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Vila Itororó canteiro permanente

Vila Itororó. Foto: Nelson Kon

Por Benjamin Seroussi

Como rotular a Vila Itororó? Como Casa de Cultura? Teatro? Museu? Sabemos das limitações das políticas públicas que precisam encaixar em rubricas burocráticas uma realidade singular que foge à regra geral. Porém, entre uma gestão e uma outra, houve um contínuo esforço da Secretária Municipal da Cultura (SMC) para adequar os dois lados da equação.

É impossível olhar para a complexa história da Vila Itotoró sem levar em consideração que o local sempre foi um lugar de moradia (popular e burguês) e de lazer (tendo uma das primeiras piscinas da cidade). É lamentável que o reconhecimento da importância da Vila como patrimônio passou pela retirada do que faz dela ser justamente um patrimônio – os seus moradores. É como se o desejo (de preservar) matasse o seu objeto (a Vila). Não por acaso, a Vila atravessou os tempos justamente por ter ficado um tanto à margem da especulação imobiliária – o relativo abandono foi seu maior fator de preservação. Hoje, estando sob os holofotes, é preciso ter cuidado para não destruí-la de vez.

O futuro não existe

Quando vai ficar pronto? O que vai ser? São as primeiras perguntas que os visitantes fizeram ao adentrar o canteiro de restauro da centenária Vila Itororó quando abriu seus portões ao público em 2015, já esvaziada dos seus moradores. É curioso como a crença no futuro persiste apesar de vivermos em uma cidade repleta de canteiros abandonados, de políticas públicas descontinuadas e de promessas não cumpridas… E quando São Paulo vai ficar pronta? O poder público se sente na obrigação de propor respostas como se um plano irrealizável reconfortasse mais do que uma mirada realista sobre as nossas capacidades de agir no presente.

É curioso como a crença no futuro persiste apesar de vivermos em uma cidade repleta de canteiros abandonados, de políticas públicas descontinuadas e de promessas não cumpridas… E quando São Paulo vai ficar pronta?

A espessura do presente

Tentar responder a uma pergunta errada é a garantia de que nunca encontraremos a resposta certa. Por isso, o projeto Vila Itororó Canteiro Aberto evitou respostas superficiais como “residência artística”, “centro cultural público”, “museu da história da cidade”, para elaborar novas perguntas: o que pode ser agora? Como sua história e as necessidades atuais da cidade informam seu potencial? Como ativá-lo? O que é público? O que é cultura? – e assim inventar o que o arquiteto Yona Friedman chama de “utopias realizáveis”, um exercício radical de imaginação, porém, dentro de uma possiblidade de atuação que visa dar espessura ao presente.

O centro cultural temporário

O galpão anexo à Vila virou um experimento, em escala real, do que poderia ser a Vila uma vez renovada… ou melhor, habitada. Muitas parcerias foram realizadas para fortalecer o projeto para além das gestões políticas. A arquitetura temporária do coletivo franco-alemão Constructlab criou as bases para uma escuta ativa das demandas do bairro. Essas não surgiram por meio de consultas públicas mas sim dos usos da cozinha, da arquibancada móvel, dos espelhos, dos banheiros públicos, dos armários para pessoas em situação de rua, da marcenaria aberta e de outros dispositivos que vieram substituir os cafés, lojas de design e outros serviços que hoje parecem mais importantes que a própria utilidade pública dos espaços de cultura.

Foto de arquivo da Vila Itororó no início do século passado. Foto: Arquivo Milu Leite

Habitar a cultura

Paralelamente, houve uma abertura da noção de cultura – já que, legalmente, o espaço tem de ser usado para fins culturais. Mas se a cultura extrapola as práticas artísticas, por que não usar o espaço de outras formas? Habitar não é cultura? Cultivar não é cultura? Alimentar-se não é cultura? Práticas não previstas pelas limitações sociais e cognitivas dos curadores do projeto não teriam espaço nos centros culturais? Definindo acordos básicos com o público em construção, surgiram o que chamamos de “usos espontâneos”: esgrima, ensaio de circo, reuniões de ex-moradores e outras práticas realizadas pelos frequentadores, sem outras mediações curatoriais.

Ensaiando outras políticas públicas

O projeto Vila Itororó Canteiro Aberto terminou em 2020 com a entrega, pelo Instituto Pedra, de algumas casas reformadas para a SMC que já tinha assumido a gestão das atividades do canteiro em 2018. Desde então, é importante observar o processo de normalização (ou domesticação) em curso – os “usos espontâneos” ficando menos visíveis do que as oficinas e os espetáculos; a comunicação visual ganhando caráter oficial; e o vocabulário ficando acrítico – falando-se em “economia criativa”, “ocupação artística” ou “museu”. Mas a Vila segue viva dentro do leque aberto pelo canteiro! Reconhecer essas limitações ajuda a apontar para os desafios atuais: como o poder público pode manter a vida comunitária que existe ali sem cerceá-la? Que papel os frequentadores podem ter na gestão do espaço? Como incluir moradia no programa de uso? Como seguir a reforma sem travar o funcionamento da Vila?

“Panapana”, de Carla Zaccagnin, 2016. Foto: Camila Picolo.

Para concluir, eu gostaria, por um lado, de pensar, junto aos curadores e gestores, sobre a importância de seguir almejando o melhor dos melhores para seus projetos mas também de ter a capacidade de antecipar o melhor dos piores cenários possíveis, pois nossa capacidade de controle da realidade é limitada. Por isso, apesar dos problemas apontados, celebro que a Vila mantém um público diverso, que a clínica de psicanálise siga funcionando e que as obras de arte, comissionadas para estruturar o projeto, continuam ali: o mobiliário de Constructlab (infelizmente repintado sem conversa com seus criadores); os murais de Monica Nador; o jardim de atração de borboleta de Carla Zaccagnini (cuja parte sonora não é bem sinalizada); a casa reformada pelo Raumlabor (mas sem contar mais com apoio do Goethe Institut); e os excertos videos de Graziela Kunsch on-line.

Por outro lado, à SMC, chamo a atenção para o fato, que, no cenário atual, a Vila continua uma ocasião única para criar políticas intersetoriais. Se, por meio do Fablab, há uma parceria da SMC com a Secretária de Inovação e Tecnologia, por que não uma com a Secretária de Habitação? Em uma situação de escassez de recursos, a Vila aponta para um modelo econômico onde o poder público pode apoiar as iniciativas coletivas que ali surgiram, garantindo suas coabitações livres apenas, sem apagar suas singularidades e disponibilizando um espaço comum para desenvolverem suas atividades. Em uma cidade que tenta apagar suas feridas e silenciar suas vozes minoritárias, a Vila, medalhão de um colar que já se foi (parafraseando Flavio Império, que morava no quarteirão), pode funcionar como memória viva das tantas formas de viver na capital da vertigem.

Goethe na Vila
Imagem do espaço durante o programa Goethe na Vila, com peças do coletivo sediado em Berlim, RAUMLABOR, em 2017. Foto: Fernando Stankuns.

Benjamin Seroussi

Atuei como curador do projeto Vila Itororó Canteiro Aberto. Compartilho a autoria junto à equipe com a qual trabalhei diretamente – Fabio Zuker (curador associado), Graziela Kunsch (formadora de público), Helena Ramos (gerente de projeto), Francesca Tedeschi (coordenadora do Goethe na Vila) – e com toda a equipe do Instituto Pedra, liderada pelo Luiz Fernando de Almeida, que me convidou em 2014 para pensar como abrir esse canteiro.

Para saber mais sobre o projeto Vila Itororó Canteiro Aberto e sobre a história da Vila Itororó, convido a navegar pelo site vilaitororo.org.br onde é possível encontrar arquivos fotográficos, livros, videos, obras e registros de todas as atividades realizadas entre 2015 e 2018.

Mais que luzes

Livro Rousseau

Organizado por Pedro Paulo Pimenta, professor livre-docente no departamento de Filosofia da FFLCH-USP, o volume sob o título Escritos sobre a política e as artes é dividido em cinco partes e reúne, além dos textos do filósofo suíço precursor das ideias iluministas, notas dos tradutores e de pesquisadores. Entre as temáticas dos textos estão a desigualdade entre os homens, a linguagem e o ilustre contrato social, dentre outros. O destaque, no entanto, fica para “Discurso sobre as ciências e as artes”, que causou grande polêmica entre 1751 e 1752, culminando em discussões que permeavam as páginas do Mercure de France, famosa revista literária francesa, naquele momento dirigida por Thomas Raynal.

Essa questão é desvelada em texto crítico de Franklin de Mattos, professor titular no mesmo departamento que Pimenta. Outra versão das Luzes destrincha o pensamento nas respostas de Rousseau aos críticos (os “mau-polemistas”, como foram chamados pelo iluminista) do Discurso. As respostas também estão publicadas no volume, que tem edição da Ubu e coedição da UnB. O escrito de Mattos também faz uma análise vinculatória que coloca o Discurso em diálogo com outros textos presentes no livro, Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens e Do contrato social ou Princípios do direito político.

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Um espaço independente que resiste na cena paulistana

Pessoas na entrada do Atelie397, na Pompeia, na abertura da exposição Que Barra!, em 2018.
Pessoas na entrada do Atelie397, na Pompeia, na abertura da exposição Que Barra!, em 2018. Foto: Divulgação/Ateliê397

Em um livro lançado em 2015 sobre o Ateliê397, um dos mais longevos espaços independentes de arte de São Paulo, chama atenção que a foto da capa seja de uma festa – com corpos dançando e mãos segurando cervejas – e não de uma exposição, de uma obra de arte ou de uma performance. E isso não significa que o Ateliê397 seja um espaço de festas, por mais que tenha abrigado muitas delas, especialmente antes de se mudar da boêmia Vila Madalena para uma rua residencial na Pompeia. O que a escolha da foto parece demonstrar, na verdade, é que nas mais variadas atividades que abriga e realiza – ateliês, cursos, debates, residências artísticas e exposições – o espaço preza especialmente pelo convívio, pelas trocas, diálogos e encontros, assim como acontece em uma boa festa.

“Espaço dedicado à circulação, produção e exibição de arte contemporânea”, como explica a placa na entrada do grandioso galpão na pacata rua Gonzaga Duque, o 397 completa 16 anos de atuação tendo passado não só pela mudança de endereço, em 2017, mas também por reformulações na equipe e nos modos de gestão. Nunca perdeu de vista, neste percurso, que certo grau de informalidade e irreverência são desejáveis para o tipo de experimentação e pensamento crítico que busca produzir e para o lugar – nem mercadológico nem excessivamente institucional – que pretende ocupar.

“Talvez não seja bem a festa, mas sim a cerveja”, comenta o artista Raphael Escobar, colaborador do 397. “A cerveja como esse espaço de comunhão da conversa, da troca, do discutir, do pensar ideias boas e ruins. No Ateliê as coisas fluem muito desse jeito, em um encontro de pessoas de diferentes gerações, em diferentes estágios da carreira. Acho que esse convívio dá força para todo mundo, tem uma potência incrível, possibilita a construção do pensamento.” Escobar, que frequenta o 397 há cerca de dez anos e hoje ministra cursos no local, é um dos muitos artistas que ali chegou no período final de sua graduação.

O Ateliê397 durante a exposição Abraço Coletivo. Foto: Divulgação

Como explica a museóloga e educadora Tania Rivitti, gestora do espaço ao lado de Ana Elisa Carramaschi, Bia Mantovani e Carollina Lauriano, “desde o início existe essa proposta de formar jovens artistas. Esse artista que sai da faculdade e percebe que ainda precisa discutir mais, apresentar mais seu trabalho, entender como apresentá-lo”. Esse caráter de formação, que permeia boa parte das atividades propostas pelo Ateliê, está presente tanto em cursos como o Clínica Geral, um acompanhamento semestral para projetos de artistas e pesquisadores, quanto na residência artística Temos Vagas!, que neste momento se encontra em sua segunda edição, com nove jovens artistas e um coletivo.

Na vasta área central do galpão, os artistas da residência têm seus espaços de trabalho separados apenas por uma faixa no chão, sem paredes ou divisórias, o que propicia um diálogo permanente entre os participantes. As salas restantes são alugadas para outros artistas mais experientes que têm seus ateliês no local, normalmente compartilhados por duas ou três pessoas cada um. Há ainda uma sala para gestão, reuniões ou pequenas mostras e um recinto, logo na entrada, que sedia a Escola da Floresta, projeto comandado pelo artista Fábio Tremonte. Apesar de algumas poucas paredes, nenhum dos ambientes têm portas fechadas.

Para o curador Gabriel Bogossian, outro dos colaboradores do Ateliê ao lado de Escobar e de Thais Rivitti, esse caráter de formação é dos traços da identidade do 397 mais relevantes de se destacar no atual contexto da cidade de São Paulo. “Acho que falta aqui, historicamente, uma escola livre nos moldes do Parque Lage no Rio de Janeiro. E nos últimos anos os espaços independentes ocuparam um pouco esse lugar”. Ao mesmo tempo, ele ressalta, com o encerramento das atividades de muitos deles, em decorrência de dificuldades financeiras, o 397 acabou se tornando ainda mais singular no cenário da cidade.

Performance realizada no galpão do Ateliê397 durante a exposição “Abraço Coletivo”, em 2019. Foto: Amalia Coccia

“Existem outros lugares que abrigam exposições, debates e performances, mas poucos têm essa ocupação constante, esse espaço de encontro regular que permite a pedagogia da convivência”, afirma Bogossian, que destaca ainda o valor acessível (quando não gratuito) dos cursos e atividades do 397. “E acho que ainda falta no meio artístico a consciência da importância desse espaço, que é um lugar de oxigenação do campo, da prática”, completa o curador.

Passado e futuro

Ao longo dos 16 anos de história do 397, o desejo constante de questionar as práticas institucionais e mercadológicas do universo da arte contemporânea resultou em variados tipos de atividades e experiências. No Surpraise, por exemplo, que já teve oito edições, um leilão de arte é realizado “às cegas”, sem que os participantes sejam informados da autoria das obras vendidas. Trabalhos de artistas iniciantes e consagrados se misturam e recebem o mesmo preço inicial, transformando a experiência em uma espécie de aposta que coloca em cheque a ideia de autoria e a especulação financeira no meio artístico.

A partir de um projeto proposto pelo Ateliê397 e contemplado pelo Prêmio Funarte de Arte Contemporânea de 2012, a exposição Espaços Independentes: A Alma é o Segredo do Negócio foi montada em parceria com o Ateliê Aberto (Campinas), o Atelier Subterrânea (Porto Alegre) e as paulistanas Casa Contemporânea, Casa Tomada e Casa da Xiclet. A ideia de unir e colocar em diálogo as práticas de diferentes espaços independentes buscava se contrapor às premissas individualistas do mercado e favorecer o compartilhamento de conhecimentos e práticas coletivas. 

“Existem outros lugares que abrigam exposições, debates e performances, mas poucos têm essa ocupação constante, esse espaço de encontro regular que permite
a pedagogia da convivência”

Gabriel Bogossian

   

Com o trabalho do grupo de estudos “Mulheres não precisam estar nuas para entrarem nos museus”, a exposição Vozes Agudas foi organizada em 2018 e emprestou seu nome para um novo grupo de estudos e intervenções que segue em atuação no 397. Com ênfase feminista e formado exclusivamente por mulheres atuantes no circuito artístico paulistano, o Vozes Agudas tem realizado encontros, leituras e uma série de podcasts disponíveis no site do Ateliê.

Em julho de 2019, uma grande mostra intitulada Abraço Coletivo reuniu obras de quase 300 artistas no galpão. A partir de uma chamada aberta (em que nenhum artista seria recusado), a mostra atraiu expositores de diferentes idades e com trabalhos em variadas plataformas, chamados à pensar o espaço junto à curadora Paula Borghi.

Se alguns destes projetos de anos anteriores – especialmente na primeira metade da última década – foram financiados a partir da aprovação em editais ou da captação nas leis de incentivo à cultura, o quadro se tornou mais crítico para o 397 nos tempos recentes. “É nítido um intenso desejo de desmonte da cultura”, comenta Bogossian. Assim, o espaço tem debatido novas estratégias de sobrevivência e tentado colocar em prática projetos que possam manter sua sustentabilidade.

Performance realizada durante a exposição Abraço Coletivo, em 2019. Foto: Divulgação

Um crowdfunding (financiamento coletivo) realizado em 2017 arrecadou R$ 65 mil e possibilitou a manutenção das atividades do 397 no primeiro semestre de 2018. A venda dos múltiplos, obras de diversos artistas ligados à casa, é outro caminho que tem ajudado. Cursos, residências e os aluguéis pagos pelos artistas que ali trabalham representam outra parte da arrecadação, mas não o suficiente para fechar as contas. Neste sentido, o 397 pensa em possibilidades como a retomada do Surpraise, a realização de um crowdfunding permanente e a criação de parcerias com outros coletivos e instituições da cidade – sejam museus, galerias ou universidades –, sem que isso signifique uma diminuição na autonomia do Ateliê.

Outro objetivo neste ano de 2020 é estabelecer um diálogo mais forte e horizontal com o bairro da Pompeia e seus moradores. Para isso, segundo Rivitti, é preciso tanto ir às ruas e praças quanto atrair as pessoas para dentro do galpão. “E um dos desafios é achar uma linguagem em que a gente se reconheça e que esses moradores também se reconheçam. Não adianta achar que vamos iluminar as pessoas com a ideia de arte contemporânea, com uma mentalidade de especialista que quer muito mais ensinar do que ouvir o outro”, diz ela. “Então temos que levar propostas, saber se colocar, e ao mesmo também ouvir, conseguindo se aproximar do dia a dia do bairro.”

Para as gestoras do Ateliê, uma maior ocupação do espaço público se insere também como prática política em tempos de ataque às artes e à educação. “Nesse momento difícil, que temos um governo inimigo da cultura, estamos pensando que tipo de questões queremos trabalhar, que discussões queremos fazer, com ousadia e sem ter amarras. Discussões sobre a cidade, questões de gênero e raciais, feminismo e meio ambiente, sempre olhando com atenção para as pessoas que estão na mira de um modo geral”, diz Rivitti.

Nestes 16 anos de estrada, tentar fazer uma lista dos artistas que passaram pelo Ateliê397 seria tarefa quase impossível. Entre nomes menos conhecidos e consagrados, centenas de pessoas tiveram parte de suas formações ou trajetórias marcadas por alguma prática ou experiência vivida neste espaço independente paulistano. “A arte demanda formação e bons profissionais”, conclui Rivitti. “E precisa de tempo, não é imediata. Então esse processo que o ateliê sempre propiciou, com os alunos, artistas, professores e frequentadores, resultou no amadurecimento de muita gente boa que está por aí. É um trabalho longo e que deve continuar.” 

Transversalidade de raiz

O curador Josué Mattos conversa com a equipe responsável pelas obras do Centro Cultural Veras.

Um centro cultural está sendo criado de forma bastante distinta das instituições de arte brasileiras privadas, em geral financiadas por mecenas milionários e mesmo assim com histórias recorrentes de fracasso, algumas delas colocando em risco museus, como ocorreu com o fechamento do MAM-SP em 1967.

O novo local é o Centro Cultural Veras, concebido a partir de uma gestação de vinte anos pelo monge e curador Josué Mattos, que teve a ideia quando vivia em um monastério nas montanhas de Paraty e acabou se especializando em arte na França. Mais fora da curva, impossível.

Centro Cultural Veras
Registro da construção do novo Centro Cultural Veras. Cortesia do próprio Centro Cultural

Nascido em Criciúma (Santa Catarina), Mattos mudou para Florianópolis nos anos 90. “Foi quando começou o desejo de fazer esse projeto. A concepção é de 1999. Naquela época eu estava envolvido em movimentos alternativos, espirituais e ligados ao Yoga e frequentava um centro cultural, que não era bem a melhor denominação para ele, mas era assim que era chamado”, inicia a contar a história atípica,  por telefone, logo após ter resolvido como retirar uma imensa rocha que ameaçava o subsolo do novo espaço.

Em 1999, o monge foi morar em Paraty, onde passou três anos, e de lá partiu para Paris, estudar arte, “porque achava que seria importante para esse centro cultural”. Passou quase dez anos na capital francesa, estudando filosofia e literatura do Yoga e História da Arte e Arqueologia.

“Voltei para o Brasil, em 2006, para um intercâmbio com a USP e foi quando a Lisette Lagnado estava fazendo a Bienal. Foi um momento de grandiosa iniciação na curadoria. E, paralelamente, havia uma grande mostra da coleção do MAM na Oca e fui convidado pelo Tadeu Chiarelli, meu professor na USP, para ser um dos educadores da exposição”, recorda Mattos.

A experiência foi essencial em seu percurso: “Visitar a Bienal todo dia e conviver com o acervo do MAM me levaram a decidir que, quando voltasse ao Brasil, o que ocorreu em 2010, eu tentaria atuar como curador para facilitar a construção do centro cultural.”

Nesses últimos dez anos, todos os trabalhos assumidos pelo curador-monge ajudaram na viabilização do novo espaço, entre eles a concepção e curadoria da primeira edição do projeto Frestas – Trienal de Artes, no Sesc Sorocaba, uma mostra periódica de arte contemporânea, que teve início em 2014. “Convidado para conceber um projeto de uma bienal no interior, sugeri que fosse uma trienal, em virtudes de debates da 28ª Bienal de SP, e mesmo antes, nos anos 1980, quando Aracy Amaral apontava o curto tempo para se organizar uma mostra desse porte em dois anos”, explica.

Além de mobilizar seus cachês para a construção do centro cultural, realizou duas permutas que permitiram o financiamento da mão-de-obra e do elevador do edifício. No primeiro caso, no Instituto Adelina, em São Paulo, assumiu uma espécie de direção artística que reforçou a vocação sem fins lucrativos da instituição. Em Ribeirão Preto, Mattos esteve à frente da fundação do Centro de Arte Contemporânea W, criado pela artista Weimar, onde atua como curador desde então.

Outra importante forma de aporte foi a doação de obras de cerca de 120 artistas, entre eles Cildo Meireles, Rivane Neuenschwander e Ernesto Neto, boa parte delas vendidas em um leilão na Casa Goia e na Feira Parte, ambas em São Paulo. Um programa de múltiplos, realizado com obras integralmente doadas por Regina Silveira, Jorge Menna Barreto, Sandra Cinto e Albano Afonso também tem gerado recursos para à compra de materiais de construção.

No total, o Veras está orçado em R$ 2,35 milhões, incluindo aí a compra do terreno, o projeto arquitetônico, a construção e os equipamentos. Desse total, faltam ainda serem captados R$ 630 mil. Se tudo for obtido ainda neste ano, com a campanha de financiamento coletivo a ser lançada no primeiro semestre de 2020, o espaço será inaugurado no início de 2021.

Pilares

Quando fala do Veras, Mattos costuma referir-se no plural, “nosso projeto”, o que inclui sua companheira e outros quatro amigos, “que não são do campo da arte”.  O centro cultural, assim, “pertence a uma associação de direito privado sem fins lucrativos, a mesma estrutura jurídica da maioria dos museus privados no Brasil”, como define o curador.

O edifício de 1.100 m2 foi concebido pelos escritórios Terra e Tuma Arquitetos Associados e Gabriella Ornaghi Arquitetura de Paisagem, ambos de São Paulo.  Terra e Tuma ganhou, em 2016, o prêmio de melhor casa do mundo pelo ArchDaily, graças à moradia de Dona Dalva, na Vila Matilde.

Quando fala do Veras, Mattos costuma referir-se no plural, “nosso projeto”, o que inclui sua companheira e outros quatro amigos,  “que não são do campo da arte”

O nome Veras vem da rua onde ele se encontra, Vera Linhares, no centro da Ilha de Florianópolis, que não coincide com o centro da cidade, mas está a 500 metros das duas universidades públicas da capital, a Federal e a Estadual. Contudo, Veras também poderia ser uma referência aos Vedas, os quatro livros que formaram o sânscrito e de onde, de fato, vem a inspiração para os quatro pilares conceituais do espaço: ciência, filosofia, Yoga e arte. “Nos Vedas, elas são as bases que sustentam uma comunidade”, explica Mattos.  No Veras, no entanto, foi feita uma tradução livre de dois desses conceitos:  ciência foi alterada para educação e sustentabilidade ficou no lugar de filosofia.

Mattos observa que, no Brasil, essa transversalidade já ocorre em outros espaços culturais, como o SESC. “Eu acredito muito na transversalidade como forma de superar o desafio de formação de público em nossa região”, conta o curador, a partir de sua experiência como diretor do Museu de Arte de Santa Catarina por dois anos, em 2017 e 2018. Ele saiu de lá para uma residência artística no Japão.

Diálogos

“Quando decidi dar início ao processo de concepção de um centro cultural, então solitário e silencioso, não podia imaginar quanto o contato com a História da Arte me permitiria aproximar experiências antes experimentadas apenas no contato com buscadores de caminhos espirituais. Foi quando me deparei com a obra de artistas que pareciam ir no mesmo sentido e tive a sensação de pertencer a uma vasta comunidade”, afirma o curador.

Para ele, referências para o trabalho no novo centro cultural serão, entre outros, os experimentos de Joseph Beuys (1921 – 1986), o misticismo de Mondrian (1872 – 1944) ou de Agnes Martin (1912 – 2004), a condição clínica dos últimos experimentos de Lygia Clark (1920-1988) assim como o criador dos happenings, Allan Kaprow (1927 – 2006) ou o suprassensorial Hélio Oiticica (1937 – 1980) com a arte ambiental. Da atualidade, ele aponta Jorge Menna Barreto, “que fez da escultura social do Beuys o que ele chama escultura ambiental, envolvendo comunidades pouco convencionais no sistema de arte”, Mônica Nador, com sua noção de autoria compartilhada, Sandra Cinto, Ernesto Neto, Bené Fonteles, Rodrigo Bueno, com quem preserva fortes elos.

No campo das exposições, “o que a gente pretende desenvolver aqui são imersões de alguns artistas com a comunidade, muito pouco familiarizada com o estatuto desse artista que não precisa desenvolver objetos”, afirma. Uma referência é a bienal Manifesta, que ocorreu em Zurique, em 2016, onde artistas foram criar projetos na cidade. “Em Florianópolis, nós temos quarenta e poucas praias, duas comunidades rurais, um centro urbano minimamente desenvolvido, e a questão é como criar mecanismos de arte contemporânea que façam valer essa topografia singular.  O que nós queremos é dar voz a artistas que estejam dispostos a criar relações e promover diálogos, independente de se o que for realizado possa ser chamado de arte, porque creio que essa questão hoje não é mais pertinente”, conclui. 

Calendário dissidente, documento gráfico da política brasileira

As imagens entram no mapeamento a partir de hashtags específicas do Instagram
As imagens entram no mapeamento a partir de hashtags específicas do Instagram

No mundo digital um turbilhão de imagens nos bombardeia a cada fração de segundo e tudo pode se dissipar pela rede com a mesma rapidez. Com o propósito de discutir a memória gráfica dos principais acontecimentos sociopolíticos do Brasil desde a posse do presidente Jair Bolsonaro, a designer gráfica Didiana Prata lança Calendário Dissidente, realizado por meio do mapeamento da estética das imagens no banco de dados do Instagram.

O projeto mostra a arqueologia das narrativas visuais da memória gráfica brasileira. “A ideia é conseguirmos observar e arquivar essas novas estéticas que vêm da rede”, assinala Didiana, que mostra os resultados parciais da pesquisa de doutorado no curso de pós-graduação em Design da FAU/USP, sob orientação da profa. dra. Giselle Beiguelman e desenvolvida durante sua residência no Centro de Inteligência Artificial do Inova USP. Essas imagens dissidentes, na opinião da designer, trazem vocabulário novo que diz respeito também à manifestação estética do qualquer um. “Isso interessa na medida em que se trabalha com amostragem maior de imagens e acesso às outras narrativas como linguagem visual, divergência e diversidade de produção, não só de artistas designers mas também de cidadãos, de pessoas engajadas e com diversos ativismos”.

O Calendário está em processo e a preocupação é arquivar essa produção cronologicamente. “O primeiro estágio é classificar a partir da temporalidade em que foram publicadas criando uma narrativa visual cronológica, diferente do que ocorre na visualização fragmentada dessas imagens nas páginas dos aplicativos. Daí, olhar para elas e categorizá-las dentro de filtros estéticos, categorias que estou propondo”. Para armazenar milhões de imagens e respectivas legendas, Didiana aprofunda sua pesquisa junto à equipe do Inova USP, usando inteligência artificial e aprendizagem de máquina para treinar os robôs para que façam a classificação de imagens dentro de um critério estético. “Os classificadores de imagens que existem no mercado são todos com viés comercial ou de vigilância e eu não estou interessada nesse perfil, nem nesse tipo de rotulação”.

Essa nova vertente é o uso da inteligência artificial ligada à estética e à produção artística e, para a designer, esse é o ponto. “Nem tudo está no Calendário, porque estamos finalizando a parte das classificações de imagens e aprimorarando o processo”. Didiana vai afinar as imagens e fazer curadoria assistida, como ela diz, com seus amigos robôs nas categorias estéticas relevantes. Devido ao risco de caírem no esquecimento, diante do fluxo de superprodução e veiculação nas redes às quais pertencem, as imagens são catalogadas e arquivadas, a partir da análise de algumas hashtags. O site captura, indexa e publica diariamente três imagens mais curtidas com hashtags #designativista, #desenhospelademocracia, #mariellepresente, #coleraalegria. Marielle, segundo Didiana, é uma hashtag importante pelo número de imagens e pelos vários ativismos contidos não só de cunho político, mas também pela questão do negro no Brasil, racismo e questões de gênero. “A ideia é que as pessoas possam consultar o Calendário para outras questões como jornalismo, sociologia, política, arte.Considera-se que as hashtags estabelecidas como filtro de busca são representativas das dissidências e das manifestações coletivas frente ao momento atual da nossa história.

As imagens entram no mapeamento a partir de hashtags específicas do Instagram
As imagens entram no mapeamento a partir de hashtags específicas do Instagram

Em que afinal diferem as imagens postadas no Instagram e as do Calendário Dissidente? “Na verdade no Instagram você está sujeito a visualizar as imagens das pessoas que você segue, pode até seguir uma hashtag, mas as imagens que vão aparecer são as que o algoritmo selecionou dentro do seu grupo de seguidores”. Didiana lembra o que aconteceu com essa pesquisa no seu Instagram. “Ele falava de uma estética na minha bolha e isso não me interessa. Eu ampliei os dados qualitativos e descobri artistas anônimos no Brasil todo. Essa é a riqueza do trabalho, é você ampliar o vocabulário com uma mostra maior que sem a inteligência artificial eu não teria como fazer.”

No site do Calendário pode-se visualizar trabalhos de profissionais e de cidadãos comuns, com intervenção e memes. “Os memes são incríveis, marcam o imediatismo da cultura visual das redes, feitos a partir de imagens propriadas da grande mídia, normalmente imagens jornalísticas que falam do dia a dia”. Didiana não considera essas imagens as mais adequadas para serem investigadas, uma vez que já são discutidas por pesquisadores da comunicação. Ela se interessa pelas colagens e ilustrações digitais, tipografias e ilustrações vernaculares. Há resgate de coisas da cultura popular, de caligrafia, de ilustrações do cordel que são trazidas para a contemporaneidade.

Essas imagens, segundo a designer, apresentam novos paradigmas para o estudo do design de comunicação da era pós-internet. Por varredura algorítmica, o Calendário rastreia os principais temas relacionados às imagens do dia e oferece ao usuário os filtros temáticos correspondentes.

A segunda fase do projeto apresentará uma curadoria de imagens, selecionadas a partir de seis categorias estéticas preestabelecidas: factuais; ilustração digital; ilustração manual; tipografia digital; tipografia vernacular e apropriação. Esta etapa está prevista para ir ao ar em junho deste ano. Agora é esperar.

Onde se criam novos mundos

Espaços de Trabalho de Artistas Latino-Americanos. Editora Cobogó, 2019, 364 p. R$ 150,00
Espaços de Trabalho de Artistas Latino-Americanos. Foto: divulgação Editora Cobogó

O rio Mapocho, que atravessa a cidade de Santiago, no Chile, foi o local escolhido pela artista Cecília Vicuña para representar seu ateliê no livro Espaços de Trabalho de Artistas Latino-Americanos, lançado agora no início de 2020, sob coordenação editorial de Fernando Ticoulat e João Paulo Siqueira Lopes.

“Domesticado e transformado em esgoto e depósito de lixo químico”, segundo a artista chilena, ela conta, na publicação, que “trabalho no rio para recuperar o sentido de que esse é um lugar majestoso”. Em sete páginas, média dedicada a cada artista, o rio é visto em uma situação de fato catastrófica, quase desaparecendo, o que se transforma em uma espécie de manifesto, de obra em si.

Dos 27 selecionados para a publicação, Vicuña, que há 38 anos vive em Nova York, mas sempre retorna à sua terra natal, foi a mais ousada para apresentar seu espaço de criação. Todos os demais abriram seus ateliês convencionais, mesmo que tais locais, como indica Pablo Leon de la Barra no ensaio que abre o livro, sejam “o lugar que permite ao artista sonhar novas obras, novos mundos”. O fotógrafo Fran Parente é o responsável por todas as imagens do livro.

 

Vicuña, na faixa dos 70 anos, é de uma geração de pioneiras na produção artística latino-americano, que só recentemente conquistou espaço no circuito internacional, caso também da colombiana Beatriz Gonzalez, das argentinas Liliana Porter e Marta Minujín, e da mexicana Graciela Iturbide, todas participantes do livro, um mérito na seleção. Representatividade, aliás, foi uma questão seriamente observada na publicação: há artistas negros, casos dos brasileiros Lucia Laguna e Arjan Martins, e indígenas, como se declara a própria Vicuña. É um sinal positivo de que, ao menos no campo da arte, a preocupação em evitar as narrativas masculina e branca já é uma busca inevitável. Para um livro bancado pela Lei de Incentivo à Cultura, ou seja, verba pública, deveria ser padrão obrigatório.

O ensaio de La Barra, poético na forma e no conteúdo, é uma boa introdução ao tema, afinal o ateliê do artista é um lugar altamente estereotipado e o curador mexicano radicado no Rio de Janeiro aborda muitas das possibilidades que ele hoje representa, sendo tanto “um lugar de revolução e ativismo”, como também responsável por “gentrificar a área”.

Outra definição significativa de La Barra é que “entrar no ateliê é como estar do outro lado do espelho”, parafraseando a Alice de Lewis Carroll. Mas é um pouco isso que o livro consegue, já que além das imagens dos “espaços de criação”, entrevistas concisas, mas aprofundadas, conduzidas pela jornalista Beta Germano, dão conta do que representa o ateliê para cada artista, assim como algumas linhas poéticas de sua obra, revelando assim esse outro lado do que em geral se vê da produção artística.

Mais uma metáfora do ateliê é lembrada no texto de introdução de Germano, retomando uma ideia de Ronaldo Brito: “O artista no ateliê é como o leão na selva e o artista no museu é como o leão no zoológico”.

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Artistas brasileiros seriam suficientes para uma publicação deste porte. Nomes não faltam, como Claudia Andujar, Regina Silveira, Anna Maria Maiolino, Rosângela Rennó ou Nelson Leirner, entre tantos outros. Mas o recorte latino-americano revela-se altamente necessário,  ao construir um caráter de identidade que nem sempre nós brasileiros estamos acostumados. E é nos depoimentos dos hermanos e hermanas, como Cecilia Vicuña e Alfredo Jaar, ambos do Chile, ou Beatriz Gonzalez e Miguel Ángel Rojas, da Colômbia, que a publicação reforça atualidade no debate político que o continente atravessa.

Ultimamente, curadores tem apontado Cildo Meireles, também presente no livro, como o melhor artista brasileiro, em uma denominação mais adequada ao campo do esporte, que afinal possui fórmulas claras para tal definição, do que a arte. O que o livro apresenta, aliás, é justamente o lugar do erro, da tentativa, do risco do artista e não de sua obra mais conhecida. E o ateliê de Meireles, nesse caso, é dos mais simples, que sequer se parece com um espaço de criação. Mas como defende La Barra, é um espaço que “pode resistir à lógica capitalista de produção/consumo”.

Mesmo tendo o formato “coffee table book”, Espaços de Trabalho de Artistas Latino-Americanos é uma publicação que fala do lugar de criação em tempos difíceis, ao mesmo tempo que apresenta uma geração que atravessa contratempos há mais de 50 anos, muito antes do boom, já passageiro, da arte latino-americana. E, mais importante, o livro traz contribuições de fato sobre o que significa criar na América Latina, um debate mais que necessário.

Um exercício muito íntimo

Performance do artista sul-africano Neo Muyanga
Performance do artista sul-africano Neo Muyanga, apresentada no Pavilhão da Bienal em parceria com o coletivo Legítima Defesa. Fotos: Levi Fanan/ Divulgação

(Confira aqui as novidades da Bienal de São Paulo, adiada por conta da pandemia do coronavírus, e acesse o novo site da 34a edição, que apresenta as “correspondências” escritos pelos curadores).

 

Sob o título Faz escuro mas eu canto, a 34ª Bienal de São Paulo teve seu pontapé inicial em 8 de fevereiro, com a abertura da exposição de Ximena Garrido-Lecca e a performance realizada por Neo Muyanga e assistida por um público de quase 1,8 mil pessoas. Essa antecipação da agenda não apenas coloca em prática o desejo – muitas vezes enunciado nas edições passadas, mas raras vezes conquistado – de alargar o alcance temporal de um dos principais eventos culturais da cidade, como serve para dar a tônica do que se pode esperar da grande exposição coletiva deste ano.

Usando como fio condutor a ideia de ensaio, de algo que vai se construindo ao longo do tempo a partir de um intenso diálogo entre os membros da equipe curatorial, a atual edição da Bienal tem por meta a descentralização, o espraiamento de suas ações pela cidade – por meio de uma parceria ampla com 25 diferentes instituições culturais –, abrindo múltiplas possibilidades de leituras das obras e artistas selecionados. Outros aspectos importantes da presente edição são uma maior abertura para a inserção de trabalhos de caráter histórico, um equilíbrio claro entre os gêneros e um interesse em promover encontros, diálogos entre diferentes poéticas e obras. Em entrevista recente Jacopo Crivelli Visconti, curador da mostra, e Paulo Miyada, curador-adjunto, explicaram os principais contornos de seu projeto. Também fazem parte da equipe a artista brasileira Carla Zaccagnini e os curadores Francesco Stocchi (Holanda) e Ruth Estévez (México).

arte!✱ – Vamos começar pela questão do “Faz Escuro mas eu canto”. Como foi chegar nesse tema?

Jacopo Crivelli Visconti – Não há um tema e sim uma metodologia que tem muito a ver com essa ideia de expandir a bienal no tempo e no espaço, com o exercício de propor que a pessoa possa ver as obras mais vezes. Nas três exposições que acontecem ao longo do ano, dedicadas ao trabalho da Ximena Garrido-Lecca, da Clara Ianni e da Deana Lawson você vê com clareza os interesses, as preocupações dessas artistas. Depois de relativamente pouco tempo você reencontrará de novo aquelas obras justapostas a trabalhos de outros artistas.

Além disso, a mostra se espalha pela cidade com 25 parcerias com diferentes instituições. Vocês farão essas curadorias?

Paulo Miyada – Cada instituição acaba sendo parte de uma espécie de comitê curatorial expandido. Não só porque cada exposição tem seu curador, mas porque cada exposição tem seu público e seu contexto. Não decorrem apenas do interesse para a Bienal, mas também da possibilidade de reverberarem de forma potente naquele lugar, fazer sentido com aquele público.

Paulo Miyada, curador-adjunto, Carla Zaccagnini, curadora convidada, Jacopo Crivelli Visconti, curador-geral, Ruth Estévez, curadora convidada e Francesco Stocchi, curador convidado. Equipe curatorial da 34a Bienal de São Paulo.
Paulo Miyada, curador-adjunto, Carla Zaccagnini, curadora convidada, Jacopo Crivelli Visconti, curador-geral, Ruth Estévez, curadora convidada e Francesco Stocchi, curador convidado. Foto: Pedro Ivo Transferetti/ Divulgação

Essa ideia de expansão está muito presente na história das bienais, mas é raro vê-la efetivada na prática.

Visconti – Pode parecer que a ideia é fazer um projeto muito grande, como se a Bienal precisasse de mais espaço. Mas acho que na verdade estamos propondo um exercício muito íntimo, um caminho diferente, de criar uma relação com as obras, algo que normalmente esses eventos muito grandes não permitem. Essas exposições individuais vão coabitar por algum tempo. E haverá também as performances nos dias de abertura (Palabras Ajenas, de Leon Ferrari, e A Ronda da Morte” peça inédita de Hélio Oiticica).

Vocês estão fazendo praticamente uma curadoria de obras?

Miyada – Exatamente, se comparado a outras bienais será muito mais uma curadoria de obras do que uma curadoria de artistas. Talvez nisso a gente também se distinga da maioria, que tem muita ênfase na produção de obras novas. Até porque com elas você não consegue ter uma afinação tão precisa e o que nos interessa aqui é essa escala mais íntima, é essa obra aqui junto com essa e essa, que você consegue entender.

Comecemos pela história do poema.

Miyada – Foi escrito pelo Thiago de Mello, poeta amazonense, entre 1963 e 1964, entre o estado do Amazonas e Santiago do Chile, onde ele era adido cultural. Era um poema de esperança, num momento de desejo progressista. Mas só foi publicado em 1965 quando, como a gente sabe, a realidade do Brasil já era muito diferente. Em 1968, o Thiago de Mello foi preso. Ele conta que entrou na cela, com muito medo, sem saber o que podia acontecer e quando olha para a parede vê que o preso anterior tinha deixado escritos seus versos: “Faz escuro mas eu canto porque a manhã vai chegar”, o que fez com que ele retomasse a crença. Em poucos anos, esse verso foi esperança, persistência, chamado, suspiro. E a gente fica pensando: como é que ele chega hoje?

Vamos resistir por cima, né?

Visconti – E não cantar apenas sobre essa escuridão. É preciso muita coragem para falar de outras coisas num momento como o que a gente está vivendo. É essa coragem que a gente está defendendo aqui, como ponto de partida.

Miyada – Dentro da exposição a própria ideia de repetição seria sim um desses enunciados, desses subtemas ou diários de convergência. Está muito claro no projeto que uma exposição se faz como um ensaio, mantendo relação com a leitura de Francis Alys de como os projetos progressistas, especialmente nas Américas, parecem sempre um ensaio, no sentido de uma repetição, de algo que parece que agora vai e depois é abandonado. Tudo vira ruina muito rápido.

É possível dar um exemplo concreto sobre esse núcleo da repetição?

Visconti – Não vai ser um bloco porque não haverá separação, porque esses vários assuntos (uns seis ou oito) se entrelaçam. Por exemplo, estamos tentando trazer um sino da capela do Padre Faria, em Ouro Preto. É um sino bastante típico, mas que tem a particularidade de ter sido tocado em momentos muito importantes da história do Brasil. Reza a lenda que foi tocado na noite da execução de Tiradentes, quando obviamente havia a proibição de tocar os sinos porque estava sendo executado um inimigo do império. A história mudou, Tiradentes virou um herói nacional e o sino foi levado para Brasília e tocado no dia da inauguração da nova capital. A gente vai falar de como sua história vai se repetindo das maneiras mais imprevisíveis ao longo dos séculos. As noções de resistência, de como as coisas aparecem e desaparecem, são outras abordagens contempladas.

Paulo Miyada, curador-adjunto, Carla Zaccagnini, curadora convidada, Jacopo Crivelli Visconti, curador-geral, Ruth Estévez, curadora convidada e Francesco Stocchi, curador convidado. Equipe curatorial da 34a Bienal de São Paulo.
Jaider Esbell, “Malditas e Desejadas”, 2013 acrílica sobre lona encerada. Acervo da Galeria Jaider Esbell de Arte Indígena Contemporânea. Foto: Marcio Lavor 

Quem mais trataria dessa questão da repetição?

Visconti – Morandi é um bom exemplo. Pintou um repertório relativamente reduzido do ponto de vista iconográfico ao longo de décadas. Mas também reverbera particularmente a ideia do Faz escuro mas eu canto. É daqueles artistas que, da mesma maneira como Monet pintando Ninfeias na I Guerra Mundial, podem ser vistos como como alienados ou como – e é assim que eu acho que é preciso vê-los – alguém que considera que perseverar enquanto o mundo está pegando fogo não é um escapismo.

São diferentes as abordagens em reação ao escuro?

Miyada – É preciso lembrar que para algumas pessoas faz escuro faz um ano; para outros 10 anos, 500 anos, mil anos. Enquanto você ouve as vozes que estão incluídas nessa experiência, a ideia do que significa cantar diante do escuro se transforma. Se à primeira leitura o escuro é visto como ameaça, risco, e é isso mesmo, de perto ele pode ser um aliado para muitos artistas. E, pelo contrário, a transparência pode ser um recurso altamente ideológico, de controle, de repressão, de vigilância.

 

A Arte como Essência

Arte por Baniwa
Nhandecy Eté e o Peabiru. Fotos: cortesia do artista

ESCREVO ESTE TEXTO no meio do isolamento a que fomos submetidos nos últimos dias pela pandemia que assolou nosso planeta, em maior ou menor grau, na maioria dos países.
Na Itália, de onde até agora pouco comentávamos as mostras da Bienal de Veneza, morreram nos últimos 30 dias aproximadamente 12 mil cidadãos. Todos nós acompanhamos estarrecidos as cenas internacionais, próprias de filmes de ficção científica.Lemos e ouvimos diariamente uma infinidade de dados e informações sobre um flagelo desconhecido, o COVID-19, que só se aproxima da Peste Negra, na Idade Média, ou da Gripe Espanhola, antes da I Guerra Mundial. Hoje e aqui, estamos tentando minimizar os números das perdas humanas no Brasil, colaborando com uma quarentena que permita a menor quantidade de infectados.
Assistimos perplexos em nossa fragilidade às rachaduras de um sistema econômico e político que não se sustenta quando se trata de atender ao ser humano por igual. Quem até poucos dias atrás defendia o Estado mínimo, reconhece hoje no Sistema Único de Saúde Pública (SUS) a única saída para crises desta magnitude. Cientistas que no começo do ano foram forçados a parar suas pesquisas graças aos cortes de bolsas e investimentos agora passam a ser solicitados a todo momento.
O coronavírus veio de encontro ao vírus nosso de cada dia.
Na cultura, onde já discutíamos os cortes nas leis de incentivo e assistíamos ao desmantelamento de várias instituições, a pandemia traz um novo desafio.
Até a presente data, 31 de março de 2020, todos os encontros e todas as atividades culturais foram canceladas ou adiadas. Fecharam suas portas as edições das feiras Art Basel em Hong Kong e na Basileia; ARCO Lisboa; a SP-Arte, em São Paulo; e a arteBA, em Buenos Aires. As Bienais de São Paulo e do Mercosul foram adiadas, assim como a Manifesta13, em Marselha. Falta ainda a Bienal de Berlim anunciar se será mantida em junho.
O Centro de Exibições IFEMA, onde funcionou há apenas um mês a tradicional feira ARCO Madrid, acaba de ser transformado em um “hospital” com mais de mil leitos para pacientes contaminados.
“O panorama é desolador para o setor da cultura do país”, disse Manuel Fernandez-Braso, presidente da Asociación de Galerías de Arte de Madrid.
Não obstante à angústia que vivenciamos, tendo que cuidar de nós e dos nossos semelhantes, tivemos que encontrar, no nosso dia a dia, momentos de reflexão e soluções de trabalho para não esmorecer.
Para nossa equipe, este seria um momento de grande comemoração. Nesta edição #50, a primeira do ano, ARTE!Brasileiros completa 10 anos. Dez anos onde defendemos a ideia de que a arte sintetiza narrativas transversais e que, especificamente na obra de arte, o artista exprime sua capacidade de se afastar do mundo e percebê-lo como sujeito. Nela estão contidas suas ideias e, com certeza, as suas angústias e as do seu tempo.
Nestes anos buscamos retratar a pujança e a diversidade da arte contemporânea brasileira, para os brasileiros e para o mundo, em alguns dos temas que se sobressaíram nesse período de forma marcante: a defesa da liberdade e as questões de gênero; a luta contra a discriminação racial, a segregação da mulher, a opressão econômica, social e política; os movimentos migratórios, as liberdades, a denúncia das agressões ao meio ambiente e ao planeta.
Retratamos também a inovação no movimento, na cor, a busca por novos suportes, a experimentação, a pesquisa de materiais e de histórias.
Para isso, investimos numa plataforma de cultura e arte contemporânea digital, capaz de falar tanto com a academia como com o mercado.
Criamos uma enorme rede de colaboradores nacional e internacional e nossos seminários aproximaram interlocutores de vários países.
Chegamos até aqui com um saldo positivo. Mais de mil assinantes da revista impressa, perto de 50 mil seguidores orgânicos e fiéis no Instagram, além de uma rede de relacionamento e de leitores que ronda cerca de 80 mil no portal da www.artebrasileiros.com.br
Este ano, se conseguirmos vencer o COVID-19 e suas sequelas, realizaremos nosso VI Seminário Internacional, previsto para começo de outubro.
Esta edição, que traz um novo projeto gráfico, encomendado especialmente à equipe de designers do Alles Blau Studio, teve a capacidade de se adequar às dificuldades do momento. O trabalho com as equipes em home-office, suas entrevistas e reportagens, mostraram um altíssimo grau de colaboração e competência por parte de todos os envolvidos. A maioria dos textos foi produzida antes dos vários adiamentos de mostras e bienais, mas optamos por mantê-los, acreditando que dias melhores virão.
Esperamos encontrar todos com saúde, podendo imaginar um outro momento, que certamente vai nos exigir re-nascer.

A Memória das últimas coisas e depois

Registros de memória em Tsunami, Photographs and Then
The photograph is part of the "Lost & Found" project and can be found in the book "Tsunami, Photographs and Then", its authors and stories remain unknown. Courtesy of Munemasa Takahashi.
“Certo, certo. Não esqueçam o que vocês verão aqui”. Esse foi o comentário feito por um dos frequentadores do barzinho Kobune a Munemasa Takahashi, em 26 de abril de 2011, depois dele contar que não estava na província de Miyagi (Japão) como mais um voluntário, colaborando no local que havia sido atingido um mês e meio antes da sua visita, por um terremoto de magnitude 9.1, e que movimentou muralhas de água que bombardearam a costa da ilha.

Takahashi, que havia estudado fotografia e construído uma vida em torno dela, se sentia desamparado com sua impotência diante do desastre. “Quando eletricidade, gás e água pararam, quando não havia comida ou combustível e não havia como se aquecer, não havia nada que a fotografia pudesse fazer para ajudá-los. As fotografias pareciam documentar e entregar as cenas do terrível evento às pessoas em lugares seguros”, ele viria a explicar, sobre a cobertura da tragédia em imagens, no prólogo do livro Tsunami, Photographs and Then, organizado posteriormente por ele num esforço de retratar a construção dos projetos Memory Salvage e Lost & Found em uma publicação bilíngue – japonês e inglês – oferecendo ricos detalhes, entrevistas com visitantes das exibições e, claro, algumas das imagens expostas.

Antes disso, sua maior esperança para evitar a inércia diante da tragédia, era viajar até uma das áreas menos afetadas na província, gastar dinheiro com os comerciantes locais e tentar movimentar um pouco a economia do lugar.

Registros de memória em Tsunami, Photographs and Then
A fotografia é integrante do projeto Lost & Found e pode ser encontrada no livro Tsunami, Photographs and Then, seus autores e histórias permanecem desconhecidos. Cortesia de Munemasa Takahashi.

“Por favor, me avisem se vocês puderam colaborar”, dizia uma mensagem espalhada pelas redes oito dias depois de sua visita. Era um chamado por voluntários para integrarem os esforços de limpeza e catalogação das fotos – retratos de família, registros caseiros etc. – levadas pelo tsunami e eventualmente resgatadas pelo SDF (Forças de Autodefesa).

Respondendo à convocação, Takahashi entrou em contato com o Professor Kuniomi Shibata, que conduzia o projeto Memory Salvage (Salvamento da Memória), sob supervisão da Corporação FUJIFILM. Neste momento, os voluntários ainda trabalhavam na sala de Shibata, na Universidade Feminina de Otsuma, e haviam barreiras a serem contornadas para que as pessoas pudessem procurar pelas fotografias em seus computadores – mais tarde dois softwares foram desenvolvidos para que as imagens pudessem ser encontradas de acordo com reconhecimento facial e área em que foram resgatadas. Era necessário digitalizá-las. Contudo, o fornecimento de eletricidade era escasso e irregular, o que significa que eles precisavam de uma maneira para fazê-lo sem depender da fonte de alimentação inconsistente, ou seja, utilizando câmeras digitais. O obstáculo do método, por sua vez, era a escassez de equipamentos e o ambiente de trabalho. Era contaminado, cheio de pequenas partículas de poeira do lodo seco que poderiam danificar os equipamentos, significando que qualquer ferramenta teria que ser doada, e não emprestada. Incrédulo, novamente, Takahashi enviou um pedido à web. Os apetrechos foram oferecidos em poucas horas, alguns por totais desconhecidos do fotógrafo, outros por colegas e professores de sua escola de fotografia.

Conforme o processo de limpeza e digitalização começou a caminhar tranquilamente, com 20 a 80 voluntários comparecendo todos os finais de semana, as fotografias reproduzidas começaram a se acumular. Dessa forma foi criado um espaço para devolvê-las aos proprietários. Elas foram indexadas e reunidas de volta em álbuns físicos, com três imagens em suas capas para identificação pelo antigo dono, fornecendo o retorno de uma parcela daquilo que lhes foi usurpado pelo desastre. Até 2014, pelo menos 300 mil fotografias físicas haviam sido retornadas aos seus donos. Talvez, assim como a personagem Hana, do escritor Amós Oz, as pessoas se apeguem à memória como alguém que se agarra a um parapeito, num lugar alto, e numa época em que as coisas são tão efêmeras elas confiam lembranças a dispositivos externos porque querem deixar provas que as identifiquem.

Hopeless Box

As fotos chegavam ao projeto lavadas, encharcadas e até completamente obliteradas. Por um tempo, aquelas danificadas consideravelmente, cujo estado era praticamente impossível de passar por restauro, eram designadas para o Hopeless Box (“caixa sem esperança”), uma solução para deixá-las intactas até que a equipe descobrisse qual seria seu destino, embora cada vez mais colaboradores expressassem que seria melhor simplesmente descartá-las. Com o andar da campanha, uma questão que ainda martelava a cabeça dos organizadores era a possibilidade de fornecer um retorno financeiro para a comunidade afetada. Um esquema de moradias temporárias começava a ser implementado e necessitava verbas para custear sua construção e seus trabalhadores. Eles concordavam que era significativo mostrar esses registros a quem não podia visitar o acervo.

Como escreveu certa vez o pesquisador Boris Kossoy, “desaparecidos os cenários, personagens e monumentos, sobrevivem, por vezes, os documentos”

Uma resolução foi expor as fotos que outrora estavam perdidas, surgindo assim o Lost & Found Project, levando-as da Galeria Internacional da Fotografia, no Japão, até o Centro para Fotografia Contemporânea, na Austrália, e a Fundação Aperture, nos Estados Unidos. “Nós optamos por exibir as fotos em um formato de exposição porque queríamos que as pessoas as vissem pessoalmente, não através de material impresso ou da Internet”, relata Takahashi, notando também que logo antes da exposição sair do papel os organizadores ainda se faziam perguntas como: “E se não pudermos arrecadar dinheiro suficiente para as habitações temporárias? E se for eticamente errado mostrar as fotos publicamente?”.

Seguindo o sentido oposto, a mostra se tornou uma forma de entregar uma narrativa sobre as pessoas atingidas pelo tsunami que fugisse de uma história recheada com números que involuntariamente seria traduzida em um conto sobre tragédia ou uma alegoria forçosa sobre esperança diante do caos. Lost & Found – com registros fornecendo ricas eminências de história, abraçando uma constelação maior do que nos resta da tragédia e também imagens visualmente impressionantes como resultado da sua deformação química – fornece um espaço de suspensão nessa dicotomia.

Por que fotografamos?

“Por que as pessoas estão sempre tirando fotos?” é uma questão que parece assolar recorrentemente Munemasa Takahashi, pelo menos ao longo da escrita do livro Tsunami, Photographs and Then.

Registros de memória em Tsunami, Photographs and Then
A fotografia é integrante do projeto Lost & Found e pode ser encontrada no livro Tsunami, Photographs and Then, seus autores e histórias permanecem desconhecidos. Cortesia de Munemasa Takahashi.

A fotografia cria uma realidade que existe precisamente nela, nem antes, nem fora dela, fornece um traço indicial de quem esteve lá, como se pareciam. Walter Benjamin afirmaria que “no culto da lembrança dos seres queridos, afastados ou desaparecidos, o valor de culto das imagens encontra-se o último refúgio. Na expressão fugidia de um rosto humano, nas fotos antigas, pela última vez emana aura. É isso que lhes empresta aquela melancólica beleza, que não pode ser comparada a nada”.

Caso as fotografias agrupadas para o projeto Lost & Found sejam bem recebidas pelos visitantes, talvez seja possível falar de uma ressignificação daquilo que essas fotografias simbolizaram, se distanciando de um exclusivo testemunho de desastre, voltando a se aproximar de um canalizador das questões universais do ser humano; como escreveu Ursula Le Guin, do que há “no ventre do tempo, e morte, e chance”.

Linguagem pré-incaica

Caixa de mdf com sementes: cerâmica e pintura acrílica.
Caixa de mdf com sementes: cerâmica e pintura acrílica. Fotos: Patricia Rousseaux

ARTE!* – Quando surgiu a ideia de desenvolver esse projeto?

Ximena Garrido-Leca – No ano de 2010 visitei a ruína de Pachacamc[1], perto de Lima.  Conversando com o arqueólogo soube que durante as escavações tinham encontrado sementes da espécie Phaseolus Lunatus brancas e pretas, que não eram nada comuns e que tinham se perdido. Estavam pensando em reinseri-las na cultura. Nesse momento ele me deu várias sementes de presente. 

A partir dai fiquei muito curiosa sobre a história, e comecei a pesquisar. De fato, essas sementes, espécie de feijões, tinham sido representadas em várias culturas peruanas, pré-hispânicas em cerâmicas e peças têxtis, especialmente na cultura Moche, a cultura Mochica. Outro arqueólogo, Rafael Arcofuego, a princípios do século XX desenvolveu uma teoria onde estas representações seriam um sistema de escritura. Existem outras teorias refutando esta ideia, dizendo que não, que seriam jogos ou parte de um ritual agrário, mas eu decidi me focar na sua teoria. Ele sustenta que cada paillard de sementes representa uma ideia, não seriam ideogramas e sim um sistema de comunicação simbólico.

Estrutura hidropônica e plantas da espécie Phaseolus Lunatus
Estrutura hidropônica e plantas da espécie Phaseolus Lunatus

Teria existido 100 a 850 a.C., e isso confirmaria a ideia de ter existido sim, uma outra escritura peruana, antiga, pré-incaica. Assim, decidi pesquisar mais e montar um projeto baseado em traduzir um texto colonial, La extirpación de la ideolatria en el Peru, escrito por Pablo José de Arriaga em 1621, uma espécie de manual da colônia de como erradicar os costumes indígenas.

Tomei um capítulo, o Edicto contra la ideolatria, que narra os costumes, os rituais e como aplicar os castigos. A partir daí, fui montando grupos gráficos com as sementes reproduzidas em cerâmica. Construindo um novo texto gráfico, a partir de conjuntos de morfologia e de cor.


[1] A cidade foi construída por volta de 200 a.c. Seu nome é uma referência ao “Pacha Kamaq”, deus criador da Terra segundo a crença da população local pré-inca. Pachacamac foi um importante centro administrativo e religioso para grandes civilizações pré-coloniais em períodos distintos, como os Limas, os Huaris e, por
final, poderosos Incas; até ser totalmente saqueado e destruído pelos espanhóis. Hoje, 500 anos depois,
os esforços para reconstruir suas inúmeras pirâmides, templos, praças e casas são incessantes.