Arte solidária
"Centro Dourado Habitado" (2020), Laura Gorski. Foto: divulgação 300 desenhos

Faz pouco mais de dois meses que os ministérios da Saúde, da Justiça e Segurança Pública definiram, em 17 de março, os critérios para quarentena e isolamento compulsórios. Assim que o texto foi publicado no “Diário Oficial da União”, o mercado da arte se viu obrigado a repensar métodos e planejar novas estratégias para chegar ao seu público, independentemente da visitação presencial – pelo menos até o momento -, aspecto basilar das exposições em galerias e instituições culturais. O paradigma da crise acarretou a procura pelo território virtual, as lives e as salas online de visitação, entre outros recursos da web.

Entre as adaptações feitas pelo mercado, algumas iniciativas com cunho solidário também foram criadas por galeristas, curadores e artistas. Projetos como 300 Desenhos, OÁ Solidária e Quarantine conseguiram deixar mais palpável o impacto da arte durante a crise, além de, claro, ser sempre uma panaceia. Conheça melhor esses três projetos:

OÁ Solidária

Série “Homenagem a Dionísio Del Santo” por Rick Rodrigues. Foto: Divulgação

Foi um dos primeiros projetos com cunho social a surgir durante a quarenta. A iniciativa tomou forma seguindo a proposta de Rafael Vicente, um dos artistas representados pela Galeria OÁ em Vitória, de disponibilizar 100% da venda de suas obras para a galeria. A ação foi o estopim para que a diretora Thais Hilal pusesse em prática o desejo de tornar a galeria mais ativa dentro de sua comunidade. Inicialmente foram convidados a participar os artistas representados pela galeria, enquanto obras do próprio acervo também estavam inclusas nessa fase da empreitada. Depois do lançamento da OÁ Solidária, Hilal conta que continua recebendo mensagens de artistas que “se sensibilizaram com o projeto e querem participar”, comentando que a equipe está aberta para novas contribuições.

As obras doadas até o momento estão disponibilizadas em um Instagram exclusivo (acesse neste link). Toda a venda será destinada ao SECRI – Serviço de Engajamento Comunitário de São Benedito, que existe em Vitória há 31 anos. Seu trabalho junto às famílias do bairro São Benedito contempla por volta de 270 jovens de 6 a 20 anos em situação de vulnerabilidade social. Além do trabalho desempenhado pelo SECRI, o fato dele estar no mesmo bairro que a OÁ também contribuiu para sua escolha por Hilal, somando à sua vontade de integrar mais a galeria ao seu entorno: “Eu acredito que se trabalharmos aliados com as iniciativas locais estaremos mais perto das transformações globais que tanto precisamos”. 

Quarantine

O Quarantine surgiu como um modelo de vendas alternativo em meio à pandemia. Sua proposta cresceu pensando em colaboração e em reimaginar a forma como são feitas as vendas, geralmente realizadas pelos artistas por conta própria ou por meio de uma galeria. A cada obra vendida no Quarantine todos os artistas participantes – cerca de quarenta e cinco – ganham, formando uma espécie de cooperativa de artistas. 

Em breve, Quarantine
Imagem de apresentação do projeto. Foto: Divulgação

Para Cristiana Tejo, uma das organizadoras do projeto, adicionar uma cota extra destinada a uma entidade com ação social foi um raciocínio natural: “Queríamos ajudar ao máximo de pessoas possível, mas a prioridade era para xs artistas, pois sempre se pede doações de obras a artistas em ações de solidariedade, mas quase ninguém pergunta se xs artistas também precisam de ajuda financeira”.

Dessa forma, a entidade escolhida pelas criadoras do Quarantine foi a Casa Chama, em São Paulo, que funciona como organização civil e cultural, surgida da necessidade de criar mais espaços de pesquisa, discussão e ação para pessoas trans. Um dos motivos pela escolha da Casa é a ligação de três das artistas que participam do Quarantine: Manauara Clandestina, Diran Castro e Cinthia Marcelle. Tejo explica que a entidade receberá “o mesmo valor que cada umx dxs participantes do projeto Quarantine. Ou seja, o valor arrecadado com as vendas das obras será dividido igualmente entre xs 45 artistas (incluindo Lais Myhrra e Marilá Dardot que também são coordenadoras da iniciativa), Julia Morelli, Cristiana Tejo e a Casa Chama”. 

300 Desenhos

300 desenhos LENGUAJE PERDIDO por Augusto Ballardo
LENGUAJE PERDIDO, por Augusto Ballardo. Foto: Divulgação

A ideia para o 300 Desenhos surgiu de uma conversa entre dois dos organizadores da campanha, Erika Verzutti e Fernanda Brenner. O projeto foi então estruturado por um grupo de voluntários formado por artistas, curadores, produtores, gestores e galeristas.

Ele funciona assim: ao contribuir com uma cota única de R$ 1000, os apoiadores do projeto são direcionados para o site, onde podem visualizar as obras doadas e descobrir qual será a sua. Um ponto interessante é que a obra não é escolhida pelo apoiador, mas sim por um algoritmo da própria iniciativa. Assim, cada desenho é, de certa forma, designado ao seu dono como se a obra escolhesse o apoiador. Não há limite de colaborações, no entanto.

Com o projeto pronto, o grupo mobilizou suas redes e contatos para levantar recursos para três organizações, a APIB, CUFA e Habitat (confira mais sobre cada uma neste link). Ter ação nacional e agir com ações emergenciais de proteção e assistência para grupos mais vulneráveis foram os critérios de escolha das organizações. 

Para o futuro

A gestora cultural Paula Signoreli, também idealizadora do 300 Desenhos, conta que os resultados já são visíveis: “Tivemos a adesão de 368 artistas, os primeiros a se mobilizarem, superando nossas expectativas iniciais. Ao final, recebemos o apoio de 273 doadores, que participaram com cotas diversas, alguns deles inclusive abrindo mão da ‘recompensa’ (desenho selecionado aleatoriamente pelo sistema criado pelo projeto)”. 

Além do resultado financeiro rápido, a iniciativa já foi replicada no Peru, por exemplo, em uma articulação coordenada pelo curador peruano Miguel Lopez, que resultou no projeto Dibujos por la Amazonia. Segundo Signoreli, a equipe brasileira colaborou com as informações sobre a estruturação da campanha, incluindo o algorítmo de sorteio utilizado pelo 300 Desenhos, cedido pelo programador Ariel Tonglet. A gestora complementa que o grupo segue recebendo consultas e contatos de profissionais de outros países que planejam criar projetos com características semelhantes.

Para Cristiana Tejo, do Quarantine, no futuro “os agentes do mundo da arte devem se questionar sobre o que deve mudar em suas posturas e ações”, complementando que espera que o projeto – um modelo que pode ser replicado por qualquer pessoa – ajude a questionar: “Como causar transformações estruturais que beneficiem mais pessoas e o planeta?”. 

A fala de Thais Hilal, da OÁ, vai de encontro. Ela acredita que é preciso, ainda mais agora, pensar mais à fundo a função social da arte: “Não dá mais para continuar como estávamos. Essa crise que aí está nos mostra que a vida é o que temos de maior valor e se a arte é agregadora e transformadora, ela precisa cumprir esse papel verdadeiramente. Bertold Brecht tem uma frase muito interessante sobre isso: ‘Todas as artes contribuem para a maior de todas as artes, a arte de viver'”.

 


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