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P.art.ilha une galerias de “fora do eixo” diante da quarentena

Andrey Zignnatto, "Sobre a pele #11". Galeria Janaina Torres. Para p.art.ilha
Andrey Zignnatto, "Sobre a pele #11". Galeria Janaina Torres

Com o isolamento social decorrente da pandemia do coronavírus, museus, instituições culturais e os agentes do mercado tiveram que repensar seu modo organizacional às pressas, mesmo que as alternativas encontradas agora sejam temporárias. Tendo em vista esse cenário – e também considerando o cancelamento da SP-Arte, principal feira do país -, um grupo de galeristas e artistas se reuniu para criar a p.art.ilha.

A iniciativa é online, indo de encontro a outro projeto dos últimos tempos, o Quarentine. Sua primeira ação ocorre no dia 1˚ de maio, quando as galerias lançarão simultaneamente em seus sites e redes sociais uma criteriosa seleção de obras à venda.

Cada compra feita durante o mês de maio implica no recebimento de um crédito pelo colecionador para compras futuras na mesma galeria; assim a p.art.ilha enxerga também mais à frente da crise atual, fermentando estímulos que podem provocar crescimento. A iniciativa não perde de vista, de qualquer modo, questões mais urgentes, como manter ativos os profissionais que atuam na cadeia criativa do setor artístico (artistas, galeristas, produtores, curadores, pesquisadores, fotógrafos, montadores e técnicos).

Em comunicado à imprensa, o grupo afirma ser “aberto a todas as galerias que se identifiquem com o nosso objetivo” e que deseja “arejar o mercado e recepcionar negócios inovadores, startups e projetos artísticos que não tem vez no nosso mercado atual”.

Participam da p.art.ilha: Aura (SP), B_arco (SP), c.galeria (RJ), Carcara Photo (SP), Casanova (SP), Desapê (SP), Eduardo Fernandes (SP), Janaina Torres (SP), Karla Osório (DF), Mamute (RS), Mapa (SP), Lume (SP), Oma (SBC/SP), Periscópio (BH), Sé (SP), Soma (PR) e Ybakatu (PR).

“O pós-corona demandará fortalecimento da ciência, da educação e do fazer artístico”, afirma Eduardo Saron

Eduardo Saron, diretor do Itaú Cultural, durante seminário organizado pela arte!brasileiros e pelo IC em 2019. Foto: Divulgação
Eduardo Saron, diretor do Itaú Cultural, durante seminário organizado pela arte!brasileiros e pelo IC em 2019. Foto: Divulgação

Diretor do Instituto Itaú Cultural (IC) há dez anos, Eduardo Saron acredita que “a partir de agora, teremos de encontrar um novo normal, ou melhor, uma nova realidade”. Durante e após o período da crise com o novo coronavírus, em um ecossistema cultural e econômico extremamente afetado, ”as instituições que tiverem a capacidade de dar respostas e de correr riscos para ajudar a desenhar este novo real se destacarão.”

Em entrevista dada por e-mail à arte!brasileiros, Saron, que também é um dos diretores do MAM-SP desde 2019, afirma que “paradoxalmente, o pós-corona trará uma humanização da sociedade, o que, por sua vez, demandará o fortalecimento da ciência, o avanço da educação e a ampliação do fazer artístico. Nós, que estamos intimamente ligados ao mundo do conhecimento, precisaremos estar prontos para responder à altura este desejo”.

Com uma série de iniciativas em suas plataformas digitais (saiba mais), o IC lançou nas últimas semanas editais de emergência voltados à artistas de diversas áreas, de música, poesia, artes cênicas e visuais. Questionado se os editais não poderiam incentivar uma mentalidade competitiva prejudicial neste momento de crise, Saron defende que a iniciativa “se propõe a acolher parte dos artistas sujeitos a atuar isoladamente e sem remuneração neste período de supressão social”, ajudando “a oferecer liquidez para a economia da cultura nesse período crítico”.

O diretor do IC falou também sobre a necessidade de as instituições culturais darem um salto da ideia de democratização – “onde as métricas de sucesso se tornaram a catraca” – para a de participação, onde o tripé “formação, fomento e fruição” ganha espaço. Ele critica também a falta de uma política de Estado para a Cultura e destaca a importância de preservação da memória. Leia a seguir a íntegra da conversa:

ARTE! – Estamos vivendo um momento sem precedentes na história, por conta da pandemia do coronavírus, então eu queria começar perguntando como vocês estão lidando com isso no Itaú Cultural? Como estão agindo e que tipo de planejamento estão fazendo?

Nesse período de pandemia, umas das nossas primeiras medidas foi garantir a suspensão social dos colaboradores do Itaú Cultural, que estão trabalhando remotamente. Em outra frente, deflagramos uma série de ações para ampliar nossa atuação digital, oferecendo mais arte e cultura para nossos diversos públicos no ambiente virtual.

Uma das nossas preocupações também foi a de manter ativa a economia da cultura. Nesse sentido, mais uma medida que adotamos imediatamente foi garantir, para já, a remuneração prevista nos contratos de todos os artistas que iriam se apresentar no Itaú Cultural e tiveram as suas atividades suspensas em virtude da quarentena. Posteriormente, eles voltarão a fazer parte da nossa agenda de programação. Dentro desse pensamento, ainda criamos editais emergenciais que acolhem a produção dos artistas hoje sujeitos a trabalhar nesta condição de supressão social.

Confesso que o planejamento não é uma tarefa fácil. Tenho conversado muito com a equipe e buscado orientações com o presidente do Itaú Cultural, Alfredo Setubal. Como todos, tivemos de nos reinventar e reorganizar os recursos, não somente financeiros, como também organizacionais e humanos, uma vez que, mesmo com a situação diferenciada que o Itaú Cultural tem, fazemos parte deste ecossistema cultural e econômico, hoje, extremamente afetado.

ARTE! – O IC acaba de lançar o terceiro edital de emergência para produções culturais criadas durante a pandemia, relacionadas a esse período de isolamento social. Gostaria que você falasse um pouco sobre o intuito destes editais, mais especificamente o de artes visuais e fotografia, e qual a importância da iniciativa neste momento.

O Itaú Cultural tem uma forte tradição na realização de editais e chamamentos públicos para fomento. Por exemplo, o programa Rumos Itaú Cultural, que há mais de 20 anos promove o apoio à produção artística e a difusão da arte e da cultura entre os projetos inscritos vindos de todo o país e selecionados por comissões de excelência, ou a convocatória a_ponte: cena do teatro universitário, que lançamos em 2018, destinada a alunos de vários perfis de ensino. Essas experiências sempre nos surpreendem ao revelar novas produções e artistas.

Resolvemos lançar esses microeditais de emergência por essa razão, associada ao fato de que precisamos ajudar a oferecer liquidez para a economia da cultura nesse período crítico. Além de, naturalmente, oferecer oxigênio criativo afetivo para as pessoas que nos acompanham virtualmente nos nossos canais.

Começamos por artes cênicas, pelo desafio desta linguagem para gerar ações virtuais. Uma semana depois, avançamos sobre o campo da música e agora optamos pelas artes visuais. Não somente esta iniciativa provoca fazer um registro de como se está fazendo arte neste momento histórico, como também a instituição se propõe a acolher parte dos artistas sujeitos a atuar isoladamente e sem remuneração neste período de supressão social. Nosso intuito é lançar um edital por semana e abranger o maior número possível de áreas de expressão artística.  

ARTE! – Em um texto publicado na revista Select, intitulado “Parem a competição já”, os artistas e pesquisadores Flora Leite e Daniel Jablonski questionam o papel deste tipo de incentivo no atual contexto. Argumentam, entre outras coisas, que o estimulo à produção durante a quarentena aumenta a pressão sobre os artistas, como se fosse urgente criar um “imaginário da crise”; que ele pode resultar na criação de obras de qualidade duvidosa; e que incentiva uma mentalidade competitiva que recompensa a produtividade como única moeda de troca. Enfim, eles propõem que existem outros caminhos para apoiar o trabalho de artistas neste momento. O que você pensa sobre isso?

Como comentei no início, nós temos uma tradição na realização de editais nas múltiplas áreas de expressão, algo que se consolidou na gestão de Milu Villela. Associado a isso, temos percebido uma intensa difusão artística ocorrendo nas plataformas virtuais nesse momento. Nosso intuito é oferecer mais dignidade para a produção e o pensamento artístico em um período como este, mesmo sabendo que, naturalmente, temos escalas limitadas para podermos fazer esse tipo de apoio.

Os editais sempre foram bem-vindos no Brasil, se consolidando legitimamente ao longo dos anos como um mecanismo objetivo para apoiar projetos de arte e cultura realizados no país. Não temos como atender a todas as propostas em circulação. Neste momento de urgência, eles nos permitem estabelecer critérios para manter a economia da cultura funcionando. 

Como em todo momento de crise, a produção artística e intelectual se intensifica naturalmente. Quando nos afastarmos desse momento histórico teremos, a meu ver, duas questões a serem observadas. A primeira é quais leituras, análises e provocações artísticas foram contundentes a ponto de transbordarem o próprio tempo da coronavírus. Na segunda, poderemos observar o que era frágil e não permaneceu, se tornando apenas um registro de uma pandemia.

ARTE! – Em um texto publicado recentemente na Folha de S.Paulo, a artista e professora Giselle Beiguelman afirmou que após um mês de isolamento é possível perceber que as instituições culturais de modo geral estão ainda na “idade da pedra” da internet. Que foram pegas completamente despreparadas, sem bons conteúdos criados para a web. Queria saber como você vê essa questão de modo geral e no caso específico do Itaú Cultural.

A atividade artístico-cultural tem, por natureza, um modus operandi de agregação de pessoas. Aliás, é algo que se coaduna, ou que se coadunava, ao pré-corona. Porém, considero muito forte a afirmação de que as instituições brasileiras estão na idade da pedra da internet, afinal este período se limitava à propagação somente de textos. Vejo que muitas instituições culturais não apenas superaram esta fase, como também alcançaram espaços de interação com o seu público por meio de cursos, percursos educativos, difusão de programação; todos no campo virtual. A partir de agora, teremos de encontrar um novo normal, ou melhor, uma nova realidade. Nesse sentido, as instituições que tiverem a capacidade de dar respostas e de correr riscos para ajudar a desenhar este novo real se destacarão.

No nosso caso, estamos empenhados em buscar essas respostas. Não é fácil e talvez ainda erremos muito, até porque nada mais será como antes. Neste momento, estamos, mais do que nunca, nos reencontrando com o que originou o Itaú Cultural. A organização nasceu para ser uma base de dados de artes plásticas, que hoje é parte da Enciclopédia de Arte e Cultura Brasileira. Hoje somos muito mais do que isso, mas esta pandemia nos fez olhar com atenção para essa nossa missão de origem, apontada por Olavo Setubal há mais de 30 anos quando criou o Itaú Cultural. Vamos aprofundar nossa atuação no digital.

ARTE! – Imagino que era algo planejado já muito antes da quarentena, mas vocês acabam de lançar o Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural, uma plataforma digital dedicada à análise de dados da cultura e da economia criativa. Gostaria que explicasse resumidamente o que é e qual a importância de um projeto como esse, inédito no Brasil.

Essa pergunta me permite continuar respondendo a anterior, pois, embora já estivéssemos desenvolvendo há mais de oito meses este Painel de Dados, ele reforça a nossa vocação de produzir material por meio digital. O Painel de Dados é uma ferramenta aberta e inédita, que permite pesquisar indicadores de emprego, empresas, financiamento público e comércio internacional de produtos e serviços criativos, para subsidiar pesquisas, agentes do mercado e a formulação de políticas públicas. Esta é a primeira plataforma digital do país inteiramente dedicada à análise de dados da cultura e da economia criativa. O projeto tem como objetivo fornecer aos visitantes um arsenal de dados sobre estes setores, em três grandes eixos: emprego/empresas, financiamento público e importação e exportação de produtos e serviços. Para a execução deste Painel de Dados, foram processados aproximadamente 10,4 milhões de dados, de várias fontes públicas, como IBGE, RAIS, do Ministério da Economia e a PNAD Contínua.

ARTE! – Ainda sobre esse contexto da pandemia do coronavírus, nesses últimos tempos acompanhamos uma série de demissões em museus como Serralves, MoMA e outros. No Itaú Cultural há algum risco de isso acontecer?

As instituições, no Brasil e no mundo, vão passar por uma profunda reorganização, inclusive abrindo um debate sobre a sua missão e propósito. Certamente, isso não será percebido agora, imediatamente. Porém, mais adiante entenderemos e viveremos isso como um efeito desse novo normal, desse novo real. As demissões que algumas instituições realizam hoje, certamente, fazem parte de um programa que passa inclusive pela própria sobrevivência. No nosso caso, temos uma situação diferenciada, mas permanecemos atentos à conjuntura econômica e às novas modelagens que virão.

A sede do Itaú Cultural, na avenida Paulista, em São Paulo. Foto: Edouard Fraipont

ARTE! – Em debate realizado recentemente pela arte!brasileiros e pelo Itaú Cultural você fez uma análise sobre a situação da gestão cultural no Brasil nas últimas duas décadas e falou na necessidade de se avançar da ideia de “democratização” do acesso à cultura para a ideia de “participação”. Gostaria que você explicasse um pouco o que seria este “salto” e o que exatamente significa essa ideia de participação de que você fala.

Nos últimos 30 anos, as políticas culturais foram pautadas com o grande propósito da democratização do acesso. Isso foi fundamental para que pudéssemos aumentar as escalas de público atingido, multiplicar palcos e ampliar a difusão artístico-cultural brasileira. Para dar uma ideia do que isso significa, em 1995, a relevante exposição que gerou grande público atraiu quase 200 mil pessoas. Foi a mostra de Rodin, naquela época promovida pela Pinacoteca de São Paulo, quando Emanuel Araújo dirigia a casa. O recorde de público foi aplaudido pela crítica e reconhecido pela mídia. Recentemente, o MASP trouxe uma artista brasileira, Tarsila do Amaral, e obteve um público de quase 500 mil pessoas.

A democratização do acesso veio para ficar, porém precisamos pensar em um novo propósito, no qual a democratização seja parte dele, mas não um fim em si mesmo.  A minha crítica em relação a esse conceito é que, como centro da nossa orientação, ao longo desses anos, ele gerou uma distorção em nossa atuação. Passamos a nos orientar por uma localização analógica do CEP, onde as métricas de sucesso se tornaram a catraca, a espetacularização da arte e os novos prédios. Esses três fatores acabam empurrando a gestão cultural para um campo perigoso do entretenimento em que se usava o volume de pessoas, os fogos de artifício e novos equipamentos para  responder, de maneira superficial, ao tema ao invés de pensarmos a cultura e a arte brasileiras como um todo.  Isto tudo, legitimado pela distorção do que, de fato, é democratização do acesso. Obviamente que esses três itens são relevantes, mas, como disse, não podem ser a grande métrica.  Em relação aos novos prédios, naturalmente, não sou contra o surgimento de equipamentos culturais, ao contrário, mas desde que sejam criados com uma necessidade institucional real e com um plano de sustentabilidade para a sua manutenção após a abertura.

A meu ver, o propósito maior de uma instituição cultural e de uma política cultural tem de alcançar outro patamar, no qual a democratização do acesso deve fazer parte, mas o propósito maior deve ser a participação dos sujeitos. Isso nos reposiciona como responsáveis, por meio da arte e da cultura, pela transformação da sociedade e para contribuir para o seu desenvolvimento econômico. Por exemplo, temos de ter, de forma mais consistente, uma programação de formação, fruição e fomento. Com isso, o público, a produção e os artistas se entrelaçam sob uma outra ótica, que é a da troca de repertórios, do diálogo entre conteúdos e da interação das pessoas. Esse conjunto passa a ter muito mais relevância do que a simples disponibilização de conteúdo.

ARTE! – Agora, fiquei pensando também em como é possível lidar com essa ideia de participação neste momento de quarentena… Apesar da impossibilidade da presença física de visitantes, ainda é possível nortear o trabalho a partir desta ideia de participação?

Retomando a ideia do tripé formação, fomento e fruição, um conjunto importante dessas ações pode ser realizado de maneira virtual. Naturalmente, temos o desafio de ultrapassar uma internet de velocidade baixa e de custo alto para a população mais carente. Por outro lado, isso nos provoca a oferecer produtos e programas que não sejam simplesmente uma transferência de ações presenciais para o universo digital.

A mudança de paradigma, a resposta a dar em breve, é como fazer programação no digital para levar para o presencial e não o contrário. Aliás, essa minha crítica, em especial, sobre a catraca e a espetacularização ficará ainda mais contundente em tempos de pós-corona onde juntar multidões, infelizmente, deverá ser repensado. A meu ver, nada disso nos fragilizará. Paradoxalmente, o pós-corona trará uma humanização da sociedade, o que, por sua vez, demandará o fortalecimento da ciência, o avanço da educação e a ampliação do fazer artístico. Nós, que estamos intimamente ligados ao mundo do conhecimento, precisaremos estar prontos para responder à altura deste desejo.

ARTE! – Falando sobre o trabalho do IC ao longo das décadas, alguns projetos são muito marcantes nessa trajetória da instituição. Um deles é o Rumos, que tem mais de 20 anos e é um projeto de apoio e fomento à cultura. Voltando um pouco ao assunto dos editais, até que ponto é papel de empresas privadas fomentar a cultura no país? Este caminho seria uma alternativa à ausência de apoios estatais na área?

A arte e a cultura não podem ser reféns de dirigismos culturais, seja de que fonte for. Na minha opinião, a multiplicidade de recursos e iniciativas públicas e privadas é essencial para se ter uma boa política de Estado. O Itaú Unibanco tem uma história de apoio à arte e à cultura, que se manifesta por meio do Itaú Cultural, do Espaço Itaú de Cinema, que recebem recursos diretos do grupo, assim como é direto o patrocínio a iniciativas como o Rock in Rio. Também de apoio a mais de 100 projetos de terceiros em todo o país, por meio do incentivo fiscal.

Além disso e do programa Rumos, que você mencionou, temos o maior acervo de obras de arte corporativo da América Latina. Ele circula por diversas instituições culturais dentro e fora do Brasil de forma gratuita, como o são todas as atividades que o Itaú Cultural oferece. Esse entendimento resulta da percepção de que o século XXI exige mais e mais pessoas criativas e com senso crítico para que o país possa se transformar e desenvolver. A arte e a cultura têm a força para fazer isso acontecer, do contrário sucumbiremos à automatização e aos algoritmos.

ARTE! – Você já afirmou diversas vezes que o Brasil não tem uma política consistente para as artes, para a cultura. A classe artística, no entanto, não parece ter se sentido tão ameaçada em nenhum outro momento da história recente do país como no atual contexto, com o atual governo federal. Como enxerga este momento?

De fato, o Brasil não tem uma política de Estado para a nossa área. Não é de hoje. Há sete anos que o Fundo Nacional da Cultura, um instrumento importantíssimo na constituição de uma política cultural consistente tem visto, sucessivamente, o seu orçamento ser reduzido, mesmo tendo uma fonte segura de recursos advinda das loterias, o que geraria por ano por volta de R$ 350 milhões a R$ 400 milhões para o fundo.

Este ano vence o primeiro decênio do Plano Nacional de Cultura, que é um importante documento de referência para o nosso setor em virtude do seu ineditismo e olhar federativo, mas é frágil pelo aspecto de suas metas. Erroneamente, o PNC indica mais de 50 metas. Um plano com um número exagerado de metas nos faz imaginar que praticamente não tem meta nenhuma. A meu ver, este governo deveria priorizar a análise dessas metas e, em diálogo com a sociedade, propor novas e mais objetivas prioridades para a próxima década, na ótica da participação e do olhar sistêmico para o conjunto das iniciativas culturais e a garantia de liberdade de expressão.

Outro indicativo de vulnerabilidade nas políticas públicas é o fato de que em 30 anos de existência de um órgão dirigente de cultura tivemos, em média, um responsável a cada 10 meses, com exceção de Francisco Weffort, que permaneceu no cargo por oito anos, e de Gilberto Gil, por cinco anos e meio. Tudo isso sem contar, ainda, a histórica fragilidade da Funarte, em tese a instituição pública que deveria ser a responsável por fomentar a arte no Brasil.

ARTE! – Mas falando sobre este governo atual, situações de censura, que de modo geral pareciam parte do passado da história do país, voltam à pauta do dia, criando situações de tensão para artistas e instituições culturais. Como diretor de uma instituição deste tipo, como trabalhar neste contexto? Há uma preocupação neste sentido por parte do IC?       

Para nós, a liberdade de expressão é um pressuposto essencial para a criação artística, mas é sempre importante a busca do diálogo com outros instrumentos legais, como por exemplo, o Estatuto da Criança e do Adolescente. Com isso, a obra e a arte ficam garantidas e preservadas, mas os pais e os responsáveis têm de ser informados adequadamente sobre os motivos da indicação da faixa etária, para que eles próprios decidam se as crianças podem, ou não, acessar aquele conteúdo.

ARTE! – Por fim, um dos grandes focos do IC tem sido trabalhar com história e memória. Isso se relaciona não só com história da ditadura, mas da escravidão, das heranças indígenas e africanas e dos vários períodos da história do país. Qual a importância deste trabalho e como ele tem sido feito?

O país mal tem políticas para preservar a sua memória. Somos muito afeitos ao novo, ao imediato, mas não há inovação sem conservação. Por isso, tratar da nossa memória é determinante para que possamos nos entender e compreender nosso processo de desenvolvimento, de modo a ganharmos consciência das nossas várias trajetórias para, inclusive, propormos não só múltiplas narrativas, como também nos prepararmos para o ineditismo e o novo.

Durante quarentena, Itaú Cultural aposta em alternativas virtuais

Quando a chuva vem

Com a programação suspensa desde o dia 17 de março em razão da pandemia do coronavírus, o Itaú Cultural tem intensificado e ampliado a produção de conteúdo para diversos públicos – como podcasts, cursos de EAD e vídeos – no site e redes sociais da instituição e na Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras.

Edital para a Poesia Surda

No dia 27 de abril, a instituição deu abertura às inscrições de projetos para o Poesia Surda, continuando a série de lançamentos de Arte como respiro: múltiplos editais de emergência; editais de apoio aos produtores de arte e cultura, atualmente sujeitos a atuar isoladamente e sem remuneração. Antes da Poesia Surda, as áreas de artes cênicas, música e artes visuais foram contempladas. O novo edital é voltado exclusivamente para poetas surdos ou com deficiência auditiva. Os artistas podem efetuar suas inscrições, até o dia 1º de maio, através do link.

A poesia inscrita deve estar finalizada e ser uma criação individual do artista participante, sendo aceitos trabalhos produzidos anteriormente ou criados nesse período de recolhimento. Ela deve ser apresentada em formato de vídeo em libras, com legendas em português ou em visual vernacular, também conhecido no Brasil como Libras 3D.

Os cem trabalhos selecionados pela equipe de Educação e Relacionamento do Itaú Cultural receberão, cada um, um valor bruto de R$ 2,5 mil como remuneração pelo licenciamento dos direitos autorais da obra. O Itaú Cultural entrará em contato com os artistas selecionados por e-mail até o dia 25 de maio. Junto com a remuneração financeira, o edital garante a apresentação ao público, dos trabalhos contemplados, via plataforma virtual, seja por meio da grade de programação virtual da organização ou por suas redes sociais.

O projeto Arte como respiro: múltiplos editais de emergência pretende contemplar mais áreas de expressão artística, contando, para isso, com um novo lançamento a cada semana.

Mostra de Animação para Crianças

Entre os dias 27 de abril e 27 de maio, o Itaú Cultural disponibiliza em seu site a Mostra de Animação para Crianças (e todos os públicos). O festival virtual reúne dez títulos da produção nacional de curtas-metragens, cada um vindo de um estado diferente do Brasil. São eles: Menina da Chuva, do Rio de Janeiro, Viagem na Chuva, de Goiás, Pra Ver Poesia, do Pará, Òrun Àiyé: a criação do mundo, da Bahia, Caminho dos Gigantes, de São Paulo, Lipe, vovô e o monstro, do Rio Grande do Sul, No caminho da escola, do Espírito Santo, Meu melhor amigo, de Minas Gerais, Vivi Lobo e o quarto mágico, do Paraná, e Quando a chuva vem?, de Pernambuco. Os filmes foram realizados na última década e permitem um vislumbre não só das temáticas diversas como também das diferentes técnicas de animação empregadas, das mais modernas às mais tradicionais.

Aprendizado virtual

No dia 21, a organização deu início as inscrições para o curso EAD de História da Arte: Um Possível Olhar sobre a Produção em Artes Visuais no Brasil. No início, a proposta era disponibilizar 70 vagas, mas em razão do alto número de inscrições, o Itaú Cultural acabou ampliando a proposta tornando-a uma série de palestras com transmissão ao vivo e aberta ao público. O curso é dividido em 12 encontros, de uma hora e meia cada, feitos às segundas e terças-feiras. As palestras serão transmitidas às 19h no canal do YouTube da instituição, com início no dia 4 de maio e fim no dia 9 de junho. Ministradas pelo professor e curador Marcos Moraes, as palestras propõem um olhar panorâmico sobre a arte brasileira, do período colonial até a atualidade, analisando artistas, obras e o contexto em que se inserem.

Compartilhando olhares

Somando às iniciativas virtuais de incentivo aos artistas e à educação, o Itaú Cultural lançou o Olhares sobre a Covid-19, Marco Zero indo de encontro com alguns projetos já explorados na arte!brasileiros, como o Diários de uma Pandemia. Sua proposta é estabelecer um diálogo imagético com fotógrafos ao redor do mundo sobre os impactos, as transformações e o cotidiano durante a crise mundial da covid-19. Mediando essa conversa está o editor do blog About Light, Cassiano Viana. Para ele, “não é sobre técnica ou sobre o ato de fotografar em si. É muito mais uma correspondência com pessoas de diferentes realidades e que têm o olhar, a observação e o registro através de imagens como meio de expressão e forma de materializar os sentimentos nesses tempos de isolamento”. 

O primeiro relato fotográfico, À espera da primavera, é de Zeng Jia, em Pequim, na China, país onde o surto de coronavírus se originou. “Para ser sincero, fiquei um pouco assustado ao lembrar o Sars, em 2003. Pequim viveu um momento difícil na época. Eu tinha 9 anos, lembro que as escolas foram fechadas por quase dois meses. Agora, adulto, vendo que as pessoas não têm coragem de sair, mesmo quando as ruas estão vazias e é necessário usar máscaras realmente por todo o tempo, percebo que a situação é tão grave quanto 2003”, observa Zeng Jia.

 

“Se voltarmos à normalidade é porque não valeu nada a morte de milhares de pessoas”, escreve Ailton Krenak

Ailton Krenak, autor de O Amanhã Não Está À Venda
Ailton Krenak na Flip de 2019. Foto: Walter Craveiro/ Divulgação

“O mundo está agora numa suspensão. E não sei se vamos sair dessa experiência da mesma maneira que entramos. É como um anzol nos puxando para a consciência. Um tranco para olharmos para o que realmente importa”, escreve Ailton Krenak em O Amanhã Não está à Venda (disponível para download gratuito). Um dos mais importantes líderes indígenas brasileiros da atualidade – famoso por sua marcante fala na Assembleia Constituinte de 1987 e por seu intenso ativismo socioambiental -, Krenak acaba de lançar pela Companhia das Letras este pequeno livro com reflexões sobre os tempos de pandemia da Covid-19 e o mundo que virá a seguir.

“O presidente da República disse outro dia que brasileiros mergulham no esgoto e não acontece nada. O que vemos nesse homem é o exercício da necropolítica, uma decisão de morte. É uma mentalidade doente que está dominando o mundo. E temos agora esse vírus, um organismo do planeta, respondendo a esse pensamento doentio dos humanos com um ataque à forma de vida insustentável que adotamos por livre escolha, essa fantástica liberdade que todos adoram reivindicar, mas ninguém se pergunta qual o seu preço”, afirma Krenak – autor também do livro Ideias para Adiar o Fim do Mundo (2019) – em outro trecho do texto. 

Capa do livro. Foto: Divulgação

O autor, que no momento está isolado na aldeia Krenak, em uma reserva de quatro hectares em Minas Gerais, questiona, portanto, a ideia de “volta à normalidade”, ressaltando que ela não é nem possível nem desejável. “O que estamos vivendo pode ser a obra de uma mãe amorosa que decidiu fazer o filho calar a boca pelo menos por instante. Não porque não goste dele, mas por querer lhe ensinar alguma coisa. ‘Filho, silêncio’.” E, mais à frente, ele arremata: “Tomara que não voltemos à normalidade, pois, se voltarmos, é porque não valeu nada a morte de milhares de pessoas no mundo inteiro. (…) Seria como se converter ao negacionismo, aceitar que a Terra é plana e que devemos seguir nos devorando. Aí, sim, teremos provado que a humanidade é uma mentira”.    

Arte, arquitetura e causa indígena

Na edição #50 da arte!brasileiros publicamos matérias sobre a produção indígena e seus possíveis ensinamentos no mundo contemporâneo. Leia aqui entrevista com Denilson Baniwa; reportagem sobre exposições de artistas indígenas em grandes instituições; e artigo sobre arquitetura indígena no Xingu.   

Diários imagéticos: Covid-19

Thomas Dworzak. Paris. 20 de março. Legenda do autor: Uma família dentro e ao redor de Nova York celebra a primeira festa de aniversário de uma criança em uma chamada de Zoom.

Mesmo com as particularidades de cada nação no enfrentamento à Covid-19, é possível que estabeleçamos uma comunicação com o restante do mundo, que adentrou as medidas de quarentena há um tempo considerável, mesmo que psicologicamente estagnado.

Neste período, alguns fotógrafos continuam saindo à trabalho, se esgueirando pelas alas permitidas dos hospitais na tentativa de fornecer registros imagéticos do aqui/agora. No “por trás da cena”, eles estão cobertos da cabeça aos pés, usando máscaras, luvas e óculos protetores, tal qual Andrea Frazzetta, cujo trabalho será abordado abaixo.

Outros já viram seus movimentos inevitavelmente restritos ao lar, o que faz com que sua hiper-sensitividade se volte para suas próprias casas e, em uma realidade estendida, seus bairros e vizinhos – a uma distância recomendada. Tendo isso em vista, a Agência Magnum iniciou o projeto “Diários de uma Pandemia”, concentrando em uma página constantemente atualizada os novos trabalhos feitos pelos fotógrafos nesse tempo onde a consciência se altera, inquieta, entre expansão e repouso. A cada semana é apresentada uma edição dessas imagens, selecionadas pelo coordenador do projeto Peter van Agtmael, ao lado de notas e reflexões pessoais dos fotógrafos sobre como eles estão enfrentando a situação à medida que ela se desenrola.

Na Normandia (França), avós fazem uma surpresa no meio da aula de violoncelo de sua neta, mediados por uma janela de vidro; em Thokoza (África do Sul), com o retrato de sua mãe repousando só, o filho lamenta a distância social necessária e reflete sobre as famílias com cinco ou dez pessoas que vivem em um barraco – o quão difícil deve ser para elas manter a distância necessária; em Delhi (Índia), a moradora de um Barsati (apartamento pequeno na cobertura de prédios, geralmente de apenas um quarto) olha para seus vizinhos com curiosidade voyeurística à medida que as idas ao terraço tornam-se rotineiras.

Robert Adams volta para casa

No período em que nós nos agarramos aos interiores e exploramos o exterior por janelas indiscretas, a Aperture lançou seu novo volume sob o mote “Casa & Lar”, por “previsão do futuro” ou timing inexplicável. Nele, um artigo por Lena Fritsch caminha pelas diferentes expressões na língua japonesa que poderiam ser equivalentes, em momentos distintos, ao nosso “lar” – palavra inexistente em japonês. Fritsch faz isso relacionando as expressões com trabalhos fotográficos de Daido Moriyama, Kazuo Kitai e Ishiuchi Miyako. Um lembrete da potência da fotografia japonesa. Já Pico Iyer traz de volta os lares de Robert Adams, fotógrafo estadunidense que começou a fotografar no meio da década de 1960, chegando à proeminência na década seguinte com sua série “As Planícies” (The Plains) onde retratava a vastidão do oeste estadunidense.

Seu trabalho o colocou como uma das figuras centrais no movimento dos “Novos Topógrafos” (New Topographers), um termo cunhado por William Jenkins para descrever a documentação visual de paisagens alteradas pelo homem. Nos registros selecionados por Iyer, ao invés de destacar os efeitos da industrialização sobre o que antes era um imponente deserto, o ensaísta se volta às fotos de interiores capturados por Adams. “Eu queria apenas mostrar o que havia nas casas que faziam parte do meu assunto principal, a nova paisagem do oeste. Eu também esperava, no entanto, encontrar evidências do cuidado humano”, relata Adams à Aperture.

Em seu texto, Iyer aponta para uma “fragilidade corajosa” que entra no lugar da “majestade da natureza” nesses trabalhos raramente vistos. “Um olho cruel pode ver as coisas que colecionamos como tolas, impróprias; um olho compreensivo vê que é tudo o que temos”, complementa o autor do texto. À parte da ótica “mais transcendental” escolhida por Iyer, o espírito do trabalho pode vir também de uma questão muito mais simples que abre espaço para identificação: é difícil enclausurar esses lares em um tempo-espaço muito específico. As casas de muitas pessoas podem estar espelhadas nessa série, se não as suas, então dos seus amigos, de suas avós, de um parente distante ou ex-namorado.

A escolha estética de Adams, seu estilo quase imposto como assinatura, entrega, junto com a ternura dos lares, uma melancolia, um sentimento de solidão que podemos tão bem identificar no nosso cotidiano atual. Contudo, o “nós” nessa sentença é um “nós” seletivo: pessoas com casa; casas razoavelmente espaçosas. Quando escolhemos o lar como uma imagem, fotográfica e mental, simbólica da quarentena, um filtro já é colocado em quais pessoas são representadas por essas imagens. Enquanto decidimos passatempos na quarentena, os ansiosos por um refúgio não veem tão longe. O isolamento recomendado para uma população sem casa é um limbo entre dois países, onde um arde, o outro tem sede, e ambos precisam de água, como escreveria Warsan Shire.

Existe um rosto para a pandemia?

Em uma pandemia, é comum a busca por um “rosto”, uma imagem simbolizante, uma foto que represente o zeitgeist. Com isso, há o risco de cair em uma representação achatada e ignorar outros múltiplos protagonistas nessa narrativa, ao designar uma face para um acontecimento de tamanha proporção. Antes de nos voltarmos para a figura do lar surgiram as cidades fantasma, por exemplo, e precedendo as imagens de comprimidos e vacinas, temos a figura dos médicos.

Ao contrário de outras pandemias nas quais o termo peste foi empregado – com infortúnio – como metáfora, na construção incipiente das imagens desta crise a figura dos doentes não aparece ainda em volume considerável, talvez como uma lição aprendida em relação ao respeito aos retratados. Talvez porque, pelo que se observa até o momento, o Covid-19 não deixa sinais físicos suficientes para ter valor notícia pelo choque pela deformação; de todo modo, a busca por imagens mais dramáticas é “parte da normalidade de uma cultura em que o choque se tornou um estímulo de consumo e fonte de valor”, como escreveu Susan Sontag. Neste momento da crise, nós temos as pessoas que trabalham no front das epidemias nacionais, principalmente médicas e enfermeiros.

Na capa da revista dominical do The New York Times está Monica Falocchi, enfermeira chefe da Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital Civil de Brescia. Para Andrea Frazzeta, ela posou com os olhos de alguém “que acabou de sair do campo de batalha”. Frazzeta foi o responsável pelos perfis fotográficos contidos na revista. Ele decidiu documentar o trabalho desses profissionais nas cidades de Brescia, Bergamo e Milão depois de ver as selfies tiradas por médicos e enfermeiras com os rostos machucados pelo uso da máscara por tanto tempo.

Muitos deles foram fotografados no final de seus turnos, capturando um momento em que o desgaste e a fadiga são evidentes em seus rostos. No processo, o fotógrafo ficava a um metro e meio de distância, vestido com roupa protetora, óculos, luvas e máscara.

No meio da reportagem, Anna Maria Mentuni, a mãe de Frazzeta, ficou doente com Covid-19 e acabou falecendo no dia 26 de março. O NYT Magazine publicou a última foto que ele tirou da mãe, logo após ter deixado suas compras de supermercado na porta dela; naquele dia, eles conversaram pelo telefone, embora estivessem no mesmo lugar, um atrás de sua máscara e a outra através da janela da frente, a alguns metros de distância.

Com bandeiras hasteadas na fachada, Galeria Jaqueline Martins estreia o Four Flags São Paulo

Projeto do artista Thomaz Rosa, que inaugura o Four Flags São Paulo. Foto: Divulgação

Em uma iniciativa pensada para os tempos de isolamento social por conta da pandemia do novo coronavírus, a Galeria Jaqueline Martins apresenta a partir desta quarta-feira, 22 de abril, o projeto Four Flags 2020 São Paulo. Duas vezes por semana, bandeiras concebidas por artistas convidados serão hasteadas na fachada da galeria paulistana. Todas as bandeiras são produzidas em edição de 4 + 1 P.A e o valor de venda (R$ 800) será integralmente destinado aos artistas participantes.

Já em atividade em Amsterdam – em projeto capitaneado pelos curadores Julia Mullié e Nick Terra -, o Four Flags parte do desejo de desenvolver meios de estímulo à prática artística durante a quarentena, sendo também “uma oportunidade de gerar receita para que artistas do nosso circuito continuem produzindo”, segundo texto de apresentação do projeto.

Primeira bandeira hasteada na fachada da galeria. Foto: Divulgação.

O primeiro artista a expor sua bandeira na Jaqueline Martins é o paulista Thomaz Rosa. Os próximos confirmados são Ana Mazzei, Pedro França e Cibelle Cavalli Bastos. “Esperamos que iniciativas como esta possam ser encaradas não como soluções temporárias em decorrência do momento atual, mas como oportunidades para refletirmos mais profundamente sobre a maneira com que exposições e projetos culturais ocupam os espaços institucionais ao redor do mundo”, diz o texto.

2015 | Desvio para o político

O artista plástico Cildo Meireles
O artista plástico Cildo Meireles em seu ateliê, no Rio de Janeiro/Marcos Pinto

A expressão “uma agulha perdida em um palheiro” está em mais de 17 mil páginas da internet, utilizada de forma comum para designar algo impossível de se encontrar. Foi a partir dessa expressão que Cildo Meireles criou Fio, fardos de palha envoltos por cem metros de fios de ouro, com uma agulha também de ouro na ponta. “Gosto quando as coisas são fundadas no imaginário do maior número de pessoas”, explica Cildo, em seu espaçoso ateliê, em Botafogo, no Rio.

Um dos artistas contemporâneos brasileiros de maior visibilidade no exterior, com retrospectivas recentes na Inglaterra, Espanha, Dinamarca, Itália e em Portugal, Cildo Meireles, 67 anos, é hoje também um dos mais populares no País, graças às suas instalações permanentes em Inhotim: Através e Desvio para o Vermelho. Versões de ambas, a propósito, estarão também em exibição permanente nos EUA, em Glenstone, um museu próximo a Washington, com características semelhantes às de Brumadinho.

Fio é uma das obras de Meireles em exibição no 34º Panorama da Arte Brasileira do Museu de Arte Moderna, na sala menor, em uma seção denominada Imersão, que busca contextualizar as obras da mostra.

“Criei essa obra a partir de uma mostra chamada Ouro e Paus, em 1990, quando eu usava dois materiais comuns, mas com valores muito distintos, como a madeira e o ouro”, conta. A exposição reunia desde uma cama de faquir com pregos de ouro a caixas montadas com o mesmo elemento nobre. “Em 1999, quando mostrei Fio no New Museum, em Nova York, ela foi roubada, mas não acho isso grave”, afirma, desprendido, num estilo que parece acompanhar sua vida. Afinal, apesar de ser um dos mais badalados artistas nacionais, ele se veste sempre de forma casual e com um boné surrado, que chama de “minha peruca”.

Uma das obras mais recentes de Meireles, Aquarum, dois copos, um cheio de água com tensão superficial, ou seja, com o líquido um pouco acima das bordas, e outro cheio de ouro, está em exibição em sua galeria italiana, a Continua, até janeiro de 2016. “O ouro é tão denso que, para encher um copo, foram precisos 8,5 kg”, diz, como se o material não tivesse muito valor, quando na verdade só o custo da obra ultrapassou R$ 1 milhão. “Mas o copo com ouro é o brinde para quem levar o copo com água”, ironiza.

Por que usar materiais como ouro? “Primeiro, porque desde os anos 1970 realizei trabalhos que tinham tanto o material mais barato quanto o mais caro. Depois, o que me interessa como artista é quando o tema passa a ser matéria-prima”, afirma.
De fato, muitas de suas obras partem da matéria como primeiro produtor de significado, caso de Missão/Missões (Como Construir Catedrais), de 1987, exibida na antológica Magiciens de la Terre, em Paris. Nela, um chão de 600 mil moedas se une por um fio de 800 hóstias a um céu de dois mil ossos, uma obra com leitura marcadamente crítica sobre a ação dos missionários no Sul do País.

A política, contudo, entrou na poética do artista por motivos alheios às suas primeiras intensões. Meireles nunca estudou arte formalmente. Aos 15 anos, em 1963, em Brasília, ele frequentou o Ateliê Livre da Fundação Cultural do Distrito Federal, coordenado pelo peruano Barreneschea, com quem seguiu estudando, mesmo após seu fechamento, pelos militares, no ano seguinte. Já em 1968, Meireles entrou na Escola Nacional de Belas Artes, no Rio, mas desistiu dois meses depois: “Eles ensinavam o que eu já sabia, não tinha sentido”.

“Fio”, uma das obras de Cildo Meireles em exibição no 34º Panorama da Arte Brasileira
“Fio”, uma das obras de Cildo Meireles em exibição no 34º Panorama da Arte Brasileira, do Museu de Arte Moderna de São Paulo/Foto: Divulgação

A essa altura, no entanto, o artista já estava trabalhando em duas séries cujos projetos ele até hoje continua a realizar: os Volumes Virtuais e os Cantos. Esses últimos, quinas que desafiavam o sistema euclidiano, podiam ser adentrados pelos espectadores. Seria uma forma de criar penetráveis, como as propostas de Hélio Oiticica? “Naquele momento, era um caminho quase inverso. Ele buscava algo mais telúrico e ao mesmo tempo com participação popular, já eu queria simplificar o espaço, estava no caminho da abstração”, recorda-se.

Tanto os Volumes Virtuais como os Cantos acabaram selecionados para uma mostra no Museu de Arte Moderna do Rio, em 1969, a pré-Bienal de Paris, de onde sairiam representantes do País para a mostra francesa. Contudo, por conta da ditadura, a exposição foi fechada pelos militares antes mesmo de ser aberta, forçando Cildo a um desvio para um caráter político.
Sua primeira obra com tal faceta, logo em seguida, foi nada menos que Tiradentes: Totem Monumento ao Preso Político ou Introdução a uma Nova Crítica, em que queimava galinhas vivas no dia 21 de abril de 1970, parte da mostra Do Corpo à Terra, organizada por Frederico Morais, em Belo Horizonte.

Naquela época, com apenas 22 anos, Cildo já havia sido convidado pelo curador Kynaston McShine para a mostra Information, que seria realizada no MoMA, também em 1970, que teria ainda Artur Barrio, Hélio Oiticica e Guilherme Vaz. O convite veio por sua participação no Salão da Bússola, no MAM carioca, no ano anterior, quando McShine viu os Espaços Virtuais.
Foi no trem Vera Cruz, que fazia o trajeto BH-RJ, que o artista escreveu Cruzeiro do Sul, o manifesto que explicaria sua participação na mostra norte-americana, que começa com a frase clássica “Não estou aqui nesta exposição para defender uma carreira e nem uma nacionalidade.”

Contudo, a obra para Information, que veio a se tornar um de seus ícones, saiu de forma mais espontânea, no fim de semana seguinte. Após ir a uma praia afastada com amigos, no caminho de volta o grupo parou para almoçar em um boteco. Foi onde um dos amigos jogou um caroço de azeitona dentro de uma garrafa de Coca-Cola e contou que, por conta do processo de lavagem industrial, seria impossível tirar o caroço. Foi aí o Eureka! do artista: “Eu achava o texto Inserções um tanto obscuro e, com a possibilidade de intervir em uma garrafa, eu punha em prática minhas ideias. A partir daí também imprimi textos em notas, usando serigrafias em ambas”. Foi Oiticica quem acabou levando as garrafas de Coca-Cola, para a mostra no MoMA, todas impressas com a ajuda do artista Dionísio del Santo.

Naquele período, no Rio, Meireles vivia em Santa Teresa, pagando algo em torno de cem cruzeiros, por um pequeno quarto. Foi lá, há quase 50 anos, que a então jovem curadora Aracy Amaral o visitou pela primeira vez, e desde então acompanha seu trabalho de perto.

Encarregada do 34º Panorama da Arte Brasileira, Da Pedra Da Terra Daqui, Aracy resgatou um projeto do artista, que ela deve ter conhecido em 1969, a série Arte Física, composta por várias proposições, uma delas retirar do ponto mais alto do pico mais alto do Brasil cerca de um centímetro de matéria e, em seu lugar, colocar algo de dois centímetros do subsolo do País.
Para o Panorama, não foi o próprio artista que realizou o projeto, mas Edouard Fraipont e seu assistente Miguel Escobar, usando um pedaço do mineral kimberlito para aumentar em um centímetro a altura do País, colocando em prática outra regra da poética de Meireles, em sua própria definição: “A partir do mínimo possível, alterar o máximo possível”.

A função da cultura na saúde mental

A performance "Homo", de Melania Olcina Yuguero. Foto: Juan Carlos Toledo

Há quarenta anos começamos a popularizar uma nova concepção sobre os transtornos mentais entendidos como síndromes (signos patológicos sobrepostos), que perturbam as funções psíquicas (como cognição, memória ou vontade), associados com disfuncionamentos sociais (prejuízos a esfera amor, trabalho e aprendizagem). Reações em acordo com expectativas culturais, por exemplo, diante de acontecimentos como perda e luto, assim como comportamentos políticos, religiosos e sexuais não são considerados transtornos mentais. O leitor deve ter notado que esta definição não faz nenhuma alusão à causalidade nem ao sofrimento como critérios para dizer que estamos diante de um transtorno. Esta ideia de que os transtornos são convenções estatísticas ajuda a entender por que entre 1968 e 2015 descobrimos 115 novos transtornos mentais. Tacitamente se infiltrou no discurso popular a ideia de que as doenças mentais são no fundo doenças cerebrais, derivadas da ausência ou redução de neurotransmissores, como a serotonina ou a dopamina, que podem ser repostos com a medicação correta. Gradualmente nos acostumamos com esta teoria do transtorno mental como uma espécie de diabete cerebral, uma doença crônica, que exige medicação permanente, que tem uma origem genética, que requer controle e uma certa educação ou disciplina alimentar ou corporal. Uma teoria irmã dizia que a dependência química requer uma guerra às drogas e a disciplina da abstinência, pois as substâncias psicoativas ilegais geram uma dependência cerebral.   

Os achados das neurociências são incríveis e avançam no entendimento de determinações de comportamento e emoção. Não há nada de errado com eles e nenhuma teoria psicoterapêutica que se queria justificável deveria lhes ser indiferente. Ocorre que junto com a teoria da diabete mental veio um efeito colateral tremendamente pernicioso: a concepção de que o transtorno mental é indiferente ao modo como falamos sobre ele. Para esta teoria a forma como interpretamos e ligamos a aparição de sintomas com nossa vida, pregressa ou futura, não passa de um epifenômeno sem valor etiológico. A teoria das causas cerebrais, ideologicamente exagerada, passou gradualmente a ironizar tudo o que se relacionava com a forma de vida do sujeito, compreendida como unidade entre linguagem, desejo e trabalho, como uma herança freudiana, anti-científica, dependente da crença em conflitos interiores e outras disposições morais baseadas na boa fé e na força de vontade. O discurso que interpretava de forma diferencial certos sintomas em detrimento de outros (a depressão em vez da mania, por exemplo), as narrativas de sofrimento da comunidade ou dos familiares com quem se vive, a própria versão do paciente, o seu “lugar de fala” diante do transtorno, tornaram-se epifenômenos que não alteram a rota do que devemos fazer: correção educacional de pensamentos distorcidos e medicação exata.

Quarenta anos depois acordamos em meio a uma crise global de saúde mental, com elevação de índices de suicídio, medicalização massiva, receitadas por não psiquiatras e insuficiência de recursos humanos ou equipamentos teóricos e clínicos para enfrentar o problema. Este é o custo de desprezar a cultura como instância geradora de mediações de linguagem necessárias para enfrentemos o sofrimento antes que ele evolua para a formação de sintomas. Este é o desserviço dos que imaginam que teatro, literatura, cinema e dança são pelas de entretenimento ideológico e acessório, como a ampliação e diversidade de nossa experiência cultural não fosse o ponto central para desenvolver capacidade de escuta e habilidades protetivas em saúde mental. Como se eles não nos ensinassem como sofrer e reciprocamente como tratar o sofrimento no contexto coletivo e individual do cuidado de si. O empobrecimento da capacidade de contar sua própria história, de entender a lógica de seus conflitos, de nomear a recorrência de seu mal-estar não é apenas uma perda para a riqueza do espírito ou para a formação de personalidades mais sensíveis, é um desprezo arrogante e um desperdício descabido com os meios elementares de profilaxia básica em saúde mental.

2016 | O universo em três tons de cinza

Iran do Espírito Santo em frente à sua obra “Recuo Hexagonal” (2006).
Iran do Espírito Santo em frente à sua obra “Recuo Hexagonal” (2006). Foto: Luiza Sigulem

Duas pinturas em lona de 1985, ambas produzidas para uma disciplina de Nelson Leirner na Faap, foram as primeiras obras de Iran do Espírito Santo adquiridas por uma instituição. Foi Aracy Amaral, quando de sua gestão à frente do Museu de Arte Contemporânea da USP, entre 1982 e 1985, a responsável pela compra, e os dois trabalhos, os desenhos de um sofá e uma vitrola, encontram-se agora em cartaz na mostra A Casa, no próprio MAC, até 31 de julho.

Nos trabalhos de 30 anos atrás, ao representar objetos cotidianos, o artista já apontava para uma poética que segue até hoje. “Vejo meus desenhos de adolescente e percebo que sempre trabalhei com esse tema, assim como com referência à arquitetura”, afirma Espírito Santo, em seu amplo ateliê, recentemente inaugurado, e que mais parece uma galeria de arte. “De repente eu inverto meu papel e passo a vender arte”, brinca, sem de fato parecer sequer estar pensando nessa possibilidade.

Apesar da pintura em lona das obras no MAC, a técnica da moda em sua geração nos anos 1980 – Leonilson e Leda Catunda, por exemplo, contemporâneos da Faap, também usavam esse material –, esses primeiros trabalhos do artista estão mais próximos da geração de seus professores, como Leirner e Regina Silveira, do que de seus colegas. “Eu realmente nunca me identifiquei com a celebração da pintura daquela época”, afirma. A simplicidade nas linhas, que busca quase o desenho ideal dos objetos retratados – o que será uma constante em sua carreira – , tem a ver com a identificação com a arte conceitual a partir de um dado de personalidade: “Tenho uma cabeça mais analítica”, define-se. Essa simplicidade tem ainda muito a ver também com o desenho, uma prática constante, que no ano passado ganhou uma publicação exclusiva dedicada a ele, Desenhos, editada pela Cobogó.

“Extension/Fade Horizontal” (2007). Crédito: Giorgio Benni
“Extension/Fade Horizontal” (2007). Crédito: Giorgio Benni

Seu desenho alcançou uma dimensão muralista, em 1997, quando ele ocupou nada menos que 110 metros quadrados de uma área de passagem do Museu de Arte Contemporânea de São Francisco, nos EUA, simulando paredes de tijolos, em três tons de cinza. “As pessoas passavam por lá e perguntavam onde estava o trabalho”, relembra. Duas versões dele foram vistas em 2007: uma na principal sessão da Bienal de Veneza, outra na retrospectiva do artista na Estação Pinacoteca, em São Paulo.

A “invisibilidade” desses trabalhos murais pode ocorrer por conta da proximidade de seu trabalho com o design, área que serviu como forma de subsistência em agências de propaganda até os anos 80 e, ainda como freelancer, nos anos 1990, fazendo ilustrações e projetos gráficos. “Eu lembro quando trabalhei, entre 1986 e 1988, em um escritório em Londres e tinha que ficar desenhando garrafas rosinhas, o que me irritava profundamente, e acho que isso me motivou a fazer uma série de desenhos onde as garrafas eram apenas pretas”, conta. Contudo, enquanto a propaganda sempre visa idealizar o objeto de consumo, para assim convencer o consumidor de sua necessidade, Espírito Santo realiza uma operação contrária, que é buscar a forma ideal, como se chegasse ao mundo das essências, das formas puras, portanto inalcançável, como defendia Platão.

“Abat-Jour” (1996)
“Abat-Jour” (1996). Crédito: Everton Ballardin

Foi buscando, por exemplo, o “abajur essencial”, que ele criou sua primeira obra tridimensional, Abat-jour, a partir de um modelo simples do designer francês Philip Stark, convertendo todo seu volume em aço inoxidável, mantendo o formato do objeto. “Foi aí que eu cheguei a algo que buscava há muito tempo, que é quando a imagem forma uma dimensão arquitetônica e se relaciona com o corpo”, explica.

Desde então, copos, latas ou lâmpadas, entre outros objetos, ganham na obra do artista uma dignidade inédita, através do uso de materiais típicos da história da escultura clássica, especialmente o mármore. A série de caixas de sapato é um bom exemplo desse procedimento: realizada em paralelepípedos de mármore, uma saliência de apenas três milímetros transforma o elemento nobre na representação da embalagem. “É mágico”, admira-se Espírito Santo.

“Base fixa” (2016).
“Base fixa” (2016). Crédito: Gui Gomes

Essa valorização de objetos banais, muitos deles sempre em processo de descarte, ganhou o ápice em sua mostra mais recente na Fortes Vilaça, Fuso, na qual a maior sala da galeria foi ocupada por apenas quatro conjuntos de porcas e parafusos, só que 18 vezes maior que o modelo original e pesando mais de uma tonelada. Com o título Base Fixa, a obra cria “uma espécie de praça/chão de fábrica”, segundo o texto escrito pelo artista na primeira vez que ele torna pública a análise de sua própria obra.

Se sobre seu trabalho ele costuma ser discreto, sobre a situação do País, Iran do Espírito Santo é bastante eloquente. Ao contrário de muitos artistas que usam as redes para propagandear suas obras, para ele, esse é um espaço de militância política. Sua vida pessoal tampouco é exposta no Facebook. “Não é todo artista que sabe fazer arte política, eu faço o trabalho que tenho que fazer, mas é a opinião política que acho importante, assim como a maneira de se relacionar com o mundo da arte”, defende.

Por isso, ele conta que entrou no Facebook, em 2014, para se manifestar a favor de Dilma no segundo turno das eleições, o que acabou lhe rendendo o convite para participar do último ato da campanha, em São Paulo, no palco do Tuca, sentando-se ao lado do escritor Raduan Nassar. “Só não fiz foto ao lado dela porque sou tímido, mas senti uma profundidade em seu olhar que admiro”, conta.

Iran do Espírito Santo em frente à sua obra “Recuo Hexagonal” (2006).
Iran do Espírito Santo em frente à sua obra “Recuo Hexagonal” (2006). Crédito: Luiza Sigulem

Depois da reeleição, o artista deixou as redes sociais, mas voltou novamente agora em 2016 por conta do impeachment e para protestar contra o golpe. Em meados de junho, seus posts, mais de uma dezena por dia, compartilhavam críticas às posturas reacionárias do governo interino, como a promessa de fechamento da TV Brasil. “Por conta de tudo isso, me dá vontade de fazer uma arte política, mas eu não sei como. A postura que admiro é a de artistas como Jenny Holzer e Barbara Kruger”, explica.

Apesar de realmente não estar próximo da contundência de Kruger, é difícil não perceber que expor porcas e parafusos em uma galeria de arte seja um ato político. Afinal, enquanto se engendrava o golpe, de caráter claramente elitista, que visa brecar os avanços sociais da última década, criar um monumento a partir de objetos manipulados por trabalhadores braçais é dar visibilidade aos instrumentos de uma classe que não costuma estar aparente no circuito da arte.

2016 | Guto Lacaz, um maior abandonado

O artista em seu ateliê.
O artista em seu ateliê. Foto: Luiza Sigulem

Aos 68 anos e com mais de 40 de carreira, Guto Lacaz vendeu apenas agora, em 2016, uma obra a uma instituição de arte. Criada há quase 30 anos, Eletro Esfero Espaço, em cartaz na exposição Situações: a Instalação no Acervo da Pinacoteca do Estado até 20 de fevereiro de 2017, integra desde o início do ano o acervo da instituição.

“Em janeiro já ganhei meu ano, com a carta do José Augusto Ribeiro, pela Pinacoteca, confirmando a compra dessa obra”, conta Lacaz em sua residência e ateliê nas imediações do Parque Ibirapuera.

Foi exatamente no parque, aliás, no Pavilhão da Bienal, que Eletro Esfero Espaço foi vista pela primeira vez, na exposição A Trama do Gosto, em 1987, organizada pela Fundação Bienal, entre a 18ª e a 19ª bienais de São Paulo. “Eu participei da 18a edição, em 1985, a convite da Sheila Leirner para realizar a Eletroperformance”, recorda Lacaz, que então pediu à curadora um espaço para apresentar um novo trabalho. Contudo, reação nada anormal diante da grande responsabilidade e visibilidade que a Bienal propicia, “me deu um branco e acabei fazendo uma sala careta”, admite agora.

Foi na próxima ocupação no prédio projetado por Oscar Niemeyer que Lacaz conseguiu compensar a participação morna no evento.  A Trama do Gosto – Um Outro Olhar sobre o Cotidiano, com mais de cem artistas, entre eles Regina Silveira, Nelson Leirner, Bené Fonteles e Leon Ferrari (1920-2013), organizava-se como uma cidade, com módulos como Diversões Eletrônicas, Arranha Céu e Livraria, entre outros.

Vistas da instalação “Eletro Esfero Espaço” (1986-2015), Guto Lacaz
Vistas da instalação “Eletro Esfero Espaço” (1986-2015), Guto Lacaz

“O Antenor Lago, um dos curadores, pediu que eu fizesse uma loja de eletrodomésticos”, lembra Lacaz. O tema não era estranho a ele. Sua já conhecida Eletroperformance era realizada com eletrodomésticos, uma paixão que teve início quando estudou eletrônica no segundo grau, mas que de fato ganhou proporção nas lojas de departamento da cidade. “A Sears era minha biblioteca, era como o MoMA para mim. Lá tinha de tudo, de brinquedos bárbaros a tecnologia de ponta”, relembra com admiração.

Foi da Sears, justamente, que ele copiou a ideia para a obra de A Trama do Gosto. “Eu me recordo de ver na vitrine um aspirador de pó que sustentava uma bola plástica no ar; então eu simplesmente criei um corredor por onde o visitante passava, como se fosse saudado por várias espadas, mas eram 26 aparelhos”, explica.

Por sorte, naquela época, alguém na Fundação Bienal tinha um parente que trabalhava na Black & Decker, fabricante do eletrodoméstico, e conseguiu o empréstimo dos aparelhos. “Eu mesmo me surpreendi com a facilidade”, conta. Para disfarçar o som ensurdecedor do conjunto, ele cedia ao público um Walkman com um trecho de Thannhäuser, de Richard Wagner (1813-1883), o que dava um ar solene à visita.

Eletro Esfero Espaço foi um sucesso de crítica e público: a instalação tinha filas permanentes na mostra no pavilhão da Bienal e a curadora Aracy Amaral a selecionou para a mostra Modernidade – Arte Brasileira no Século 20, em Paris, em 1988, apresentada também no Museu de Arte Moderna de São Paulo no mesmo ano. “Cheguei na França achando que ia conquistar o mundo, mas não saiu uma linha sobre minha obra”, lembra-se da frustração. Depois de Modernidade, a instalação nunca mais foi vista pelo público, o que revela uma notável pesquisa da curadoria da Pinacoteca, já que nem galeria que o represente Lacaz possui. “Eu sou um maior abandonado”, ironiza.

Por trás da afirmação sarcástica, ele aponta, contudo, que não é através de lobby que sua obra é conhecida. Tem sido assim, de fato, desde o princípio. Ele estudou na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de São José dos Campos, em 1974, e conseguiu se graduar na única turma que a instituição experimental formou, por conta da dificuldade em sobreviver durante a ditadura. Trabalhou com arquitetura até 1978, quando foi demitido em meio a uma das crises que o País atravessou.

Vistas da instalação “Eletro Esfero Espaço” (1986-2015), Guto Lacaz
Vistas da instalação “Eletro Esfero Espaço” (1986-2015), Guto Lacaz

Guto Lacaz não tinha formação em arte, mas criava pequenas traquitanas. Um dia ele mostrou à sua prima Raquel Arnaud, que lhe explicou: “Você está fazendo objetos”, recorda. Foi então que decidiu enviar 14 deles para a Primeira Mostra do Móvel e do Objeto Inusitado, organizada em 1978, no Paço das Artes, quando a instituição funcionava no MIS – o que voltou a ocorrer este ano –, entre eles Crushfixo, uma garrafa do refrigerante presa em uma caixa.

“Além de ganhar um prêmio, meus trabalhos ilustravam a matéria de várias páginas da revista Veja”, conta Lacaz, sobre a época em que a publicação merecia respeito.

Assim, aos 27 anos, ele foi comparado a Duchamp, sem “ter ideia de quem ele era” e decidiu que era hora de estudar arte, mesmo sem “nunca ter pensado em ser artista”. O começo foi no ateliê de Dudi Maia Rosa, com quem ele tinha aulas na companhia de Carlos Fajardo e Luiz Paulo Baravelli, entre outros.

A performance teve início em 1982, quando Ivaldo Granato convidou Lacaz junto a outros 59 artistas para, no Centro Cultural São Paulo, cada um realizar uma ação de um minuto. “Usei um toca-discos, meu primeiro aparelho doméstico. Para mim foi incrível estar no palco, com frio na barriga e adrenalina bombando.” Desde então, não parou mais. A mais recente ação, denominada Ludo-voo, é uma performance composta por 20 cenas com objetos voadores, uma das obsessões do artista.

Na prática, contudo, apesar de já ter exposto em muitas galerias importantes da cidade – Subdistrito, São Paulo, Luisa Strina e Marília Razuk – e ter participado de muitas mostras, além de ter ganho a Bolsa Guggenheim, em 1989, foi com o trabalho gráfico que ele sobreviveu de fato.

“Nunca vendi uma exposição inteira, sempre volto para casa com quase tudo. O retorno em artes plásticas é muito lento. Imagina, vendi minha primeira instalação agora, quase 30 anos depois dela montada”, resigna-se, sem perder o foco no trabalho. “Tenho três exposições prontas aqui no andar de cima de casa, mas vou esperar o vento soprar e a hora que chegar, chegou.”