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Uma Crítica

Rodrigo Braga, Provisão, 2009
*Por Bitu Cassundé, Clarissa Diniz e Marcelo Campos

A “confessada dificuldade” da crítica Aracy Amaral em encontrar, na exposição À Nordeste, as obras de “Francisco Brennand, João Câmara ou Miguel dos Santos” é compreensível: elas não estão lá. A apontada “relutância [da curadoria] em deixar de lado tudo o que poderia ser selecionado” ou a “ideia de que nada poderia escapar aos curadores” revela, no comentário publicado na edição #47 da ARTE!Brasileiros, os fundamentos de sua própria contradição. Esses três artistas – cuja participação a crítica aparentemente estava tomando por certa – não integram exposição, contrariando seu argumento de que a mostra teria sido inviabilizada por sua suposta não seletividade.

Ao criticar o que seria uma exagerada abrangência da curadoria enquanto se lança a uma desvairada busca pela presença de artistas ausentes, Amaral desvia-se daqueles que efetivamente estão lá e das urgências em torno da inclusão no âmbito da arte e da prática curatorial. Se, historicamente, mulheres, indígenas, negrxs e trans – dentre tantxs – foram marginalizadxs e invisibilizadxs na vida social e na arte, é com dor e indignação que chegamos em 2019 com as mesmas estatísticas, numa incontornável evidência da perpetuação da colonialidade. Nesse contexto, provocar as instâncias que produzem as condições de centralidade e de visibilidade nos parece necessário, donde nosso interesse por flexionar a pergunta que a própria crítica outrora lançou à arte, devolvendo-a como prática autocrítica e, quiçá, disruptiva: curadoria para que? Ou, ainda, para quem?

O comentário de Amaral – que subestima a inteligência do público, ignora “as etapas” da mostra (preferimos a ideia de “núcleos” que, no caso, são oito), como tampouco conferiu a lista dxs artistxs participantes – funda-se, provavelmente, no frustrado desejo de ver atendidas e ilustradas as suas expectativas sobre o Nordeste. Guiada por uma individual e preexistente cartografia dxs artistxs da região (evidentemente constituída ao longo de sua histórica e admirável trajetória), a crítica nem mesmo questionou suas certezas em torno de quem viria a encontrar. Atendo-se a uma espécie de mapa ficcional da exposição, atribuiu ao “labirinto” a responsabilidade pela “dificuldade” em acessar as naturalmente espectrais obras de Brennand, Câmara e dos Santos, despistando-se, assim, da evidência de que os marcos de À Nordeste são outrxs: Elielson Sayara, Marie Carangi, Pêdra Costa, Alcione Alves, Ayrson Heráclito, Saraelton Panamby & Naýra Albuquerque, @Saquinhodelixo, Nhô Cabolco, Goya Lopes, Zé de Chalé, Jota Mombaça, Jarid Arraes, Jayme Fygura, Zahy Guajajara, Mucambo Nuspano, Juliana Notari, Mestra Irineia, Romero Britto, Tertuliana Lustosa, Ana Lira, Gê Viana, Christina Machado, Michelle Mattiuzzi, Tadeu dos Bonecos, Marcelo d’Salete, Ramusyo Brasil, dentre muitxs. Passando ao largo desses marcos, não viu os corpos dançando agachadinhos, o carnaval da insurgência, a faca amolada, teile, zaga, o transe, o quilombo, a boneca, xs corpxs que geram, o kazumba, a cuceta, a moto-carranca, a siririca, a castração, os memes, Exu, Oxum, Solange, Tibira, Yolanda, não ouviu a rádio 97.5 FM nem percebeu que não “está tudo certo”: “quando eu acordei, havia 30 homens em cima de mim”.

Provavelmente sentindo no corpo – disciplinado pela razão pura – a vertigem produzida por À Nordeste em seu projeto de ocupação dos espaços (referência que nos interessa mais do que o paradigma do “display”), Aracy Amaral esquivou-se da análise do que a mostra se propõe a ser, como também parece não ter percebido que ela foi pensada para friccionar os muitos estereótipos projetados sobre o Nordeste. Se a preocupação com a visibilidade das obras é o operador central de seu comentário crítico, o que dizer da invisibilidade dxs corpxs? Há que se sublinhar que, no projeto curatorial proposto, outras visibilidades – sociais, políticas – foram igualmente prioritárias. Se causam desconforto porque convivem assimetricamente no espaço da exposição, o fazem pela preocupação ético-estética de não simular, por meio da arte, existências apaziguadoras, emolduradas, assépticas: neutralizadoras da violência dos mundos e das vidas de seus criadores. Se a performance de Jota Mombaça e colaboradorxs (capa da referida edição da Arte!Brasileiros) ameaça e vinga porque “combinamos de não morrer” (Conceição Evaristo), no âmbito da curadoria, publicizar e sustentar conflitos e divergências é uma forma de combinar de não matar.

Nesse sentido, se na mostra não é possível “localizar” os tão esperados artistas do já cartografado imaginário acerca da região, a negligência de não questionar o porquê dessas ausências só não é maior do que a cegueira crítica que prefere ignorar sua incapacidade de enxergar: olho adestrado para ver somente aquilo que um dia já foi capaz de observar. Se o que se buscava não se mostrou localizável, há ao menos que se suspeitar que ali estão em questão outras trajetórias, outras intenções, outros desejos, outros protagonismos, outras urgências, outrxs artistxs, outros nordestes. Uma crítica que não questione suas próprias expectativas e pressupostos será necessariamente um exercício de normatividade – especialmente quando realizado desde posições historicamente privilegiadas.

É preciso, todavia, sublinhar um ponto que de fato nos aproxima do comentário de Aracy Amaral e com o qual concordamos integralmente: assim como uma curadoria, uma crítica “não é tarefa fácil de ser concebida”.


Bitu Cassundé, Clarissa Diniz e Marcelo Campos 
são os curadores da exposição À Nordeste, em cartaz no Sesc 24 de Maio. Neste texto, eles respondem à crítica de Aracy Amaral publicada na ARTE!Brasileiros 47.

Mostra de Adriana Varejão chega à Recife após estrear em Salvador

Obra de Adriana Varejão que está na mostra. FOTO: Divulgação

Com cerca de 25 obras bastante representativas de sua trajetória de mais de 30 anos, a artista carioca Adriana Varejão apresenta no Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães (MAMAM), em Recife, a mostra Por uma Retórica Canibal. Após passar por Salvador, a exposição com curadoria de Luisa Duarte chega a capital pernambucana com o acréscimo de alguns trabalhos, todos produzidos entre 1992 e 2016.

A produção de Varejão, centrada em grande parte em uma revisão histórica do colonialismo, escancarando suas violências e atrocidades, ganha força especial ao ser exposta em Recife, como afirma a própria artista. “Desde os anos 1980, quando comecei a pintar e pesquisar sobre o barroco, tomei como referência várias igrejas do Recife. Algumas imagens sempre permaneceram dentro de mim e as carrego até hoje, como o altar da Basílica de Nossa Senhora do Carmo, a azulejaria do Convento de Santo Antônio, ou mesmo o teto da Igreja de Nossa Senhora da Conceição dos Militares. Todo esse repertório me ajudou a moldar minha linguagem. Esses e outros exemplos reiteram a minha emoção de estar realizando esta primeira individual no Recife, tão perto de algumas importantes referências.”

Com azulejos rasgados que expõem em suas entranhas vísceras, carne, órgãos e sangue, a artista traz à luz histórias ocultas, pouco visitadas pela história oficial. Segundo o texto curatorial: “A seleção de trabalhos revela ainda a rede de influências que atravessa a obra da artista: do barroco à China, da azulejaria à iconografia da colonização, da história da arte à religiosa, do corpo à cerâmica, dos mapas à tatuagem, vasto é o mundo que alimenta a poética de Adriana Varejão”.

Assim como foi em Salvador, é a primeira vez que Recife recebe um conjunto significativo de obras da artista, que já expôs em diversas cidades do mundo e tem obras em instituições como o Metropolitan Museum of Art e o Guggenheim Museum em Nova Iorque, a Tate Modern em Londres, a Fondation Cartier em Paris, o centro Inhotim em Brumadinho, o MAM de São Paulo, o MAR no Rio de Janeiro e o Stedelijk Museum em Amsterdã, entre outros. A mostra fica em cartaz até 15 de junho e seguirá para outras cidades fora do eixo Rio-São Paulo.

Adriana Varejão – Por uma Retórica Canibal
MAMAM Rua da Aurora, 265, Recife
De 29 de junho a 8 de setembro de 2019
Gratuito

“We agreed we are not going to die”, 2019

Detalhe da obra "A Gente Combinamos De Não Morrer", de Jota Mombaça, 2019

The title of our editorial is borrowed from the name of the work of Jota Mombaça, whose details we publish on the cover of this edition. The work was done in collaboration with Michelle Mattiuzzi, Cíntia Guedes, Ana Giza, Adrielle Rezende, Juão Nin and Paulet Lindacelva, and is part of a sequence of performances at Casa do Povo in São Paulo. The action consisted of, among other things, the manufacture of knives with twines, branches and glasses, which is exhibited today at SESC 24 de Maio at the À Nordeste exhibition, commented on in this issue by the journalist Jamyle Rkain and criticized by historian and the curator Aracy Amaral.

The presence or the allusion to violence in several of the interviews or expositions that we follow in recent times is notorious. In the works, the imminence of danger is latent, the feeling of helplessness, the need to find answers and resist, to find ways of healing for the subject and the environment. We are surrounded by a moment of enormous violence. The violence of a society that attacks not equal; of citizens and politicians who advocate putting arms at the disposal of a population whose difficulties and intolerance only increase. The violence of having to beg education, work, health and watch the increasingly precarious quality of life. The violence of post-truth and post-lie.

The violence of doing nothing to prevent violence. The artist Berna Reale, in her 2013 video, Americano, and the artist Cinthia Marcelle, in Chão de Caça, 2017, presented these works at the Brazilian Pavilion at the Venice Biennials of 2015 and 2017, denouncing the conditions of indigence and prison overcrowding in the country. They anticipated, with their images, several rebellions and the carnage that imploded in these days in the jails of Manaus, leaving dozens of dead. Almost an allegory to the book Chronicle of a Death Foretold by the Colombian writer Gabriel Garcia Marquez.

Art usually fulfills its role, a kind of mirror and permanent alertness about everything around us. Cildo Meireles, one of the greatest contemporary Brazilian artists has said: “No political work is done in art. It becomes political”. 

In contrast to the institutionalization of barbarism, a kind of ode to death that makes the day obscure, we adhere to life and art, and use it as a symbol of power and the force with which the drive of life and death appears in it. “It is a death-life. Whenever an artist proclaims the death of art, a new leap is given, and art accumulates forces for a new stage”, Frederico de Morais was quoted as saying in Contra a arte afluente. O corpo é o motor da obra, 1970.

Capa da ARTE!Brasileiros 47

In the month of May the Tomie Ohtake Institute, through its nucleus of Culture and Participation in partnership with the philosopher, essayist and translator Peter Pál Pelbart invited one of the most active thinkers of the present time, the French philosopher and professor of the Sorbonne (Paris I) David Lapoujade*. For nearly two hours he spoke about a text entitled “The Force of Art” featuring ideas by Nietzsche and Deleuze that reflect on how much art gives us a “promise”, “a belief in this world here”, not a belief theological, since we should not believe in anything when we are with the work and, at the end, said:

“That is, the force of art – when it has it – is to be able to justify itself (and justify ourselves) better than any other form of reality, to be able to acquire, exclusively by its force, a reason to exist and to make us exist. If I were to summarize in one word (to conclude) what the force of art consists of, I would say, therefore, that this word is justice”.

Instituto Tomie Ohtake apresenta mostra de ilustradores ibero-americanos

Trabalho de Amanda Mijangos que está na mostra. FOTO: Divulgação

Concebida a partir do Catálogo Ibero-América Ilustra – projeto editorial que reúne anualmente, desde 2010, obras de ilustradores nascidos em território ibero-americano –, a exposição Invenções Gráficas na Ilustração Ibero-Americana ocupa o Instituto Tomie Ohtake a partir do dia 2 de julho.

Com curadoria do ilustrador e artista brasileiro Fernando Vilela, a mostra apresenta 40 obras de 12 ilustradores – de nove países – selecionadas entre os mais de 300 artistas que já passaram pelo projeto. “Essas narrativas sem palavras – às vezes oníricas, enigmáticas, irônicas ou reflexivas – apontam caminhos experimentais, mostrando que a potência da ilustração ibero-americana faz com que ela seja uma importante vertente do território da arte contemporânea”, afirma Vilela no texto de apresentação da exposição.

“As ilustrações dessa mostra escapam de uma representação de viés naturalista, assumindo a superfície plana bidimensional, utilizando sobreposições, justaposições, mesclando as linguagens da colagem, da gravura, da pintura, do desenho e do uso de técnicas digitais”, completa Vilela.

Fazem parte da exposição: Ixchel Estrada (México); Joan Negrescolor (Espanha); María Luque (Argentina); Roger Ycaza (Equador); Manuel Marsol (Espanha); Marta Madureira (Portugal); Laerte Silvino (Brasil); Amanda Mijangos (México); Matías Acosta (Uruguai); Catalina Carvajal (Colômbia); Sol Undurraga (Chile); e Juan Bernabeu (Espanha).

No dia 18 de julho serão anunciados também os ilustradores selecionados para o Catálogo Ibero-América Ilustra 2019, que marca a décima edição do projeto. Neste mesmo dia, às 19h, uma mesa de debate contará com a participação de Fernando Vilela e de ilustradores convidados.

Invenções Gráficas na Ilustração Ibero-Americana
Instituto Tomie Ohtake – Av. Faria Lima 201, Pinheiros, São Paulo
De 2 a 28 de julho

À Nordeste – SESC 24 de Maio

Bitu Cassundé, Clarissa Diniz e Marcelo Campos são os curadores da exposição À Nordeste, que reúne 275 trabalhos de artistas que problematizam os imaginários acerca do Nordeste brasileiro, questionando as visões do que é “estar à Nordeste”.

A mostra é fruto da pesquisa dos três curadores, que trabalham essa ideia há mais de uma década. Eles realizaram viagens por todos os estados da região nordeste do Brasil na segunda metade de 2018 para realizar a atualização das pesquisas.

Artistas como Almandrade, Ayrson Heráclito, Bárbara Wagner e Benjamin de Burca, Bispo do Rosário, Cândido Portinari, Glauber Rocha, Jonathas de Andrade, Juliana Notari, Leonilson, Marepe, Mestre Vitalino, o coletivo Saquinho de Lixo e Véio são alguns destaques, evidenciando o caráter multidisciplinar das variadas linguagens e suportes das obras que compõem a mostra, de esculturas a ‘memes’. A exposição pode ser conferida até 25 de agosto no Sesc 24 de Maio, no centro de São Paulo.

Na ARTE!Brasileiros 47, a exposição ganha destaque com dois textos, uma matéria com entrevistas de Clarissa e Marcelo e uma crítica assinada por Aracy Amaral. Além disso, a obra A gente combinamos de não morrer (2019), da artista Jota Mombaça, é capa da edição e faz parte da mostra. Leia nosso editorial clicando aqui.

Confira no vídeo entrevista com Gabriela Xabay Gimenes, programadora de Artes Visuais da unidades Sesc 24 de Maio.


À Nordeste
Sesc 24 de Maio Rua 24 de Maio, 109 – República, São Paulo
De 25 de agosto

A Lógica do Tosco Brasileiro não é sem Gambiarra

Meu recente artigo, aqui na revista ARTE!Brasileiros, sobre O Tosco Brasileiro na Filosofia e nas Artes, não foi recebido sem crítica por parte de Sabrina Sedlmayer, a quem agradeço a leitura e o extenso desenvolvimento em seu texto resposta Ataque especulativo ou a gambiarra versus o tosco brasileiro:

“Talvez porque o psicanalista erra grosseiramente ao apostar que “o método fundamental do Tosco Brasileiro” é a gambiarra, termo que originalmente refere-se à extensão irregular de uma linha de iluminação ou de uma “ligação fraudulenta”, que é de toda forma precária e feia, improvisada ou feita conforme as circunstâncias, ao estilo arquetípico “jeitinho brasileiro“. (Dunker, 2019, p.2)

Se a etimologia está, em parte, correta, a tese é falsa. Tentarei apontar, a seguir, como nas experimentações da arte, da música e da literatura, a gambiarra é, também, um dispositivo criativo potente, com incidência na história na arte contemporânea brasileira, extrapolando o período (ironicamente) elencado pelo autor.” (Sedlmayer, 2019)

O texto de Sabrina empenha-se em mostrar a origem e presença, nobre e distinta, da noção de gambiarra reunindo referências interessantes e profícuas nas artes visuais: Rivane Neuenschwander, Cabelo, Jarbas Lopes, Efrain de Almeida, Alexandre da Cunha, Marepe, Cao Guimarães, além de Bispo do Rosário. As gambiarras estariam presentes nas vanguardas desde o object trouvé e o ready-made de Duchampaté o uso da collage  e da bricolagem. A gambiarra aparece como modos operandi na música experimental Giuliano, na literatura de Kafka e seus Odradeks. Há vidas-gambiarras, obras-gambiarras, estúdios-gambiarras, materiais-gambiarras e arquiteturas que personificam a gambiarra, como a de Reverón. 

Concordo amplamente com Sabrina que “gambiarra é, também, um dispositivo criativo potente, com incidência na história na arte contemporânea brasileira, extrapolando o período (ironicamente) elencado pelo autor. Mas chamo a atenção do leitor para este “também” salientado por Sabrina. Ou seja, se meu texto tivesse dito algo como “a gambiarra é um método inventado pelo Tosco” ou “a gambiarra é um método de uso exclusivo e privativo do Tosco” sua crítica seria pertinente, mas não é este o caso.  A gambiarra permanece e persiste como “método fundamental do Tosco” ainda que este método tenha sido usado de modo mais potente e criativo em outros autores e em outros programas estéticos.

Tudo se passa, no tom e nos qualificativos, escolhidos por Sabrina, como se meu texto estivesse a desabonar o método da gambiarra uma vez que este se associa ao Tosco Brasileiro. Aqui há um erro lógico, pois ela parece basear-se na seguinte ilação: 

a. O Tosco Brasileiro emprega a gambiarra como método para dar curso ao retorno do recalcado, regressivo na cultura brasileira (corrupção das formas expressivas, violência sexualizada, anti-intelectualismo).
b. A gambiarra é um método relevante, criativo e potente na história das artes e da cultura.
c. Logo, a gambiarra não pode ser usada a serviço dos fins da Tosquidão.  

O erro lógico consiste na inversão simples do predicado, deduzindo que: “se todo tosco é gambiarra”, logo “toda gambiarra é tosca”, o que é grosseiramente falso. O paralogismo contamina o resto do argumento: se Tosco= Gambiarra = Período (2010-2019)”, logo “Gambiarra = Período (2010-2109)”. Não só o Tosco Brasileiro não é o detentor exclusivo, nem o primeiro, nem o único a utilizar a gambiarra, como a gambiarra não foi inventada nesta década, como “dispositivo criativo potente”. Dizer que a gambiarra é o método fundamental é diferente de dizer que a gambiarra foi inventada pelo Tosco Brasileiro. Mas ao criticar meu erro grosseiro Sedlmayer fornece a ocasião para caracterizarmos como funciona a lógica de argumentação crítica, na qual o Tosco Brasileiro pode se apoiar. A crítica estética, consoante ao Tosco Brasileiro ainda está por se inventar, mas não sei se é nela que se inscreve minha interlocutora.   

Por isso é igualmente inútil a crítica subsequente contra a caracterização parcial que empreguei na etimologia da palavra “gambiarra”. É verdade. Ela não compreende todo o campo semântico e histórico do termo. Mas isso acontece porque meu objetivo é mostrar a convergência e paridade, e não a identidade, entre o predicado da gambiarra e o Tosco Brasileiro, como seu sujeito.  As “pernas espertas do camelô prestes a fugir”, o “acampamento provisório tupi”, a subversão da finalidade de uso, a conotação genérica de “transgressão, fraude ou tunga”, a afinidade com nomadismo, improvisação territorial, instrumentalização criativa e aproveitamento da contingência, ou seja, toda a infinita caracterização histórica ou ontológica da gambiarra jamais a imunizará ou impedirá de ser usada com mau gosto formal, de ao modo pouco criativo ou em plataformas ideológicas. Podemos fazer a arqueologia impecável e rigorosa de um martelo, e disso não se concluirá que ele não pode ser usado para bater na cabeça alheia. Não impedirá que aquele que tem um martelo na mão seja tentado a ver pregos por toda a parte.

Isso está claramente apontado em meu texto, por dois motivos. Primeiro, o Tosco foi apresentado como uma inversão não dialética da estética da Precariedade, portanto é o precário e não a gambiarra que caracteriza conceitualmente o Tosco. Segundo, a gambiarra é apresentada literalmente como um método, ou seja, esta subordina-se e deve ser apreciada ou julgada em seu contexto de uso e sua finalidade estética:

Faz parte doTosco Brasileiropraticar um tipo de relativismo absolutista. Como todas as opiniões são igualmente válidas e como todos os pontos de vista são equalizados segundo uma diferença muito simples, do tipo esquerda ou direita, a força de minha enunciação é absoluta enquanto tal.” (Dunker, 2019)

Que é a frase imediatamente anterior a:

“Daí que o método fundamental doTosco Brasileiroé a gambiarra, termo que originalmente refere-se à extensão irregular de uma linha de iluminação ou uma “ligação fraudulenta”, que é de toda forma precária e feia, improvisada ou feita conforme as circunstâncias, ao estilo arquetípico “jeitinho brasileiro”.(Dunker, 2019) 

Ou seja, o Tosco Brasileiro é uma estética que inverte a precariedade, sem conservar sua dignidade existencial. Uma epistemologia baseada no relativismo absolutista. Uma ética da simplificação dos sujeitos a predicados que se invertem mutuamente. O Tosco Brasileiro exemplifica, como caso particular, o que Lagnado chamou de preocupação com a estetização (fácil) do precário. Só depois disso, e portanto, de forma subalterna ao relativismo absolutista, ao uso segregativo e à intenção pragmática que situo o método do Tosco como a gambiarra.

Um método serve a um fim e ele não garante nem prescreve a qualidade de sua realização. Posso usar o método do sfumato para pintar telas medíocres ou obras primas renascentistas. Nos dois casos ao reduzir os contornos produzo um efeito de humanização da imagem, que pode ser aplicada tanto a uma linda Madona quanto a um Belzebu brega. Posso empregar o método da escrita automática dos surrealistas para criar confusão nas redes sociais ou para inventar um novo amor. Posso empregar o método exposto por Poe em “Filosofia da Composição” para produzir um poema como “The Raven” ou um forró lambada do tipo “Chupa que é de Uva” ou “Senta que é de Menta”.

Por isso não posso concordar que o Tosco Brasileiro tenha uma afinidade estrutural ou histórica com circuit bending, hardware hacking, cracked media, sound art/media art, arte povera, ready-made, object trouvé, Merz, dadá, recicling, cyberpunk, pós-punk, ou na arquitetura cubana da necessidade. Em todos estes casos se encontrará a gambiarra, mas não o tosco. O Tosco, para ser realmente tosco requer o sentimento de auto-pretensão (ausente na arte povera), de salvação purificadora (certamente não punk), de reconstrução nacional (jamais dadaísta) e de imposição programática de hegemonia (inadequado para os ramos tecnológicos da gambiarra, sempre atentos ao contexto ou site specific).   

Sedlmayer não concorda quanto ao vínculo entre o Tosco Brasileiro e o uso corruptor da gambiarra: “(…) distintamente o que reforça Dunker, a gambiarra não se assemelharia à corrupção recalcada que retorna, com força, no discurso do tosco brasileiro.” Talvez, isso possa ser compreendido pelo fato de que a gambiarra é uma noção negativa: uso não apropriado, desvio de função, impertinência material. Quando uma negação é negada nem sempre o que temos é uma afirmação. Se eu critico o Tosco, e se o tosco se identifica com a gambiarra (que já vimos ser um raciocínio equívoco) eu sempre eu critico a gambiarra, muito menos estou defendendo a retidão ou o bom uso apropriado das coisas.  Mas é exatamente esse tipo de inversão não dialética, de oposição simples e polar, que estou a descrever como procedimento Tosco

Para isso podemos recorrer também ao belo exemplo de Odradek, trazido de Kafka por Sedlmayer. Ela diz que Odradek é um caso positivo de gambiarra. Eu afirmo, sem discordar dela, que Odradek é paradigmático do anti-tosco. Ele representa nossa parte obscura, o exílio universal no que não pode ser reconhecido, o objeto sem especularidade, (ainda que possa ser objeto de um ataque especulativo). Isso que Lacan chamou de objeto a causa de desejo e de objeto a mais-de gozar é justamente o objeto da fantasia recalcada. Fantasia que volta na forma irreconhecível do que não conseguimos admitir em nós mesmos. Fantasia que adquire e condiciona formas estéticas e ideológicas. Volta como perseguição e ataque ao outro. Como justiça feita em nome da injustiça, como desejo de limpeza feito em nome da sujeira, como violência exercida para acabar com a violência. O retorno da segregação e preconceito como forma de punir no outro que não controlamos em nós mesmos, pode ser elevado a condição de programa estético. Por isso mantenho minha tese de que a gambiarra é método fundamental do Tosco Brasileiro. Método a serviço do retorno do que, no Brasil, foi negado, antes de ser elaborado e simbolizado. É o retorno, por exemplo, do real da tortura, que além de ser uma impiedade ética é uma alusão estética á forma torta, ou seja, a um tipo de deformação.   

O que o Tosco Brasileiro quer fazer é eliminar o Odradek que existe em cada um de nós, negar este nosso “coiso, troço, lixinho”, tipicamente investido de excesso de sexualidade projetada no outro. Ao tornar invisível as vidas matáveis, as quase-gentes, os que estão atrapalhando o trânsito e o funcionamento da boa ordem, ele quer a boa forma por meio da gambiarra nos direitos humanos. Este é o ponto de enunciação fantasmática do “para que serve?” Para que serve educação ou cultura, artes ou filosofia, crítica ou preservação ambiental?

Por isso quando Sabrina rejeita minha crítica do uso tosco da gambiarra, como se eu estivesse repudiando a criação possível em estado de escassez, somos levados a um falso problema. Como se tivéssemos que aderir ou deixar as práticas “do jeitinho brasileiro”, do uso indevido da iluminação, dos “gatos e outras feituras urbanas”.  Com se existisse apenas claro e o escuro. Como se estivéssemos diante do retorno de uma enunciação conhecida historicamente: “Brasil: ame-o ou deixe-o”. Só que agora é “Gambiarra, ame-a ou deixe-a”, seja ela uma gambiarra estética, jurídica ou política. Afinal, há julgamentos feito às pressas, seja eles de gosto, seja eles de direito. Tais julgamentos são rápidos, celerados, porque afinal: “para que serve um julgamento?”, senão para punir os malvados?  Tais julgamentos toscos colocam os fins a serviço dos meios, tanto a gambiarra legal quanto a ilegal à serviço do Tosco Brasileiro.

“Tal artista, que hoje personifica o imaginário nacional da Venezuela, vem de chofre contra a tese de Dunker de que o método do tosco se opera pela gambiarra. Talvez o psicanalista ficou “destinado a ver o iluminado, não a luz”, como diz o famoso verso do Goethe. Porque a luz, aquela do gato ou de outras criações do improviso, tem potente luminosidade. E é um instigante modus operandi que faz com que este presente não se quede tão escuro.” (Sedlmayer, 2019)

Não, Sabrina, a arte escassa do imaginário venezuelano não depõe contra a tese de que o método do tosco opera pela gambiarra. Ela só confirma que a gambiarra é método e não programa estético per si. Talvez o psicanalista queria apenas mais luz, Mehr Licht! como diria Goethe, para olhar com maior precisão o chiaroscuro que se apresenta a nossa frente.

Giselle Beiguelman contra a barbárie e a indiferença

Giselle Beiguelman, Monuento Nenhum. FOTO: Ana Ottoni

Coincidiu minha visita às intervenções de Giselle Beiguelman no centro da cidade à volta que fazia ao texto do historiador Jacques Le Goff, “Documento-Monumento” (História e Memória. Ed. Unicamp, 2003, p.525), motivada pelos estudos que desenvolvo sobre o Monumento às Bandeiras, de Victor Brecheret. Frente aos “dispositivos” da artista situados estrategicamente em dois emblemas do passado da cidade que insistem em não escoar para o desaparecimento puro e simples – o Solar da Marquesa e o Beco do Pinto –, nunca as reflexões de Le Goff me pareceram tão atuais. Ali ele sublinhava a necessidade de analisarmos a dimensão “monumental” que os documentos possuem, uma vez que podem (e devem) ser analisados como índice do poder que os geraram.

Junte-se à leitura de “Documento-Monumento”, aquela de um artigo de Álvaro Costa e Silva, “Próxima parada: ferro-velho”, publicado na FSP no último dia 22, em que o articulista comenta sobre os crimes cometidos contra esculturas públicas no Rio de Janeiro (sete, somente este ano). Os dois textos servem como “prólogos” às considerações abaixo.

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O que Giselle apresenta no centro da cidade não são propriamente “obras”, ou não o são no sentido tradicional que concedemos ao que se convencionou chamar de “obra de arte”. São intervenções, espécie de dispositivos especiais colocados à nossa percepção.

Chacina da Luz é um conjunto de restos de esculturas que adornavam o Lago da Cruz de Malta, no Parque da Luz, desde, pelo menos, 1870. Os pedaços de esculturas estão dispostos sobre cobertores baratos, daqueles usados por desabrigados. Cercando o quadrilátero formado pelas peças sobre os cobertores, uma faixa adesiva de segurança (dessas amarelo e preto, usadas pela polícia) enfatiza/mimetiza os dispositivos museológicos usados para evitar a proximidade do público com as obras. Já o título da intervenção – Chacina da Luz –, por sua vez, enfatiza as conexões entre o crime de depredação acontecido no Parque da Luz em 2016 e a prática de chacinas que ocorrem periodicamente em São Paulo e outras cidades brasileiras. Esses índices que associam o trabalho da artista às chacinas possuem um outro ponto: tanto a agressão às esculturas quanto os assassinatos em massa, não foram – ou não são – solucionados.

Até 2016 as esculturas às margens do lago do Parque da Luz enfatizavam o jardim como um espaço de contemplação e deleite. Se o jardim em si já é um constructo, um artifício em que a natureza se submete aos desígnios humanos, as esculturas dispostas ordenadamente à beira d’água anunciavam que ela, a arte, também era merecedora do olhar do visitante, de sua contemplação e deleite. As esculturas, portanto, formavam um monumento à perenidade do belo, uma crença que os grupos que governavam a cidade à época queriam deixar aos pósteros, uma mensagem sobre o belo e sobre si mesmos.

Destruídas as esculturas faz três anos, seus restos foram fotografados e catalogados – transformados, portanto, em documentos da barbárie que o grupo escultórico sofreu. Levados para um depósito da Prefeitura, foram devidamente guardados e esquecidos. Encontrados por Giselle, foram transferidos para o Solar e Chacina da Luz terminar (setembro próximo), o monumento/documento de Giselle será desmontado e levado de volta ao depósito, agora de novo apenas como documento da barbárie. Porém, enquanto durar, Chacina da Luz será mantido nesse “não lugar” em que é percebido como monumento à barbárie e ao descaso e como documento da barbárie e do descaso.

                                                              ***

Se Chacina da Luz, enfatizando a dimensão dicotômica do conceito “documento/monumento”, endereça diretamente seu sentido rumo ao drama que vivemos no atual estágio da sociedade brasileira, ainda mais ampla parece ser a potência das peças que formam a segunda intervenção da artista – Monumento Nenhum – conjunto de peças formadas por pedaços de monumentos – instaladas no Beco do Pinto, (com exceção de um deles, apresentado também no Solar).

Apesar de ser possível saber de onde vêm aqueles fragmentos de esculturas transformados em “monumentos nenhum” – um deles, um pedaço do Monumento a Duque de Caxias, de Victor Brecheret, vítima de um atentado a bomba em 1991 (alguém sabe o que deu?) – não resta dúvida de que, empoleirados em bases ou sobre um armário, parecem monumentos nenhum/documentos sobre o nada.

A dimensão alegórica dessas peças de Monumento Nenhum, por fim, me parece ainda mais proteica porque não direciona com tanta ênfase o sentido da obra para apenas uma direção. De qualquer maneira, penso que os dois trabalhos de Giselle Beiguelman são oportunidades para se aplicar e refletir sobre a concepção de “documento/monumento”, criada por Le Goff, mas, sobretudo, para se pensar sobre o grau de barbárie e indiferença em que vivemos em São Paulo e no Brasil, quando o nosso passado e nosso presente correm céleres para o ferro-velho da História.


++MAIS

Leia também texto de Leonor Amarante sobre a exposição, “Chacina da Luz” exibe a falência do espaço público”.

Segunda edição da BIENALSUR ocupa Buenos Aires

Mais de 80 bandeiras criadas por dezenas de artistas para o projeto "Draw me a flag", do francês Christian Boltansky, na alusão a um mundo sem discriminação. Aqui, bandeira de Claudia Andujar, artista brasileira, na Praça Rubem Dario

E sta Bienal nasce há três anos como a primeira Bienal na história da Argentina, cuja proposta, liderada por Aníbal Jozami, Reitor da Universidad Nacional de Tres de Febrero (UNTREF), inaugura na cidade de Buenos Aires inúmeros sites specifics, exposições e intervenções. Desde maio, outros museus e espaços públicos foram “tocados” pela iniciativa em pelo menos quatro províncias argentinas: Tierra del Fuego, Tucumán, San Juan e Rosário.

Uma das particularidades deste projeto é que sua direção e gestão estão nas mãos de acadêmicos. Se é verdade que Aníbal Jozami, presidente da BIENALSUR, é conhecido no mundo da arte como um grande colecionador (em 2014 sua coleção privada de arte ibero-americana foi exposta no Museo Lázaro Galdiano de Madrid), sua carreira como sociólogo e especialista em relações internacionais junto às universidades federais e como reitor da UNTREF, por anos, o levaram a pensar um projeto além de fronteiras. Diana Wechsler, diretora geral da bienal, é historiadora de arte, investigadora do CONICET (Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas) e tem uma visão interdisciplinar sobre a arte.

As principais bienais no mundo vêm questionando há alguns anos seus formatos, funções e viabilidade. Modelos tradicionais tem se esgotado e há uma busca, nos diferentes estamentos da arte e da cultura, por encontrar soluções que permitam mais cooperação, participação e espaço para as propostas de inter e transdisciplinaridade que a arte contemporânea comporta.

A BIENALSUR, no lugar de concentrar todos os esforços em uma única cidade, uma sede, se propõe a “levar o pensamento do SUR” para diversas cidades do mundo. Assim como, trazer para o SUL o pensamento daqueles que entendem que não deveríamos seguir a cartografia oficial e sim estar atentos às questões que estão em jogo no planeta como um todo. O meio ambiente, as questões migratórias, as questões de gênero.

Assim, sob o guarda-chuva de temas como Sexo, Trânsitos e Migração, Arte e Espaço Público, Formas de Ver, Memórias e Esquecimentos, Arte e Ciência/Arte e Natureza, o a bienal gerencia um mix de soluções expositivas. Busca parceiros nacionais e internacionais que se interessem por albergar o projeto, mostra grandes coleções e em outros casos comissiona projetos de artistas escolhidos.

Nesta edição, além das instalações em espaços públicos, vários dos projetos desenvolvidos na parceria com museus de Buenos Aires, muitos deles clássicos e modernos, criam situações de atemporalidade muito interessantes.

Sem lugar à dúvida um dos pontos altos desta segunda edição é a presença do artista italiano, criador da Arte Póvera, Michelangelo Pistoletto que, com 86 anos, continua trabalhando ativamente e defendendo que “a arte só faz sentido quando faz pensar e quando faz refletir sobre a liberdade como responsabilidade comum”. A vinda dele para a Bienal foi mediada pelo curador brasileiro Marcelo Dantas, que já apresentou o artista em Brasília e Belo Horizonte.

Seus projetos estão organizados no Circuito Pistoletto, uma sequência de intervenções no Museo de Arte Decorativo, no Museo de Bellas Artes e no Museo Benito Quinquela Martín. Neste último junto a uma instalação no Rio de la Plata, onde um símbolo do infinito, formado por mais de 3 mil garrafas de plástico, pintadas pelos alunos das escolas do distrito de La Boca, trazem a ideia da importância de cuidar da natureza e lutar contra a degradação do ambiente. O projeto foi um processo de trabalho colaborativo com o Ministério da Educação-Gestión Cultural, alunos de escolas e a ACUMAR-Autoridad de Cuenca Matanza Riachuelo, encarregada de cuidar da limpeza e condições do Rio.

Certamente mobilizar vários setores públicos cria nestes casos a possibilidade de tornar a arte um lugar de conexão e reflexão social.

Autor de grafites espalhados pelo mundo, Nunca expõe na Galeria Kogan Amaro

Obra de Nunca que está na exposição. FOTO: Divulgação

Um dos mais celebrados nomes do grafite – ou street art – do Brasil, o paulistano Francisco Rodrigues da Silva, conhecido pelo pseudônimo Nunca, apresenta sua primeira exposição individual no país, na Galeria Kogan Amaro. Nunca, que tem obras espalhadas por paredes e muros em diversas cidades do mundo, reúne na mostra pinturas que fazem alusão à litogravura e revelam suas referências multiculturais.

Com curadoria de Ana Carolina Ralston, Meide in Brazil trata de temas caros aos brasileiros nos dias atuais, como explica o artista. “Faço da minha arte uma forma de questionar o que nós, como povo, estamos criando e cultivando culturalmente, do que é legitimamente brasileiro e do que é verdade ou mentira do ponto de vista histórico da nossa nação”, afirma Nunca em texto de apresentação da mostra.

A mostra problematiza, portanto, a desvalorização da cultura brasileira e a “ideologia de consumo”, situando como protagonistas das obras personagens excluídos pela sociedade. Entre eles, destacadamente os indígenas, que Nunca já retratou em 2008, na fachada da Tate Modern, em Londres, e, neste ano, nas paredes externas do novo Museu de Arte do Condado de Los Angeles, o LACMA, ainda em construção.

Nunca Meide in Brazil
Galeria Kogan Amaro Alameda Franca, 1054 – Jardim Paulista, São Paulo
De 29 de junho a 27 de julho

Ataque especulativo ou a gambiarra versus o tosco brasileiro

Cao Guimarães, 2019

*Por Sabrina Sedlmayer (UFMG)

Num ensaio publicado recentemente [1], o psicanalista Christian Dunker realiza uma espécie de genealogia do “tosco brasileiro” na Filosofia e nas Artes, com aguda percepção e análise do presente. Entre outras proposições, localiza as raízes do termo numa determinada elite que desdenha a arte e a educação, abomina a ambivalência, o dialogismo, a ironia, qualquer coisa que embarace a rápida apreensão da “finalidade” do objeto estético. A arte, para os toscos, deve ter utilidade, além de função pedagógica. Atrelada às dicotomias (direita x esquerda; bom x mau; comunista x capitalista…), a sensibilidade tosca exagera no uso dos clichês, das caricaturas, das imprecisões e falsas estatísticas, embalada por um discurso ressentido, prenhe de agressividade e inveja. Seriam eles descendentes da antiga aristocracia, desconfia Dunker, e voltam espectralmente à cena contemporânea num tipo de atavismo ou retorno do recalcado. Esses coronéis escravocratas do contemporâneo se amparariam no discurso realista socialista, em símbolos nacionais como a bandeira e o verde amarelo e, esquizofrenicamente, adicionariam uma pitada pornô às lufadas paranoicas, tudo misturado com um cristianismo destituído de hermenêutica. Podemos, aqui, relembrar  as falas de Damares sobre os filmes e desenhos infantis, as postagens no twitter de Bolsonaro sobre o Golden shower, o discurso errático homofóbico de Olavo Carvalho… enfim, uma enxurrada de exemplos que provavelmente, agora, à medida que escrevo este texto, outros tantos devem estar sendo publicados pelos autores que contingencialmente regem o Brasil.

Se todos os argumentos construídos e citados acima têm embasamento reflexivo e são pertinentes ao tempo presente, por que responder ao texto do Dunker em posição de discordância? Talvez porque o psicanalista erra grosseiramente ao apostar que “o método fundamental do Tosco Brasileiro” é a gambiarra, termo que originalmente refere-se à extensão irregular de uma linha de iluminação ou de uma “ligação fraudulenta”, que é de toda forma precária e feia, improvisada ou feita conforme as circunstâncias, ao estilo arquetípico “jeitinho brasileiro“. (Dunker, 2019, p.2)

Se a etimologia está, em parte,  correta, a tese é falsa. Tentarei apontar, a seguir, como nas experimentações da arte, da música e da literatura, a gambiarra é, também, um dispositivo criativo potente, com incidência na história na arte contemporânea brasileira,  extrapolando o período (ironicamente) elencado pelo autor.[2]

As características da gambiarra transcendem o território nacional brasileiro e, bem antes do impeachment do Governo da Dilma (2016), são exemplos de improvisações no campo do fazer e do pensar artístico. A gambiarra está presente em muitos gestos de criação de linguagem, verbal ou imagética, e roça certo patrimônio vivencial, certos arranjos nos quais a escassez de recursos é operacionalizada e a sobrevivência é alçada via invenção do cotidiano. A hipótese que se lança é que há potentes gestos – práticas, táticas, políticas – que se alicerçam justamente na escassez de produtos, de recursos e/ou serviços. Nesse paradoxo, na transformação do negativo em positivo, percebe-se uma potência singular na qual a falta é transformada.

Dividirei, assim, a minha leitura sobre o assunto em quatro tópicos: arqueologia, arte, música e literatura, como forma de explanar como a expressão pode ser pensada tanto em termos conceituais, ao ser capaz de operacionalizar um curioso encontro interdisciplinar que vai muito além das noções de uso, de obediência tecnológica e das soluções improvisadas do cotidiano e,  distintamente o que reforça Dunker, a gambiarra não se assemelharia à corrupção recalcada que retorna, com força, no discurso do tosco brasileiro.

Cao Guimarães, 2019. FOTO: Divulgação

1. Algaravias

Segundo o Dicionário Houaiss da língua portuguesa (2009), a etimologia de “gambiarra” possui uma origem “obscura e duvidosa”, e poderá ter relação com “gâmbias”, pernas espertas, prontas para correr, tal como as de um camelô, que oferece produtos ilegalmente e que deve fechar a mesa de exposição dos produtos ofertados, geralmente na rua, e sair correndo quando surge a fiscalização ou a polícia. De acordo com outros autores, o vocábulo tupi-guarani gambiarã designa acampamento provisório em território desconhecido e teria a ver com “gambiarra”.

Utiliza-se o termo corriqueiramente no Brasil com o significado de “dar um jeito”, ou seja, consertar, reparar, adequar, remendar, adaptar, encaixar e, principalmente, improvisar. Práticas várias que servem para solucionar um problema numa determinada emergência. Por RTU, sigla muitas vezes utilizada jocosamente, entende-se “recurso técnico de urgência” e é um dos sinônimos da gambiarra. O termo é tão popular e utilizado cotidianamente que possui apelidos variados: gambis, gambota, gambi… E, com a mesma lufada de humor, diz-se que o inventor da gambiarra é o Jean Baptiste Gambierre, o equivalente na língua inglesa a MacGyver e o Macgyverism, percebendo, nessa troça, como o procedimento surge emparelhado ao truque, ao jeito, à curiosidade e à esperteza.

Para Rodrigo Boufleur (2013), além de ser o ato de improvisar soluções materiais com propósitos utilitários, ocorre uma gambiarra quando uma mercadoria passa a ser utilizada por aquele que a consome subvertendo o design industrial original do produto. O arquiteto argumenta que a gambiarra é sempre derivada de artefatos industrializados, precisamente quando há transferência do “domínio de projeto” para o “domínio de uso” e modificações na forma, função, materiais e significados são operacionalizados. Em sua chave interpretativa, seria uma intervenção espontânea no design ou desenho industrial. A gambiarra, para ele, não seria criadora de nada, partiria de objetos existentes e improvisaria soluções à maneira de um reajuste utilitário, conseguindo, muitas vezes, quebrar o desígnio do objeto, desmontar seu aspecto designante, deixando exposta a falibilidade do design.

Como uma prática que vai no sentido contrário da intenção produtiva, o termo se expandiu, desapegou das ações cotidianas e avançou em outros domínios: artistas, críticos e intelectuais tomam-no muitas vezes em um sentido diverso e até mesmo contraditório da definição de Boufleur. Ações artísticas resistentes à lógica da produtividade e com iluminada criatividade plasmam formatos e questionam a utilidade da obra de arte.

A aposta contida neste texto é que há gesto de invenção em qualquer confim: nas artes, na música, na literatura e nos anônimos inventores da vida cotidiana. Se a poesia moderna de Baudelaire é indissociável da eletricidade, segundo a visão de Walter Benjamin, não é gratuito que a palavra gambiarra tenha surgido concomitantemente à iluminação elétrica, como também não é fortuito que a favela apareça concomitantemente à urbanização das cidades. O “gato” surge exatamente no momento em que a eletricidade vira mecanismo de exceção econômica e social. Disso Carolina Maria de Jesus, em Quarto de despejo, o diário de uma favelada, já disse com mais contundência:

23 de maio de 1955: Levantei de manhã triste porque estava chovendo. (…) o barraco está numa desordem horrível. É que eu não tenho sabão para lavar louças. Digo louça por hábito. Mas é as latas. (JESUS, 2014, P.42)
9 de agosto de 1955:  Deixei o leito furiosa. Com vontade de quebrar e destruir tudo. Porque eu tinha só feijão e sal. E amanhã é domingo
… Fui na sapataria retirar papeis. Um sapateiro perguntou-me se o meu livro é comunista. Respondi que é realista. Ele disse-me que não é aconselhável escrever a realidade (JESUS, 2014, p. 108).

“Filtros”, 1999, Marepe. FOTO: Divulgação

2. Nomadismos

Se “gambiarra” alude a práticas de improviso diante da falta de técnica e/ou capital econômico, no início do século XXI, principalmente em suas primeiras décadas, a expressão se tornou frequente no campo da literatura e das artes. Parte da crítica, como Lisette Lagnado ([S.d.]), defende que “gambiarra” não deve estar calcada na noção de precariedade ou de acaso, mas associada ao exercício do pensamento, à interrogação a respeito de formas de sobrevivência. Na esteira de Cildo Meireles, a crítica categoriza que se deveria entender por gambiarra algo ligado ao território; um tipo de discurso com acento político, além do estético; algo que não persegue a “pouquidão”, mas sim a “oposição”. Em outros termos, o contexto seria determinante, mas “gambiarra”, como operador conceitual, envolveria transgressão, fraude, tunga, aquilo que tentei recuperar com a etimologia da palavra: saber usar as gâmbias, as pernas para correr, certa astúcia para empreender uma espécie de jogo ambíguo, que não descambasse tão facilmente para o exotismo, nem tampouco o localismo. Percebe-se na fala de Lagnado a preocupação com a estetização (fácil) do precário.

Outra leitura importante, ligada aos Estudos Culturais, é a de Moacir dos Anjos (2007).  Dois pontos cruciais são sublinhados por esse autor: primeiro, que “gambiarra” designaria tanto o ato de construção quanto os aparatos criados, tanto a operação quanto o resultado, tanto o produto quanto seus meios; segundo, a Antropofagia e a tradição experimental da arte nacional seriam vetores importantes para recuperar e entender, dentro dessa discussão, o contemporâneo, as gerações de artistas que se constituem a partir das décadas de 1990 e 2000.

Um acento brasileiro foi recuperado nesses gestos e uma espécie de política (no sentido de procedimento) foi localizada em trabalhos de determinados artistas contemporâneos – Rivane Neuenschwander, Cabelo, Jarbas Lopes, Efrain de Almeida, Alexandre da Cunha, Marepe, Cao Guimarães, O Grivo – que experimentam e arejam a expressão almejando novo arranjo conceitual, que não é oriundo de um saber espontâneo, mas que exige pensamento, criação e reflexão.

Lagnado adverte como há traço do parangolé, de Hélio Oiticica, no elenco de obras desses artistas junto ao questionamento acerca da rede de subsistência dos brasileiros. Percebe-se, na citação, como a gambiarra tem que “administrar três objetos num território para apenas dois”, frase de Cildo Meireles e citada por Lagnado. Já Cao Guimarães convida-nos ao alargamento conceitual do termo “gambiarra” ao aproximá-lo, ontologicamente, das noções de sobrevivência e de formas de vida. Numa entrevista sobre o tema, esclarece:

O meu conceito de gambiarra é algo em constante ampliação e mutação. Ele deixa de ser apenas um objeto ou engenhoca perceptível na realidade e se amplia em outras formas e manifestações como gestos, ações, costumes, pensamentos, culminando na própria ideia de existência. A existência enquanto uma grande gambiarra, onde não cabe a bula, o manual de instrução, o mapa ou o guia. A gambiarra enquanto “phania” ou expressão, uma manifestação do estar no mundo. A gambiarra é quase sempre um “original” e não uma cópia, uma reprodução. E por isso é uma entidade viva, em constante mutação. Registrá-la é torná-la reproduzível, multiplicá-la modificando sua função fundamental (GUIMARÃES, 2009).[3]

O artista pontua como a gambiarra não necessariamente deve ser relacionada somente às soluções improvisadas do cotidiano, e pode ser entendida como uma reserva infinita de manifestações que estão soltas, desencadernadas, nômades, na existência. Seu livro intitulado Gambiarra, com dezenas de fotos que encontrou e que reconheceu como gambiarras, nos remete ao object trouvé e a outras intervenções das Vanguardas. Ready-made, collage, bricolage dialogam, assim, com essa cena que não estabelece fronteiras entre a arte e a vida, entremeada por uma perspectiva político-estética.

Sobre esse ponto, vale lembrar que para Lévi-Strauss (1989) o bricolage é uma forma “primitiva”, um movimento incidental, uma execução sem normas e técnicas, sem os meios científicos tradicionais, sempre acionado como o que se tem: “Isto pode servir”, “isto pode dar certo”, “isto irá quebrar o galho”, ou seja, é a instrumentalidade que move o gesto do bricoleur.

Levando em consideração o que foi desenvolvido até o momento, talvez possamos acrescentar que a gambiarra responde a essas falhas de forma diversa às empregadas pelo colecionador e pelo fetichista. Com meios artesanais, conserta, remenda, cria. Seu lado prático, de jogada, de arranjo, não transforma mercadorias em lixo. À pergunta realizada por Agamben (2007) “O que a mercadoria propõe à obra de arte?”, o fio argumentativo seguido por ele (como o gesto revolucionário de Baudelaire, de levar às últimas consequências a fetichização da mercadoria e a mercadorização absoluta da obra de arte e provocar a experiência do choc, do estranhamento) receberia aqui, no terreno dessa discussão, a formulação de uma possibilidade de vida permeada pela falta (ou pelo nome da fome, na vida da Carolina de Jesus).

Obra da série “Notícias da América”, 2012, de Paulo Nazareth. FOTO: Divulgação.

3. Câmara de ecos

Por “gambioluteria”, o pesquisador Giuliano Lamberti Obici (2014) entende a união entre determinada música experimental com o modus operandi da gambiarra. Para demonstrar tal tese, realiza uma potente arqueologia do termo e recupera um número vasto de movimentos que também lidaram/lidam de forma diferenciada com os instrumentos/objetos, a saber: circuit bending, hardware hacking, cracked media, sound art/media art, arte povera, ready-made, object trouvé, Merz, dadá, recicling, cyberpunk, pós-punk, e ainda perspectivas mais teóricas, como software studies e media archaeology, para citar alguns. Para ele, a gambiarra não é um fenômeno exclusivamente brasileiro, e deve-se relativizar a leitura que a encarcera somente como um traço da identidade local. Sua análise joga luz em um repertório de compositores, músicos, grupos e artistas existentes que compartilham práticas sonoras afinadas com o procedimento da gambiarra, ou seja, compartilham uma maneira peculiar de lidar com os materiais, seja através de práticas de luteria, a criação de novos instrumentos ou de novos designs musicais: Walter Smetak, Marco Antônio Guimarães (UAKTI), Wilson Sukorski, Marco Scarassatti, Tato Taborda, Chelpa Ferro, Paulo Nenflidio, n-1, Panetone, Tony da Gatorra, e O Grivo.

Obici dá exemplo de Cuba, para demonstrar a não exclusividade brasileira dos imprevistos diante da pobreza e da miséria, e como a palavra rikimbili possui vários significados lá. Entre eles, refere-se a uma bicicleta feita com motor artesanal de bomba d’água, criada pelos moradores da ilha durante o longo embargo imposto ao país, que Ernesto Oroza denomina como “arquitetura da necessidade” e “tecnologia desobediente”.

No México também a palavra rasquache, derivada do nahuatl, foi transformada em movimento estético. O uso pejorativo, pobre, vulgar e inferior passou a ser relacionado a espontaneidade e irreverência.

“Chove, chuva”, Rivane Neunschwander

4. Em ponto ou uma linha, terá vida

“Em Londres é assim: os aquecedores devolvem calor a troco das moedas que recebem. Em pleno inverno alguns exilados latino-americanos britavam de frio, sem nenhuma moeda para fazer a calefação do seu quarto.
Estavam com os olhos grudados no aquecedor, sem piscar. Pareciam devotos perante o totem, em atitude de adoração; mas eram uns pobres náufragos meditando sobre a maneira de acabar com o Império Britânico. Se pusessem moedas de lata ou de papelão, o aquecedor funcionaria, mas o arrecadador encontraria as provas da infâmia.
O que fazer? Se perguntavam os exilados. O frio os fazia tremer como se estivessem com malária. E nisso, um deles lançou um grito selvagem, que sacudiu os alicerces da civilização ocidental. E assim nasceu a moeda de gelo, inventada por um pobre homem gelado.
Imediatamente puseram mãos à obra. Fizeram moldes de cera, que reproduziam perfeitamente as moedas britânicas; depois encheram os moldes de água e os meteram no congelador.
As moedas de gelo não deixavam pistas porque o calor as evaporava.
E assim aquele apartamento de Londres converteu-se numa praia do mar de Caribe.” (Galeano, 2011, p.181)

O título desse conto, do jornalista e escritor uruguaio Eduardo Galeano, se intitula “O crime perfeito”. Como se constata pela leitura, há fraude e contravenção nos atos dos exilados latino-americanos; mas como não considerar também o gesto da invenção? Tal improvisação, uma gambiarra, tanto no método quanto no resultado, parecem redimensionar a contingência. Como em Odradek,  a enigmática parábola de Kafka, Galeano mostra a exclusão dos pobres exilados gelados. Em Kafka, não sabemos se o personagem é humano ou um carretel de linhas emboladas. O narrador kafkiano também inicia (como eu, como Dunker) a história pela etimologia do nome Odradek e a medida em que começa a descrevê-lo, no entanto, a máscara cai e percebemos que esse resto, farrapo, coisa, troço, treco, traquitana é capaz de suscitar medo porque talvez sobreviva muito mais tempo do que o humano “pai de família” que  narra e se preocupa, prioritariamente, com o bem-estar da existência dos seus descendentes.

Elvira Vigna, no incrível livro publicado em 2018, Kafkianas, relê vários contos do Kafka, reinventa-os, interpreta-os e,  como espécie de tradutora, verte de um lugar para outro (ou melhor, para outros), deslizando sentidos, amputando passagens inteiras das conhecidas narrativas. Especificamente em Die Sorge des Hausvaters, ela lê Odradek como sendo filho desse pai que o trata como “coiso, troço, lixinho”. No desenho que antecede a sua versão do conto de Kafka, vemos que Odradek está trancado em seu quarto, escondido, sofrendo. Só no final descobrimos que poderia também ser chamado de Vicente: “Alguns Odradeks ficam famosos. Van Gogh. Tratado como lixo, nunca morreu”.  (Vigna, 2018, p.56)

Poderíamos recuperar outros Odradeks que tiveram uma vida-gambiarra, obra-gambiarra, estúdio-gambiarra, materiais-gambiarra, além do próprio Kafka e do Vincent. Bispo do Rosário é um deles. Também Reverón e toda a sua casa em Macuto personificam a gambiarra. Fez toda sua obra com o pouco que tinha em mãos: papelão, resto de parafusos, fio,  arame,  mola, panela de lata, algodão, óculos, tampas de garrafas, papel de cigarro brilhante, farrapos, pedaços de perucas, tecidos, cascas, folhas secas, um pedaço de madeira, páginas em branco, tinta, óleo, giz, cascas de coco, sementes, terra novamente e areia; fios, fósforos, molas…, como enumera Balza (1983, p.41)

Tal artista, que hoje personifica o imaginário nacional da Venezuela, vem de chofre contra a tese de Dunker de que o método do tosco se opera pela gambiarra. Talvez o psicanalista ficou “destinado a ver o iluminado, não a luz”, como diz o famoso verso do Goethe. Porque a luz, aquela do gato ou de outras criações do improviso, tem potente luminosidade. E é um instigante modus operandi que faz com que este presente não se quede tão escuro.

Arthur Bispo do Rosário. FOTO: Divulgação

Bibliografia

AGAMBEN, Giorgio. Estâncias: a palavra e o fantasma na cultura ocidental. Tradução Selvino José Assmann. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2007.

ANJOS, Moacir dos. Contraditório. In: Panorama da Arte Brasileira 2007. Curadoria de Moacir dos Anjos. São Paulo: Museu de Arte Moderna de São Paulo, 2007.

BALZA, José. “Análogo Simultâneo (sobre los objetos de Armando Reverón)”.Análogo Simultáneo. Caracas: Galeria de Arte Nacional, 1983.

BOUFLEUR, Rodrigo Naumann. Fundamentos da gambiarra: a improvisação utilitária contemporânea e seu contexto socieconômico. 2013. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. Inédita.

DUNKER, Christian. Ensaio sobre o tosco brasileiro na Filosofia e nas Artes. ArteBrasileiros, maio de 2019.

GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. Trad. Eric Nepomuceno. Porto Alegre: L&PM, 2011.

GUIMARÃES, Cao. Gambiarras. 2009. Série fotográfica (work in progress). 127 fotografias. Dimensões variadas.

HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro;  MELLO FRANCO, Francisco Manoel de. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.

JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo, diário de uma favelada. 10. ed. São Paulo: Ática. 2014.

KAFKA, Franz. “A preocupação do Pai de Família”. Um médico rural. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: 1990.

LAGNADO, Lisette. O malabarista e a gambiarra. [S.d.]. Disponível em: <http://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/1693,1.shl>. Acesso em: 14 fev. 2018.

LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. Tradução Tânia Pellegrini. Campinas: Papirus, 1989.

OBICI, Giuliano Lamberti. Gambiarra e experimentalismo sonoro. 2014. Tese (Doutorado em Música) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014.

OROZA, Ernesto. Desobediencia tecnológica de la revolución al revolico. [S.d.]. Disponível em: <http://www.ernestooroza.com/desobediencia-tecnologica-de-la-revolucion-al revolico>. Acesso em: 14 fev. 2018.

OROZA, Ernesto. Rikimbili une étude sur la désobéissance technologique et quelques formes de réinvention. Saint-Étienne: Publications de l’Université de Saint-Étienne Cité du Design, 2009.

VIGNA, Elvira. Kafkianas. São Paulo: todavia, 2018.

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[1] https://artebrasileiros.com.br/opiniao/carteiro-do-inconsciente/ensaio-sobre-o-tosco-brasileiro-na-filosofia-e-nas-artes/

[2] “É possível que daqui a dez ou quinze anos os historiadores da arte venham a caracterizar este período, entre 2016 a 2022, como o apogeu do Tosco Brasileiro.” (Dunker, 2019, p.1).

[3] No curso de Doutorado que ministro neste semestre na UFMG, “Exemplos do precário, formas do provisório: literatura e cultura no Brasil”, este excerto da entrevista de Cao Guimarães esteve presente em quase todos os trabalhos apresentados, numa turma com mais de vinte alunos. Tal ritornello talvez tenha a ver muito mais com a identificação da gambiarra como estratégia da sobrevivência de qualquer um sujeito do que comodidade dos envolvidos com a matéria em questão.