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O pantheon dos imortais de São Paulo: delírio tropical no Pátio do Colégio

O Pátio do Colégio na segunda metade do sáculo XIX. Foto: Reprodução

No rastilho dos protestos contra o assassinato de George Floyd pelo policial racista nos Estados Unidos, prosperaram ações iconoclastas, naquele e em outros países. No Brasil, se a iconoclastia (ainda) não vingou como corolário dos protestos contra a morte de Floyd (e de centenas de outros Floyds, mortos e mortas todos os dias por aqui), pelo menos o debate foi reiniciado. Volta-se a discutir a pertinência de se manter monumentos a notórios predadores e traficantes de seres humanos em nossas praças.

Se hoje lembramos do bandeirante quando tratamos de morte e tráfico de pessoas, não faz muito tempo sua figura era associada ao que de mais intrépido podia existir na “alma brasileira” (e não apenas paulistana). Para muitos, o Brasil deveria agradecer ao bandeirante pois teria sido por sua “bravura” que o país conseguiu estender seu território para além do antigo Tratado de Tordesilhas[1].

O bandeirante – atuante nos primeiros trezentos anos da colonização –, foi recuperado no início do século XIX quando, frente à chegada e rápido empoderamento de adventícios, os paulistas encetaram seu resgate. Essa recuperação acabou se ampliando com o tempo por dois motivos: primeiro, devido à chegada cada vez mais intensa de hordas de imigrantes vindos de todos os lugares do mundo e não apenas de Portugal. Contra esses “invasores” que ameaçavam as tradições locais, o culto aos antigos. Também era necessário justificar o protagonismo da elite paulista nos destinos do Brasil já do início do século XX. Assim, nada mais adequado do que associar a “audácia” dos bandeirantes de ontem àquela dos “novos” bandeirantes. Vários membros dessa elite acreditavam nessa narrativa que os unia aos antigos pioneiros. Assim, diante das más influências do “imigrantismo” e daqueles que contestavam a supremacia “histórica” dos paulistas, eles entendiam que era necessário tornar palpável aquela ficção. Foi o que ocorreu a Adolfo Augusto Pinto[2].

Celebrado por Almeida Jr. em pintura pertencente à Pinacoteca – Cena de família de Adolfo Augusto Pinto, 1891 –, esse engenheiro integrou as gerações dos “novos bandeirantes” paulistas, pois, após ter sido o responsável por obras de infraestrutura na cidade de São Paulo, ele galgou alta posição como responsável pela expansão da Companhia Paulista de Estrada de Ferro. Um “desbravador”, Pinto também se destacou como ideólogo da “paulistaneidade”: embriagado de orgulho por São Paulo, queria que a cidade fizesse jus ao fato ter sido o berço dos antigos e dos novos bandeirantes.

Já tive a oportunidade de arrolar (leia aqui) os monumentos escultóricos realizados em São Paulo que contaram com o engajamento e, muitas vezes, com a intervenção direta de Pinto[3]. Seu empenho pela tradução em granito, mármore e bronze da história idealizada de São Paulo, no entanto, nem sempre resultou em monumentos que de fato foram construídos. Porém, mesmo aqueles projetos não realizados reiteram a potência da ideologia que plasmaram, no plano simbólico, o papel de São Paulo e do paulista, como primeiros e únicos responsáveis, segundo essa visão, por tudo o que de positivo teria ocorrido no Brasil, desde 1500.

O interesse de Adolfo Pinto por São Paulo não ficou restrito à sua infraestrutura. Como corolário das benfeitorias que os governos realizavam na cidade, Pinto refletia sobre a necessidade de “aformosear” a capital, projetando soluções que, ao unir facilidade de fluxo, lazer e deleite estético, transformaria o berço dos bandeirantes num sonho, uma condensação tropical de Versailles, Roma e Florença.

Em conferência pronunciada em novembro de 1917[4], Adolfo A. Pinto tornou pública a ideia de transformar em Centro Cívico o núcleo histórico da cidade, o Pátio do Colégio[5]. Como a cidade havia nascido justamente naquele lugar – onde os padres Manoel da Nóbrega e José de Anchieta haviam fundado o Colégio dos Jesuítas, com o apoio do cacique Tibiriçá –, o Largo do Palácio, a seu ver, deveria ser transformado em um Centro Cívico que reverenciasse os heróis nascidos em São Paulo.

***

Adolfo Pinto inicia a conferência de 1917 estranhando a ausência de monumentos em São Paulo que homenageassem a cidade e seus heróis. Comparava a capital do Estado à situação de outras cidades brasileiras. O Rio de Janeiro, por exemplo, apresentava em suas praças, parques e museus, as efígies dos grandes brasileiros. São Paulo, nada. Segundo ele, contudo, a situação estava prestes a mudar devido ao concurso para escolher o monumento em homenagem ao centenário da Independência a ser instalado em frente ao Museu Paulista. Para o conferencista, como a independência do país ocorrera em território paulista, nada mais justo que o monumento fosse construído na cidade. Porém:

…seria fazer muito pouco do nosso passado supor que ele nasceu do grito do Ipiranga, quando é certo que então já contava três séculos de idade, e durante o maior trecho desse prazo teve a perlustra-lo a valorosa estirpe dos fundadores do Brasil colonial, nossos bravos conterrâneos dos séculos XVII e XVIII.
É igualmente certo que a epopeia bandeirante teve a sua flama na potencialidade dos elementos étnicos que colaboraram na fundação e no desenvolvimento inicial de Piratininga.
(…) havemos nós, os paulistas, de solenizar o centenário da Independência, (…) deixando que continuem sepultados em negro e desolado olvido os seus grandes fatores atávicos?[6]

Essa era uma pergunta retórica porque todos sabiam que, em 1910 ocorrera o concurso para a ereção de um monumento em homenagem à fundação da cidade de São Paulo, ganho por Amadeo Zani. A obra, produzida na Itália, já se encontrava em São Paulo, mas, encaixotada, aguardava uma solução para o Largo do Palácio, onde seria instalada.

Existiam duas possibilidades para o devir do Largo: ou os edifícios ali instalados seriam reformados ou demolidos, aumentando o espaço do largo para receber o monumento de Zani[7]. Para Adolfo Pinto a segunda alternativa era a que mais o agradava, pois ia ao encontro de seu desejo de ali constituir o Centro Cívico a que aspirava.

Palácio do Governo e o monumento Glória Imortal aos Fundadores de São Paulo, de Amadeo Zani, em 1926. Foto: Reprodução

Para ele, aquele sítio era o símbolo da nacionalidade brasileira, constituído pela junção do português e do indígena, sob a tutela do Cristianismo e da Igreja Católica. Fora dali que São Paulo começara estender-se por outros recantos até alcançar, graças à audácia de seus filhos, territórios antes estrangeiros.

Além desse valor histórico, Adolfo Pinto chamava a atenção para outra singularidade do Largo do Palácio: de um de seus lados se descortinava uma paisagem especial, composta pela várzea do Tamanduateí – que, em breve, seria transformada no Parque do Carmo[8] –; mais adiante “a operosa colmeia industrial que hoje é o Bráz” e, em dias especialmente límpidos, as “encostas azuladas da Cantareira”:

Assim enobrecido pela natureza e pela história – como se em S. Paulo devêssemos ver reunidas em um só sítio as recordações e as belezas que Roma venera e contempla no Capitólio e no Pincio – o antigo largo do Colégio está naturalmente fadado a ver a arte levantar sobre o seu chão sagrado o monumento glorificador das figuras principais da fundação de S. Paulo[9].

Instalado no centro daquele “chão sagrado”, o autor propunha que o Monumento de Zani fosse envolto por um fabuloso jardim, à la Versailles, com fontes luminosas e bacias d’água mas com uma diferença: aproveitando o fato de São Paulo possuir uma grande capacidade hidráulica, seriam ali erguidos jatos d’água a mais de cem metros de altura, transformando os jardim francês e suas fontes, em “miniaturas”:

As famosas grandes águas de Versailles – com jatos obtidos à custa de pressão artificial e alcançando quando muito uns vinte metros de altura – […] as famosas grandes águas não passariam de modesta miniatura dos incomparáveis efeitos do mesmo gênero que aqui se poderiam obter com insignificante dispêndio.[10]

Para completar espaço tão extraordinário, Pinto propunha ainda a construção de um belvedere. Sua função seria propiciar aos paulistanos o gozo da vista panorâmica em direção a Cantareira e, ao mesmo tempo, em determinadas datas, “o prazer de admirar os mais notáveis jogos de água do mundo”. Porém, o belvedere teria uma outra atração, esta sim fundamental para a glória da cidade: uma galeria de esculturas onde estariam representados os paulistas mais ilustres!

A fonte de inspiração para esse “Pantheon dos imortais de S. Paulo” era a Galleria degli Uffizi, em Florença que, em meados do século XIX, completara um antigo projeto de colocar em sua fachada nichos com esculturas retratando os principais personagens nascidos e/ou atuantes na cidade. Para Adolfo Pinto aqueles elementos da Galleria, retratando figuras como Michelangelo, Dante Alighieri, Da Vinci e Galileo, entre outros, era um exemplo de civismo a ser seguido:

Como vedes, senhores, são brilhantes, admiráveis as figuras que povoam a galeria dos imortais de Florença, e o culto que a bela cidade italiana presta à memória de seus filhos ilustres não é só um preito às suas virtudes, é também uma sábia lição prática, intuitiva de civismo. O nobre gesto de Florença é digno de ser imitado em S. Paulo. É que, como os florentinos, também nós podemos nobremente nos orgulhar dos heróis da nossa história.[11]

Adolfo Pinto tinha dúvidas se um dia essa grande homenagem aos paulistas seria concretizada, embora não tivesse dúvida quanto à sua pertinência:

“o que (…) em minha alma de paulista, em minha consciência de patriota, eu tenho a gratíssima satisfação de reconhecer e sinto a necessidade de proclamar é que, para a glória de minha terra, nenhum povo se honra com ascendência mais digna da egrégia homenagem”[12].

Se atentarmos para os florentinos homenageados, veremos que ali abundam poetas, escritores, artistas, médicos, demais cientistas e chefes militares[13]. Já a lista de paulistas previstos para serem representados no Centro Cívico idealizado por Adolfo Pinto, teria outras características. Ela se inicia com a figura de Tibiriçá, cacique de Piratininga e guia “da sagrada falange”:

Se um dia se construir o nosso Pantheon, no chão sagrado em que nasceu a cidade, e as relíquias de um dos seus mais dedicados fundadores forem reconduzidas para o sítio do seu jazigo histórico, dirá tudo esta simples inscrição no pedestal da estátua que se erguer sobre o sarcófago: Tibiriçá, primeiro cidadão de S. Paulo.[14]

A partir de Tibiriçá, o autor elenca os paulistas que se evidenciaram como caçadores de pedras preciosas e/ou seres humanos e desbravadores de territórios: Affonso Sardinha, o primeiro dos pioneiros, responsável pela exploração das jazidas do Jaraguá; Antonio Raposo, invasor das reduções espanholas; Fernão Dias Paes Leme, possuidor de cinco mil índios escravizados, mas “com alma profundamente religiosa”; Domingos Jorge Velho, responsável pela “conquista definitiva dos Palmares”; Paschoal Moreira Cabral Leme, conquistador do território de Mato Grosso; Bartholomeo Bueno da Silva, conquistador de Goiás; Amador Bueno da Ribeira que recusou sua aclamação como rei de São Paulo[15]; Balthazar de Borba Gatto, um típico paulista, fruto da miscigenação entre os elementos indígena e português, repleto de “altivez nativa”; Belchior de Pontes, o “Anchieta do século XVII”, padre que acompanhava as bandeiras; Pedro Vaz de Barros, responsável pelo aprisionamento de dois mil e trezentos indígenas na Bahia[16].

O monumento Glória Imortal aos Fundadores de São Paulo, de Amadeo Zani. Foto: Reprodução

Arrolados esses onze nomes ligados direta ou indiretamente à empresa bandeirista, Afonso Augusto Pinto dá início à listagem de outros paulistas que teriam se destacado em diversas atividades e que mereceriam ter suas esculturas no Pantheon. Embora não se esqueça de alguns cientistas, escritores e artistas[17], chama a atenção em sua lista o setor formado por políticos que, sobretudo a partir da segunda metade do século XIX tinham contribuído para sedimentar a posição do estado de São Paulo como líder no contexto brasileiro. Neste sentido, se Adolfo A. Pinto imagina o início de seu templo com esculturas dedicadas aos antigos bandeirantes, ele o arremata com a representação dos novos. Assim, as imagens de Prudente de Morais, Campos Salles, Eduardo da Silva Prado, Francisco Glycerio e Bernardino de Campos, entre outros[18], fechariam essa fantasia grandiloquente de sabor florentino, implantado nas bordas de um jardim a la Versailles, um Centro Cívico para invocar e pedir a benção dos antepassados paulistas, “espinha dorsal” do Brasil:

Perante vós, (…), paraninfos do renascimento cívico da Pátria, (…) curvamo-nos todos, nós, os vossos descendentes, os vossos legítimos herdeiros, os legatários viscerais de vosso incomparável espólio, para render-vos o preito reconhecido da nossa mais profunda admiração e referência, e pedir-vos que sejais (…) os espíritos guiadores da diretriz que há de conduzir a seu alto destino a nossa estremecida terra paulista, a terra que conquistastes com o vosso valor, que fecundastes com vosso trabalho, que dignificastes com o vosso patriotismo, a fim de que seja ela nos tepor porvindouros, como foi nos que passaram, o fator máximo da grandeza e felicidade do Brasil[19].

***

Como epílogo, gostaria de salientar que, para o olhar atual, chama a atenção, tanto no caso paulistano quanto no florentino, a ausência de mulheres homenageadas, fato que pouca ou nenhuma importância poderia ter para a sociedade paulistana de então, em que as mulheres tinham pouco reconhecimento[20]. Digno de nota, no entanto, é o fato de Adolfo Pinto ter colocado um indígena – Tibiriçá – como o primeiro dos paulistas. Essa precessão do cacique de Piratininga como o patriarca maior, seria seguida no texto por uma série de referências à presença do indígena na formação do bandeirante paulista. Podemos entender essas referências aos indígenas como um reconhecimento da importância ou da igualdade do índio em relação ao português? Claro que não, eu diria. A alusão aos indígenas e ao seu sangue que corria nas veias dos “verdadeiros” paulistas, funciona no discurso de Pinto apenas como um marcador da diferença entre esses “autênticos” paulistas e os imigrantes que chegavam de todas as partes do mundo.

Quanto à ascendência africana de Carlos Gomes ou de outros paulistas, nem um pio.

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[1] – Durante o século passado, o bandeirante deixa de ser um mito paulista para tornar-se um mito brasileiro. Para tal transformação contribuíram, tanto os textos de um intelectual como Cassiano Ricardo, entre outros, como a imagem de Juscelino Kubtscheck.
[2] – Sobre Adolfo A. Pinto, consultar, entre outros: “O doutor e os monumentos”, de Tadeu Chiarelli. ARTE!Brasileiros. 18 de dezembro de 2019. artebrasileiros.com.br/opinião/conversa-de-bar
[3] – Ver nota 2.
[4] – A conferência, “Os imortais de S. Paulo”, foi ministrada por ocasião de um festival promovido pela Liga Nacionalista de S. Paulo no dia 15 de novembro de 1917 e posteriormente publicada no livro: PINTO, Adolpho A. PINTO. Homenagens. São Paulo: Casa Vanorden, 1926 pág. 57 e segs.
[5] – Então Largo do Palácio.
[6] – Idem página 65.
[7] – O Monumento à Fundação de S. Paulo será instalado somente em 1925 (ler “O doutor e os monumentos”, de Tadeu Chiarelli. ARTE!Brasileiros. 18 de dezembro de 2019. artebrasileiros.com.br/opinião/conversa-de-bar). O edifício do Palácio do Governo não foi demolido naquele período e passa, em 1930 a sediar a Secretaria de Educação. Somente em 1953 o edifício será derrubado para preparar o local para as comemorações do IV Centenário da cidade. Em 1979 é inaugurado o Museu Padre Anchieta naquele local. Em um edifício que recorda aquele ali construído em 1556, assim como uma igreja que, em 1980, passa ser conhecida como Igreja do Beato José de Anchieta (sobre o assunto, consultar: pateodocollegio.com ). É claro que, quando proferiu a palestra em análise, Adolfo A. Pinto não fazia ideia do tempo que transcorreria para que o edifício fosse demolido e que nada do que ele previra seria construído.
[8] – Depois, Parque D. Pedro II.
[9] – PINTO, Adolpho A. Homenagens. São Paulo: Casa Vanorden, 1926 pág. 68.
[10] – Idem, pág. 70.
[11] – Idem, pág. 72. Em tempo: na galeria de notáveis florentinos, além daqueles citados pelo autor, figuram as representações de: Cosme de Medici (Grande Duque da Toscana), Lorenzo de Medici (político); Andrea Organa (arquiteto); Nicola Pisano (escultor); Giotto (pintor); Donatello (escultor); Leon B. Alberti (arquiteto); Francesco Petrarca (poeta); Giovanni Boccaccio (escritor); Nicolo Macchiavelli (escritor); Francesco Guicciardini (historiador); Amerigo Vespucci (cartógrafo); Farinata degli Uberti (militar); Pier Caponi (político); Giovanni dalle Bande Nere (militar); Francesco Ferruccio (militar); Per Antonio Micheli (botânico); Francesco Redi (médico); Paolo Mascagni (médico); Andrea Cesalpino (médico); St. Antonio (teólogo); Accurio (jurista); Guido Aretino (escritor).
[12] – Idem pág. 73.
[13] – Veja nota 8.
[14] PINTO, Adolpho A. Homenagens. São Paulo: Casa Vanorden, 1926 pág. 74.
[15] – Interessante que, complementando o verbete dedicado a Amador Bueno da Ribera, Adolfo Pinto, cita o que Saint-Hilaire escrevera sobre aquele antigo habitante de São Paulo e o que teria ocorrido caso o mesmo tivesse aceitado ser aclamado rei de São Paulo: “Com tal chefe, que se deve qualificar como o maior vulto dos tempos primitivos, os paulistas se constituiriam independentes, e, em breve, o mais formidável povo da América do Sul”. (Apud: PINTO, Adolpho A. Homenagens. São Paulo: Casa Vanorden, 1926 pág.81). A meu ver, é elucidativo sobre o orgulho paulista, o autor chamar a atenção para esse trecho do texto do cronista francês que inflava o orgulho dos locais.
[16] – As informações sobre os personagens citados foram retiradas do texto de Adolfo Pinto, o que demonstra o quanto, para o autor, estavam naturalizadas as atividades bandeiristas.
[17] – Bartolomeu de Gusmão, Jesuíno de Monte Carmelo, Álvares de Azevedo, Almeida Jr. e Oswaldo Cruz, entre outros.
[18] – No pantheon florentino, foram homenageadas 28 personalidades. Se a proposta de Adolfo Augusto Pinto fosse levada adiante, seriam homenageados 43. Já citados os paulistas ligados ao bandeirismo “histórico”, seguem seus “herdeiros”, arrolados por Pinto: Gaspar da Madre de Deus; Alexandre de Gusmão; Bartolomeu Lourenço de Gusmão; Pedro Taques de Almeida Paes Leme; José Arouche de Toledo Rendon; Jesuíno do Monte Carmelo; José Bonifácio de Andrada e Silva; Antonio Carlos de Andrada e Silva; Martim Francisco de Andrada; Diogo Antonio Feijó; José Feliciano F. Pinheiro; José Joaquim Machado de Oliveira; Nicolau P. de Campos Vergueiro; Francisco de Paula Souza; Antonio Joaquim de Mello; Francisco Adolfo Varnhagen; Gabriel José Rodrigues dos Santos; José Antonio Pimenta Bueno; Manoel Antonio Alvares Azevedo; Arthur Silveira da Motta; Clemente Falcão de Souza Filho; Antonio de Queiroz Telles; Antonio Carlos Gomes; José Ferraz de Almeida Jr.; Prudente José de Moraes Barros; Manoel Ferraz de Campos Salles; Francisco Glycerio; Bernardino de Campos; Cesario de Azevedo Motta Magalhães; Eduardo da Silva Prado; Oswaldo Cruz e Francisco de Paula Rodrigues.
[19] – PINTO, Adolpho A. Homenagens. São Paulo: Casa Vanorden, 1926 pág. 128.
[20] – Não podemos esquecer, no entanto, que a menos de um mês dessa conferência, Anita Malfatti iria inaugurar uma exposição na qual seria a protagonista e que estaria destinada a, com o tempo, colocar a artista em um patamar significativo no âmbito da arte e da cultura do país.

Skateboard Help junta esporte e arte para um fim social

Skateboard Help
Fabiano Rodrigues, junto com Akira Shiroma, estampam o trabalho da série RATSREPUS em prancha para o Skateboard Help

Inspirada na proposta estrangeira The Skateroom, a iniciativa brasileira reúne obras inéditas assinadas por artistas e entusiastas do esporte. Os convidados para o projeto devem estampar seu trabalho em uma série limitada de 25 pranchas de skate. 20% do valor arrecadado com as peças será destinado à Social Skate.

A Social Skate foi criada em 2011 pelo skatista e ativista Sandro Testinha Soares. Desde então, ela realiza atividades esportivas e promove a inclusão social, educacional e cultural de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social em Poá, município da extrema zona leste de São Paulo.

Para o lançamento do Skateboard Help, o próprio Fabiano, junto com Akira Shiroma, estampam o trabalho da série RATSREPUS nas pranchas. Fabiano é um artista autodidata que começou a fotografar observando os profissionais que registravam suas manobras enquanto se dedicava ao esporte de forma profissional, o que fez por 15 anos.

As peças serão numeradas e assinadas, e cada uma será comercializada pelo custo de R$ 600. Para a primeira edição, 100% do cachê do artista Fabiano Rodrigues será doado para a ONG.

Os artistas das próximas edições ainda serão revelados aos poucos, mas pelo momento Paulo Nimer Pjota, representado pela Galeria Mendes Wood DM, é um dos nomes já confirmados. O perfil do Instagram Skateboard Help é a plataforma de divulgação do projeto, para apresentar os artistas, trazer informações. As vendas serão feitas por meio da Galeria Kogan Amaro.

Conheça outros projetos artísticos com cunho social desenvolvidos durante a quarentena neste link.

Relembre: Entrevista com Mauricio Lima, primeiro brasileiro a ganhar um Pulitzer

Mauricio Lima
SERVIA Membros da família Majid acalentam suas crianças num campo de trigo em Horgos, perto da fronteira da Hungria - Foto: Maurício Lima

Por: Simonetta Persichetti

No ano do seu centenário, o Prêmio Pulitzer tem, entre seus vencedores, o fotógrafo brasileiro Mauricio Lima, free-lancer para o The New York Times, pela cobertura da crise de refugiados na Europa. Esta é a primeira vez na história do prêmio que um brasileiro recebe a distinção. Mauricio Lima foi o vencedor na categoria Fotografia Breaking News, com o russo Sergey Ponomarev, o americano Tyler Hicks e o alemão Daniel Etter, pela série Exodus. Os quatro receberam também, pela mesma série, o The John Faber Award do Overseas Press Club of America.

Mauricio Lima
DESCARTE Coletes salva-vidas e botes de borracha descartados por migrantes que conseguiram chegar à Grécia pelo mar – Foto: Mauricio Lima

O Pulitzer foi criado por obra e desejo do jornalista americano Joseph Pulitzer, que acreditava no jornalismo. No bom jornalismo. Antes de sua morte, em 1911, ele fez uma doação em dinheiro para a Universidade de Columbia, em Nova York, que foi usada para abrir o curso de Jornalismo, inaugurado no ano seguinte, e para o prêmio – o primeiro em 1917. A partir daí, a cada ano jornalistas e escritores são reconhecidos por seus trabalhos.

O lema do Pulitzer era: “Iluminar os lugares es­curos e, com um profundo senso de responsabilidade, interpretar esses tempos difíceis”. É com esse espírito que anualmente a imprensa norte-americana premia trabalhos de excelência que fazem diferença no mundo.

Aos 40 anos, Mauricio Lima é um profissional humanista e independente. Formado em Comunicação Social pela PUC de São Paulo, começou fotografando esportes em 1999. Depois foi convidado para integrar a agência France Press, onde permaneceu até 2011, partindo, então, para a carreira solo, como free-lancer.

Nestes 17 anos, Lima foi construindo um trabalho sério, consistente e, acima de tudo, impregnado de ética e responsabilidade, respeitando o que vê e o que fotografa. Não é à toa que, neste ano, seu trabalho tenha obtido tanto reconhecimento: coube a ele também o prêmio do World Press Photo, na categoria General News, pela reportagem publicada, em agosto de 2015, no mesmo The New York Times, sobre um jovem combatente do Estado Islâmico de 16 anos.

O brasileiro está presente em lugares onde existem histórias para serem contadas. Ele narra biografias de vítimas da incompreensão, do ódio e das guerras. Imagens profundas, de um olhar crítico que quer compreender. Um legado imagético que procura ser poético dentro do caos. O que seus olhos viram as palavras não exprimem. Silencioso, ele não gosta de holofotes nem de protagonismos.

Mesmo assim, de Nova York, concedeu esta entrevista exclusiva para a Brasileiros. Desta vez, a voz não é a dos seus retratados, mas a dele. Mauricio Lima, que no Brasil é representado pela DOC Galeria, de São Paulo, nos convence de que um jornalismo feito com seriedade e profundidade ainda é possível e tem espaço para ser visto.

Brasileiros – O jornalista Andrei Netto, do jornal O Estado de S.Paulo, fez um perfil seu, em que o chama de “lobo solitário”. Eu também escrevi sobre seu trabalho, quando pontuei a eloquência do seu silêncio. Você já disse que espera ser invisível nas reportagens que faz. Quem é realmente Mauricio Lima? O que move você para o fotojornalismo?

Mauricio Lima –Sou movido incessantemente pela curiosidade do comportamento humano, suas nuances, ambiguidades, pelo poder de conscientização que a fotografia pode atingir e pelo desejo de contribuir para a transformação de uma realidade por meio de uma narrativa visual.

Como foi a transição de um jovem que começou fotografando esportes e, de repente, estava na guerra do Iraque e depois no Afeganistão?
Foi uma transição necessária, uma fase importante de amadurecimento como ser humano, de percepção de valores essenciais que devaneiam da racionalidade entre o pós-adolescência e o momento em que você adquire um diploma universitário. Um momento decisivo na vida. E, ao imergir em outra cultura, talvez suprimisse minha incapacidade de expressar sentimentos por meio da fotografia.

Mauricio Lima
AYAD Retrato (tirado em Bagdá, 28 de janeiro de 2004) de Ayad Ali Brissam Karim, cuja visão havia sido danificada (20% funcional) em um dos olhos e perdida completamente no outro, decorrência de um ataque aéreo em abril de 2003 – Foto: Mauricio Lima

Uma das suas primeiras reportagens, creio eu, como fotógrafo de conflitos foi sobre o menino que teve o rosto machucado por estilhaços de bomba. Ele ficou cego. Essa apuração comoveu parte do mundo. Qual é o impacto dessa experiência em você como vetor de informação e de estar onde muitos não podem estar para narrar essas histórias?
Extremamente gratificante. Meu objetivo era claro quando o vi com seu pai em frente à Zona Verde de Bagdá com uma receita médica na mão para o tratamento de córnea: ajudar Ayad Karim. Diante das mentiras e do interesse geopolítico que motivaram a invasão do Iraque, era o mínimo que poderia realizar para minimizar aquela tragédia consumada.

Já vi você entrar e sair de lugares sem ser notado. Essa “invisibilidade” faz parte do seu dia a dia?
Sim. É algo que quero preservar. Quero ser tratado como uma pessoa comum, sem rótulos nem privilégios.

Você é um fotógrafo que assume posições políticas e usa as redes sociais para isso. Por quê? O quanto isso o expõe e o quanto é necessário?
Porque é preciso resgatar a ideologia, crer e lutar por algo. E, inegavelmente, pelo fato de ser uma nova forma de comunicação. Essas plataformas são potentes, não podemos nos cegar a isso quando nos preocupamos com a realidade. Atingem as pessoas de forma imediata e, por isso, podem levar a uma reflexão. A liberdade de expressão deve ser uma conquista inviolável para nossa maturidade civil como sociedade.

Acredita que o trabalho do fotojornalista é dar voz aos que não podem falar?
Também. É um canal recíproco de comunicação, seja da voz do fotografado, seja do sentimento do fotógrafo, de como e o porquê aquilo foi fotografado e deva ser visto.

Maurício Lima
GRÉCIA Soldados macedônios levantam uma barreira de arame farpado para impedir a entrada de refugiados no País – Foto: Mauricio Lima

Neste ano, seu trabalho ganhou vários prêmios. Você é o primeiro brasileiro a ganhar o Pulitzer no 100º ano do prêmio. Essas premiações ajudam os “invisíveis” a se tornarem “visíveis”?  
É impossível prever ou controlar a reação, o sentimento do outro, mas, se a fotografia causar um questionamento, ela já cumpriu um papel importante.

Ao contrário de muitos, neste momento, você nunca se colocou como protagonista. Prefere se apresentar como “mensageiro” de notícias.
Sou fascinado por contar histórias. Além disso, me tocou bastante um pedido que ouvi de Gabriel García Márquez quando tive a oportunidade de jantar ao lado dele: “No te olvide de iluminar a las personas ignoradas por la sociedad jamás”.

Por que devemos continuar acreditando no fotojornalismo?
Porque devemos acreditar em nós mesmos, em um mundo melhor. Ser fotógrafo é estar insatisfeito com o presente e preocupado com o futuro. Não levamos esse modo de vida em busca de acumular riqueza, a não ser a da experiência e do que não deveríamos repetir com nosso semelhante. Quando nos deparamos com uma fotografia, esse momento deve ser de reflexão, causar questionamentos, talvez de possíveis conclusões, não de afirmações.

E agora? O que vem por aí?
A vida segue da mesma forma, sob os mesmos princípios. Não podemos perder a generosidade nem a simplicidade jamais, mesmo diante de um cruel mundo movido sistematicamente por consumo e de forma assustadora por individualismo.

Cinco galerias brasileiras participam de versão online da Art Basel

Art Basel Online
Antonio Obá, Stranger Fruits (2020). Foto: Divulgação.

A Gentil Carioca, Fortes D’Aloia & Gabriel, Mendes Wood DM, Bergamin & Gomide e Galeria Luisa Strina são as galerias brasileiras que participam da edição online da Art Basel, que acontece do dia 19 ao dia 26 de junho. A feira internacional, que ocorreria na Suíça, teve que adaptar sua forma presencial para a web por conta da pandemia de Covid-19. O evento será realizado pelas salas de visualização criadas pela organização para possibilitar a visita virtual e venda das obras. 

Junto com as cinco casas citadas acima, participam ao todo 282 galerias que apresentarão um total de quatro mil obras. A integração das galerias brasileiras se dá pelo Projeto Latitude, uma parceria da ABACT (Associação Brasileira de Arte Contemporânea) e a Apex-Brasil (Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos).

 

 

Confira abaixo um pouco do que cada galeria brasileira preparou para o evento:

A Gentil Carioca

As formas triangulares, as trindades e tríades predominam no projeto Ode ao Triângulo apresentado pela artista Vivian Caccuri junto com A Gentil Carioca. O trabalho resulta em uma coexistência de assuntos contrastantes e traz também fatos históricos e geopolíticos.

Fortes D’Aloia & Gabriel

Com trabalhos produzidos durante a quarentena, em sua casa, Ernesto Neto está entre os artistas apresentados pela galeria. O artista traz obras que criam espaços que possibilitam interação física e experiências sensoriais, utilizando novamente o crochê. 

Mendes Wood DM

A exposição Estruturas Orgânicas traz uma seleção de trabalhos dos artistas Antonio Obá, Paulo Nazareth, Sonia Gomes, Patricia Leite e Marina Perez Simão, entre outros.

Bergamin & Gomide

A galeria participa na Art Basel Online com uma exposição inédita criada especialmente para a feira. O Projeto Um Estande Imaginário traz obras que transmitem organicidade – através de materiais como madeira, pele, lona e juta, muito utilizadas pelos indígenas brasileiros – e despertam a memória coletiva ao dialogarem com nossos ancestrais. Entre os artistas que participam da exposição estão Abraham Palatnik, Alexander Calder, Amadeo Luciano Lorenzato, Amélia Toledo, Artur Barrio, Celso Renato, José Leonilson, José Resende, Lygia Clark, Mira Schendel, entre outros.

Galeria Luisa Strina

O estande da galeria traz trabalhos de artistas como Lygia Pape, com a obra Relevo, da série Grupo Frente (1954/1956); Pedro Reyes, com uma edição em jadeíta da sua cadeira Metato; e Renata Lucas, com o trabalho Quebra. Ainda serão mostradas as obras de Anna Maria Maiolino; Jorge Macchi; Leonor Antunes, entre outros

 

No Martins denuncia a arquitetura de violência e o racismo em individual em Londres

Vigiar e Punir (2020), No Martins na Galeria Jack Bell. Foto: Divulgação. Na foto, a criança pinta uma figura do Mickey Mouse; o termo "rato" é utilizado para ser referir à polícia.

Em Social Signs, aberta esta semana em Londres, o trabalho de No Martins com a pintura é o foco, embora sua produção artística transite também pela performance, instalação e experimentação com objetos como lonas de caminhão e placas de metal. 

Algumas das questões chave do seu trabalho vem da observação dos cenários cotidianos da capital paulistana, onde ele nasceu. Destrinchando cuidadosamente essas cenas ordinárias, ele investiga temas como o racismo, a violência policial e o encarceramento em massa. Assim, traça uma arquitetura da violência em um mundo “habitado por uma mercadoria corporal”, em uma sociedade marcada por relações assimétricas de poder e dispositivos de poder e vigilância, como nota Diane Lima, curadora e pesquisadora responsável pelo texto crítico de apresentação de Social Signs.

Martins entrou na cena da arte urbana paulistana em 2003, por meio da pichação e do grafite. Entre os anos de 2007 e 2011, frequentou ateliês de gravura da Oficina Cultural Oswald de Andrade, em São Paulo, onde teve aulas com artistas como Kika Levy, Ulysses Bôscolo e Rosana Paulino, a quem ele se refere como uma mestra – ao destacar que foi com Paulino que aprendeu a olhar com calma para o trabalho. Segundo o artista, sua relação de aprendizado e consequente amizade com Paulino ofereceu uma entrada para o mundo das artes plásticas e visuais. “Eu era rua, somente rua, e isso era arte pra mim. Foi o contato com ela que me fez enxergar a possibilidade de ser um artista”. Paulino também foi a curadora da primeira individual de No Martins no Brasil.

Mesmo quem não está familiarizado com o conjunto de sua obra já pode ter visto a emblemática série #JaBasta!, um grito feito pelo artista para além das denúncias. A série foi elaborada com a sobreposição de diversos tipos de tecido, construindo uma espécie de estandarte de guerra. Ao Videobrasil, No lamenta: “111 tiros disparados pela polícia contra o carro de 5 jovens negros é estado de guerra, 80 tiros disparados pela polícia contra o carro de uma família também é estado de guerra”.

Foi partir dessa obra que Marcio Seligmann-Silva traçou a seguinte reflexão, em texto opinativo para a arte!brasileiros: “No Martins é parte de uma nova geração de artistas que compõem a contemporânea arte negra afrodescendente brasileira. Essa série #JáBasta! funciona como um catalizador para formular as demandas políticas antifascistas e contra a necropolítica que têm atuado sobre a população negra desde os tempos da escravidão. A impressionante força e originalidade da arte negra brasileira contemporânea responde à terrível ascensão de neo-fascismos que repetem hoje seus desígnios genocidas. Essa arte profundamente decolonial, produz uma ruptura da cumplicidade entre o ‘dispositivo estético’ e o ‘dispositivo colonial’. Ela diz um basta ao cubo branco (por demais branco) e a todos os classicismos.”

Campo Minado (2019), No Martins na Galeria Jack Bell. Foto: Divulgação.

A série #JáBasta! traz símbolos que evocam o regime de ver e ser visto, como a própria hashtag e as colagens de manchetes de jornal, que requerem uma interação explícita com o público. Algo similar ressurge em Campo Minado. A obra conta com dois autorretratos do artista, ambos sem seu rosto. Em um deles No é colocado contra a parede – na qual está escrito o número 13, a idade em que ele sofreu seu primeiro enquadro pela polícia -, e no outro ele é a figura de uma placa de trânsito indicando que ele não deveria transitar pelos espaços pintados na última parte do trabalho, a universidade, as galerias, as lojas – referenciadas por uma sacola da grife Chanel e uma câmera apontada para ele. Martins se mostra sem face nessa pintura como meio de escancarar a violência do racismo estrutural em provocar o impedimento social e a invisibilidade seletiva.

Se em Uma gravata extra ele protesta contra episódios de violência física e assassinato da população negra, em Campo minado ele lamenta uma forma velada de racismo que também surge nos trabalhos Estratagema e em um retrato de um policial negro descalço.

Estratagema faz parte do grupo de pinturas inéditas apresentadas na Galeria Jack Bell – que apresentam cuidado estético notável. Ela descreve uma cena onde uma pessoa negra joga xadrez contra ela mesma utilizando um tabuleiro de peças brancas. Segundo o artista: “Ela está criando estratégias para derrubar um sistema opressor, mas, ao mesmo tempo, também existem pessoas que tentam se encaixar em padrões brancos e acabam negando o que realmente são. É o que esse sistema quer dizer quando fala que você é pardo e não é negro. É um meio de tentar fazer você se encaixar no sistema dele, para fazer com que você vire uma peça que ele possa mover”.

Já o retrato do policial é imbuído de uma referência simbólica que, ao mesmo tempo, critica as mazelas ainda presentes da escravização dos negros e convida a um exercício de empatia com o retratado. Martins explica que a obra volta à ideia já abordada de estar em um campo minado. Uma das proposições dessa pintura é olhar o policial negro pelo seu lado humano. “Ele é uma pessoa comum quando está sem farda. É a ideia dele sempre estar em um campo minado, sempre estar em um campo de risco. Quando ele é o policial, ele está em uma zona de perigo no seu trabalho, recebendo esse mínimo que os policiais recebem, que não faz jus ao trabalho. Ao mesmo tempo, quando ele tira essa farda ele é um homem negro comum, e continua em uma zona de risco. As botas são tiradas para dizer isso: que estamos falando desse lado humano do policial”. 

O artista completa: “O sapato, no pós-libertação dos escravizados, se torna um símbolo de libertação. Podemos encontrar, por exemplo, imagens de ex-escravizados com sapato pendurado no pescoço, amarrados pelo cadarço, querendo mostrar sua liberdade, o escravizado o tempo todo anda com os pés descalços. Vemos esses pés descalços e agigantados que são pés transformados quando se anda a vida inteira descalço”.

Control (2020), No Martins para Social Signs na Galeria Jack Bell. Foto: Divulgação.

Uma gravata extra, por sua vez, remete ao episódio do assassinato do jovem Pedro Gonzaga, 19 anos, por um segurança do supermercado Extra que o asfixiou com um golpe de “gravata”. O caso se assemelha à morte de George Floyd, nos Estados Unidos, que gerou comoção mundial recentemente. As redes sociais entraram em protesto por Floyd com a hashtag Blackout Tuesday, por exemplo. Tal reação provocou reflexões sobre uma certa “comoção seletiva” da sociedade brasileira perante as vidas da população negra.

Martins explica que não acha que a sociedade brasileira se comova mais com a morte de George Floyd do que com a de João Pedro, Guilherme Silva, Pedro Henrique, Jenifer Gomes, Kauan Peixoto, Kauã Rozário, Kauê dos Santos, Ágatha Félix, Ketellen Gomes ou a de qualquer outra pessoa negra brasileira. “O problema é que no Brasil essas mortes se tornaram normais, é comum você abrir o jornal e ler mais uma notícia dessas. Esses nomes são de algumas pessoas cujos casos ‘viralizaram’, mas talvez enquanto eu respondo sua pergunta, outra pessoa seja morta por uma arma de fogo do Estado”.

Um dia da caça, outro do caçador (2020), No Martins para a exposição Social Signs na Galeria Jack Bell. Foto: Divulgação.

Na obra Necropolítica, o pensador camaronês Achille Mbembe fala sobre as formas de soberania cujo projeto central não é a luta pela autonomia, mas a “instrumentalização generalizada da existência humana e a destruição material de corpos humanos e populações”. No Martins afirma que esse conceito de “direito de matar” foi implantado forçadamente na consciência da população que sofre diretamente com isso. Ele exemplifica a questão utilizando a frase “bandido bom é bandido morto”, que se tornou “uma ferramenta muito eficiente para o extermínio da população pobre e preta: nas reportagens de TV e em programas sensacionalistas ouvimos repetidamente a desculpa de que pessoas são mortas por terem passagem na polícia, ou por terem envolvimento com o tráfico de drogas”. 

Para Martins, as reflexões que o seu trabalho permite deveriam ser bem vindas no mundo da arte e na academia, mas não ficar retidas a espaços ainda tão restritos. “As grandes galerias raramente vão querer representar artistas vindos das margens, que não passaram por instituições também elitistas como FAAP, Belas Artes, USP ou qualquer outra fora do Brasil”, relata.

Apesar disso, para No, quanto mais pensadores abordarem esse problema, melhor. Ele faz uma ressalva, entretanto, que “essas discussões devem estar mais perto das pessoas que são atingidas e convivem com toda essa violência. Isso deveria estar sendo abordado nas escolas públicas, por exemplo”.

Em complemento, “na maioria das vezes, os primeiros contatos com a violência policial na periferia acontecem no período da adolescência, período escolar. Se fizermos uma visita à Fundação Casa com certeza não vamos encontrar nenhum menor interno nascido e criado no Jardim Europa, por exemplo, ou seja, o abuso de poder é destinado a uma parte específica da população, e esta deve participar desses debates”.

Caminhando pelas camadas de significado das pinturas de No Martins é possível perceber que seu trabalho funciona em múltiplos níveis de percepção e cabe também ao observador ter disposição para adentrar a narrativa visual do artista, assim como é necessário concentrar-se para ouvir.

MAM Rio e Capacete lançam programa de bolsas para 2020

MAM Rio Capacete
O prédio do MAM Rio. Foto Fabio Souza.

No dia 19 de junho, o Capacete completa 22 anos e lança, em parceria com o MAM Rio, uma convocatória para residentes e pesquisadores do Rio de Janeiro através de dois programas. O programa de residências contemplará 12 artistas, a partir de agosto deste ano, com duração de cinco meses. Já o programa de bolsas de pesquisa contará com seis participantes ao longo de setembro. É possível se inscrever em apenas uma das iniciativas por vez. 

Enquanto o isolamento social for necessário, os programas serão conduzidos com formato online. As residências contarão com bolsas mensais de R$ 750 no modo virtual e R$ 1.000 no modo presencial, caso ocorra. Os selecionados para as bolsas de pesquisa terão auxílio mensal de R$ 1.500 por pessoa. Ambos estão integrados ao núcleo de programação artística do museu. Para se inscrever é necessário ter trajetórias profissionais de no mínimo três anos para as residências e de cinco anos para as bolsas.

Partindo de seis eixos-temáticos, a convocatória para bolsas de pesquisa pretende atrair profissionais que estejam ou queiram engajar-se com: a arquitetura do MAM; arte e pedagogia; saberes e causas indígenas; arte africana diaspórica; museu e biodiversidade; e, ainda, espaços de arte experimentais e espaços de arte autônomos.

Os seis selecionados para o programa de bolsas serão informados pela equipe MAM-Capacete em 17 de agosto. A divulgação do resultado do processo seletivo para a residência será anunciado através das redes das duas instituições no dia 3 de agosto.

Confira o cronograma da convocatória: 

19 de junho: Anúncio da convocatória

10 de julho: Encerramento das inscrições

3 de agosto: Divulgação dos selecionados para o Programa de Residência 

3 a 7 de agosto: Entrevistas com finalistas da Bolsa de pesquisa

10 de agosto: Início do Programa de Residências artísticas

17 de agosto: Divulgação dos selecionados para ao Programa de Bolsas de pesquisa

1 de setembro: Início do Programa de Bolsas de pesquisa

Sobre a parceria

O Capacete é uma residência artística internacional, com sede no Rio de Janeiro, que busca promover esforços que articulam o mundo teórico com apresentações artísticas em diversos formatos, refletindo um caráter interdisciplinar. Sua parceria com o MAM Rio começou ainda em março deste ano, com a transferência de parte de suas atividades para os espaços virtuais e presenciais do MAM, integrando-se a construção e revitalização do Bloco Escola. Em anos recentes, o espaço do Bloco Escola vinha sendo ocupado pelo acervo da Cinemateca e foi transferido para outro local. 

O programa vai estabelecer parcerias internacionais com outros programas de residência e pesquisa de longa duração com o intuito de desenvolver colaborações e intercâmbios internacionais e nacionais.

Para o diretor-executivo do museu, Fabio Szwarcwald, a parceria traz a “oportunidade de abertura do MAM para uma nova interação com projetos culturais de relevância nacional e internacional”. Ele completa que ela ainda “sinaliza que o museu se permite ser uma instituição mais orgânica e conectada com a sociedade”. A diretora-artística do Capacete, Camilla Rocha Campos, diz ainda que “o fazer arte e o estar em contato com arte é da ordem da conexão do humano com sua posição e seu sentido de estar no mundo, e disso precisamos agora”.

Inscrição

Para saber os requisitos para a inscrição e realizá-la acesse este link.

 

Associação Paulista de Cineastas divulga carta em apoio à Cinemateca

Fachada da Cinemateca Brasileira, em São Paulo. Foto: Divulgação

Leia abaixo a íntegra da carta divulgada pela APACI e veja aqui a página da campanha de arrecadação para apoio financeiro aos trabalhadores da Cinemateca Brasileira.

Cinemateca Brasileira: Patrimônio da Sociedade 

Não é legal ver imagens da Copacabana nos anos 50? Admirar os gols de
Pelé ou um drible do Garrincha? Rir com Oscarito e Grande Otelo em uma
chanchada da Atlântida? Assistir cenas de novelas da TV Tupi com Hebe
Camargo ainda em preto e branco? Conferir nos cinejornais como era o
Brasil nos anos 40? Onde você acha que estes registros e outros
milhares de filmes e vídeos estão guardados?

A Cinemateca Brasileira é o maior acervo audiovisual da América do
Sul. A instituição zela por mais de 250 mil rolos de filmes realizados
desde as primeiras filmagens em nosso país, há mais de 100 anos. Lá
estão também os acervos da extinta TV Tupi e do Canal 100, as
produções da Vera Cruz e da Atlântida e o acervo de Glauber Rocha,
além de cerca de 1 milhão de documentos entre roteiros, fotos, livros
e cartazes.

No mundo inteiro, arquivos de imagem são tratados como um tesouro
precioso. Não bastasse o valor cultural e histórico do acervo da
Cinemateca Brasileira, é bom lembrar que se trata igualmente de um
patrimônio de todos os brasileiros: filmes e cinejornais são bens
valiosos, cuja preservação é levada a sério.

O patrimônio da Cinemateca Brasileira vai além do que seu precioso
acervo histórico: inclui uma sede tombada e equipada com sala de
cinema, além de equipamentos para manutenção, restauro e
preservação dos filmes. A Cinemateca também é um corpo de
funcionários dedicados, que ali fizeram suas carreiras como técnicos
de excelência internacional.

Chega a ser inacreditável que um patrimônio desta monta esteja prestes
a virar cinza devido à incompetência administrativa dos entes
públicos que deveriam zelar por ele. De acordo com a Fundação Roquete
Pinto,  OS gestora da Cinemateca, o Ministério da Educação parou de
efetuar os repasses devidos por contrato, acumulando uma dívida de 13
milhões. Os funcionários estão com os salários atrasados desde o
início da pandemia, uma situação trágica em si. As contas de consumo
não estão sendo pagas. Se houver corte de energia elétrica, podemos
dizer adeus à história do audiovisual brasileiro: os filmes mais
antigos são feitos em nitrato e entram em combustão quando não
mantidos sob refrigeração. Um prejuízo irrecuperável, já que uma
parcela significativa do acervo não tem outra cópia além da
depositada na Cinemateca.

Face à gravidade da situação, a Associação Paulista de Cineastas
– APACI lançou um manifesto “SOS Cinemateca” endossado por mais
de 70 associações nacionais e internacionais e, em colaboração com o
Movimento “Cinemateca Acesa”, realizaram o vídeo manifesto do qual
participam Antonio Pitanga, Fernando Meirelles, Alessandra Negrini,
Kleber Mendonça Filho, Petra Costa, Marcelo Gomes, Cao Guimarães,
Bárbara Paz, Alessandra Negrini, Mariana Ximenes, João Miguel,
Fabrício Boliveira, Marcelo Machado, Tata Amaral, Fernando Alves Pinto,
Marina Person, Simone Spoladore, Fabiula Nascimento, Débora Brutuce,
Enrique Díaz, Gilda Nomacce, Sabrina Fidalgo, Guta Ruiz, Fernanda
Viacava e Lilian Santiago.

Esta campanha visa sensibilizar o Poder Público e a Sociedade Civil
para a emergência da situação em que a Cinemateca se encontra e em
conjunto criar mecanismos para remediar esta crise imediatamente.

Em meio ao descaso e desrespeito da ACERP com seus trabalhadores, e pela
falta de repasses dos recursos pelo Governo Federal à ACERP, os
trabalhadores da Cinemateca  realizam também uma campanha pública para
amenizar os efeitos dessa situação que não tem perspectiva de se
resolver, até o momento.

Caso queira colaborar com um apoio financeiro aos trabalhadores da
Cinemateca Brasileira com atrasos de salários e benefícios e em
situação de emergência financeira, acesse o site. Para entrar em contato envie e-mail para trabalhadoresdacb@gmail.com

Incêndio atinge parte importante do Museu de História Natural da UFMG

Incêndio UFMG
Prédio que foi atingido pelo incêndio no Museu da UFMG. Foto: Corpo de Bombeiros.

Um incêndio no Museu de História Natural e Jardim Botânico da UFMG atingiu uma das partes mais importantes do acervo da instituição, segundo a diretora pro tempore Mariana de Oliveira Lacerda. De acordo com o Corpo de Bombeiros, as chamas começaram na madrugada e as causas ainda não foram identificadas. Lacerda, entretanto, informou à imprensa que o prédio atingido tem monitoramento, detecção de fumaça e teve a fiação trocada em 2013.

A seção afetada abrigava três salas da reserva técnica, que recebe as obras do museu não expostas no momento e destina-se principalmente às finalidades acadêmicas e projetos de ensino desenvolvidos pela graduação e pós graduação da UFMG. Entre as coleções guardadas no prédio atingido estão as de paleontologia, arqueologia, biologia, alguns acervos de zoologia e de entomologia (estudo dos insetos). 

Ao jornal O Estado de Minas, a diretora afirmou que “agora é hora de arregaçar as mangas e fazer o que precisa ser feito, entender melhor a situação. O museu tem todas as medidas necessárias para enfrentar esse problema. Todos os pesquisadores e cientistas já estão envolvidos e comprometidos com a próxima etapa que vai ser justamente recuperar e entender qual foi o dano causado”.

Incêndio UFMG
Museu foi atingido pelas chamas ainda na madrugada. Foto: Corpo de Bombeiros.

Com uma área de 600 metros quadrados no Bairro Horto, na região leste de Belo Horizonte, o museu foi instalado em 1969, depois que a área pertencente a uma fazenda foi desapropriada no início do século e adquirida posteriormente pelo governo do estado. Entre os 265 mil ítens que compõem o acervo da instituição está o Presépio do Pipiripau, obra do artesão Raimundo Machado que é tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). O presépio é composto por 586 peças móveis, distribuídas em 45 cenas que contam, através do cotidiano de uma cidade, a vida de Jesus Cristo. Como estava em exposição, a obra não se encontrava no acervo e não foi atingida.

Pouco depois do ocorrido, o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) entrou em contato com a Coordenadora da Rede de Museus e Espaços de Ciências e Cultura da UFMG, Letícia Julião, e enviou o protocolo de mitigação de danos, desenvolvido à época do incêndio do Museu Nacional do Rio (UFRJ) para as providências imediatas.

Para o emprego de uma força-tarefa para a atuação no salvamento dos bens atingidos, o Ibram também disponibilizou informações do seu banco de dados de cadastro de voluntários. Em nota pública, o instituto cobrou também uma identificação rápida das causas do incêndio para que os problemas possam ser enfrentados de forma eficiente, dando eficácia à proteção do patrimônio cultural.

Saiba mais sobre o cadastramento de voluntários aqui.

 

MASP Escola lança cursos inéditos para o mês de junho

MASP
"Man Walking Down", de Trisha Brown. Foto: Divulgação.

Neste mês de junho, o MASP dá continuidade à sua proposta educativa virtual abordando com temas a história da arte no Brasil; as mulheres artistas nos séculos XVI e XVII; uma introdução à arquitetura moderna brasileira; o corpo, território e liberdade a partir de artistas como Hélio Oiticica e Trisha Brown; e a violência sexual e literatura.

Os cursos têm custo de R$ 240 (com desconto de 15% para quem faz parte do programa Amigo MASP) e contam com cinco aulas cada. A realização das aulas será feita por uma plataforma virtual e o MASP disponibilizará um certificado para os alunos com pelo menos 75% de presença. Os cursos, inéditos, são lançados todo mês, eles se somam aos semestrais já existentes, que migraram para o ambiente virtual como parte da adaptação do museu à pandemia e sua tentativa de continuar difundindo seu acervo mesmo com as barreiras impostas pelo isolamento.

Uma história da arte no Brasil – de Tarsila a Bárbara é ministrado pela crítica de arte Luiza Interlenghi e apresentará uma introdução à história da arte brasileira com base em obras da coleção do MASP. Modernismo, concretismo, neoconcretismo, os impactos da abstração na arte brasileira são alguns dos temas que aparecem no curso cujo objetivo é esclarecer de que modo a arte brasileira contribui para a formação da nossa visão de cultura. 

Em Hélio Oiticica a Trisha Brown: um percurso sobre corpo, território e liberdade, a curadora associada do Instituto Tomie Ohtake, Priscyla Gomes pretende abordar a relação entre corpo e espaço partindo de ações, práticas e atores que marcam a cena artística deste e do século passado. Além dos artistas já citados no título, as aulas pretendem permear os trabalhos de Marina Abramovic, Robert Smithson, Richard Long, Flávio de Carvalho, Francis Alÿs, Nan Goldin, Bárbara Wagner e Benjamin de Burca.

Mulheres artistas nos séculos XVI e XVII propõe o estudo de seis artistas italianas: Properzia de Rossi, Plautilla Nelli, Sofonisba Anguissola, Lavinia Fontana, Artemisia Gentileschi e Giovanna Garzoni. Violência sexual e literatura, utilizando de passagens literárias e teóricas emblemáticas, buscará trabalhar a sensibilidade ante narrativas de sexo e estupro, e mais à frente, pensar como seriam as representações de erotismo capazes de confrontar a misoginia e o racismo.

Por fim, o arquiteto Denis Joelsons faz uma breve Introdução à arquitetura moderna brasileira abordando as experiências pioneiras de Lúcio Costa, a consolidação da figura de Oscar Niemeyer, a pluralidade trazida pelos imigrantes como Lina Bo Bardi e as tensões no cenário nacional por meio de figuras chave da chamada “escola paulista”: Vilanova Artigas e Paulo Mendes da Rocha.

Para saber mais acesse este link.

 

Decolonial, des-outrização: imaginando uma política pós-nacional e instituidora de novas subjetividades (2ª parte)

Obra de No Martins que foi exposta na 21a Bienal Sesc_Videobrasil. Foto: Divulgação.

Leia aqui a primeira parte do texto de Márcio Seligmann-Silva. E a seguir a segunda parte: 

Histórias atravessadas: imagens dialéticas

Fazer das artes uma plataforma de construção de novas subjetividades e de lançamento de formas alternativas de convívio em comum implica uma integração de histórias recentes que ainda nos atravessam e nos dominam. No caso brasileiro, a história de nossa violência é paradigmática no sentido de ter sido e continuar sendo sistematicamente apagada. Grada Kilomba, em seu livro seminal Memórias da Plantação, afirma com relação a esse imperativo da arte e da escrita: “A ideia de que se tem de escrever, quase como uma obrigação moral, incorpora a crença de que a história pode ‘ser interrompida, apropriada e transformada através da prática artística e literária’”, citando bell hooks.[1] Apenas através de uma apropriação criativa de nossas histórias e narrativas da violência poderemos imaginar e moldar novos futuros. Como na imagem de Sankofa, um pássaro, cujo nome na língua Twi de Gana, significa “volte e pegue”, e que é replicado no símbolo dos Ashanti em forma de coração. Esse pássaro, associado ao provérbio “Não é errado voltar para aquilo que esquecemos”, porta um ovo precioso e é representado sempre com a cabeça voltada para trás, buscando forças no passado, nas histórias escritas com sangue e que são submetidas ao esquecimento, ao recalque, ao memoricídio.

A tarefa da reconstrução decolonial e artística da história é fundamental e, aqui, curadorias e obras como a que pudemos ver na 21a Bienal Sesc_Videobrasil são absolutamente fundamentais. A arte aqui se revela como essa segunda técnica de que Benjamin nos fala (capaz de produzir outra physis) e como uma fabulosa técnica de gerar narrativas com potencial de servir de suporte para ações transformadoras. Antes de mais nada isso se dá pela produção de novas subjetividades, não mais esvaziadas e preenchidas artificialmente por histórias eurocêntricas e incapazes de produzir autênticos sujeitos políticos. Essas obras e curadorias permitem um novo posicionamento subjetivo diante de questões chave, essenciais. Ao adentrar o espaço da 21ª Bienal e mergulhar na (política da) imanência de suas obras, nossos corpos e nossa autoimagem são afetados. A narrativa que denuncia as violências coloniais, falocêntricas, de gênero, racistas, de classe e contra a natureza serve de contraponto aos discursos oficiais que, em sua estrutura teleológica-progressista, procuram sempre justificar as ações do mercado e dos poderes centrais, como se tratassem de uma segunda e inexorável natureza. Essas contranarrativas querem-se abertas e voltadas para o empoderamento de subjetividades antes cerceadas, censuradas e tentativamente eliminadas. Essas novas subjetividades pós-coloniais e pós-nacionais exigem também novas responsabilidades.

Essas responsabilidades, podemos pensar com Benjamin, se voltam aos mortos (que foram sacrificados pela história do Esclarecimento e da primeira técnica), suas histórias e sonhos, e também para os viventes de agora e do futuro. As obras de arte promovem o “tempo do agora” de que Benjamin fala: o tempo de Sankofa. São “imagens dialéticas” definidas por ele como “a memória involuntária da humanidade redimida”.[2] Ou seja, o agora que está na base do conhecimento da história estrutura, para Benjamin, o reconhecimento de uma imagem do passado que, na verdade, é uma “imagem da memória. Ela aparenta-se às imagens do próprio passado que surgem diante das pessoas no momento de perigo”.[3] Nosso momento, não tenhamos dúvidas quanto a isso, é esse momento do perigo. Em vez da busca da representação (mimética) do passado, “tal como ele foi”, como as posturas tradicionais historicistas e positivistas – em uma palavra, representacionistas – da história postulavam-no, Benjamin quer articular o passado historicamente apropriando-se “de uma reminiscência”. O historiador, e isso vale para o artista e qualquer um que se volta para recolecionar essas imagens com passados que nos atravessam, deve ter presença de espírito para apanhar essas imagens nos momentos que elas se oferecem: assim, ele pode salvá-las, paralisando-as,[4] como um fotógrafo do tempo. Essa história construída com base na memória involuntária despreza e liquida o “momento épico da exposição da história”, ou seja, sua representação segundo uma narração ordenada monologicamente. “A memória involuntária nunca oferece […] um percurso, mas sim uma imagem. (Daí a ‘desordem’ como o espaço-imagético da memória involuntária)”.[5] Essa imagem é lida e, portanto, é hieroglífica: misto de palavra e imagem. Nas obras e na curadoria da 21a Bienal, a “desordem” e a não epicidade imperam. Cada leitor também torna-se um curador de segunda ordem. Citemos as palavras de Benjamin:

A imagem é aquilo em que o ocorrido encontra o agora num lampejo, formando uma constelação. Em outras palavras: a imagem é a dialética na imobilidade. Pois, enquanto a relação do presente com o passado é puramente temporal, a do ocorrido com o agora é dialética – não de natureza temporal, mas imagética. […] A imagem lida, quer dizer, a imagem no agora da cognoscibilidade, carrega no mais alto grau a marca do momento crítico, perigoso, subjacente a toda leitura.[6]

O perigo é também o de cair no esquecimento, assim como o de se manter não lida e encoberta pela narrativa tradicional – épica, linear –, que apresenta, na visão benjaminiana, apenas o triunfo dos vencedores. Na imagem, em vez do narrado, encontramos uma densificação do histórico que o arranca do fluxo da dominação. O artista crítico cultural materialista agarra o ocorrido e mergulha-o no agora, como um fotógrafo que sequestra um aqui e agora e o arrasta para outros cronotopoi. Suas constelações tensas explodem as falsas totalidades da representação histórica tradicional que nos ordena.

Construir a solidariedade: a partilha entre o terror e a compaixão

Com Hans Jonas, vale lembrar, nossa responsabilidade se volta também para a Natureza como um todo, como lemos nas palavras sábias de Davi Kopenawa em seu livro-depoimento A queda do céu.[7] Em vez de levantar como estandarte de luta a promessa de um paraíso futuro, esses dispositivos artísticos atuam sobretudo pela construção de narrativas testemunhais que lançam uma nova luz sobre o passado e sobre nosso sistema de dominação presente. Nessas narrativas não se trata tanto de instituir novos heróis, mas de se desmontar a lógica da historiografia dos heróis e da hagiografia dos santos. Agora, parte-se de uma nova ética das relações micropolíticas, calcada em uma autoimagem de corpos fragilizados e abertos a estratégias de solidariedade.

Esse ponto é central, uma vez que a história da arte, assim como a história da política, pode ser retraçada como a história da construção de uma partilha na sociedade, levada a cabo sobretudo pelo dispositivo trágico, tal como ele já havia sido percebido e descrito por Aristóteles. Se para esse filósofo as paixões centrais despertadas pela tragédia são éleos e phóbos, compaixão e terror, o funcionamento do dispositivo trágico depende de conseguirmos calibrar os personagens e as situações passíveis de despertar essas paixões. Na definição mínima mas essencial da Poética aristotélica, lemos que a compaixão “tem lugar a respeito do que é infeliz sem o merecer, e o terror, a respeito do nosso semelhante desditoso”.[8] Este “nosso semelhante” constitui peça fundamental da argumentação: o dispositivo trágico revela-se, com esta noção, como um meio de construção e de formação do próprio. No centro do processo trágico espreita um mecanismo de criação de tipos que tanto agrega os “iguais” como permite a exclusão do “diferente”. Esse dispositivo secreta o “próprio” e o “outro”. Portanto, se o conceito de “purificação” e o de “pureza” rondam, como um espectro, este dispositivo, é também porque ele é este meio de traçar identidades grupais.

Não por acaso, as ações catastróficas por excelência que devem ser imitadas pelo poeta trágico são descritas por Aristóteles como as que envolvem a luta entre amigos e familiares. Daí notarmos nas tragédias a tendência para a apresentação da história de certas famílias, como a dos labdácidas. Isto não apenas torna as ações mais facilmente compreensíveis e terríveis, como mostra Aristóteles, mas também, ao propiciar terror e compaixão, reforça-se o culto destas famílias míticas e de uma origem fundadora. O dispositivo trágico estabelece fronteiras entre os que merecem compaixão derivada do terror e aqueles que produzem apenas terror sem compaixão. Toda uma política da amizade e da inimizade[9] pode ser traçada a partir da aplicação desse dispositivo que, vale lembrar, atua em praticamente toda obra de arte. Portanto, o desafio de criar obras artísticas voltadas para romper com o círculo vicioso no qual nos lança o dispositivo trágico exige uma reinstauração das fronteiras do campo artístico, de seus agentes e personagens. Como promover solidariedade sem reproduzir terror e ódio? Inspirados em Brecht e em Harun Farocki, podemos pensar em uma empatia não trágica, em uma solidariedade que agrega, mas mantém o “efeito de estranhamento”.

A própria precariedade, que é a marca da arte contemporânea – com o uso de materiais considerados não nobres, muitas vezes abjetos, e com sua temporalidade que amiúde tende ao efêmero da performance – é também marca de outra antropologia na qual essa nova arte da memória e do desesquecimento se calca.[10] Ou seja, esses novos dispositivos artísticos, que se insurgem contra a imagem do museu como arquivo que constrói a ontologia do próprio – ou, ainda, contra a ideia do museu como prisão (já criticada por Flusser) ou necrotério de imagens estanques –, que demandam diálogo com a sociedade, que instauram novas subjetividades e narrativas, atualizando passados de modo a instituir contranarrativas de resistência, essas obras clamam por mudanças políticas profundas. Não é de se admirar, portanto, se a censura e a violência contra artistas voltem com intensidade neste momento.

João Pedro e George Floyd: a repetição traumática

Concluo essas palavras sob o impacto dos recentes assassinatos de João Pedro Mattos Pinto, de 14 anos, ocorrido em São Gonzalo no dia 18/05/20, e o de George Floyd, de 46 anos, ocorrido em Minnesota no dia 25/05. Os dois foram mortos covardemente por integrantes de forças policiais e em situação de total vulnerabilidade. Estes dois eventos repetem a longa história de genocídios que é a Modernidade, desde a chegada dos europeus às Américas até os dias de hoje.

As obras de No Martins que fizeram parte da 21ª Bienal, da série #JáBasta!, podem ser lidas como uma contundente resposta a essa história da violência.

No Martins é parte de uma nova geração de artistas que compõe a contemporânea arte negra afrodescendente brasileira. Essa série #JáBasta! funciona como um catalizador para formular as demandas políticas antifascistas e contra a necropolítica que têm atuado sobre a população negra desde os tempos da escravidão. A impressionante força e originalidade da arte negra brasileira contemporânea responde à terrível ascensão de neo-fascismos que repetem hoje seus desígnios genocidas. Essa arte profundamente decolonial, produz uma ruptura da cumplicidade entre o “dispositivo estético” e o “dispositivo colonial”. Ela diz um basta ao cubo branco (por demais branco) e a todos os classicismos.

Não se pode mais falar de modo inocente de “democracia racial” ou comemorar nossa cultura “sincrética” e a “miscigenação” sem perceber o trauma que está na origem dessa hibridização. Com as mudanças profundas ocorridas no campo das artes nas últimas décadas do século XX ocorreu uma ascensão do sujeito, do agente da arte, que antes estava em parte submetido ainda ao campo da representação: ele era representado. Uma série de artistas afrodescendentes, quase todos formados em artes visuais, e coletivos artísticos passaram a interagir na cena cultural brasileira desse ponto de vista da virada decolonial, que No Martins nos apresenta. Esses artistas vão imaginar a negritude nos espaços da diáspora. Imaginar no sentido de criar imagens, mas também de criar um campo de ação lúdico e político.

O #JáBasta! deve ser ecoado por nós e traduzido em novas modalidades de vida em comum, nas quais a política do ódio e a necropolítica se tornem apenas parte de nossos livros de história e onde esse tipo de crime não possa mais acontecer. O fato do assassinato de João Pedro ter repercutido no Brasil de modo muito menos intenso do que ocorreu nos E.U.A. com o assassinato de George Floyd, mostra apenas o quanto ainda temos que trilhar nesse caminho de construção de uma sociedade autenticamente pós-colonial. A Empresa Colonial, lamentavelmente, ainda está forte e robusta por aqui.

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[1] Grada Kilomba. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. p. 27.

[2] Walter Benjamin, Gesammelte Schriften. Vol. V: Das Passagen-Werk. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1982, p. 1233.

[3] Walter Benjamin, Gesammelte Schriften. Vol. I. Frankfurt a.M.: Suhkamp, 1974, p. 1243.

[4] Idem, p. 1244.

[5] Idem, p. 1243.

[6] Walter Benjamin, 1982, op. cit., p, 578. Tradução citada: W. Benjamin Passagens. W. Bolle e O. Matos. (Org.). (C. P. B. Mourão e I. Aron, Trad.). São Paulo: UFMG e Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006, p. 505.

[7] Davi Kopenawa; Bruce Albert. A queda do céu. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

[8] Aristóteles, Poética, trad. Eudoro de Souza, São Paulo: Ars Poética, 1993, p. 67.

[9] Carl Schmitt pensou a política como tendo o par amigo-inimigo como sua pedra de toque em Der Begriff des Politischen [O conceito do politico] (1927/1932). Ele também teorizou a tragédia, como em seu livro Hamlet oder Hecuba. Der Einbruch der Zeit in das Spiel [Hamlet ou Hécuba. A irrupção do tempo no drama] (1956).

[10] Remeto aqui ao meu artigo “Antimonumentos: trabalho de memória e de resistência”, in Psicol. USP vol.27 no.1 São Paulo jan./abr. 2016, p. 49-60.