ação de ver de longe, avistar ao largo ou perceber à distância. Estamos em alinhamento com a ideia de ver de relance, formar uma ideia rápida sem se aproximar do objeto ou sem aprofundamento da experiência. O ato ou efeito de tosquiar parece perfeito para a arte de transmitir grandes ideias sem detalhe, de formar juízos contundentes sem examinar suas consequências, ou de declarar coisas que não podem ser traduzidas em transformações reais quando vistas de perto.

É possível que daqui a dez ou quinze anos os historiadores da arte venham a caracterizar este período, entre 2016 a 2022, como o apogeu do Tosco Brasileiro. A expressão poderá então ser comparada ao romantismo inglês, ao pós-modernismo americano ou ao barroco alemão, como nossa pequena contribuição ao concerto universal das nações.  A questão filosófica que define o Tosco é: “para que serve?” Ela não é nova na história da arte e nem da sensibilidade brasileira. No fundo ela parte de uma indagação relevante que é questionar as formas incompreensíveis, os funcionamentos opacos ou as linguagens segregativas que determinam a posição de uma certa elite. Todavia, o que caracteriza o novo Tosco brasileiro é a apropriação desta interpelação por um outro tipo de elite, que parasita a denúncia como modo de produção de uma certa autoridade, ao mesmo tempo que mimetiza a ética do trabalho e da produção. Esta elite entre aspas não popular, mas emergente. Ela desdenha da cultura e da educação como meios de ascensão social, pois descendem da antiga aristocracia, para a qual isso jamais passou de um adereço secundário ou de um sintoma de sua incerteza identitária. Por isso, no fundo o novo Tosco Brasileiro é o retorno do coronel de engenho recalcado contra a impostura do síndico bem-comportado. Por isso o novo Tosco Brasileiro é a expressão estética e filosófica de nosso choque de incivilidades.

O cristianismo tosco ignora as controvérsias históricas milenares sobre a hermenêutica bíblica. O “Pancadão” tosco diz bem alto coisas feitas para chocar, como corpos de cachorras latindo. A filosofia tosca de Olavo de Carvalho nos oferece rapidamente um ponto de vista da totalidade: uma conspiração gay-comunista apossou-se da educação e do Estado, via Foro de São Paulo, contra ela devemos retomar os valores medievais. Tudo isso baseado na retórica do “cu”, “bunda” e “merda”, mas sem diálogo algum com a irreverência de um José Celso Martinez Correia.

Faz parte do Tosco Brasileiro praticar um tipo de relativismo absolutista. Como todas as opiniões são igualmente válidas e como todos os pontos de vista são equalizados segundo uma diferença muito simples, do tipo esquerda ou direita, a força de minha enunciação é absoluta enquanto tal. Daí que o método fundamental do Tosco Brasileiro é a gambiarra, termo que originalmente refere-se à extensão irregular de uma linha de iluminação ou uma “ligação fraudulenta”, que é de toda forma precária e feia, improvisada ou feita conforme as circunstâncias, ao estilo arquetípico “jeitinho brasileiro”. Percebe-se assim como o tosco é o retorno da corrupção recalcada. No teatro gambiarra é um tipo de iluminação frontal feita para reduzir sombras indesejadas e para que o artista não perca a concentração, por meio desse artifício as luzes da ribalta encobrem a plateia, transformando-a em uma massa sem rosto, a gambiarra protege o ator de sua imperícia. Na computação o conceito de gambiarra refere-se a procedimentos que alcançam seu fim sem elegância ou concisão nas operações. O tosco não é uma expressão popular, republicana, no sentido da praça paulista de artes ou realmente ingênua, mas a voz das classes médias interessadas em denunciar, de modo interpassivo [1], a impostura das elites. Subentende-se assim que toda “elite” deve ser reconhecida entre aspas, porque a única elite autêntica e verdadeira é a elite tosca, sem aspas.

O traço característico do Tosco Brasileiro é aquele gesto a-mais, que torna uma obra mediana um exagero intolerável. Por meio de uma paródia involuntária, o artista produz um efeito de denúncia ao mesmo tempo que se defende pela afirmação de sua irrelevância. Esta é também a fórmula ambígua do fake-news: para os crentes seduz, para os advertidos auto-ironia condescendente. Esta reapropriação de materiais conforme as circunstâncias é uma reprodutibilidade técnica jamais intuída por Benjamin.

O Tosco Brasileiro é uma releitura nacional involuntária da estética do precário. Precário, deriva do latim precarius, “obtido por meio de prece; concedido por mercê revogável; tomado como empréstimo; alheio, estranho; passageiro“. Precário significa, entre outras coisas, “pouco, insuficiente, escasso” ou “que tem pouca ou nenhuma estabilidade; incerto, contingente, inconsistente”. Baudelaire já havia definido a modernidade estética em termos de uma precária busca do transitório, do fugitivo, e do contingente.

Para Nicolas Bourriaud a precariedade é uma reflexão ética sobre a arte contemporânea intimamente ligada com a definição de realidade. Também Judith Butler tematiza vida precárias como vidas dignas de cuidado, dada sua desfiliação e vulnerabilidade. Segundo Hal Foster nenhum conceito inclui melhor toda a arte da década passada do que a precariedade.

No Museu Precário de Albinet (2004) Thomas Hirschhorn deslocou para a periferia de Paris obras originais de Duchamp, Malevitch, Mondrian, Warhol, Beuys, Le Corbusier, Léger e Dali. Abrigadas em barracos de madeira e pequenas lojas a céu aberto, combinada com cópias e utensílios baratos na periferia cria-se o efeito  de fora de lugar, de ambiguidade e de deslocamento imanentes a uma ética do refúgio.  Em “25%” de Francesc Torres, na 55 Bienal de Veneza encontramos oito cidadãos ”precários” representando o vasto exército de desempregados, jovens e velhos, homens e mulheres, de diferentes origens e profissões cuja vida vai perdendo o valor. Ana Gallardo em “Um lugar para vivir quando seamos viejos”, no Mamba,  cinco fones de ouvido pendem do teto contanto histórias de recepcionistas, recepcionistas, telefonistas, promotoras de  vendas, contrabandistas de bijuterias. Em  Materiais de construção do pavilhão da Espanha” instalação da artista de Lara Almarcegui o pavilhão de um edifício, construído em 1922, é ocupado com escombros de construção triturado, pilhas de tijolos, cimento, terra e vidro.

Mas nada disso se encontrará no Tosco Brasileiro que consiste na negação da experiência da precariedade e na recusa ao reconhecimento da precariedade como a estética do sem lugar (estrangeiro, migrante, imigrante), do animal (híbrido, inumano, sem lei, sem regra) e do monstro (corpo invisível e indiscernível). Por isso historicamente a ascensão do Tosco Brasileiro é antecedida pela repressão ostensiva das exposições como a Queermuseum, em Porto Alegre da História das Sexualidades, no MASP e da performance sobre a nudez em La Béte, no MAM de São Paulo. O Tosco Brasileiro é uma inversão não dialética da estética da precariedade. Ele parasita a força da autenticidade contida na noção de vidas desamparadas, mas o faz em nome de uma recuperação bélica da potência. Daí que ele opere segundo uma lógica de inversões ressentidas. O machismo como inversão não dialética do feminismo. Como se a violência justificasse a violência. Ele substitui o que Freud chamava de chiste, com sua elaboração de palavra e pensamento, pelo cômico, com sua lógica segregatória baseada no gozo e no ridículo sobre a miséria do outro, como vemos em Danilo Gentili.

Em vez do reconhecimento do desamparo (Hilflosichkeit), como condição comum e universal tal inversão cria uma cisão entre os “cidadãos de bem”, que merecem a proteção do Estado, e os “inimigos do povo”, que ameaçam nossas crianças. Nesta medida o Tosco Brasileiro encontra suas raízes na retórica do realismo socialista. Tudo que é mostrado deve possuir a potência do exemplo. Se não tiver propensão pedagógica deve ser suprimido.

A educação presume a assimilação imitativa de mitos e heróis, não havendo espaço nem lugar para o anti-modelo, para a crítica ou para a indeterminação. Privilegiando a simplicidade devemos escolher padrões demonstrativos acessíveis e linguagem icônica ou geométrica. A ideia de um herói central, de tipo paternalista, que se comunica com o povo diretamente ao modo de uma onipresença contrasta com a imagem do trabalhador-tipo, que deve ser representado unidimensionalmente como uma espécie de empresário de si mesmo.

A arte deve ser, sobretudo, útil ao sistema. A tese será encontrada também no alegorismo nazista, com seu retorno aos heróis mitológicos e guerreiros, mas também no fascismo e sua glorificação e de um estado militar e imperial. Mas no caso do tosco nacional o sistema é representado discursivamente pelo anti-sistema. A arte como campo de liberdade, com tendências distintas e polifônicas, é redefinida como arte perigosa. Repetem-se aqui os esquemas anti-intelectualistas de Hitler perseguindo a arte degenerada, Stalin boicotando os construtivistas ou Fidel contra a arte pop americana. Um exemplo de tosco internacional é o museu da independência, doado pela Coréia do Norte para a Namíbia. Três andares majestosos, no centro de Windhook, preenchidos por uma narrativa heroica, militarista com bonecos ilustrativos e aspiração de modernidade. A afinidade entre o tosco e o nacionalismo realista confirma-se na exaltação de símbolos nacionais como a bandeira, os ídolos esportivos e olímpicos. Ele possui uma simbólica específica, marcada pelo verde e amarelo, com imagens do alvorecer. O novo homem, no reinício da história no qual o passado corrupto será abandonado.

Lembremos que o consumo é a gramática geral na qual a pergunta “para que serve?” pode ser colocada. A cosmética da posse é um traço distintivo do Tosco Brasileiro, por isso a arte é lida como um capítulo da lógica da exibição e reconhecimento. Por exemplo, o “Gordinho do Outfit”, notabilizado no youtube pela apresentação de roupas de marca, que imitam as simples. Tênis exageradamente caros segundo um gosto ostensivamente duvidoso, mas que promete ao seu possuinte a constituição de um estilo de personalidade.

Disso deduz-se que o Tosco Brasileiro envolve um uso sistemático e comercial da sexualidade, como se pode intuir, nos primórdios do movimento, no Funk do Lepo-Lepo ou no prototípico Bonde do Tigrão. A fórmula encontrará seu apogeu nos vídeos de Joyce Hasselman, onde a denúncia da violência criminal assume uma inesperada conotação pornográfica. Assim como na estética urinofílica da postagem presidencial sobre o Golden Shower trata-se de por meio da denúncia e da autenticidade rústica da crítica, regressar aos verdadeiros valores nacionais do carnaval brasileiro. O Tosco Brasileiro é sobretudo uma estética viril fracassada, no interior da qual a partilha de um chocolate torna-se alegoria homossexual. Educar pelas armas e cristianizar pela violência são estratégias pelas quais o tosco explora o sentimento ontológico de insegurança. A impermanência dos projetos retoma a efemeridade das vanguardas dos anos 1960. O discurso errático recupera a escrita automática dos surrealistas.

Muito se discute, na autoria desta nova era, inaugurada em 2018, qual seria a serventia de cursos universitários de Filosofia ou Sociologia, assim como a utilidade de museus e demais repositórios culturais: “nunca ganhamos um Nobel e sofremos com a hipertrofia crônica de ciências humanas”. Asserções que carregam o típico traço de exagero e imprecisão que já vimos ser a tônica deste estilo. Em nome do dinheiro do contribuinte e da luta contra a corrupção não se está dizendo que a filosofia e as artes são inúteis, apenas que elas são um luxo que não cabe ao Estado patrocinar. Os ricos e privilegiados bem podem continuar, por si mesmos, sua histórica dedicação a estes prazeres contemplativos. Os pobres precisam de comida e de escolas, eles demandam necessidades materiais atendidas e empregos restaurados. Mas quem fala em nome dos pobres? Voltamos aqui às afinidades insuspeitas entre o Tosco Brasileiro e o realismo socialista do pós-guerra.   

Seria um erro assentir que as proposições fundamentais do tosco são anti-filosóficas ou contra-culturais. Afirmar que o nazismo é de esquerda, armar a população como forma de diminuir a violência ou reescrever a história da tortura no Brasil e do Estatuto da Criança e do Adolescente envolvem uma espécie de excesso de filosofia. Filosofia sem método, História sem rigor, Sociologia sem crítica, Psicologia sem ética, Antropologia sem diversidade.  Tudo isso já está disponível intuitiva e gratuitamente para os que vieram de uma família de bem, que desenvolveram a síntese religiosa do pensamento universal e que se formaram na fartura de conhecimentos digitais. Intelectuais de carreira foram acordados do seu sono dogmático de sua irrelevância pelo beijo venenoso, diretamente saído de 1964. Este efeito Bela Adormecida não pode ser ignorado, ele revela o desconhecimento ou a indiferença com relação à emergência de uma nova atitude estético-filosófica no Brasil. Nunca antes neste país discutiu-se, com tanta veemência, a importância de nomes como Gramsci, Marx ou Paulo Freire. Nunca foi tão importante definir orientações políticas, com consequências reais e dolorosas para a dinâmica de famílias, amizades e amores.

Tosco, quer dizer “o que se apresenta como veio da natureza”, ou seja, autêntico, não lapidado e não disfarçado. Também é tosco o que “é feito sem apuro ou refinamento, com rudeza ou de modo grosseiro”, ou seja, um certo orgulho ostensivo e exibicionista do irrefletido. O tosco se estrutura como uma “zueira”. Nada nele pode durar mais do que o efeito natural de sua inconsequência legendado pela rudeza com palavras e conceitos.  É preciso ignorar qualquer seriedade concernente a educação, cultura ou universidades. É preciso acusar ideologias de gênero, marxismo cultural, proteção aos direitos humanos ou minorias negras ou LGBTs. É preciso denunciar os privilégios de qualquer proteção à infância, indígenas ou dos sofrem com transtornos mentais. Aqui a força do Tosco Brasileiro está em sua atitude de denúncia e imitação. Esta fórmula pródiga na história das artes, carrega a enunciação de resistência contra a tirania da personalidade sensível, dos costumes invisíveis dos “inteligentinhos” da alta cultura brasileira, percebida como um clube de troca de favores e manutenção cruzada de privilégios. Contra isso a Sofrência Sertaneja e as traduções americanas, do tipo “Juntos e Shalow Now” de Paula Fernandes e Luan Santana mostram toda a força da simplicidade, suficiente para nos entreter.

Mas atenção. Romero Brito não é tosco, pois nele não há ressentimento nem agressividade. Tiririca também não é tosco. Nem Anita nem Jojo Todinho pertencem ao tosco.  Também não se deve confundir o tosco com o brega, pois este último exagera a força do amor, ao passo que seu inverso centra-se no ódio e na inveja.  Também não se deve confundir o tosco com a cultura nerd, nem com o gosto por animés, hentais, ou a K-pop.

Tais manifestações apenas preparam ou previnem a vinda do tosco, autonomizando a linguagem de seu conteúdo político. Ele atua como toque ou deslize que confere autenticidade ao conjunto, não como exagero permanente de um verdadeiro estilo de identidade, conexo com uma forma de vida. Pelo contrário, nestas práticas há um engajamento continuado, com narrativas extensas e problematizações éticas, bem como um verdadeiro compromisso com o outro, enquanto universo antropológico diferente e ainda assim admirável.

[Leia aqui matéria de Marcos Grispum Ferraz sobre a obra de Barbara Wagner e Benjamin de Burca, artistas representantes do Pavilhão Brasileiro na Bienal de Veneza 2019]

O Tosco Brasileiro é uma revolta contra a ilusão. Não apenas contra as ilusões específicas de um certo programa político que o antecedeu e o condicionou, mas contra o estatuto mesmo da ilusão. Ilusões nos fazem acreditar em futuros diferentes do passado. Ilusões traídas nos fazem odiar o próprio trabalho de ilusionamento. Se o esboço e a incompletude são as formas típicas da produção ilusiva, o estereótipo e caricatura são o seu inverso não dialético. O Tosco Brasileiro parece odiar a arte e a ciência ela mesma, realizada na figura dos professores de uma elite, sentida como impostora e inautêntica. Por isso lhe é essencial se apresentar “sem partido”, “sem ideologia”, “sem pontos obscuros ou ambíguos”, “as coisas mesmas na vida como ela é: nota sobre nota”. Toda ambiguidade local é uma certeza redobrada em segunda instância, pela comunidade estética de gosto. Daí que o Tosco Brasileiro seja uma estética religiosa, no sentido kantiano de uma comunidade de gosto e no sentido lacaniano de uma comunidade de gozo. Lembremos que o problema aqui é saltar da particularidade dos juízos de gosto, por meio dos qual algo é belo porque assim nos parece, para algo é belo porque esta é a realidade mesma deste objeto.

Assim como não reconhece arte ou cultura, educação ou filosofia, que não lhe sejam igualmente toscas, o novo Tosco Brasileiro é criação e criatura produzida para sancionar o auto-reconhecimento de uma nova elite, que subitamente redimensionou seu tamanho e importância. Ele pode ser uma tendência passageira, como tantas outras, mas certamente deixará cicatrizes na história do processo civilizatório brasileiro. Esperemos que seja o último canto, mais forte do que todos os outros, que o cisne pronuncia antes de desaparecer.

 

 

[1] Interpassividade é um fenômeno descrito pelo filósofo esloveno Slavoj Zizek que consiste na terceirização do gozo. As claque em séries de humor são exemplos de interpassividade, pois por meio delas contratamos alguém para rir em nosso lugar, assim como no tosco brasileiro contratamos alguém para criticar em nosso lugar.

Tucumán recebe BIENALSUR após inauguração em Tierra del Fuego

Voluspa Jarpa, Christian Boltanski, Magdalena Jitrik, Banderas del fin del mundo. Crédito BIENALSUR (2)
Banderas del fin del mundo, instalação com obras de Voluspa Jarpa, Christian Boltanski, Magdalena Jitrik. (FOTO: BIENALSUR)

O hasteamento de três bandeiras na “cidade do fim do mundo”, Ushuaia, foi um marco importante no último fim de semana: foi inaugurada na província argentina de Tierra Del Fuego a segunda edição da BIENALSUR, evento que tem como essência enfatizar o Sul global.

As Bandeiras do fim do mundo (Banderas del fin del mundo), como foi chamada a instalação ao ar livre tem sua origem em um projeto do artista francês Christian Boltanski, que concebeu uma das bandeiras para a BIENALSUR, as outras duas foram produzidas pela artista chilena Voluspa Jarpa a argentina Magdalena Jitrik. As peças foram içadas pelo diretor da BIENALSUR e reitor daa UNTRER, Aníbal Jozami, pela diretora artística e cultural da BIENALSUR, Diana Wechsler, e pelo secretário da Cultura da província, Gonzalo Zamora. Na ocasião, Jozami declarou que o evento “nasceu para mudar as correntes centrais da cultura, para influenciá-las com o pensamento do Sul”.

Além da cidade de Ushuaia, o município de Rio Grande também recebeu atividades relacionadas ao evento, incluindo a mostra Paisagens entre paisagens (Paisages entre paisages), em cartaz no Museo Fueguino de Arte. Na edição de estreia da bienal, a Tierra del Fuego não havia sido incluída no mapa, o que mudou completamente em 2019, sendo a província a primeira a receber programação.

A próxima parada do evento, a partir dos dias 23 e 24 de abril, indo agora na direção Norte, será em Tucumán, ao noroeste argentino, entre o Chile, a Bolívia e o Paraguai. Três instituições da província sediarão exposições, ações, intervenções e palestras: Museo Provincial de Bellas Artes Timoteo Navarro, MUNT – Museo de la Universidad Nacional de Tucumán “Juan B. Terán” e Centro Cultural Juan B. Terán. O destaque fica para a exposição Entre sentidos, no MUNT, que terá obra da artista brasileira Chiara Banfi.

Os brasileiros, inclusive, tem presença garantida nesta BIENALSUR. Já nas primeiras aberturas em Tierra Del Fuego, Berna Reale, Lia Chaia e Dora Longo Bahia, e a argentina radicada no Brasil Carla Zaccagnini, tiveram obras nas exposições em Ushuaia e Rio Grande.

Confira a programação completa de Tucumán:

  • Museo Provincial de Bellas Artes Timoteo Navarro

Exposição: “Otra ella”. Artista: Nicola Costantino
Exposição: “Heroínas”. Artistas: Leila Alaoui, Carolina Antoniadis,, Claudia Casarino, Annemarie Heinrich, Voluspa Jarpa, Adriana Lestido, Eduardo Longoni, Zulema Maza, Erika Meza, Javier López, Stéphanie Pommeret, Omar Torres, Mariana Schapiro y Edward Shaw.
Intervenção sonora: En primera persona. Artista: Carola Beltrame.

  • MUNT – Museo de la Universidad Nacional de Tucumán “Juan B. Terán”:

23/05 – Conversa Sebastián Tedesco, Bruno Mesz y Mateo Carabajal: “Transmodalidad, ciencia y poética de los sentidos”

24/05 – Exposição: “Entre sentidos”. Artistas: Duygu Nazli Akova, Joaquín Aras, Chiara Banfi,Eugenia Calvo, Cecilia Catalin, Cecilia Ivanchevich Ana Mance, Camila Maya, Bruno Mesz, Ana María Morill, María Jesús Román, Sebastián Tedesco.

  • Centro Cultural Juan B. Terán:

24/05 – Instalação: “Tenemos el poder de elegir”. Artista: Marie Orensanz