Os brancos que insistem em nos chamar de atrasados e com pouca riqueza avançam sobre nossos territórios porque já saquearam tudo o que tinham. Enquanto isso os “vândalos” arrancam as estátuas dos genocidas em busca de “justiça”, pois nenhum feito heroico aconteceu por parte daqueles que desnudaram o Brasil. Toda essa loucura que vemos dia e noite em nosso país, está refletindo a grande fake news que os livros de história, monumentos, nomes de ruas contam, silenciando as tragédias que cometeram para perpetuarem no poder. Para meu povo, o homem branco foi chamado de Peka Sahâ, homem de fogo, capaz de destruir tudo o que toca. É aquele que rouba e que mata com sua ganância insaciável.
Os povos indígenas nunca fizeram monumentos, porque esta forma de ver o mundo através de homens heróis é uma fantasia criada pelo homem branco para vender seus produtos de guerra. Nós preferimos praticar nossas cerimônias e falar com os espíritos do que entrar nesta selvageria suicida. Nossas riquezas estão vivas e só têm “valor” por estarem vivas. São nossas casas terrenas e espirituais, muitas delas conhecidas por sítios sagrados. São as montanhas e cachoeiras sagradas. Não costumamos deixar rastros, lixo ou violência por onde passamos, assim existimos e resistimos para continuarmos sendo povos diferentes, cujos valores se expressam na simplicidade de nossos rituais coletivos e pinturas corporais.
Para retirar o véu da ilusão heroica, é preciso incluir a voz de todos os silenciados. Vamos sacar as armas de Borba Gato e de Martin Bugreiro lembrando: quantos índios foram caçados, assassinados e esquartejados? Quantas cabeças e orelhas foram cortadas, para premiar estes heróis brancos? E isso continua acontecendo. Ontem era o colonizador que nos matava, hoje são os mineradores, fazendeiros e plantadores de soja. Vamos etiquetar os nomes das empresas e grandes corporações ou dos deputados e bolsonaristas que querem matar índios. Vamos pintar os monumentos com cores, adornos e seres mitológicos, como a Cobra Grande, para que ela possa engolir a memória das violências transformando na cura que a humanidade tanto precisa. É urgente que as violências sistêmicas da colonização sejam expostas.
São os mesmos poderosos que perpetuam no poder. É este pensamento colonizador doentio que segue financiando as atuais guerras: causando fome, desmatamento, as doenças e pragas que chegaram até nós pelo desequilíbrio da cultura colonizadora. A história não deve ser apagada, melhor que ela seja ressignificada para que esta memória nos sirva de exemplo para gerarmos uma nova consciência.
O Monumento às Bandeiras, de Victor Brecheret, com tinta jogada por manifestantes em 2016. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil
“Tem gente chorando por estátua, mas não é capaz de chorar quando morre um negro”, disso o filósofo e advogado Silvio Almeida, em maio passado, em um programa de entrevistas de televisão. Sua frase resume um debate que se instaurou desde que monumentos foram destruídos na Inglaterra e na Bélgica, na esteira dos movimentos antirracistas desencadeados pelo assassinato brutal de George Floyd por um policial, nos EUA.
Em síntese, o que se debate é se monumentos públicos que exaltam líderes genocidas merecem ser mantidos. Nas redes sociais, uma “legião de imbecis” como já apontava Umberto Eco, em 2015, quando recebeu o título de doutor honoris causa na Universidade de Turim, saíram em defesa do patrimônio, deixando de lado uma história de violência e segregação, chamando de “vândalos” aqueles que, em 7 de junho, em Bristol, jogaram no rio Avon a estátua de Edward Colston. Ele foi um traficante de pessoas escravizadas, responsável pelo tráfico de nada menos que 80 mil africanos, sendo que 20 mil morreram no mar.
Já em Antuérpia, no dia 9 de junho, a estátua de Leopoldo II, incendiada anteriormente, foi retirada da praça pública para ser inserida em um museu. O monarca, que reinou entre 1865 e 1909, foi o responsável pela morte de 10 milhões de africanos, a maioria da República do Congo, que era uma possessão pessoal de Leopoldo II (1835 – 1909). Finalmente, semanas depois a família real belga pela primeira vez se manifestou “arrependida” pela violência na África.
Nessa mesma sequência, o Museu de História Natural de Nova York anunciou que vai retirar da sua entrada principal a estátua do ex-presidente dos Estados Unidos Theodore Roosevelt, em cima de um cavalo, sendo acompanhando por um indígena e um negro. O prefeito de Nova York, Bill de Blasio, concordou com a medida, dizendo que o monumento “retrata pessoas negras e indígenas como subjugadas e racialmente inferiores”.
Pelo mundo todo, afinal, estão sendo revistos esses símbolos racistas e, em São Paulo, coube à deputada Erica Malunguinho (PSOL) encampar o debate. Ela protocolou um projeto de lei para impedir homenagens a pessoas que tenham comercializado escravos.
Trabalho do inglês Banksy, divulgado no Instagram do artista
A proposta de Malunguinho inclui a remoção de monumentos públicos, segundoo artigo 5° do 2° parágrafo do projeto: “Os monumentos públicos, estátuas e bustos que já prestam homenagem a escravocratas ou a eventos históricos ligados a prática escravagista devem ser retirados de vias públicas e armazenados nos Museus Estaduais, para fins de preservação do patrimônio histórico do Estado.”
Trata-se aí de um debate necessário, já que São Paulo tem entre suas mais famosas imagens o Monumento às Bandeiras, no Ibirapuera, de Victor Brecheret. Inaugurado em 1953, uma maquete da obra chegou a ser exposta na Semana de Arte Moderna de 1922, o que revela o caráter elitista do movimento. Afinal, as bandeiras, como explicam Lilia Schwarcz e Heloisa Starling, em Brasil: uma biografia, “dizimaram populações locais”. Essas bandeiras “assumiram a forma militarizada de organização das expedições de caça e escravização dos índios ou de busca de metais preciosos”. Em suma, eles foram os milicianos da colonização brasileira.
Já há sete anos, em 2013, o monumento de Brecheret foi alvo de um protesto, tendo sido manchado com tinta vermelha. “Ela deixou de ser pedra e sangrou. Deixou de ser um monumento em homenagem aos genocidas que dizimaram nosso povo e transformou-se em um monumento à nossa resistência”, escreveu na época Marcos Tupã, coordenador da Comissão Guarani Yvyrupá. O fato ocorreu quando se discutia a PEC 215 (Proposta de Emenda à Constituição) que transferia a competência da União na demarcação de terras indígenas para o Congresso Nacional e possibilitava a remarcação das terras indígenas.
As manifestações antirracistas vêm colocando em xeque o que se considera como “história universal”. Em geral, essa história é um relato de homens brancos, que ignoram todos os conflitos e resistências, impondo uma visão única. Está na hora, portanto, de descolonizar nossa história e nossos símbolos, ressignificando esses monumentos que exaltam lideranças genocidas.
A proposta de Malunguinho é a mesma que vem sendo posta em prática em vários países, como é o caso da Bélgica. Há outras ideias mais criativas. Em sua conta no Instagram, o artista Banksy faz uma ótima proposta para Bristol: recolocar a estátua de Edward Colston no pedestal, acrescentando, contudo, outras estátuas representando pessoas tentando derrubá-la, tornando permanente, assim, o gesto de reescritura da história.
Não se deve apagar a história, ou mesmo fazer de conta que ela não existiu, como se fez com o período da ditadura militar no Brasil. A transição para a democracia sem o enfrentamento com o passado violento é um dos motivos para o pesadelo atual. É preciso, portanto, rever esses monumentos e recontextualizá-los de forma que não se esqueça o passado violento que se abateu sobre os povos indígenas, para que ele não mais se repita.
Para ampliar esse debate, arte!brasileiros convidou Naiara Tukano, do povo indígena Yepá Masã, de São Gabriel da Cachoeira, no interior do estado do Amazonas. Leia a seguir seu texto. ✱
Al aire, libre (ao ar, livre) foi uma exposição efêmera, realizada entre os dias 16 e 17 de maio, ao longo do território chileno, desde a região de Copiapó, no deserto do Atacama, ao Norte, até Coyhaique, na Patagônia.
A maioria das obras foi produzida pelos artistas em seus diferentes locais de confinamento, após serem convocados pelo curador brasileiro Tiago de Abreu Pinto.
Nascido em Salvador, Bahia, Tiago passou dez anos da sua vida profissional na Espanha, onde realizou também sua tese de doutorado apresentada em 2017, sobre Philippe Thomas, Readymades belong to everyone. O artista francês tem uma conversa com a historia da arte e a literatura onde explorou textos de Fernando Pessoa e Blanchot.
Seguindo a sua pesquisa, Tiago desenvolveu projetos nessa linha em vários países, onde reúne relatos de artistas e os transforma em relatos ficcionais. Essa ideia foi desenvolvida numa exposição com Ivan Grilo, na Casa Triângulo, em São Paulo.
“De férias em Santiago do Chile fui pego pelo fechamento de fronteiras e voos. Assim, decidi fazer a minha quarentena no país”, conta o curador. “Pelo sentimento de desconexão com a comunidade – estávamos todos ilhados, isolados um do outro – entrei em contato com a artista chilena Voluspa Jarpa para escutar sobre seu trabalho. Propus a ela fazer um projeto inspirado no trabalho de uma curadora de Berlin, Ovul O Dormusuglu”, segue ele. “Voluspa, nesse momento e durante todo o projeto, foi quem mais me animou, e se transformou em uma guia durante todo o processo.”
Still do vídeo criado pelo projeto, 2020. Foto: Divulgação.
Tiago convocou mais de 70 artistas visuais para realizar uma experiência de colaboração, relacionamento e fala, num momento em que manifestar-se sobre a pandemia foi e será uma necessidade fundamental. Cada um desde seu lugar de residência.
Algumas perguntas sobre a percepção deste período estavam presentes na convocatória. “Somos seres anônimos aos nossos vizinhos? Se ninguém está perto para nos escutar, emitimos algum som?” Redes que reforçaram o espírito de solidariedade apareceram no trabalho.
Entre os artistas convocados estão Paz Errázuriz, Prêmio Nacional de Artes Plásticas 2017. A fotógrafa chilena iniciou sua carreira durante a ditadura chilena de Pinochet. Seu trabalho se concentra em retratar pessoas e espaços que por diversos motivos foram deslocados para as margens da sociedade – uma importante mostra da sua obra estava prevista para abrir no dia 17 de março, no IMS em São Paulo.
Delight Laby e Raúl Zurita, “Esto también passará” (2020). Foto: Divulgação.
Outros participantes de Al aire, libre foram Raúl Zurita, Prêmio Nacional de Literatura 2000; coletivos nacionais como Mil M2, que convidou um grupo de moradores de Torres de Tajamar para fazer perguntas de suas janelas; as artistas Ángela Cura, Felipe Santander e Milena Moena, que projetaram para seus vizinhos um filme que contava a história dessa mesma comunidade de vizinhos, tornando-os participantes do projeto.
“A arte não vai encontrar cura para a Covid-19, mas existe uma necessidade latente de realizar esse projeto, pois, como Voluspa me contou, ‘as obras compartilham emoções coletivas com o momento presente’”, enfatiza Abreu Pinto.
“A resposta do grande número de participantes foi exemplar como exercício para criar estratégias em tempos de crise e quarentena”
“A resposta do grande número de participantes foi exemplar como exercício para criar estratégias em tempos de crise e quarentena. Mas, vai além de uma exposição. Foi um processo social e comunal de solidariedade”, diz Tiago de Abreu. E, conclui: “É muito importante ressaltar que essa foi uma exposição física, antes de mais nada. O projeto online é a concentração dos registros feitos por cada um dos artistas que reverberavam fisicamente em um espaço e durante um certo período de tempo.” ✱
"Pano Preto na Janela", de Julio Villani, intervenção do artista no muro da embaixada brasileira em Paris. Foto: RA
Com o isolamento compulsório por conta da Covid-19, parte da comunidade artística cria novas interrogantes com trabalhos impregnados de críticas ao governo Bolsonaro. A arte produzida nessas circunstâncias nasce contaminada por outras filiações como psicanálise, ativismo e política. Os trabalhos se expandem quase independentes da vontade do autor, com ações inimagináveis.
Julio Villani, brasileiro que mora em Paris desde 1982, é tranquilíssimo. Mas, no dia 21 de maio último vira a mesa e surpreende a todos com a intervençãoPano Preto na Janela, feita no muro da embaixada brasileira da capital francesa. Seis longas bandeiras, com desenhos iguais à do Brasil, mas nas cores preto, vermelho e amarelo, exibiam palavras e frases contra a política de Bolsonaro, reproduzindo algumas de suassandices. Muita gente se espantou porque, com raras exceções, seu trabalho não traz carga política explícita. “Posso ser um sonhador, mas sou um sonhador acordado”. No fim do ano passado, ele já fazia lençóis bordados denunciando os “reviramentos” da liberdade no Brasil. Isso não foi suficiente, então decidiu agir. “A embaixada brasileira se impôs como lugar natural para vomitar nosso desacordo.” Uma semana antes ele cria uma bandeira preta, um GIF no Instagram. “Os outros painéis nascem de um só traço e a ligação com os panos pretos nas janelas se faz automaticamente.” Passados esses dias, ele desabafa: ”Foi uma gota d’água nascida com a única coisa que sei, com a única coisa que sou”. Villani representa uma parcela de brasileiros revoltada com o comportamento vulgar do presidente. “O governo dele nem chega a ser autoritário, mas desgoverno, destruição sem nome e, se nome tem, é fascismo. O que sinto é oposição visceral.”
A imprensa francesa noticia e o Quotidien des Arts abre com o título: “Comando artístico contra Bolsonaro”. O importante para Villani é que o jornal explica cada bandeira, expondo o desgoverno. O Figaro também publica as críticas e, no Canadá, brasileiros usam as imagens em ação na embaixada brasileira em Ottawa. Em Lisboa e Coimbra, elas aparecem em manifestações anti-Bolsonaro e estão disponíveis no site da paulistana Casa do Povo. Se os seis painéis pretos impactaram o público, o que ficou no coração do artista foi o branco, pequeno, com a frase: um outro Brasil é possível. “Temos que encontrar ideias e ações para fazê-lo voltar a existir. A outra opção, não é uma opção.”
Projeções da série Convivência, Ação para Tempos de Isolamento, de Ana Teixeira. Foto: Divulgação.
Com ativismo rápido e disseminado, os artistas se infiltram no tecido da cidade, ganham territórios e audiência para suas falas. Ana Teixeira transformou a janela de sua casa, na Vila Madalena, em São Paulo, em palco de onde projeta luz com textos de resistência ao autoritarismo do governo, além de textos jornalísticos ou filosóficos como os de Ailton Krenak e Eliane Brum. Convivência, Ação para Tempos de Isolamento traz também suas narrativas que aderem às paredes dos prédios, como pele da arquitetura. A projeção é um ritual que se repete diariamente, também com outros autores.
A cidade é um imenso corpo narrativo e lugar de embates.Ana recebeu ameaça de um vizinho, não identificado, ao projetar alguns trabalhos, com som, como a hashtag #ForaBolsonaro. Alguém não gostou, desferiu uma saraivada de laranjas contra sua casa e, a partir daí, ela eliminou o som. Ela tem seguidores que a acompanham aqui e no exterior. “Mantenho contato com artistas que também constroem modelos de ocupação e resistência urbana em suas cidades. Em Barcelona um grupo projeta meus trabalhos e eu os dele.”
Trabalho da série Aller et Retour, de Maurício Silva. Foto: Anne Furci/ Divulgação.
Na década de 1980, Maurício Silva vive uma vadiagem criativa, com artistas igualmente jovens, em torno do grupo Paranambuco, formado por José Patrício e Alexandre Nóbrega, entre outros. Socialistas utópicos, achavam mais produtivo e divertido o trabalho coletivo. O tempo passou, mas o espírito inquieto de Maurício permanece intacto. Hoje ele mora em Meudon, nos arredores de Paris, com a mulher Anne e quatro filhos. No isolamento, ele criou uma estratégia para suturar o tempo com a série Aller et Retour, pinturas sobre bilhetes do metrô guardados por ele. “Os tickets são registros de minhas idas e voltas nessa sociedade que nos limita e oprime.” Pintados e colados lado a lado formam uma grande tela, com marcas da sua obstinação pelas texturas. Cores fortes e luz intensa são parte da reserva afetiva que ele carrega do Recife. Aller et Retour acabou, não por esgotamento do projeto, mas pela troca de tickets por cartões magnéticos introduzidos pela prefeitura de Paris.
O livro Poesia Pandemia, de Maurício Silva. Foto: Anne Furci/ Divulgação.
Nesse contexto ainda produziu o livro Poesia Pandemia, com infiltrações de resistência política, com seus textos, colagens e desenhos, e pronto para ser impresso. Um alívio para ele, que confessa: “Nada é tão assustador quanto a possibilidade de morrer sem dizer nada. E sobreviver depois de tudo isso será mudar para melhor, com certeza”.
Na tentativa de salvar o país da desintegração nacional, as redes sociais fervilham com mensagens saídas de diversas trincheiras. Diariamente trabalhos de autores anônimos, com identidade comum, se integram à Cólera Alegria, definida pelos participantes como “ação colaborativa de caráter político”. Sem nenhuma voz de comando, os integrantes não se reconhecem como coletivo ou grupo. Com um comitê invisível, tudo para eles é colaborativo, provisório e dinâmico, assim como a entrada e saída dos participantes, a qualquer hora. A execução dos trabalhos nasce nas pegadas do Arts and Crafts, com papelões e panos pintados que se transformam em cartazes, bandeiras, estandartes, que circulam tanto nas redes sociais como nas ruas, em manifestações políticas. Irreverência e humor não faltam à ação que age por meio do compartilhamento de imagens junto à hashtag #coleraalegria. Com a ascensão da direita no Brasil, se apoderando de símbolos e cores nacionais, eles tentam retomá-las, assim como as palavras deturpadas pelo discurso autoritário do governo.
Trabalho divulgado pelo Cólera Alegria
Pela ideia transformadora, Cólera Alegria foi incluída na exposição Against, Again: Art Under Attack in Brazil, com curadoria de Nathalia Lavigne e Tatiana Schilaro, sem a identificação dos artistas, na Faculdade de Direito John Jay, em Nova York. A mostra está interrompida por conta da Covid-19, sem data de retorno. ✱
Leia também: Projeto de arte pública realizado no Chile, em meados de maio, reuniu mais de 70 artistas e coletivos que estiveram presentes em espaços suspensos e postergados durante o isolamento na pandemia. Neste link.
Há um sentimento universal neste momento de pandemia de que o mundo não será igual quando a humanidade puder voltar a se encontrar no espaço público, quando se puder voltar a viajar, a trabalhar nos locais de trabalho, a encontrar amigos, a abraçar gente, a ir ao cinema, ao teatro, a concertos, quando se puder voltar a visitar museus e exposições…
Temos seriamente que nos interrogar como foi possível chegar a um momento desses. Quão indefesos estávamos perante uma possibilidade que antes só parecia possível em filme de ficção científica ou em filme de terror? E temos que assimilar muito do que sentimos, aprendemos e pensamos nestes dias de confinamento, e saber agir a partir de tudo isso.
No caso dos museus, que museus iremos encontrar quando reabrirem? É por demais óbvio que os museus não poderão reabrir do mesmo modo em que os conhecemos antes da pandemia. É previsível que restrições aos números de públicos que os visitam, cuidados sanitários, uma outra organização necessária do espaço, dos percursos e da mobilidade dos visitantes, um outro funcionamento do seu trabalho interno e das suas atividades públicas modificarão as suas rotinas por um período neste momento ainda indefinido. Desejando que esses cuidados sejam temporários (o que não é certo se a pandemia evoluir para uma realidade endêmica de longo prazo, como alguns já referem…), também no contexto dos museus importará interrogar a “normalidade” em que se vivia antes, de modo a alimentar a esperança de que o mundo melhore e não perpetue tantas das suas outras enfermidades reconhecíveis que nos conduziram à situação que agora vivemos.
Nesses tempos que hoje parecem longínquos (há três meses apenas…), antes de serem forçados a encerrar as suas portas, os museus, muitas vezes independentemente da sua dimensão ou relevância, viviam já alguns momentos difíceis. Dificuldades de natureza política, logísticas, de funcionamento e de financiamento, ensombreciam o trabalho na maioria dos museus do planeta, exceção feita àqueles museus estelares que marcavam a galáxia internacional, os quais mereceriam muitas interrogações pelas realidades contraditórias que propagavam. O papel do museu surgia cada vez mais condicionado pela busca sôfrega de visitantes, cujas estatísticas definiam junto a governos, mecenas e opinião pública os critérios de sucesso e de legitimação. O museu integrava-se veloz e apressadamente numa sociedade global do espetáculo que o pressionava cada vez mais para que se transformasse num elemento essencial da paisagem mundial do entretenimento e do lazer, mobilizando uma indústria do turismo que nele identificava uma das suas atrações. Aliás, como sucede no Brasil, não deixa de ser significativo que a pasta antes ministerial da cultura se integre agora como secretaria num ministério do turismo… São numerosos os casos que se verificam, num contexto internacional, dessa associação política da cultura ao turismo, muitas vezes acrescida do desporto, da China a Abu Dhabi, da Turquia à Etiópia…
Nesta sociedade que se estrutura ideologicamente no roubo do tempo à vida das pessoas, o museu surgia igualmente como um lugar de ocupação intensiva do tempo dos seus visitantes, não um tempo para a experiência sensorial das obras, o conhecimento, nem tanto assim um tempo para a aprendizagem ou a partilha dos objetos ou dos documentos neles apresentados, a reflexão individual ou coletiva em situações que neles se pudessem viver, mas antes um tempo ocupado em leitura nas suas paredes de textos quantas vezes simplistas ou redutores (quando não crípticos ou incompreensíveis…), um tempo preenchido com a duração de materiais audiovisuais sem fim, com visitas guiadas por audioguias, frequência de lojas, cafés e restaurantes, filas intermináveis para ver exposições blockbuster nas quais o tempo para estar em frente a uma obra era definido pela fila de espera que a essa obra dava acesso.
O museólogo Marcelo Araujo, diretor geral do Instituto Moreira Salles. Foto: Rogério Cassimiro
A visita ao museu começava a assemelhar-se à visita ao shopping center, condicionando a atenção e a curiosidade do visitante à permanente excitação das numerosas atrações que se lhe oferecessem no seu percurso. Ficava de fora o prazer da descoberta do desconhecido, o estímulo da curiosidade mais radical, o desconforto revigorante do confronto dissonante com as ideias, sempre já feitas e servidas como fast food para o espírito. O museu se afirmava como lugar de anestesia dos conflitos da vida, muitas vezes à revelia das obras apresentadas, mesmo quando os enunciava edulcorados pelo perfil curatorial politicamente correto das suas exposições e programas. A transmissão constante de informação se sobrepunha frequentemente ao convite à reflexão individual e/ou coletiva, à experiência e consequente interpretação livres do visitante, nessa entropia diabólica que leva a que o excesso de informação distancie quem a recebe do conhecimento crítico que a partir dessa informação possa construir.
Mega-exposições caríssimas cartografavam o mundo, movimentando obras que não deveriam viajar, deslocadas em função das relações de poder entre museus ou do dinheiro que pudessem originar, alimentando outras economias nas quais, para além do turismo, sobressaiam as economias de outros negócios, como os das empresas de transporte e de seguros, ou dos vários mercados que encontravam nessas exposições suas vitrines de luxo. Muitos museus ou centros de arte infantilizavam os seus públicos, numa visão equivocada de educação, dirigindo a percepção e a interpretação, em vez de as estimular dentro da liberdade individual de cada um e da sua expressão nas discussões coletivas que pudessem originar.
Fragilizados no seu financiamento, assim como na sua função republicana (não esqueçamos o Louvre como um dos primeiros momentos de expressão da emancipação da cidadania), atrofiados pela demissão do investimento dos estados democráticos e seus governos, os museus caíam cada vez mais na dependência crescente dos critérios de marketing das empresas que os financiavam, assim como dos gostos artísticos de seus mecenas, muitas vezes colecionadores privados frequentemente beneficiários nas suas coleções da informação especializada que obtinham através das sua participação em patronatos, conselhos ou comitês de aquisição de obras.
Como instituições integradas numa sociedade acumulativa e quantificadora, os museus eram igualmente entidades que refletiam na organização do seu trabalho interno a lógica economicista dominante nessa sociedade, destinando o tempo dos que neles trabalham e as verbas de que dispunham ao privilégio de uma hiperatividade focada na produção de programas contínuos e intensivos para um público pensado como ávido e consumista, secundarizando a investigação, o estudo das suas coleções, os serviços das suas bibliotecas, diminuindo todo um trabalho invisível que deveria pautar as suas finalidades. Integrados numa sociedade dinamizada pelo crescimento vertiginoso da desigualdade social, o museu perpetuava as relações de trabalho injustas reconhecíveis nessa sociedade, contribuindo para a paralisia social, expressando as suas discriminações sociais e culturais, programando em função dos valores culturais, econômicos e sociais que o financiam e gerem, explorando o trabalho intelectual dos seus funcionários, abusando do trabalho extraordinário e precário, não reconhecendo o tempo de investigação extra-laboral necessário, nem sempre respeitando a paridade de gênero nas suas hierarquias, reservando sempre os graus mais baixos dos seus organogramas e dos seus postos de trabalho para as gentes mais discriminadas social, racial e economicamente na sociedade que representam.
O curador João Fernandes, diretor artístico do Instituto Moreira Salles. Foto: Renato Parada
Agora que o mundo parou por uma pandemia, e os museus encerraram temporariamente as suas portas, aproveitemos este momento de suspensão para avaliar aquilo em que eles se estavam tornando e interrogar o que eles poderão ser após as suas reaberturas. Como em relação a tudo quanto antes vivemos, também nos museus vai tudo ficar igual depois deste confinamento, descontadas as precauções necessárias para reativar o que já se chama de “novo normal”? É provável que assim seja, pois a sociedade não mudou nas suas formas de decidir, nos políticos que elegeu, nas injustiças e contradições que revela. E no entanto, todas e todos sentimos em maior ou menor grau essa perguntazinha inquietante: vai tudo ficar igual?! Ela nos confronta com a urgência de que algo terá que mudar para nos protegermos melhor, para não chegar de novo a este ponto que nos revela tão vulneráveis e desprotegidos. Também em relação aos museus, ao mundo da arte com os seus momentos de atividade febril recentemente protagonizados pelo crescimento incessante do números de bienais e de feiras de arte, sentimos que não vai ser possível regressar a esse mundo, que é urgente pensar novas possibilidades de ser e de atuar, quanto mais não seja pela astral pegada ecológica deixada no passado por tantos dos seus diretores e curadores, movidos pela necessidade de acompanhar o mundo em que o seu trabalho virava global. Se configura urgente repensar essa mobilidade interminável paga pelos orçamentos institucionais ou até pessoais, outras vezes financiada por tantas feiras de arte ou festivais por meio das e dos quais o mercado filtrava as percepções curatoriais. Algo nos indicia que esse globalismo terminou, que estar em todos os lugares e em todos os fusos horários do planeta no rodopio incessante das bienais, feiras e grandes exposições internacionais chegou ao fim como missão e como objetivo…
Descobrimos ao longo deste período de confinamento novas formas de solidariedade, de preocupação com aqueles que nos são próximos e com aqueles que não conhecemos, novos modos de usar as redes e as ferramentas eletrônicas, além das evidências que se tornaram constantes (e em relação às quais vivíamos tão anestesiados), de como pequenas decisões podem reequacionar a sobrevivência, a relação entre a vida e a morte, a injustiça que criou discriminações tão ameaçadoras para a condição humana, a estupidez de eleger decisores que não estão preparados para nos proteger, que não nos querem proteger e para isso invocam a (sua…) economia. Descobrimos ao longo destes meses novos modos de sentir que habitamos juntos este planeta e que juntos deveríamos repensar o que lhe fazemos e como nele vivemos. O mundo que sobreviverá a esta pandemia nos chama a repensar as nossas vidas e as nossas tarefas a partir do desejo de uma outra proximidade, a partir das nossas casas, das famílias, dos amigos, dos conhecidos e desconhecidos em relação aos quais reconsideramos a nossa existência a partir da redescoberta de que a vida humana conta e tem que ser protegida quando se revela tão frágil e vulnerável.
É a partir dessa consciência que o museu necessita se reinventar, se recentrar nas suas tarefas, nas suas missões e objetivos. É a partir dessa redescoberta de nós mesmos que ganharemos a consciência de que o museu não pode nunca deixar de ser local, de se situar no lugar onde existe, no bairro, na sua cidade, no seu país, numa cultura da qual preserva, interpreta e redefine a memória e propõe um presente para essa memória. Atento ao tempo em que vive, será da conjugação de tempos múltiplos e da diversidade de modos de ver, de sentir e de pensar que resultará a sua viagem temporal, a sua intemporalidade. Assim descobriremos que o museu não pode deixar de se dirigir ao mundo, aos seus públicos mais próximos ou distantes, buscando incluir, mas não massificar nem indiferenciar, a partir da expressão da sua localidade, da história específica do contexto em que surgiu, reunindo-se agora a um mundo onde a curiosidade, a informação e o conhecimento crítico possam ser cada vez mais recíprocos a partir do reconhecimento de diversidades sem fim, de pontos de vista diferenciados, que se surpreendam entre eles em vez de se empobrecerem e resumirem na condição única e totalitária de serem globais.
Por isso é tão prioritário descolonizar a história dos museus, desconstruir os pontos de vista uniformizadores, exigir aos grandes museus “coloniais” do passado, como o Louvre, o British Museum, o Metropolitan, o Prado e tantos outros, que saibam reconstruir as suas narrativas a partir da consciência desse passado, da libertação das regras dos poderes que lhes definiram as coleções mas que não lhes deverão limitar a consciência crítica da diversidade dos pontos de vista. Despertos e conscientes das novas formas de trabalho e de conhecimento que estamos descobrindo a partir da internet, das redes sociais e das plataformas online, importa compreender que o mundo virtual não é apenas uma vitrine dos acervos e dos programas de atividades, mas também uma plataforma de encontro, de trabalho, investigação, de criação, de partilha de saberes e de conhecimentos, de discussão crítica e diversidade de pensamento, do trabalho em conjunto possibilitado a partir do reconhecimento dessa diversidade, da necessidade de reinventar novas formas e novos programas internacionais de colaboração. É indispensável começar de novo, descolonizar o museu da sua condição servil da ideologia de um poder e de uma economia globais que é urgente analisar e reconsiderar, compreender como as narrativas que os museus protagonizavam, a forma como recebiam os seus públicos, na condição de meros turistas consumidores, os desvirtuou e lhes roubou os desafios de uma contemporaneidade que só pode ser redefinida coletivamente, a partir da soma e não da acumulação estatística das percepções individuais nem da massificação redutora das emoções e dos conhecimentos. Novas relações de trabalho, novas transparências dos processos de trabalho são necessárias e possíveis nesse novo paradigma por construir.
Um museu no Brasil, por exemplo, se confronta permanentemente com a necessidade de não se revelar inconsciente a respeito de uma história colonial marcada pela escravidão, assim como desse cruzamento tão fascinante quanto sempre reinventado entre uma cultura popular viva e surpreendente com uma cultura erudita tão singular e atenta ao seu contexto e história específica. Um museu no Brasil não pode negligenciar essa premência da revelação da diversidade cultural e artística do país, de uma diversidade racial, cultural, social, geográfica, de gênero e de identidades sexuais, seja nas suas programações, seja nas políticas de acessibilidade, ou nas formas de organização do seu trabalho interno. Um museu no Brasil necessita saber existir local, nacional e internacionalmente, consciente da amplitude do país, mas procurando mais longe ainda do que as suas fronteiras geográficas. Um museu no Brasil não pode ignorar a experiência de tantas ações inovadoras e exitosas como os museus de quilombos, favelas e comunidades indígenas.
A colaboração entre museus, suas programações e acervos, a nível nacional e internacional; as redes que possa estabelecer com museus da América do Sul, África e do resto do mundo serão um compromisso obrigatório, a ativar na miríade de ocasiões e de opções que se revelam, ou naquelas que se torna necessário e urgente construir. As pautas são inúmeras. Haverá que redefinir tarefas, missões, objetivos e prioridades. Toda uma conversa, toda uma discussão nos aguarda.
No momento em que se reabram as portas dos museus, não, não voltemos a esse “normal” que não o era, e que hoje é já obsoleto, por ter se revelado incapaz de nos proteger e preparar para os desafios com os quais o presente não cessa de nos confrontar. Desafios de um contexto necessariamente diferente, que certamente irá necessitar de museus. Para ele iremos reabrir, mais solidários, mais conscientes dos problemas e dos dilemas de um mundo por vir.
A sede do Instituto Moreira Salles em São Paulo. Foto: Divulgação.
Foto: Pedro Vannucchi
arte!✱ – Neste contexto da pandemia do coronavírus e da necessidade de isolamento social, como vocês estão trabalhando no IMS? Que tipo de trabalho tem sido possível realizar e qual o planejamento que estão fazendo para os próximos tempos?
O IMS fechou ao público seus centros culturais em São Paulo (SP), no Rio de Janeiro (RJ) e em Poços de Caldas (MG) no momento em que foram divulgados os alertas das autoridades da área de saúde dos três Estados, e colocou todos seus funcionários em regime de trabalho domiciliar. Desde então temos nos dedicado às ações necessárias para garantir a segurança e preservação dos acervos e edifícios, bem como a uma série de ações voltadas para a manutenção e ampliação de nossa presença nas redes virtuais, especialmente em nosso site. Seja pela continuidade de iniciativas habituais, como a Rádio Batuta e outras relacionadas a nossos acervos, seja por novas iniciativas especialmente pensadas para esse momento, como o IMS Quarentena, que oferece conteúdos relacionados às revistas serrote e ZUM; o IMS de Casa, com conteúdos ligados aos acervos; e o Programa Convida, que em sua primeira edição apresenta 60 artistas e coletivos de todo o Brasil que foram convidados a criar obras que refletissem sobre o isolamento resultante dessa pandemia.
Falando sobre os museus brasileiros e pensando no texto que vocês publicaram, para além de pensar em que tipo de museus – e de experiências – queremos ter após a pandemia, infelizmente ainda precisamos pensar na própria capacidade de existência e sobrevivência de muitas dessas instituições. Acabamos de assistir, menos de 2 anos após o incêndio do Museu Nacional do Rio, outro incêndio, no Museu de História Natural da UFMG. Queria que falassem um pouco como enxergam esses acontecimentos e esse quadro.
O cenário museal brasileiro enfrente uma série de imensos desafios históricos, dos quais talvez o mais grave seja a ausência de políticas públicas consolidadas que compreendam a natureza, o papel e a importância dessas instituições, e possam lhes oferecer reais condições de desenvolvimento. Importante registrar que existe, por parte dos profissionais desses museus, em todos os níveis, plena consciência e conhecimento das necessidades técnicas, operacionais, administrativas e culturais de suas instituições, mas infelizmente esse conhecimento não tem encontrado ressonância junto às autoridades responsáveis.
Vocês diriam que a situação de muitos museus públicos no Brasil demonstra uma fragilidade de um modelo de instituições culturais financiadas diretamente pelo Estado? Modelos mistos ou instituições privadas se mostram menos vulneráveis? Como enxergam esse quadro?
Pelo menos dois terços dos museus brasileiros são estatais. Há portanto imperiosa necessidade de se construírem políticas públicas para essas instituições. Há modelos de gestão compartilhada (como o modelo de gestão por OS) que tem demonstrado grande potencial, desde que devidamente implantado, gerenciado e respeitado pelos diferentes níveis de Governo. Mas obviamente não é uma solução mágica nem aplicável a todas as situações. Por outro lado, as instituições privadas, em sua imensa maioria, também enfrentam grandes dificuldades, inclusive a nível de sobrevivência, e devido à sua importância, não podem prescindir do apoio público por meio de diferentes estratégias, como as Leis de Incentivo.
Pensando no contexto político e cultural no país de modo amplo, em cerca de um ano e meio de governo Bolsonaro chegamos agora ao quinto titular na pasta da Cultura. O que isso demonstra sobre o valor dado à cultura pelo governo? E de que modo esse quadro todo afeta o trabalho também no IMS?
O momento político que o Brasil atravessa é particularmente doloroso para a área da Cultura como um todo. Atacada de todas as maneiras, com suas instituições – especialmente no nível federal – violentadas e desrespeitadas, e enfrentando os terríveis impactos dessa pandemia, a Cultura brasileira está sob terríveis ameaças, para as quais apenas a coragem, a dedicação e a competência de seus diferentes agentes oferecem expectativas de superação.
Como instituição intrinsicamente vinculada ao contexto brasileiro, o IMS vivencia cotidianamente esses impactos, se solidariza com todas nossas companheiras e companheiros nessa luta, e busca oferecer apoios e espaços que possam contribuir de maneira solidária para todo esses difíceis enfrentamentos. ✱
Aline Motta, (Outros) Fundamentos #3, 2017-2019. Foto: Cortesia da artista
Ojornalista e crítico de arte Gonzaga Duque foi um dos primeiros responsáveis pelo estudo sobre a definição daquilo que compreendemos por arte brasileira. Em livro lançado em 1888, Duque entendia a chegada da Missão francesa ao Brasil e a concomitante fundação da Academia Imperial de Belas Artes como o início daquilo que poderíamos nomear por arte brasileira. Essa, que começaria por um viés eurocêntrico, foi, de lá pra cá, revista e ampliada por diversos estudos e iniciativas, como os modernistas de 22, os escritos de Mário Barata, Mário Pedrosa, Aracy Amaral, entre outros.
Apesar dessas pesquisas apontarem uma arte brasileira composta por produções diversas, em linguagens e autorias, ainda mantemos em seu interior estruturas que naturalizam a predominância das autorias brancas e de origem ou descendência europeia. Nesse sentido, o crítico e curador Paulo Herkenhoff, ao escrever sobre a chamada produção nipo-brasileira, aponta para o fato de que, “nesse viés, prenuncia-se um certo racismo das diferenças internas, pois deve haver crítico e historiador universitário que nunca sequer escreveu o nome de um artista nipo-brasileiro em sua trajetória ensaística”. Podemos estender essa observação também para os artistas afro-brasileiros, indígenas brasileiros e aos demais de outras origens asiáticas, sendo o comentário de Herkenhoff a denúncia de uma realidade presente e constante aos artistas cujas produções estão marcadas pela racialização. No caso do uso do termo nipo-brasileiro, quando adotado como padrão para mencionar as contribuições de artistas de origem asiática, ocorre uma segunda exclusão, pois este é insuficiente para contemplar as demais origens asiáticas e invisibiliza contribuições para além da de origem japonesa.
É comum encontrarmos livros de arte brasileira que não citam nenhum artista negro, indígena e de ascendência asiática, nem mesmo os nipo-brasileiros, que possuem trajetória relevante na historiografia da arte brasileira. Nesse sentido, precisamos sempre nos perguntar o porquê de racializarmos determinadas populações e atribuirmos a elas termos específicos, como afro-brasileiras, indígenas brasileiras ou asiático-brasileiras (termo este ainda pouco difundido, mas que visa abranger vivências de brasileiros de origem asiática mais amplas do que a narrativa somente pautada pelas experiências nipo-brasileiras): será porque reconhecemos a chamada arte euro-brasileira como sendo apenas arte brasileira? Segundo a artista e pesquisadora Grada Kilomba,isso não ocorre por acaso. De acordo com a autora, a universalização e predominância da pessoa branca nas artes é parte de uma construção ideológica, colonial e racialista que defineo ser branco e europeu como o padrão das narrativas do mundo, atribuindo a ele noção de neutralidade e normalidade. Em contraposição, abordam os demais como específicos e diferentes, elaborando nesse “outro” a sua oposição. Esse debate foi realizado recentemente pelo curador e pesquisador Hélio Menezes, em sua dissertação de mestrado Entre o visível e o oculto: a construção do conceito de arte afro-brasileira, defendida em 2018, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Para ele, as discussões sobre os “direitos civis, identidade negra, combate às desigualdades racializadas de renda e de acesso a bens e serviços, direito à memória e a diversidade têm se avolumado na agenda política do país”,e, no campo das artes, têm sido reivindicadas por algumas vias, como a exigência de “releitura crítica dos modos de representação”, a “revisão das políticas de branqueamento” e o “combate do anonimato” de diversos artistas.
Evidenciar tal disparidade no tratamento dado a determinados grupos torna-se importante e urgente. Presenciamos nas últimas semanas debates em torno dos racismos e as disparidades sociais que afetam a vida das pessoas negras no mundo. Desde o dia 25 de maio, data do assassinato do afro-estadunidense George Floyd, um intenso conjunto de ações demonstraram a necessidade de combate ao racismo estrutural e sistemático como uma responsabilidade de toda a sociedade contemporânea. Nesse período, diversas instituições utilizaram suas redes para demonstrar apoio a campanha Black lives matter, inclusive instituições e profissionais das artes.Entretanto, mais que apoio verbal, a luta antirracista precisa de ações efetivas e permanentes, que, no campo das artes, vão para além de escrever uma mensagem nas redes sociais, incluir um artista em uma exposição, citar um autor ou ser amigo de alguém cuja identidade foi marcada pela racialização. Essas ações são válidas e merecem o reconhecimento, mas precisam ser ampliadas para que possam alcançar dimensões que modifiquem as estruturas e dinâmicas do funcionamento das artes no país. É necessário que, tanto no micro quanto no macro, façamos a defesa de políticas que gerem permanência da mudança.
Nessa perspectiva, destacamos aqui algumas iniciativas recentes que têm apontado caminhos possíveis para o combate a hegemonia branca nas artes brasileiras. Com projetos que falam para além das já conhecidas ausências, pesquisadores, artistas e curadores, principalmente negros, indígenas e de ascendência asiática, se empenham em trabalhos que constroem um cenário artístico crítico e diverso. São projetos que primam pelo profissionalismo e conhecimento de pesquisa em arte, que revelam novos processos para as artes contemporâneas e suas movimentações.
A 12ª Bienal do Mercosul é um exemplo salutar. A mostra, que em decorrência da pandemia de Covid-19 está sendo realizada virtualmente, por meio de uma plataforma online, conta com a curadoria geral da argentina Andrea Graciela Giunta e tem como título Feminino(s). visualidades, ações e afetos. Para essa edição, a curadora formou uma equipe composta por mais três curadores adjuntos, Dorota Biczel, Fabiana Lopes e Igor Simões,sendo dois deles negros. Além da contribuição relevante que esse curadores deixam para o projeto da bienal, suas presenças já são históricas por ser uma das poucas vezes que a equipe curatorial de uma bienal no Brasil foi composta 50% por curadores negros. Esse dado é simbólico, representativo e respeitoso com a população brasileira, composta majoritariamente por pessoas negras.
Apesar desse avanço, ainda há muito o que ser feito. Tanto a Bienal do Mercosulcomo a Bienal de São Paulo, as duas maiores exposições com esse perfil no país, nunca contaram com a curadoria geral de uma pessoa negra. Essa é uma discussão antiga, uma questão já levantada por diversos curadores, mas que, insistentemente, se repete.
Além de marcar a presença de profissionais negros na equipe curatorial, a 12ª Bienal do Mercosul conta também com a histórica lista de artistas majoritariamente composta pelo gênero feminino. Um vasto grupo de produções, linguagens, idades, origens e identidades, são mulheres que se destacam na cena contemporânea, mas que ainda enfrentam barreiras para se estabelecerem. No caso das artistas negras, o desafio é ainda maior. Em 2018, o Coletivo Mulheres Negras nas Artes realizou uma pesquisa acerca das participações de mulheres negras em três edições da Bienal de São Paulo (30ª, 31ª e 32ª). Segundo o coletivo, dos 390 artistas que participaram das três edições, 154 eram brasileiros, 45 mulheres, e, desse total, apenas 4 eram negras.
O número é assustador. Mas, para a curadora Fabiana Lopes, apontar esses percentuais, apesar de importante, é insuficientes se não houver um compromisso de ir além da estatística. Segundo a curadora, “a produção intelectual e artística de autoria negra oferece um vasto campo de referências que contribuem para um entendimento expandido da arte brasileira, além de deixar pistas importantes sobre o contexto social contemporâneo”. Para ela, “pensar a equidade no espaço expositivo deve ser responsabilidade de todo curador comprometido com uma transformação social tão necessária”. Por outro lado, “o compromisso com equidade não deve nos deter de um aprofundamento nos debates, referências e propostas que tal produção apresenta, nem nos privar de engajar numa leitura generosa e ampliada que essa produção merece”.
Outra ação recente que merece destaque é o Projeto Afro, uma plataforma digital idealizada e criada pelo pesquisador Deri Andrade. Lançado em 21 de junho, o site tem como propósito ser um local de armazenamento e difusão do estudo das produções de autoria negra, tanto práticas quanto teóricas, servindo para experimentações e mutações curatoriais e artísticas. Segundo Andrade, o Projeto Afro “servirá para consulta e divulgação da produção artística do país, entendendo a produção de autoria negra como fundamental na compreensão das artes brasileiras, atribuindo a elas um tratamento adequado as suas complexidades e especificidades”. O pesquisador acrescenta que “a abertura do site já estava em desenvolvimento e que foi uma grande coincidência que o seu lançamento viesse ao encontro com o atual período de manifestações antirracistas”. Para ele, o Projeto Afro é “uma via possível de descolonizar os olhares, já formados historicamente para ver essas artes como ‘menores’, ‘primitivas’, ‘regionais’, ‘periféricas’, entre outros adjetivos responsáveis por caracterizá-las e intitulá-las no tempo”.
Pensar a narrativa das artes brasileiras para além das autorias brancas também é o objetivo do Laboratório de Curadoria de Exposições Bisi Silva. O projeto, coordenado pelas Profª Drª Carolina Ruoso, Profª Drª Joana D’Arc de Sousa Lima e a Profª Drª Rita Lages Rodrigues, conta com uma lista extensa de parcerias, como a Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o Núcleo de Pesquisa do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (MAMAM/Recife), o Laboratório de Arte-educação, curadorias e histórias das exposições da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB/Ceará), o Caderno Vida & Arte do Jornal O povo e a Escola de Design da Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG), e tem por objetivo apresentar um estudo das histórias das curadorias e exposições no Brasil.
O grupo, além de ser formado por pesquisadores de diversas áreas e regiões do país, está preocupado em realizar o estudo das curadorias e exposições brasileiras sem reproduzir as já marcadas exclusões históricas. Além de tomarem o eixo Norte, Nordeste e Centro-oeste como participantes centrais na construção da arte brasileira, o grupo também se preocupa em contemplar diferentes identidades, idades, gêneros, temas, formatos e modelos de realização e atuação dos curadores no país. Segundo Ruoso, “a pesquisa sobre os curadores nasceu da linha de pesquisa Teorias e Metodologias de Curadoria de Exposição e foi financiada pelo edital 11/2017 para os recém doutores da UFMG, mas que, de toda forma, é uma iniciativa que nasce do Laboratório de Curadoria de Exposição Bisi Silva, cujo o propósito é construir uma narrativa crítica sobre as artes e as curadorias no Brasil, entendendo-as como fundamentais na construção dos discursos artísticos no país”.
Essa preocupação já se faz visível pelo nome do grupo, que optou por homenagear uma curadora mulher, negra e nigeriana. Bisi Silva, que faleceu em março de 2019, é reconhecida internacionalmente pela sua atuação no Centro de Arte Contemporânea de Lagos (CCA) e na Escola de Arte Asiko, espaços que ela fundou e dirigiu por muitos anos. Além de promover a pesquisa, o ensino, a exibição e a circulação das produções contemporâneas nigerianas, Bisi Silva colaborou para a criação de redes artísticas com os demais países africanos e com outros territórios, como o europeu.
Entender a curadoria como um campo em disputa também é o lema de duas das curadoras indígenas brasileiras de destaque nos últimos anos, Naine Terena e Sandra Benites. Ambas, demonstram que é preciso pensar novos modos de se fazer curadoria. Sandra é de origem Guarani, estudante de doutorado no Museu Nacional e a primeira curadora indígena contratada por uma instituição artística brasileira, o Museu de Arte de São Paulo. Sua contratação foi realizada no final de 2019 como parte do processo de organização da exposição Histórias indígenas, programada pelo MASP para ser realizada em 2021. Naine é de origem Terena, é doutora em educação, professora universitária e curadora da exposição Véxoa: Nós sabemos, que ocuparia a Pinacoteca do Estado de São Paulo neste ano e que está suspensa em decorrência da pandemia. Ela atua como curadora e educadora, e entende que a educação atravessa todos os âmbitos da sua atuação. Segundo Naine, sua atuação envolve apresentar uma arte contemporânea pelo viés indígena, como possibilidade também de educar o olhar do público não indígena. Ela acredita que “o processo de formação e de diálogo com gestores, curadores e programadores, ajuda a combater estereótipos, preconceitos e estimula a construção de relações respeitosas”. A curadora destaca também que sua ação não é individual, mas coletiva, e que “é necessário pensar a partir da coletividade e da escuta para a construção de um cenário nacional consistente”.
Mover-se em coletivo também é uma das premissas do Movimento de artistas indígenas Mahku, da etnia Huni Kuin, moradores da cidade de Rio Branco, Acre. A região, pouco representada nas narrativas da história das artes brasileiras, vem conquistando mais espaço através do grupo. O artista Ibã Huni Kuin é a principal liderança do movimento e se destaca pela atuação como artista e agente cultural. O propósito do grupo é o de valorizar a produção artística através das estéticas locais, além de criar um sistema de circulação e conceitualização de suas produções. Para o artista, curador e ativista Denilson Baniwa, outro artista indígena em destaque, esse movimento de artistas indígenas já existe há muito tempo, mas apenas nos últimos anos foi acessado com mais atenção pelas redes não indígenas. Segundo ele, “foi através da coragem desafiadora de alguns artistas que lugares foram abertos, gerando uma rede crescente de outros artistas que já produziam ou que começaram a produzir com mais liberdade”. De acordo com ele, “esse movimento contribui não apenas para os artistas indígenas, mas, sobretudo, para demonstrar que há um outro tipo de visão possível de arte, e que pode servir de base para a construção de um meio decolonial e crítico”.
Os artistas indígenas, assim como os demais que são racializados pelo sistema, possuem dificuldade de inserção nas coleções museológicas, nas galerias de arte e nos acervos privados de arte contemporânea. É comum encontramos galerias brasileiras que não possuem nenhum artista negro, indígena ou de origem asiática em suas listas. Como crítica a esse mercado excludente, o arquiteto e urbanista Alex Tso, brasileiro filho de imigrantes chineses, abriu a primeira galeria dedicada a artistas cujas vidas são marcadas pela racialização. Segundo o site da instituição, por compreender a necessidade de lançar um olhar atento para as “questão de gênero, raça, classe e territórios geopolíticos”, a Diáspora Galeria se propõe a defender a “articulação de uma rede de colecionadores que reconheçam o valor de mercado como indissociado do valor histórico da produção artística dos artistas”, que não entenda a arte apenas pela “circulação única como objeto e valor monetário”, mas que a expanda “enquanto legado de ancestralidade e identidade, tornando-se simultaneamente proponente de uma nova contemporaneidade”. Para Tso, o reconhecimento da população brasileira de ascendência asiática deve extrapolar o já conhecido termo “nipo-brasileiro” e a migração japonesa como referência. “É preciso começar a entender a participação de outros grupos asiáticos na conformação da sociedade brasileira, como as comunidades chinesa, sul-coreana e indiana, dentre outras múltiplas migrações advindas da região”. Além disso, “o reconhecimento dessa população como racializada também é parte fundamental para o engajamento na luta antirracista”.
O galerista também aponta que é importante a adoção de políticas que visem a ampliação de pessoas racializadas nos quadros de funcionários das instituições de arte, reforçando a sua presença em todas as instâncias e lhes garantindo maior autonomia profissional, inclusive nos postos de decisão e cargos de gestão. Ele complementa dizendo que a Diáspora Galeria é uma “possibilidade de criar isso enquanto uma rede produtiva integralmente racializada, que possa suprir e se distanciar das práticas do circuito até então hegemônico e apresentar outras possibilidades de organização dentro desse sistema”. E que, para além desse compromisso, “o espaço apresenta uma possibilidade de transformação para o sistema das artes, acreditando em sua capacidade de ser menos excludente, menos branco, menos elitizado; e mais crítico, mais posicionado e envolvido com a sociedade”.
Empenhar-se na construção de um novo futuro para as artes brasileiras é entender-se enquanto agente de mudança. É compreender que são ações diárias que as tornarão permanentes. Para isso, é fundamental a mudança de postura, a autocrítica, a crença no trabalho coletivo, a cobrança de políticas públicas para o setor, a realização dos revisionismos históricos, dos critérios estéticos, das nomenclaturas, das linguagens, dos termos, entre tantas outras ações. Combater a hegemonia branca nas artes é um desafio que deve ser enfrentado por todos e todas. Rejeitá-la é acreditar em um novo projeto de futuro para as artes brasileiras.
Da esquerda para a direita: Jochen Volz, Solange Farkas, Danilo Miranda, Eduardo Saron e Ricardo Ohtake.
Com as crises políticas e econômicas que se sucederam no Brasil nos últimos anos, tornaram-seainda mais profundas e notáveis as históricas dificuldades enfrentadas pelas instituições culturais do país. Museus, centros culturais e outras organizações, já acostumados a trabalhar com pouca folga em suas finanças, adentraram um período de crescente incerteza com cortes de verbas e, simultaneamente, ataques políticos contundentes ao campo da cultura. A situação se agravou drasticamente com a posse do atual governo federal, de Jair Bolsonaro, que além das restrições orçamentárias e do desmonte de mecanismos de atuação do setor, intensificou discursos e práticas de enfrentamento a artistas e instituições culturais do país.
Em um ano e meio de governo, a cultura foi rebaixada de ministério para secretaria – vinculada ao Turismo – e chega agora ao seu quinto titular na pasta. “Isso demonstra que para eles a cultura não tem a menor importância. Que é só uma burocracia, destituída de qualquer fato relevante que justifique sua presença num aparato de governo. Subordinar a Cultura ao Ministério do Turismo é de uma falta absoluta de visão, inclusive estratégica. É entender a cultura apenas como entretenimento ou elemento de atração turística para um país, uma sociedade”, afirma Danilo Santos de Miranda, diretor-geral do Sesc-SP, uma das instituições constantemente ameaçadas de corte em seu financiamento, vinculado ao Sistema S. Para Solange Farkas, diretora da Associação Cultural Videobrasil, a cultura foi declarada inimiga pelo governo, o que demonstra uma prática típica do fascismo. E ela vai além: “Temos um governo que desrespeita a cultura, ataca a cultura, elimina a cultura. Na verdade, isso diz respeito à cultura, à imprensa e às instituições democráticas, nesse flerte claro com o totalitarismo.”
O que já parecia um quadro extremamente conturbado e ameaçador ganhou contornos ainda mais dramáticos com a chegada da pandemia do novo coronavírus e a necessidade de isolamento social – no Brasil, desde março deste ano. Entre abril e junho, após o encerramento das atividades presenciais de museus, centros culturais, associações e galerias, a arte!brasileiros iniciou uma série de entrevistas com gestores de algumas das principais instituições do país. Além de Miranda e Farkas, conversamos com Jochen Volz (Pinacoteca do Estado de São Paulo), Eduardo Saron (Itaú Cultural) e Ricardo Ohtake (Instituto Tomie Ohtake). Nesta edição, ouvimos também Marcelo Araujo e João Fernandes (Instituto Moreira Salles) e a série de entrevistas segue em nosso site com diretores de instituições de outras regiões do país.
Vale destacar que quando foram realizadas as entrevistas o governo ainda não havia sancionado a Lei Aldir Blanc, medida que garante renda emergencial de R$ 600 reais a trabalhadores da cultura e de R$ 3.000 a R$ 10.000 a micro e pequenas empresas, associações e organizações da área. A lei, através da qual o governo deve liberar R$ 3 bilhões, foi resultado da pressão da classe artística, que apelou ao Congresso para driblar a inação da secretaria da Cultura. Até a publicação desta matéria ainda não havia informações claras sobre os destinatários do programa nem data definida para o início dos pagamentos, já que o presidente havia vetado o artigo que obrigava a liberação imediata das verbas.
Em conversas que transitaram por assuntos específicos de cada instituição e por temas mais gerais, os cinco entrevistados demonstraram grande preocupação com o contexto político e social do país, mas refletiram também sobre os possíveis caminhos de atuação neste momento. Falaram ainda sobre a intensificação da atuação virtual das instituições no período da pandemia, sobre o mercado de arte e sobre uma realidade global que precisa ser repensada após a passagem do coronavírus, entre outros temas. Leia a seguir os principais trechos das entrevistas.
A atuação nos tempos de isolamento
“O museu é um lugar de diálogo, de construção participativa. Agora estamos em um momento de reflexão, aprendizado e experimentação para ver quais são as formas de manter esse mesmo espírito, mas de forma digital, à distância”, afirma Jochen Volz sobre o trabalho na Pinacoteca. Para ele, “nada substitui uma visita presencial, mas enquanto não for possível, o museu aproveita as possibilidades da internet”. Como resultado das várias atividades promovidas – como uma campanha sobre as obras do acervo, lives com curadores e artistas, um tour virtual pelo museu e a abertura de uma mostra exclusivamente virtual -, Volz destaca não só um considerável aumento nos números de seguidores nas redes, mas também novos modos de interação com o público.
Jochen Volz, diretor da Pinacoteca. Foto: Divulgação
O diretor da Pinacoteca percebe também que essa mudança na atuação durante a pandemia deverá deixar um legado para o período que se segue, mesmo quando as atividades presenciais voltarem. “Estamos discutindo de que forma vamos integrar mais as iniciativas online às atividades presenciais. É importante entender que o museu e o público estão aprendendo ainda como se relacionar de forma efetiva nos meios digitais. Mas tudo que realizamos neste período nos mostra que temos que ficar mais atentos a esses desdobramentos que vão além do espaço físico do museu.”
Para falar sobre a intensa programação online do Sesc-SP nos últimos meses, Danilo Miranda ressalta inicialmente a tentativa de seguir trabalhando com a ideia de “bem-estar social e bem viver”, o que representa a missão da instituição. “A gente lida com cultura nesse sentido bastante amplo. Cultura, para mim, quando a gente considera em um sentido mais antropológico, não é um aspecto da vida, mas é o universo onde estamos inseridos. Diz respeito aos nossos hábitos, à nossa língua, nossa maneira de ser. E então nós trabalhamos questões de atividades físicas, de alimentação, de saúde e com o campo das artes”, explica. “Neste momento, o Sesc procura corresponder a essa expectativa usando as ferramentas que tem à sua disposição”, afirma, destacando as apresentações virtuais de música e teatro, a disponibilização de um vasto acervo digital audiovisual e a realização de conversas e debates sobre ética, questões sociais e artísticas, entre outros.
Para Miranda, no entanto, em discurso consonante ao de Volz, a atuação virtual nunca será suficiente. “Afinal, o ser humano tem a questão da relação pessoal, presencial, inerente à sua natureza. E o encontro mais cedo ou mais tarde vai voltar a acontecer, mas por enquanto o caminho é o isolamento, o afastamento. Então nesse momento não há como se envolver presencialmente, mas digitalmente existem recursos que têm sido aprimorados. A pandemia seria muito mais grave se não fossem essas ferramentas de aproximação virtual.”
Com uma série de depoimentos de artistas, curadores, filósofos, escritores e cineastas, o Instituto Tomie Ohtake, por sua vez, criou a série intitulada #juntosdistantes, tratando de temas variados, inclusive relacionados ao próprio isolamento social. Também se manteve ativo virtualmente com os cursos, podcasts e discussões sobre questões como racismo, negritude e lugar de fala. Ricardo Ohtake não nega, no entanto, a dificuldade em lidar com o momento. “Nós não sabemos quando é que vão acontecer as coisas, então você leva as ideias até certo ponto e a partir daí não consegue planejar mais nada, fica tudo meio no ar.”
Edurado Saron, diretor do Itaú Cultural. Foto: Divulgação
“Confesso que o planejamento não é uma tarefa fácil”, concorda Eduardo Saron. “Como todos, tivemos de nos reinventar e reorganizar os recursos, não somente financeiros, como também organizacionais e humanos, uma vez que, mesmo com a situação diferenciada que o Itaú Cultural (IC) tem, fazemos parte deste ecossistema cultural e econômico, hoje, extremamente afetado”, diz ele. Ao intensificar sua atuação online, o IC se beneficiou também de um vasto acervo que já possuía, relativo aos mais variados campos artísticos. Saron relembra que o instituto nasceu, há mais de 30 anos, para ser uma base de dados de artes plásticas – hoje parte da Enciclopédia de Arte e Cultura Brasileira – e que, neste sentido, a organização está se reencontrando com sua origem.
Parte de um planejamento anterior ao isolamento, o IC também lançou em abril o Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural, uma plataforma digital dedicada à análise de dados sobre cultura e economia criativa. Além disso, o instituto partiu da particularidade de ser uma instituição vinculada a um banco para criar editais de emergência em diferentes áreas artísticas. “A instituição se propõe a acolher parte dos artistas sujeitos a atuar isoladamente e sem remuneração neste período de supressão social”, afirma Saron. “Precisamos ajudar a oferecer liquidez para a economia da cultura nesse período crítico. Além de, naturalmente, oferecer oxigênio criativo afetivo para as pessoas que nos acompanham virtualmente nos nossos canais.”
Apesar da injeção financeira em um mercado fragilizado, a iniciativa não passou imune a críticas, de um lado por ter selecionado, entre centenas de beneficiados, alguns nomes já renomados; de outro, por ser vista como um estímulo à competição e à produtividade como única moeda de troca neste momento de crise. Sobre o assunto, Saron argumenta que o Itaú Cultural já possui uma forte tradição na realização de editais e que, ao perceber uma intensa difusão artística circulando nas redes, teve como intuito “oferecer mais dignidade para a produção e o pensamento artístico em um período como este, mesmo sabendo que, naturalmente, temos escalas limitadas para fazer esse tipo de apoio”.
O desequilíbrio global
Em uma direção distinta à das instituições que intensificaram sua atuação virtual, o Videobrasil se manteve praticamente ausente das redes sociais nos últimos meses. “Essa parada obrigatória foi para mim, em um primeiro momento, uma coisa meio paralisante mesmo. Não apenas pela questão da pandemia, que é trágica, dramática, mas porque ela é muito acentuada e piorada pela nossa condição política”, afirma Farkas. “Fiquei de fato tentando pensar sobre o que está nos acontecendo e como reagir a isso. Repensar inclusive o nosso modo de operar. Acho que há questões tão sérias, tão profundas, que isso tudo nos faz repensar o papel da arte, o papel dessas estruturas e de como elas vinham funcionando.”
Solange Farkas, diretora da Associação Cultural Videobrasil. Fotos: Ale Ruaro
Ao anunciar o adiamento da próxima Bienal Sesc_Videobrasil, programada inicialmente para 2021 e que deve ocorrer apenas em 2023, Farkas afirma também que a instituição pretende, a partir de agora, se dedicar com mais afinco a trabalhar com o vasto acervo (especialmente de vídeo) que construiu em mais de três décadas. O movimento está sendo planejado com a criação de uma nova plataforma, o Videobrasil online, que seguirá olhando para a produção do chamado Sul global – termo que se refere à condição cultural, econômica e política de países e territórios à margem da modernização hegemônica e do capitalismo central.
Ao falar sobre essas regiões menos abastadas do mundo, Farkas ressalta também que o atual contexto, com a pandemia de Covid-19, escancara ainda mais as diferenças sociais e econômicas entre os países. “Sabemos que o Sul global é atingido mais duramente por uma crise como essa. As diferenças de fato são expostas.” Por outro lado, diz ela, é possível pensar também que “quando passar um pouco o ápice de tudo isso, talvez a gente esteja um pouco à frente em relação a algumas alternativas e saídas. Pois se essa situação da pandemia se coloca para todo o globo, nós que vivemos em países subdesenvolvidos, em condições subalternas a esse lugar do mundo onde o dinheiro circula, sempre tivemos que lidar com a precariedade e achar alternativas, sobretudo no campo da arte e da cultura”.
O quadro geopolítico no contexto da pandemia foi tema também da conversa com Danilo Miranda, para quem “o que está acontecendo mostra o desequilíbrio e a falta de equidade social no mundo”. Para o diretor do Sesc-SP, “é muito mais grave o que está acontecendo no Brasil do que o que se passou na Europa. Lá foi grave, aqui vai ser gravíssimo. Porque aqui a desigualdade, a pobreza, a miséria e a falta de condições sanitárias são muito maiores”. Para piorar, “temos um presidente que nega absolutamente tudo isso e atua de uma maneira equivocada, totalmente errática, em todos os sentidos. É tão grave quanto um guerra.”
Para além das consequências, Miranda ressalta ainda que as causas que levaram ao quadro atual não estão desconectados do tratamento que o ser humano dá à natureza, ao planeta. “Então a exploração dos recursos naturais levada ao extremo, além de mexer com questões como o aquecimento global, que já é um fato real, tem consequências na vida biológica de um modo geral, na vida dos seres visíveis e invisíveis que estão sobre a terra”, afirma. Neste sentido, diz ele, a crise gerada pela pandemia do coronavírus demonstra a necessidade de um debate muito mais amplo do que pode aparentar: “Não é apenas um problema de saúde, mas diz respeito à economia, às relações humanas, à cultura, à educação e à vida como um todo”.
Em concordância com o diretor do Sesc, Farkas cita escritos recentes do líder indígena Ailton Krenak para defender que após a pandemia não será possível, nem desejável, voltar à vida como era antes. “Não vamos tentar continuar numa normalidade que não existe. Eu acho que tudo isso que está acontecendo não é gratuito. Como o Krenak fala, essa é uma crise da humanidade, do ser humano. O problema não é o mundo, a natureza, os animais. Somos nós. Quem está doente somos nós. E nesse sentido eu acho que os povos originários têm muito a nos ensinar, a nos dizer. ”
O pós-coronavirus
O tema do mundo que virá após tamanha crise para a humanidade perpassou também , de diferentes modos, as entrevistas de todos os gestores. Para Saron, “paradoxalmente, o pós-corona trará uma humanização da sociedade, o que, por sua vez, demandará o fortalecimento da ciência, o avanço da educação e a ampliação do fazer artístico. Nós, que estamos intimamente ligados ao mundo do conhecimento, precisaremos estar prontos para responder à altura este desejo”. Miranda, por sua vez, considera que o “novo normal” exigirá das pessoas que elas sejam mais solidárias umas com as outras. “Não quer dizer que elas serão mais solidárias, mas serão convidadas a isso. Primeiro porque uma ameaça como essa é para todo mundo. Depois, porque você depende totalmente do outro para poder se manter saudável. Então é quase que uma solidariedade obrigatória, indispensável”, explica.
De um ponto de vista das práticas diárias das instituições, para além da intensificação nas atividades virtuais, a realidade que virá deverá exigir alterações nos modos de atuação presencial. “Vamos ter que rever hábitos”, afirma Miranda. “E enquanto não tiver a vacina, como é que vamos juntar gente para ver um filme, um teatro ou um concerto? Então vai ser um desafio enorme do ponto de vista prático, arquitetônico. Como será o novo presencial?”, questiona ele.
Paradoxalmente, Solange Farkas considera que o trágico contexto da pandemia pode ter ajudado as pessoas a prestarem mais atenção a algumas questões e injustiças sociais latentes na sociedade. Perguntada sobre os casos recentes da morte do menino João Pedro, no Brasil, e do americano George Floyd, que desencadearam protestos e debates sobre o racismo estrutural nos dois países, Farkas diz que “o isolamento social fez com que a gente percebesse mais certas coisas. Porque quando você está numa situação de normalidade, as pessoas passam batido por isso, em geral. Não olham para o outro, não olham para essas questões. Mas essa questão da diferença social, do racismo estrutural, do nível e grau de violência contra a comunidade negra, assim como a indígena, isso sempre existiu”.
E por mais que lamente que tenha sido preciso uma explosão da discussão nos EUA para que muitos no Brasil passassem a falar em antirracismo, ela considera que a pandemia está ajudando a “olharmos essas nossas fragilidades enquanto sociedade”. “Acho que nunca foi tão evidenciada como agora essa personalidade brasileira tão racista, tão superficial. E talvez, a partir desse momento, alguma coisa pode de fato começar a acontecer. Acordar as pessoas para essa questão política, para o racismo escancarado, para essa desgraça, essa lástima que é esse atual governo, autoritário, fascista”, completa.
Ao falar sobre essas temáticas políticas historicamente tratadas no Videobrasil – através da produção de artistas negros, periféricos, indígenas e LGBTs, entre outros – Farkas ressalta também que enxerga com cautela um olhar crescente do mercado para o trabalho destes artistas. “Pois não é exatamente a arte, mas é o mercado quem está olhando para esse lugar. E qualquer coisa chancelada pelo mercado, sobretudo esse mercado predador, eu não vejo com bons olhos, não acho saudável”, afirma. “Descobremesses lugares, percebem que há uma produção potente e que há um momento favorável, em que esses trabalhos vendem, mas não mexem um centímetro para mudar, por exemplo, as condições de produção para esses artistas”. Um dos riscos, deste modo, é uma banalização desta produção, com a criação de rótulos, por exemplo. “Mas os artistas não são bobos. São potentes, são espertos. Muitos artistas, curadores e gestores destes lugares mais à margem são muito politizados, muito articulados. Então eles também ficam com um pé atrás com a gente, por razões óbvias. E eles têm uma consciência do lugar que eles ocupam no mundo.”
Ricardo Ohtake, por sua vez, não deixa de ver com bons olhos essa maior atenção dada pelo mundo da arte à uma produção mais política – incluindo aí o mercado, que tem “se voltado menos para uma arte muito formal e ‘bem feitinha’ e mais para uma arte política”, diz ele. “Porque eu acho que em tempos como os que estamos vivendo temos que mostrar esse tipo de produção, fugir de coisas mais conservadoras”, completa.
Ricardo Ohtake, diretor do Instituto Tomie Othake. Foto: Divulgação.
Paralelos com um passado sombrio
Os “tempos que estamos vivendo”, no caso, se referem ao momento em que o país tem um “governo que não gosta de cultura e também não gosta das posições progressistas que a cultura costuma ter”, segundo Ohtake. Para ele, que desde jovem se envolveu na luta contra a ditadura militar (1964-1985), o atual governo possui paralelos não só com esse período da história brasileira, mas também com regimes como o fascismo e o nazismo que governaram países europeus na primeira metade do século passado. Isso fica nítido, entre outras coisas, no reaparecimento de tentativas de censura ao trabalho de artistas e instituições culturais.
Miranda, no mesmo sentido, considera “que existem muitas maneiras de fazer censura”, para além do modo de controle que era exercido pelo governo militar. “E uma delas é diminuir, ou eliminar, quem produz algo que possa ser censurado. Então naquela época os artistas produziam e eram censurados. Agora, a ideia é que os artistas não tenham nem como produzir direito, porque não têm incentivos e mecanismos.”
Farkas, que realizou o primeiro Festival Videobrasil em 1983, na última fase da ditadura, ressalta também que algumas experiências vividas naquela época parecem ressurgir, com outras roupagens, no contexto atual. “Parece que estou revisitando, desgraçadamente, um momento que passamos lá atrás. Quando começamos o festival ainda existia um mecanismo de censura do Estado muito forte. E eu fui processada várias vezes por exibir trabalhos que tinham sido censurados.” Já nos dias atuais, ela completa, há um outro tipo de censura, “na medida em que você não pode produzir e não consegue falar o que pensa porque não tem condições para isso”.
A escassez de recursos direcionados às instituições culturais não estariam, neste sentido, desvinculadas de um projeto de governo que exclui a cultura de seu planejamento. Para Farkas, esse processo de desmonte remete ao governo anterior, de Michel Temer. “Se não fosse o Sesc, que eu digo sempre que é a nossa política cultural, a gente não teria feito a bienal desde 2016, porque não há condições para isso”. E com o agravamento da situação por conta do isolamento social, “ou você tem que se reinventar, de fato, ou esperar esse terremoto passar. E nesse sentido a pandemia nos tira totalmente de uma zona de conforto. Eu acho que este momento nos obriga a resgatar um pouco o espírito marginal que permeava a criação artística antes dessa profissionalização toda”.
Segundo Ohtake, as captações no instituto, sem vínculo direto com o Estado, têm sido cada vez mais difíceis e, por isso, o número de mostras anuais deverá ser reduzido. “Porque nós também não temos um padrinho, um patrono, como a maioria das grandes instituições têm”, diz ele. “E o fato de ter um governo como esse atual exige que a gente invente as coisas para fazer. Precisamos ser mais inventivos. Nós temos que achar caminhos, procurar saídas para isso tudo, mas é muito difícil saber o que deve ser feito”, completa. No caso da Pinacoteca, um corte de verbas do Governo do Estado por conta da pandemia implicou na redução da jornada de trabalho e salários dos funcionários e na suspensão temporária de outros contratos. Por enquanto não houve demissões, mas o risco não está totalmente descartado.
Para o Sesc-SP, a ameaça de cortes no sistema S (formado por instituições como Sesc, Sesi, Senai e Sebrae) é uma constante desde o início da gestão Bolsonaro – uma Medida Provisória para a diminuição nos repasses de empresas para o sistema transita no Congresso no período de publicação desta reportagem. “Justamente no momento em que mais se necessita de instituições que lidam com essas questões do debate, da discussão, da informação, da educação e da cultura, para que possamos vencer tudo isso”, diz Miranda.
Saron, por sua vez, considera que a falta de uma política de Estado para a cultura não é algo recente. “Há sete anos que o Fundo Nacional da Cultura, um instrumento importantíssimo na constituição de uma política cultural consistente tem visto, sucessivamente, o seu orçamento ser reduzido, mesmo tendo uma fonte segura de recursos advinda das loterias”, diz. “Outro indicativo de vulnerabilidade nas políticas públicas é o fato de que em 30 anos de existência de um órgão dirigente de cultura tivemos, em média, um responsável a cada 10 meses, com exceção de Francisco Weffort, que permaneceu no cargo por oito anos, e de Gilberto Gil, por cinco anos e meio. Tudo isso sem contar a histórica fragilidade da Funarte, em tese a instituição pública que deveria ser a responsável por fomentar a arte no Brasil.”
Danilo Miranda, diretor-geral do Sesc-SP. Foto: Aduato Perin/ Sesc-SP
Tocando em frente
Mesmo com todos os empecilhos, dificuldades econômicas e políticas, em meio à pandemia de Covid-19, os cinco gestores entrevistados afirmam estar buscando os caminhos possíveis para manter vivas e atuantes as instituições que dirigem. “Então eu acho que cada um vai fazendo seu trabalho, algo que consiga responder a essa situação”, diz Ohtake. E em uma “escala macro”, completa, “nós temos que voltar a construir um projeto de país. E um projeto de país tem a ver com arte, com educação e cultura.” Jochen Volz, por sua vez, relembra a Bienal de São Paulo de 2016, Incerteza Viva, da qual foi curador, para dizer que é preciso “pensar em como abraçar este momento de incerteza. E em vez de se recolher no medo, pensar em como transformar esse momento em ação”. Para isso, a arte pode sempre servir de inspiração: “Acho que é um momento de olhar para as estratégias artísticas novamente e ver como os artistas tem, desde sempre, imaginado o inimaginável”.
Danilo Miranda, apesar de tudo, não deixa de se dizer esperançoso. “Porque cultura é muito amplo. É muito mais sério e mais importante do que qualquer governo possa imaginar. E ela vai existir independente da vontade dos governos, estejam eles favorecendo ou prejudicando. Porque ela é inerente à vida humana. Você vai em qualquer lugar deste país, ou do mundo, estão produzindo cultura. E não só a cultura que se transforma num produto – como uma música, uma literatura -, mas a cultura que é a expressão humana necessária na comunicação, na narrativa, no dia a dia, nas lembranças, na memória. Não existe memória sem cultura. Então não conseguirão destruir isso nunca, nunca. Por mais que tentem.” ✱
Trabalho da artista Fernanda Gomes apresentado no viewing room da Galeria Luisa Strina na Art Basel. Foto: Divulgação
Arcar com altos preços para ter um estande; pagar o transporte e o seguro das obras de arte; e desembolsar uma boa quantia em passagens de avião, hospedagem e alimentação da equipe. Isso tudo com o risco de não realizar vendas e voltar para casa no vermelho – sem contar o estresse físico e psicológico envolvido. “O custo total para participar de uma feira de arte é uma loucura. E é sempre muito cansativo”, afirma Luisa Strina, uma das mais experientes galeristas em atividade no mercado brasileiro. A opinião é compartilhada por outros cinco galeristas ouvidos pela arte!brasileiros, que enxergam um esgotamento no modelo em que as galerias gastam boa parte de seus recursos e tempo participando incessantemente de feiras ao redor do mundo. “É muito custoso em termos de dinheiro, mas também em termos físicos e psicológicos. No ano passado eu sai do Brasil em média duas vezes por mês. Não precisa ser assim”, diz Alexandre Gabriel, da Fortes D’Aloia & Gabriel. Para Karla Osório, “havia mesmo uma exaustão, mas infelizmente era visto como uma necessidade, uma regra de mercado”.
E a roda, que não podia parar, de repente parou. Com a pandemia de Covid-19 e a necessidade de isolamento social, feiras foram canceladas, viagens impossibilitadas e, assim como os mais variados setores da economia, o mercado de arte se viu retraído e sem respostas fáceis sobre como prosseguir. Ao contrário de outros campos, no entanto, justamente por estar vivendo um modelo que já demonstrava sinais de esgotamento, muitos galeristas de arte rapidamente perceberam que certas práticas podem – e devem – mudar, inclusive quando a pandemia passar. A busca de um “novo normal”, termo que em quatro meses de pandemia já soa repetitivo e por vezes apenas retórico, talvez seja de fato uma realidade no circuito mercadológico das artes, por demonstrar que outros modos de trabalho podem ser mais práticos e rentáveis. “Eu acho que essa parada também é um momento de reflexão. A gente estava naquele piloto automático, fazendo dez feiras por ano. Você entra numa rotina e nem percebe mais. Então acho sim que as pessoas vão ter que rever algumas coisas”, afirma Alexandre Roesler, da Galeria Nara Roesler.
A principal mudança para as galerias até o momento, para além da intensificação na atuação digital, da realização de lives, exposições virtuais e da criação de algumas iniciativas colaborativas com artistas – certamente os personagens mais frágeis na situação atual -, foi justamente a participação em feiras virtuais. O deslocamento deixou de ser para outra cidade ou país e passou a ser para a tela de computador ou celular mais próximos. A primeira a anunciar o cancelamento do evento presencial e a realização da versão online foi a Art Basel Hong Kong, em março, que contou com 231 galerias em suas viewing rooms (salas de visitação virtual), entre elas quatro brasileiras. Em abril foi a vez da Frieze Nova York, com 200 casas, sendo oito brasileiras; e em junho a Art Basel reuniu 282 galerias, entre elas cinco nacionais. Foi também em junho, na esteira de uma polêmica envolvendo o cancelamento da SP-Arte, que a inédita Not Cancelled Brazil foi realizada, com a participação de 57 galerias, todas brasileiras, e a duração estendida de um mês.
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Trabalhos de Bruno Dunley expostos pela Galeria Nara Roesler na Not Cancelled Brazil
Trabalhos de Eleonore Koch, apresentados pela Almeida e Dale Galeria de Arte na Not Cancelled Brazil
Trabalhos de Clara Ianni expostos pela Galeria Vermelho
Trabalhos de Aurelino dos Santos, também pela Almeida e Dale
Paradoxalmente, com todas as mazelas causadas pela pandemia e uma consequente retração no mercado de arte, o novo formato das feiras explicitou para os galeristas que certas mudanças vieram para ficar, e que se as feiras presenciais não são totalmente substituíveis pelas virtuais, modelos híbridos devem se tornar mais frequentes. Mais do que isso, com uma expansão da atuação virtual, muito mais econômica, será possível selecionar melhor os eventos em que se considera realmente importante estar presente. “Talvez fazer presencialmente entre duas ou três boas feiras internacionais ao ano já seja o suficiente. Você reduz muito os custos de uma operação que é sempre de muito risco. Feira é roleta russa”, afirma a galerista Jaqueline Martins. “E no online o risco é menor, porque se vender menos a frustração é muito menor. Você trabalhou menos, não gastou. Sua condição financeira e seu tempo estão mais protegidos.”
Até o momento, as feiras realizadas virtualmente não cobraram das galerias o valor do estande (no caso, dos viewing rooms). Se isso seguirá assim ou se foi apenas uma medida de emergência por conta da crise, ainda não se sabe. “Provavelmente no futuro vai ter algum custo, mas não se compara ao de uma feira normal”, diz Strina. Desse modo, por mais que o número de vendas tenha sido mais baixo do que o de costume – o que é confirmado pelos galeristas -, a quantidade de transações necessárias para não sair do evento no vermelho é infinitamente menor, já que os custos se resumem à preparação de fotos, vídeos ou campanhas de divulgação. “Com bem menos vendas, eu diria que no saldo final nós tivemos resultados melhores na Frieze e na Basel esse ano do que no ano passado. Porque quando a despesa é zero, você vende uma obra e já está no lucro”, ressalta Gabriel.
Outras práticas, novos comportamentos
Os resultados alcançados pelas galerias são variados. Algumas passaram em branco em determinado evento, mas venderam bem em outro. Os galeristas percebem também que a rápida evolução nas plataformas disponibilizadas pelas feiras têm ajudado a aumentar as interações. Para Eliana Finkelstein, da galeria Vermelho, o número de visitações aos viewing rooms e os contatos com possíveis novos clientes de variados países surpreenderam positivamente a galeria, que até agora participou da Frieze e da Not Cancelled. Ela destaca, ainda, a necessidade de se compreender as novas formas de trabalhar no universo digital. “Eu acho que há obras que se adequam muito bem ao meio virtual, como uma fotografia por exemplo. Outras são mais difíceis.” Alexandre Roesler vai na mesma direção: “Talvez um quadro ou uma foto sejam mais fáceis de visualizar do que uma escultura, ou uma pequena peça de renda, por exemplo”.
Nesse sentido, o galerista vislumbra ainda outros caminhos de criação. “É possível conceber experiências digitais diferentes. Veja o que os programadores de games são capazes de fazer, por exemplo, com a realidade virtual”. Para as próximas feiras, portanto – incluindo a SP-Arte, que deve anunciar em breve sua versão online -, novas possibilidades passam a entrar na mira dos galeristas. Finkelstein ressalta que passa a não haver limites de peso ou espaço para apresentar uma obra; Strina considera que uma feira virtual funcionará melhor com obras mais alegres e coloridas; Gabriel destaca a vantagem de poder apresentar obras que estão fisicamente em diferentes lugares do mundo, sem precisar transportá-las; Jaqueline, por sua vez, relembra que a galeria londrina Rodeo apresentou em seu viewing room na Basel apenas obras sonoras. “Quando eles teriam coragem de fazer um investimento físico desse em uma feira caríssima como a Basel? Seria impensável correr esse risco presencialmente. Então acho que esse desprendimento que o online nos proporciona é também maravilhoso, e nós temos que explorar isso.”
Karla Osório, responsável pela realização da edição brasileira da Not Cancelled – uma feira criada originalmente pela agência austríaca Treat e que já teve versões em outros países – diz perceber também um novo perfil do público comprador, de faixa etária mais baixa. “Todos os novos clientes que eu tenho agora no período da pandemia, cerca de 20 pessoas, têm no máximo 45 anos”. Segundo artigo publicado recentemente pelo The New York Times, uma espécie de conflito de gerações estaria ocorrendo no mercado de arte durante a pandemia, considerando que colecionadores mais jovens se mostram mais dispostos a comprar virtualmente e os mais velhos (em geral com maior poder aquisitivo) são mais reticentes. Deste fato decorreria também uma escolha, por parte de muitas galeristas, de expor nas feiras obras “mais baratas”, mais suscetíveis de serem vendidas aos millennials – geração nascida nos anos 1980 e 1990. “Até um certo limite de preço você consegue trabalhar bem virtualmente”, diz Finkelstein.“Na Not Cancelled levamos só obras de até 16 mil reais.”
“Quebra”, de Renata Lucas, apresenta pela Galeria Luisa Strina na Art Basel. Foto: Divulgação
A constatação de que os colecionadores experientes estão mais reticentes a comprar virtualmente, no entanto, não é compartilhada por todos os galeristas entrevistados. Segundo eles, a prática de vender obras a partir da troca de imagens – basicamente por Whatsapp – já é corrente muito antes da pandemia. “Eu diria que 50% das vendas da minha galeria, e posso dizer que de muitas outras também, já acontecia online, com essa troca de fotos”, ressalta Jaqueline. “Claro que isso é mais raro com novos clientes, mas para um cliente assíduo, que já confia em você e conhece o artista, isso é comum. Então eu acho também que o recuo do mercado não se deu só por esse fato das vendas online, mas porque entramos num caos de saúde, econômico e político.” Alexandre Roesler diz o mesmo: “A gente já vende obras por Whatsapp há vários anos. É raro hoje em dia o colecionador ir à galeria”. Para ele, isso se relaciona, inclusive, com o boom no número de feiras nas últimas décadas – eventos em que o comprador pode ver em um só lugar centenas de galerias.
Crise econômica
O recuo de mercado destacado por Jaqueline foi citado também por todos os outros galeristas, especialmente no que se refere ao primeiro mês de isolamento social. Todos constatam, também, uma retomada gradual dos negócios nos meses seguintes. Neste sentido, dados recentes mostram um quadro que soa surpreendente no contexto político e econômico vivido pelo país. Uma pesquisa realizada em abril pela The Art Newspaper com 236 galerias ao redor do mundo mostrou que 34% delas imaginam que não sobreviverão à crise gerada pela pandemia. Os dados mostram também que as galerias, na média, calculavam uma queda de 72% em suas receitas anuais em 2020. Uma pesquisa semelhante realizada em maio no Brasil – por Tamara Brandt Perlman, da Parte Arte e Cultura – revelou um quadro bem menos dramático para as 47 casas nacionais entrevistadas. Com uma expectativa de redução de faturamento da ordem de 30%, apenas 4% das galerias imaginavam não sobreviver à crise, sendo que 23% das casas preveem crescimento no ano.
Vista geral de Cities in Dust, na Carpintaria (Fortes D’Aloia & Gabriel), exposição que teve que ser fechada e ganhou apresentação online
Segundo a pesquisa, são as galerias menores e com menos anos de atividade as que demonstram menor fôlego financeiro, caso a crise demore a passar. Neste sentido, Karla Osório destaca que as feiras online possuem um caráter de democratização importante, ao colocar todas as galerias no mesmo nível e com o mesmo espaço de apresentação. Ela não imagina, no entanto, que a Not Cancelled Brazil, realizada em caráter de urgência, passe a fazer parte do calendário de feiras, já que eventos tradicionais como SP-Arte e ArtRio voltarão a acontecer. “Mas elas também terão de repensar seu modus operandi, porque esse momento mostrou que é possível, com muito pouco gasto, ter uma presença digital forte”, afirma.
Modelos híbridos, em que presencial e virtual se complementem, parecem o caminho mais provável, segundo os entrevistados. “O formato online veio para ficar, mas não acho que veio para substituir”, diz Gabriel. “Provavelmente vai haver uma redução no número de feiras, mas as grandes, que tem uma robustez econômica maior, certamente vão continuar com os eventos físicos, mesmo que com atividades digitais paralelas”. Alexandre Roesler concorda: “Acho possível que elas continuem acontecendo como um complemento das feiras, até para ampliar o alcance de público. Mas a experiência de estar presencialmente numa feira é muito diferente. Não é só o fato de ver a obra ao vivo. É porque você encontra e reencontra gente, mantém contato com uma rede de colecionadores, conhece ao vivo alguns artistas. Aí tem a festa, e às vezes você vai para outras cidades do país… Quer dizer, é uma vivência que vai muito além de ver as obras ao vivo.”
Trabalhos de Pedro França e Victor Gerhard (ao centro) apresentados pela Galeria Jaqueline Martins na feira Not Cancelled Brazil
Por fim, Gabriel destaca um outro aspecto relevante dos eventos digitais: “O online tem muita transparência. Você sabe o preço antes de perguntar, sabe o que está vendido ou não, ou seja, tem uma coisa mais direta, mais reta”. Mas talvez seja essa objetividade digital, justamente, o que jamais poderá satisfazer totalmente o mercado de arte. “Uma vez, discutindo sobre esse esgotamento com o diretor de uma feira, ele me disse que as feiras nunca vão acabar porque as pessoas adoram eventos sociais. E é verdade”, conclui Jaqueline. “E não digo num sentido vulgar, mas é um lugar onde você vai encontrar pessoas, se comunicar, fazer contatos. E é difícil imaginar uma outra oportunidade para, em dois ou três dias, se misturar a tantas pessoas de lugares e culturas tão distintas.” Mas, sim, conclui Luisa Strina, “a feira virtual veio para ficar, e as pessoas precisam se acostumar” ✱
"Paragomonstro na Paulista", de Túlio Freitas Tavares, obra que está em “Pandemia”, revista virtual coletiva organizada pelo portal NaBorda, 2020. Foto: Cortesia NaBorda.
Seis meses depois dos primeiros alertas sobre o Covid-19, ainda circunscrito à região de Wuhan, na China, e três meses depois do vírus chegar de forma inquestionável ao Brasil – depois de passagens devastadoramente letais pela Europa e Estados Unidos, a situação ainda é de paralisia, angústia e desalento. A crise epidêmica é reforçada pelo colapso econômico e, no caso brasileiro, por uma tensão política sem precedentes. Em meio a tudo isso, como analisar as potencialidades da cultura, os efeitos desse cenário sobre artistas, instituições e consumidores de arte? Como avaliar as respostas dadas até o momento, em busca de paliativos digitais, e sopesar as opiniões que variam desde uma otimista visão de que sairemos melhor dessa situação, até uma ácida sensação de que uma era se encerra, mas não se sabe ainda o que virá depois dela?
O cenário de exceção, que provoca letargia e desespero, medo e esperança de transformação, também parece ter um efeito revelador, tornando as fragilidades mais palpáveis, os descasos mais evidentes e as falhas mais perceptíveis. É como se a excepcionalidade da situação, a suspensão da normalidade que perpetua os modelos repetidos muitas vezes de forma mecânica, tornasse mais evidente nossas enormes carências. Do dia para a noite, todos parecem ter descoberto como são fracas as estratégias de comunicação virtual de museus, galerias e outras instituições culturais e como são ainda débeis as ações de ampliação do público por meios digitais. Salvo raras exceções de iniciativas para dinamizar a divulgação dos acervos, discussão de conteúdo e ampliação do contato virtual com o público, tudo permaneceu igual.
Vivemos de repente, e de maneira intensa, a necessidade de acelerar fortemente os mecanismos virtuais de consumo, circulação e produção de arte
A reação ao óbvio veio carregada de perversidade típica dos nossos tempos. Ao invés de atrair novas e férteis contribuições neste campo, as instituições cortaram gastos exatamente onde faziam falta, enxugando os setores de educação e comunicação. Segundo pesquisa realizada pela seção brasileira do Comitê para a Educação e Ação Cultural do Conselho Internacional de Museus (CECA-BR/ICOM) e da Rede de Educadores em Museus do Brasil (REM-BR), 24% das 147 instituições consultadas (em 19 estados) demitiram funcionários com medo da dupla crise, econômica e sanitária. Além disso, 74% dos consultados estavam realizando trabalho à distância e relataram graves dificuldades como falta de equipe para realização de projetos virtuais e impossibilidade de acesso aos acervos das instituições (obras, documentos etc.).
Além de claras limitações materiais, a falta de intimidade com conteúdos digitais, a inexistência de bases de dados virtuais, a dificuldade em transpor uma relação entre público e arte, que demanda um contato físico, estão entre as principais dificuldades enfrentadas por aqueles que pretendem estabelecer novas formas de fruição, que permitam ao público iniciar ou dar continuidade a uma relação com o universo da arte. Vivemos de repente, e de maneira intensa, a necessidade de acelerar fortemente os mecanismos virtuais de consumo, circulação e produção de arte. Não se trata de substituir a relação entre obra e espectador, mas sim de desenvolver novas formas e critérios para isso, desafio que se coloca para museus, galerias, arquivos e instituições de arte em todo o mundo.
“Novos Empreendimentos”, de Eduardo Verderame, também na revista “Pandemia”, 2020. Foto: Cortesia NaBorda.
Ferramentas vêm sendo criadas para isso e há uma série de projetos de formação e disseminação dessas estratégias, como o Abre-te Código, desenvolvido pelo Instituto Goethe em parceria com Coding da Vinci, Conselho Internacional de Museus no Brasil, Creative Commons BR, Wiki Movimento Brasil, Fundação Bienal de São Paulo, Instituto Moreira Salles e Itaú Cultural. O projeto, que teve início no mês de junho e terá três meses de duração, tem por objetivo realizar uma capacitação em rede, disponibilizando ao público uma série de discussões e estudos de caso que tratam de aspectos como legislação, sistemas, processos e tecnologia. O coordenador do projeto no Brasil, Leno Veras, faz questão de ressaltar o enorme potencial desse tipo de ação, que vai muito além de emular a experiência de uma visita ao museu. Segundo ele, o caminho é articular contextos, promover novas experiências e estimular uma maior participação do público. “As instituições precisam entender que a tecnologia não é fim, é meio”, afirma.
É possível, no entanto, imaginar que a crise atual venha acelerar uma reação por parte das instituições, tornando mais ágeis e criativas as formas de contato com o público. É o caso por exemplo da iniciativa tomada pela 12ª Bienal do Mercosul que, ao invés de adiar sua realização, optou por realizar o evento online. Outras instituições de fôlego, como o Masp e a Bienal de São Paulo, vêm tentando conquistar o público com uma oferta crescente de lives, destaques de acervo e exposições virtuais. É o caso por exemplo da mostra Distância, organizada pela Pinacoteca com curadoria de Ana Maria Maia, que põe em diálogo cinco videoartes do acervo do museu, nas quais se veem pessoas em situação de distanciamento, físico mas também social, de raça ou gênero.
É possível imaginar que a crise atual venha acelerar uma reação por parte das instituições, tornando mais ágeis e criativas as formas de contato com o público
Seguir exemplos internacionais de sucesso, como os bem realizados sites de museus como o Prado ou o British Museum – que reúnem um volume enorme de informações que o visitante pode consultar de maneira ágil e a partir de focos bastante precisos e pessoais – pode parecer um sonho impossível num momento em que falta mão de obra, tempo e dinheiro. Daí a importância das iniciativas em rede, coletivas, autogestionadas que, mesmo tendo alcance menor, tem um efeito randômico e libertador. Uma delas é a iniciativa do portal-revista-museu NaBorda, de realizar uma edição especial dedicada à pandemia.
O projeto reúne trabalhos de dezenas de artistas, de diferentes gerações, que se debruçam sobre esse momento delicado, desafiante e assustador. Alguns trabalhos são comentários mais diretos sobre o momento político e social atual – como a terrível Novos Empreendimentos, de Eduardo Verderame, que transforma os túmulos abertos massivamente em suntuosos lançamentos imobiliários, ou o ABC do Coronavirus, do nigeriano Ayò Akínwáné, que explicita o caráter excludente e racista das nossas sociedades. Outros lidam de forma mais poética com a sensação de suspensão que estamos vivendo, mostrando como são múltiplos e coletivos os caminhos, estratégias e ações para enfrentar esse mundo em interregno. Afinal, como sintetiza Verderame, “não são tempos fáceis e irão deixar marcas fortes na subjetividade de uma geração inteira”.