Giselle Beiguelman, Monuento Nenhum. FOTO: Ana Ottoni

Coincidiu minha visita às intervenções de Giselle Beiguelman no centro da cidade à volta que fazia ao texto do historiador Jacques Le Goff, “Documento-Monumento” (História e Memória. Ed. Unicamp, 2003, p.525), motivada pelos estudos que desenvolvo sobre o Monumento às Bandeiras, de Victor Brecheret. Frente aos “dispositivos” da artista situados estrategicamente em dois emblemas do passado da cidade que insistem em não escoar para o desaparecimento puro e simples – o Solar da Marquesa e o Beco do Pinto –, nunca as reflexões de Le Goff me pareceram tão atuais. Ali ele sublinhava a necessidade de analisarmos a dimensão “monumental” que os documentos possuem, uma vez que podem (e devem) ser analisados como índice do poder que os geraram.

Junte-se à leitura de “Documento-Monumento”, aquela de um artigo de Álvaro Costa e Silva, “Próxima parada: ferro-velho”, publicado na FSP no último dia 22, em que o articulista comenta sobre os crimes cometidos contra esculturas públicas no Rio de Janeiro (sete, somente este ano). Os dois textos servem como “prólogos” às considerações abaixo.

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O que Giselle apresenta no centro da cidade não são propriamente “obras”, ou não o são no sentido tradicional que concedemos ao que se convencionou chamar de “obra de arte”. São intervenções, espécie de dispositivos especiais colocados à nossa percepção.

Chacina da Luz é um conjunto de restos de esculturas que adornavam o Lago da Cruz de Malta, no Parque da Luz, desde, pelo menos, 1870. Os pedaços de esculturas estão dispostos sobre cobertores baratos, daqueles usados por desabrigados. Cercando o quadrilátero formado pelas peças sobre os cobertores, uma faixa adesiva de segurança (dessas amarelo e preto, usadas pela polícia) enfatiza/mimetiza os dispositivos museológicos usados para evitar a proximidade do público com as obras. Já o título da intervenção – Chacina da Luz –, por sua vez, enfatiza as conexões entre o crime de depredação acontecido no Parque da Luz em 2016 e a prática de chacinas que ocorrem periodicamente em São Paulo e outras cidades brasileiras. Esses índices que associam o trabalho da artista às chacinas possuem um outro ponto: tanto a agressão às esculturas quanto os assassinatos em massa, não foram – ou não são – solucionados.

Até 2016 as esculturas às margens do lago do Parque da Luz enfatizavam o jardim como um espaço de contemplação e deleite. Se o jardim em si já é um constructo, um artifício em que a natureza se submete aos desígnios humanos, as esculturas dispostas ordenadamente à beira d’água anunciavam que ela, a arte, também era merecedora do olhar do visitante, de sua contemplação e deleite. As esculturas, portanto, formavam um monumento à perenidade do belo, uma crença que os grupos que governavam a cidade à época queriam deixar aos pósteros, uma mensagem sobre o belo e sobre si mesmos.

Destruídas as esculturas faz três anos, seus restos foram fotografados e catalogados – transformados, portanto, em documentos da barbárie que o grupo escultórico sofreu. Levados para um depósito da Prefeitura, foram devidamente guardados e esquecidos. Encontrados por Giselle, foram transferidos para o Solar e Chacina da Luz terminar (setembro próximo), o monumento/documento de Giselle será desmontado e levado de volta ao depósito, agora de novo apenas como documento da barbárie. Porém, enquanto durar, Chacina da Luz será mantido nesse “não lugar” em que é percebido como monumento à barbárie e ao descaso e como documento da barbárie e do descaso.

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Se Chacina da Luz, enfatizando a dimensão dicotômica do conceito “documento/monumento”, endereça diretamente seu sentido rumo ao drama que vivemos no atual estágio da sociedade brasileira, ainda mais ampla parece ser a potência das peças que formam a segunda intervenção da artista – Monumento Nenhum – conjunto de peças formadas por pedaços de monumentos – instaladas no Beco do Pinto, (com exceção de um deles, apresentado também no Solar).

Apesar de ser possível saber de onde vêm aqueles fragmentos de esculturas transformados em “monumentos nenhum” – um deles, um pedaço do Monumento a Duque de Caxias, de Victor Brecheret, vítima de um atentado a bomba em 1991 (alguém sabe o que deu?) – não resta dúvida de que, empoleirados em bases ou sobre um armário, parecem monumentos nenhum/documentos sobre o nada.

A dimensão alegórica dessas peças de Monumento Nenhum, por fim, me parece ainda mais proteica porque não direciona com tanta ênfase o sentido da obra para apenas uma direção. De qualquer maneira, penso que os dois trabalhos de Giselle Beiguelman são oportunidades para se aplicar e refletir sobre a concepção de “documento/monumento”, criada por Le Goff, mas, sobretudo, para se pensar sobre o grau de barbárie e indiferença em que vivemos em São Paulo e no Brasil, quando o nosso passado e nosso presente correm céleres para o ferro-velho da História.


++MAIS

Leia também texto de Leonor Amarante sobre a exposição, “Chacina da Luz” exibe a falência do espaço público”.

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